CAPÍTULO 24
Eles estavam correndo através de ruas desertas, fazendo uma volta para atingir o ancoradouro e a galera. Havia dez deles - Toranaga liderando, Yabu, Mariko, Blackthorne, e seis samurais. O resto, comandado por Buntaro, fora enviado com as liteiras e a bagagem pela estrada prevista, com instruções de rumar com calma para a galera. O corpo de Asa, a criada, encontrava-se numa das liteiras. Durante um momento de trégua na luta, Blackthorne lhe extraíra a flecha farpada. Toranaga vira o sangue escuro que esguichou e vira, desconcertado, quando o piloto a enfaixara ao invés de permitir que ela morresse calmamente com dignidade, e depois, quando a luta cessara inteiramente, a suavidade com que o piloto a colocara dentro da liteira. A garota era corajosa e não se lamuriara em absoluto, só olhara para ele até que a morte viera. Toranaga deixara-a na liteira acortinada como engodo e um dos feridos fora colocado na segunda liteira, também como engodo.
Dos cinqüenta marrons que formavam a escolta, quinze tinham sido mortos e onze mortalmente feridos. Os onze tinham sido rápida e honrosamente encaminhados ao Grande Vazio, três pelas próprias mãos, oito solicitaram a ajuda a Buntaro. Depois Buntaro reunira os remanescentes em torno das liteiras fechadas e partira. Quarenta e oito cinzentos jaziam no pó.
Toranaga sabia que se encontrava perigosamente desprotegido, mas sentia-se contente. Tudo correra bem, pensou ele, considerando as vicissitudes da sorte. Como a vida é interessante! Primeiro pensei que fosse um mau presságio o piloto ter-me visto trocando de lugar com Kiri. Depois o piloto me salvou e comportou-se como um louco à perfeição, e por causa dele escapamos de Ishido. Eu não havia imaginado que Ishido estivesse no portão principal, apenas no adro. Isso foi negligência. Por que Ishido estava lá? Não é próprio dele ser tão cuidadoso. Quem o aconselhou? Kiyama? Onoshi? Ou Yodoko? Uma mulher, sempre prática, poderia suspeitar de um subterfúgio assim.
Era um bom plano - a escapada secreta -, estabelecido há semanas, pois era óbvio que Ishido tentaria mantê-lo no castelo, voltaria os outros regentes contra ele prometendo-lhes qualquer coisa, de bom grado sacrificaria seu refém em Yedo, a Senhora Ochiba, e usaria qualquer meio de mantê-lo sob guarda até a reunião final de regentes, quando ele seria encurralado, impedido e morto.
- Mas eles ainda o impedirão! - dissera Hiromatsu, quando Toranaga mandara chamá-lo logo após o crepúsculo, na véspera, para explicar o que devia ser tentado e por que ele, Toranaga, estivera vacilando. - Mesmo que o senhor escape, os regentes o impedirão pelas costas tão facilmente quanto o farão na sua cara. Depois o senhor será obrigado a cometer seppuku, quando eles o ordenarem, e é certo que ordenarão.
- Sim - dissera Toranaga. - Na qualidade de presidente dos regentes, sou obrigado a fazer isso se os quatro votarem contra mim. Mas aqui - ele tirara da manga um pergaminho enrolado - está a minha renúncia formal ao conselho de regentes. Você a entregará a Ishido quando a minha fuga se tornar conhecida.
- O quê?
- Se eu renuncio deixo de ser obrigado pelo meu juramento de regente. Neh? O taicum nunca me proibiu de renunciar, neh? De isto a Ishido, também - dissera ele, estendendo a Hiromatsu o carimbo, o selo oficial do seu posto de presidente.
- Mas agora o senhor está totalmente isolado. Está condenado!
- Engana-se. Ouça, o testamento do taicum implantou um conselho de cinco regentes no reino. Agora há quatro. Para ser legal, antes que possam exercer o mandato do imperador, os quatro têm que eleger ou designar um novo membro, um quinto, neh? Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama têm que concordar, neh? O novo regente não tem que ser aceitável para todos eles? Claro! Agora, companheiro, com quem, no mundo inteiro, esses inimigos concordarão em partilhar o poder supremo? Hem? E enquanto estiverem decidindo, não haverá decisões e...
- Estaremos nos preparando para a guerra, o senhor não terá mais obrigaçoes e poderá soltar um pouco de mel aqui, um pouco de fel ali e esses cagões peludos se devorarão entre si! - dissera Hiromatsu com ímpeto. - Ah, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, o senhor é um homem entre homens. Comerei meu traseiro se o senhor não é o homem mais sábio do globo!
Sim, era um bom plano, pensou Toranaga, e todos desempenharam o seu papel: Hiromatsu, Kiri e a minha adorável Sazuko. E agora estão trancados lá e permanecerão assim ou serãoautorizados a partir.
Acho que nunca serão autorizados a partir.
Sentirei em perdê-los.
Liderava o grupo com segurança, com passo rápido mas comedido, o passo com que caçava, o passo que podia manter continuamente por dois dias e uma noite, se necessário. Ainda usava o manto e o quimono de viagem de Kiri, mas as saias estavam arregaçadas.
Cruzaram outra rua deserta e rumaram por uma rua estreita. Ele sabia que logo o alarme chegaria a Ishido e então a caçada seria deflagrada com determinação. Há tempo suficiente, disse ele a si mesmo.
Sim, foi um bom plano. Mas não previ a emboscada. Custoume três dias de segurança. Kiri tinha certeza de poder manter o logro em segredo pelo menos durante três dias. Mas agora o segredo foi descoberto e não poderei embarcar e zarpar despercebido. Para quem era a emboscada? Para mim ou para o piloto? Claro que para o piloto. Mas as setas não visavam as duas liteiras? Sim, mas os arqueiros estavam bem longe e devia ser difícil enxergar, e seria mais sábio e mais seguro matar os dois, só por precaução.
Quem ordenou o ataque, Kiyama ou Onoshi? Ou os portugueses? Ou os padres cristãos?
Toranaga voltou-se para examinar o piloto. Viu que ele não estava esmorecendo, nem a mulher, que caminhava ao seu lado, embora estivessem ambos cansados. No horizonte podia ver a massa atarracada e vasta do castelo e o falo do torreão. Esta noite foi a segunda vez que eu quase morri lá, pensou ele. Será que esse castelo realmente vai ser a minha nemesis? O taicum me dizia com freqüência: "Enquanto o Castelo de Osaka existir,. minha linhagem nunca morrerá e você, Toranaga Minowara, seu epitáfio será escrito em suas paredes. Osaka lhe causará a morte, meu fiel vassalo!" E sempre a risada sibilante, molesta, que o deixava muito nervoso.
Será que o taicum vive em Yaemon? Viva ou não, Yaemon é o herdeiro legal.
Com um esforço, Toranaga desviou os olhos do castelo, dobrou outra esquina e nveredou por um labirinto de alamedas. Finalmente parou diante de um portão gasto pelo tempo. Havia um peixe gravado em suas toras. Ele bateu em código. A porta se abriu de imediato. Instantaneamente um samurai desgrenhado curvou-se.
- Senhor?
- Traga os seus homens e siga-me - disse Toranaga, e pôs-se em movimento de novo.
- Com prazer. - Esse samurai não usava o uniforme marrom, apenas coloridos trapos de ronin, mas fazia parte das tropas de elite secretas que Toranaga havia contrabandeado para Osaka, para o caso de uma emergência assim. Quinze homens, semelhantemente vestidos, e igualmente bem armados, seguiram-no e rapidamente tomaram posição à vanguarda e à retaguarda, enquanto outro abalava para espalhar o alarme para outros destacamentos secretos. Logo Toranaga tinha cinqüenta homens consigo. Mais cem cobriam-lhe os flancos. Mil estariam prontos ao amanhecer, se viesse a precisar deles. Ele descontraiu-se e afrouxou o passo, sentindo que o piloto e a mulher estavam se cansando depressa demais. Precisava deles fortes.
De pé em meio às sombras do depósito, Toranaga estudou a galera, o embarcadouro e a praia. Yabu e um samurai estavam ao seu lado. Os outros reunidos tinham sido deixados a cem passos atrás, na viela.
Um destacamento de cem cinzentos esperava perto da escada de costado da galera a uns cem passos de distância, do outro lado de uma larga extensão de terra batida que impedia qualquer ataque de surpresa. A galera estava atracada a pilares fixados no embarcadouro de pedra que avançava cem jardas para dentro do mar. Os remos estavam armados com cuidado e Toranaga podia ver, indistintamente, muitos marujos e guerreiros no convés.
- São nossos ou deles? - perguntou em voz baixa.
- A distância é muita para se ter certeza – respondeu Yabu.
A maré estava alta. Além da galera, barcos de pesca aproximavam-se e partiam, com lanternas servindo de luzes de âncora e de pesca. Ao norte, ao longo da praia, havia fileiras de barcos de pesca de muitos tamanhos, abicados na areia e cuidados por alguns pescadores. Quinhentos passos ao sul, ao longo de outro embarcadouro de pedra, estava a fragata portuguesa, a Santa Theresa. A luz dos archotes, enxames de carregadores azafamados carregavam barris de fardos. Outro grande grupo de cinzentos espalhava-se à toa por perto. Isso era habitual, porque todos os navios portugueses atracados, e os estrangeiros em geral, deviam, por lei, estar sob perpétua vigilância. Era só em Nagasaki que a navegação portuguesa ocorria livremente.
Se a segurança pudesse ser reforçada lá, todos nós dormiríamos mais seguros à noite, disse Toranaga a si mesmo. Sim, mas poderíamos mantê-los sob estrita vigilância e continuar tendo o comércio com a China em índices sempre crescentes? Isso é uma armadilha dentro da qual os bárbaros meridionais nos têm e de onde não há escapatória, não enquanto os daimios cristãos dominarem Kyushu e os padres forem necessários. O melhor que podemos fazer é o que o taicum fez. Dar um pouco aos bárbaros, fingir tomar de volta, tentar blefar, sabendo que, sem o comércio com a China, a vida seria impossível.
- Com a sua permissão, senhor, atacarei imediatamente - sussurrou o samurai.
- Aconselho o contrário - disse Yabu. - Não sabemos se nossos homens estão a bordo. E poderia haver mil homens escondidos por toda parte aqui. Aqueles homens - apontou para os cinzentos perto do navio português - darão o alarme. Nunca conseguiríamos tomar o navio e zarpar antes que eles nos retivessem. Precisamos de dez vezes o número de homens que temos agora.
- O Senhor Ishido logo estará informado - disse o samurai. - Então Osaka toda estará fervilhando com mais inimigos do que moscas num campo de batalha recente. Tenho cento e cinqüenta homens, contando com os que estão nos nossos flancos. Serão suficientes.
- Não para que tenhamos segurança. Não se os nossos marinheiros não estiverem prontos aos remos. É melhor criar uma situação que desvie a atenção dos cinzentos, e de quaisquer outros que estejam escondidos. Aqueles, também - Yabu apontou novamente para os homens perto da fragata.
- Que tipo de situação? - perguntou Toranaga.
- Incendiar a rua.
- E impossível! - protestou o samurai, agastado. Incêndio doloso era crime punível com a queima em público de toda a família da pessoa culpada, de cada geração da família. A penalidade era a mais severa, por lei, porque um incêndio era o maior perigo que podia haver para uma aldeia ou cidade do império. Madeira e papel eram os únicos materiais de construção utilizados, com exceção de telhas em alguns telhados. Cada lar, cada depósito, cada choupana e cada palácio era um isqueiro. — Não podemos incendiar a rua!
- O que é mais importante - perguntou Yabu -, a destruição de algumas ruas ou a morte do nosso amo?
- O fogo se alastraria, Yabu-san. Não podemos queimar Osaka. Há um milhão de pessoas aqui, mais que isso.
- É essa a sua resposta à minha pergunta?
Empalidecido, o samurai voltou-se para Toranaga:
- Senhor, farei qualquer coisa que o senhor peça. É isso o que quer que eu faça?
Toranaga limitou-se a olhar para Yabu. O daimio sacudiu o polegar desdenhosamente na direção da cidade.
- Há dois anos a metade dela se incendiou e olhe agora. Há cinco anos foi o Grande Incêndio. Quantas centenas de milhares se perderam então? O que isso importa? São apenas lojistas, mercadores, artesãos, e etas. Não é como se Osaka fosse uma aldeia cheia de camponeses.
Toranaga havia avaliado o vento de há muito. Era leve e não alastraria o fogo. Talvez. Mas uma labareda podia facilmente transformar-se num holocausto, que devoraria a cidade inteira. Exceto o castelo. Ah, se fosse apenas consumir o castelo, eu não hesitaria nem um momento.
Girou sobre os calcanhares e voltou-se para os outros.
- Mariko-san, leve o piloto e nossos seis samurais e vá para a galera. Finja estar quase em pânico. Diga aos cinzentos que houve uma emboscada, de bandidos ou ronins, você não tem certeza. Diga-lhes onde aconteceu, que você foi mandada na frente com urgência pelo capitão da nossa escolta de cinzentos para levar mais cinzentos como ajuda, que a batalha ainda não terminou, que você acha que Kiritsubo foi morta ou ferida. Que eles se apressem, por favor. Se você for convincente, isso afastará daqui a maior parte deles.
- Compreendi perfeitamente, senhor.
- Depois, não importa o que os cinzentos façam, vá para bordo com o piloto. Se nossos marinheiros estiverem lá e o navio seguro e protegido, volte à escada de embarque e finja desmaiar. Esse é o nosso sinal. Faça isso exatamente no topo da escada. - Toranaga pousou os olhos em Blackthorne. - Diga-lhe o que você vai fazer, mas não que você vai desmaiar. - Afastou-se para dar ordens ao resto de seus homens e instruções especiais aos seis samurais.
Quando Toranaga terminou, Yabu puxou-o de parte.
- Por que mandar o bárbaro? Não seria mais seguro deixá-lo aqui? Mais seguro para o senhor?
- Mais seguro para ele, Yabu-san, mas não para mim. Ele é um ardil útil.
- Incendiar a rua seria ainda mais seguro.
- Sim. - Toranaga pensou que era melhor ter Yabu ao seu lado do que ao lado de Ishido. Ainda bem que não o fiz pular da torre ontem.
- Senhor?
- Sim, Mariko-san?
- Desculpe, mas o Anjin-san perguntou o que vai acontecer se o navio estiver em poder do inimigo.
- Diga-lhe que não precisa ir com você se não for forte o suficiente.
Blackthorne conservou a calma quando ela lhe disse o que Toranaga mandara.
- Diga ao Senhor Toranaga que o plano dele não é bom para a senhora, que a senhora devia ficar aqui. Se tudo estiver bem, eu posso dar o sinal.
- Não posso fazer isso, Anjin-san, não é o que o nosso amo ordenou - disse-lhe Mariko com firmeza. - Qualquer plano idealizado por ele com certeza é muito sábio.
Blackthorne entendeu que não havia sentido em discutir. Deus amaldiçoe a arrogância sanguinária e teimosa deles, pensou. Mas, por Deus, que coragem eles têm! Os homens e esta mulher!
Ele a observara na emboscada, empunhando a longa espada que tinha quase o mesmo tamanho que ela, pronta para lutar até a morte por Toranaga. Vira-a usar a espada uma vez, com perícia, e embora fosse Buntaro quem tivesse matado o atacante, ela lhe tornara isso mais fácil, forçando o homem a recuar. Ainda havia sangue em seu quimono agora, rasgado em alguns lugares. Seu rosto estava sujo.
- Onde aprendeu a usar a espada? - perguntara-lhe enquanto se apressavam na direção do embarcadouro.
- O senhor devia saber que todas as senhoras samurais aprendem bem cedo a usar uma faca para defender a própria honra e a de seus senhores - dissera ela simplesmente, e mostrara-lhe como o estilete era guardado no obi, pronto para uso imediato. - Mas algumas de nós, poucas, também aprendem a usar espada e lança, Anjin-san. Alguns pais acham que as filhas, assim como os filhos, devem ser preparadas para a batalha pelos seus senhores. Claro que algumas são mais belicosas do que outras e apreciam ir à batalha com o marido ou o pai. Minha mãe era assim. Meu pai e ela resolveram que eu devia conhecer a espada e a lança.
- Não fosse o capitão dos cinzentos estar no caminho, a primeira seta teria ido bem na sua direção - dissera ele.
- Na sua direção, Anjin-san - corrigira ela, muito segura. - Mas o senhor realmente me salvou a vida puxando-me para a segurança.
Agora, olhando para ela, soube que não gostaria que nada lhe acontecesse.
- Deixe-me ir com os samurais, Mariko-san. A senhora fica aqui. Por favor.
- Isso não é possível, Anjin-san.
- Então quero uma faca. Melhor ainda, dê-me duas.
Ela passou o pedido a Toranaga, que concordou. Blackthorne escorregou uma por sob o sash, dentro do quimono. A outra, amarrou-a com o cabo para baixo na face interna do antebraço com uma tira de seda que rasgou da bainha do quimono.
- Meu amo pergunta se todos os ingleses portam facas secretamente na manga assim.
- Não. Mas muitos marujos sim.
- Não é comum aqui, nem com os portugueses - disse ela.
- O melhor lugar para uma faca sobressalente é a bota. Então se pode causar um dano bem sério, muito depressa. Se necessário.
Ela traduziu isso e Blackthorne notou os olhos atentos de Toranaga e Yabu, e sentiu que os dois não gostaram da idéia de vê-lo armado. Bom, pensou ele. Talvez eu possa continuar armado.
Novamente sentiu curiosidade em relação a Toranaga. Depois que a emboscada fora repelida e os cinzentos mortos, Toranaga, através de Mariko, lhe agradecera diante de todos os marrons pela sua "lealdade". Mais nada. Nenhuma promessa, nenhum acordo, nenhuma recompensa. Mas Blackthorne sabia que isso viria mais tarde. O velho monge lhe dissera que a lealdade era a única coisa que eles recompensavam.
- Lealdade e dever, señor - dissera -, é o culto deles, esse bushido. Enquanto nós damos a vida a Deus e a seu abençoado filho Jesus, e a Maria, mãe de Deus, esses animais se dão a seus amos e morrem como cães. Lembre-se, señor, pela salvação da sua alma, de que são animais.
Não são animais, pensou Blackthorne. E muito do que o senhor disse, padre, é um erro e um exagero fanático.
- Precisamos de um sinal que diga se o navio é seguro ou não - disse a Mariko.
Novamente ela traduziu, inocentemente desta vez.
- O Senhor Toranaga diz que um dos nossos soldados fará isso.
- Não vejo bravura em mandar uma mulher para fazer o serviço de um homem.
- Por favor, seja paciente conosco, Anjin-san. Não há diferença entre homens e mulheres. As mulheres são iguais, enquanto samurais. Neste plano uma mulher seria muito melhor do que um homem.
Toranaga disse concisamente alguma coisa a ela.
- Está pronto, Anjin-san? Devemos ir agora.
- O plano é péssimo e perigoso e estou cansado de ser um maldito pato depenado sacrifical, mas estou pronto.
Ela riu, curvou-se para Toranaga, e saiu correndo. Blackthorne e os seis samurais correram atrás dela.
Ela foi muito veloz e ele não a alcançou quando dobraram a esquina e rumaram para espaço aberto. Nunca se sentira tão vulnerável. No momento em que apareceram, os cinzentos os localizaram e arremeteram. Logo estavam cercados, Mariko palrando febrilmente com os samurais e os cinzentos. Depois ele também se juntou à babel numa arquejante mistura de português, inglês e holandês, gesticulando para que se apressassem, e tateou na direção da escada de embarque a fim de se encostar nela, precisando fingir estar sem fôlego. Tentou ver dentro do navio, mas não conseguiu distinguir nada, apenas muitas cabeças aparecendo à amurada. Viu o crânio raspado de muitos samurais e muitos marujos. Não conseguiu discernir a cor dos quimonos.
Atrás dele um dos cinzentos lhe falava rapidamente e ele voltou-se dizendo que não compreendia, que ele fosse para lá, depressa, para onde estava acontecendo a maldita batalha.
- Wakarimasu ka? Ponha o seu traseiro rabudo para fora daqui! Wakarimasu ka? A luta é lá!
Mariko derramava freneticamente uma enxurrada de palavras sobre o oficial superior dos cinzentos. O oficial encaminhou-se de volta ao navio e gritou ordens. Imediatamente mais de cem samurais, todos cinzentos, começaram a brotar do navio. O oficial mandou alguns para norte, ao longo da praia, para interceptar os feridos e ajudá-los se necessário. Um foi enviado às pressas para buscar ajuda dos cinzentos da galera portuguesa. Deixando dez homens para trás a fim de guardar a escada de embarque, comandou os demais numa investida à rua que subia coleando do embarcadouro, rumo à cidade propriamente dita.
Mariko aproximou-se de Blackthorne.
- O navio lhe parece em ordem? - perguntou.
- Está flutuando. - Com um grande esforço Blackthorne agarrou as cordas da escada e se içou para o convés. Mariko seguiu-o. Dois marrons vieram atrás dela.
Os marujos que se amontoavam junto à amurada de bombordo abriram caminho. Quatro cinzentos guardavam o tombadilho e havia mais dois na popa. Estavam todos armados de arco e flechas, assim como de espadas.
Mariko interrogou um dos marinheiros. O homem respondeu-lhe serviçalmente.
- São todos marinheiros contratados para levar Kiritsubo-san para Yedo - disse a Blackthorne.
- Pergunte-lhe... - Blackthorne parou ao reconhecer o pequeno e atarracado imediato que fizera capitão da galera depois da tempestade.
- Konbanwa, capitão-san! Boa noite.
- Konbanwa, Anjin-san. Watashi iyé capitão-san ima - retrucou o imediato com um sorriso, abanando a cabeça. Apontou para um marinheiro baixinho com o cabelo cinza-ferro preso numa cauda eriçada, que se erguia sozinho no tombadilho. - Imasu capitão-san!
- Ah, so desu? Halloa, capitão-san! - disse alto Blackthorne, curvando-se. Baixando a voz, disse a Mariko: - Descubra
se há cinzentos lá embaixo.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o capitão estava
retribuindo a mesura e gritava ao imediato. Este assentiu e respondeu pormenorizadamente. Alguns dos marinheiros também expressaram seu assentimento. O capitão e todos a bordo estavam muito impressionados.
- Ah, so desu, Anjin-san! - Então o capitão gritou: - Keirei! Saudação! - Todos a bordo, exceto os samurais, curvaram-se para Blackthorne em saudação.
- Este imediato disse ao capitão que o senhor salvou o navio durante a tempestade - disse Mariko. - O senhor não nos contou sobre a tempestade nem sobre a sua viagem.
- Há pouco que contar. Foi apenas mais uma tempestade. Por favor, agradeça ao capitão e diga-lhe que estou feliz por me encontrar a bordo de novo. Pergunte-lhe se estamos prontos para partir quando os outros chegarem. - E acrescentou em voz baixa: - Descubra se há mais cinzentos lá embaixo.
Ela fez conforme o ordenado.
O capitão aproximou-se e ela pediu mais informações e depois, pegando a deixa do capitão sobre a importância de Blackthorne a bordo, curvou-se para Blackthorne:
- Anjin-san, ele lhe agradece pela vida de seu navio e diz que estão prontos - e mais baixo: - quanto ao resto, ele não sabe.
Blackthorne deu uma olhada na praia. Não havia sinal de Buntaro nem da coluna ao norte. Os samurais enviados ao sul, na direção do Santa Theresa, ainda se encontravam a umas cem jardas do seu destino, ainda despercebidos.
- E agora? - disse ele, quando já não conseguia agüentar a espera.
O navio está seguro? Resolva-se, dizia ela a si mesma.
- Aquele homem chegará lá a qualquer momento - disse ele, olhando para a fragata.
- O quê?
Ele apontou.
- Aquele... o samurai!
- Que samurai? Desculpe, não consigo enxergar a essa distância, Anjin-san. Posso ver tudo no navio, embora os cinzentos na dianteira do navio estejam nebulosos. Que homem?
Ele lhe disse, acrescentando em latim:
- Agora ele está a uns cinqüenta passos de distância. Foi visto. Precisamos de ajuda seriamente. Quem dá o sinal? Deve ser dado rapidamente!
- Meu marido, há algum sinal dele? - perguntou ela em português.
Ele meneou a cabeça.
Dezesseis cinzentos erguem-se entre meu amo e a segurança, pensou ela. Oh, minha Nossa Senhora, proteja-o!
Então, encomendando a alma a Deus, receosa de estar tomando a decisão errada, ela se dirigiu debilmente para o topo da escada de embarque e fingiu desmaiar.
Blackthorne foi pego de surpresa. Viu a cabeça dela bater desagradavelmente contra os sarrafos de madeira. Os marinheiros começaram a se aglomerar, cinzentos convergiram do ancoradouro e dos conveses, enquanto ele acorria. Levantou-a e carregou-a por entre os homens, para o tombadilho.
- Tragam água... água, hai?
Os marujos olhavam-no sem compreender. Desesperado, ele rebuscou na memória à procura da palavra japonesa. O velho monge lhe dissera cinqüenta vezes. Cristo, como é?
- Oh... mizu, mizu, hai?
- Ah, mizu! Hai, Anjin-san. - Um homem se afastou às carreiras. Houve um súbito grito de alarme.
Em terra, trinta dos samurais de Toranaga disfarçados de ronins vinham disparados da viela. Os cinzentos que haviam começado a deixar o cais voltaram às pressas para junto da escada.
Os que estavam no tombadilho e na popa espicharam o pescoço para ver melhor. Abruptamente um gritou ordens. Os arqueiros armaram os arcos. Todos os samurais, marrons e cinzentos lá embaixo, sacaram as espadas, e muitos acorreram de volta ao molhe.
- Bandidos! - gritou um dos marrons, seguindo o plano. Imediatamente os dois marrons no convés se separaram, um indo para a frente, outro para a popa. Os quatro em terra se desdobraram em leque, misturando-se com os cinzentos à espera.
- Alto!
Os samurais ronins de Toranaga investiram. Uma seta atingiu um homem no peito e ele caiu pesadamente. Instantaneamente o marrom na popa matou o arqueiro cinzento e se lançou sobre o outro, mas este foi mais rápido e eles travaram espadas, o cinzento gritando uma advertência de traição aos outros. O marrom no tombadilho de popa havia mutilado um dos cinzentos, mas os outros tres o liquidaram rapidamente e correram para o topo da escada, marujos se dispersando. Os samurais no embarcadouro lutavam encarniçadamente, com os cinzentos sobrepujando os quatro marrons, sabendo que tinham sido traídos e que, a qualquer momento, também eles seriam engolidos pelos atacantes. O líder dos cinzentos no convés, um homenzarrão violento de barba grisalha, encarou Blackthorne e Mariko.
- Matem os traidores! - vociferou ele e, com um grito de batalha, arremeteu.
Blackthorne vira-os olhar para Mariko, ainda deitada no seu desmaio, todos com a morte nos olhos, e entendeu que, se não conseguisse auxílio depressa, logo estariam ambos mortos, e que o auxílio não viria dos marujos. Ele se lembrou de que apenas samurais podiam lutar com samurais. Deslizou a faca para a mão o arremessou-a num arco. Atingiu o samurai na garganta. Os outros dois cinzentos arremeteram contra Blackthorne, espada em riste. Ele empunhou a segunda faca e fincou pé junto de Mariko, sabendo que não ousaria deixá-la desprotegida. Olhando de soslaio, viu que a batalha pela escada de costado estava quase vencida. Apenas três cinzentos ainda defendiam a ponte, apenas esses três impediam o auxílio de afluir para bordo. Se ele pudesse continuar vivo por menos de um minuto, estaria salvo, e ela também. Matem-nos, matem os bastardos!
Sentiu, mais do que viu, a espada descendo sobre a garganta o pulou para trás, para fora do caminho da arma. Um cinzento tentara transpassá-lo, enquanto o outro, hesitante, atacava Mariko, espada erguida. Nesse momento Blackthorne viu Mariko recobrar os sentidos. Ela se atirou contra as pernas do desprevenido samurai, fazendo-o estatelar-se no convés. Depois, arrastando-se por sobre o cinzento morto, agarrou-lhe a espada da mão que ainda se contraía e investiu contra o guarda com iim grito. O cinzento se pusera em pé de novo e, urrando de raiva, atacou-a. Ela recuou o golpeou bravamente, mas Blackthorne sabia que ela estava perdida, já que o homem era forte demais. De algum modo Blackthorne evitou outro golpe mortal do seu próprio antagonista, afastou-o com um pontapé e lançou a faca contra o atacante de Mariko. Acertou o homem nas costas, fazendo-o desviar-se do alvo. Logo em seguida Blackthorne se viu no tombadilho, indefeso e encurralado, um cinzento saltando os degraus na sua direção, o outro, que acabara de vencer a luta na popa, correndo para cima dele ao longo do convés. Ele saltou para a amurada e a segurança do mar, mas escorregou no convés molhado de sangue.
Mariko, lívida, fitava de olhos arregalados o imenso samurai que ainda a tinha acuada, oscilando sobre os pés, sua vida escoando-se depressa, mas não depressa o bastante. Ela o atacou com todas as forças, mas ele aparou o golpe, segurou-lhe a espada e arrancou-lhe a arma das mãos. Reuniu suas últimas forças e deu o bote no momento em que os samurais ronins irromperam pela escada acima, por sobre os cinzentos mortos. Um se atracou ao atacante de Mariko, outro disparou uma seta na direção do tombadilho.
A seta dilacerou as costas do cinzento, fazendo-o perder o equilíbrio com violência, e sua espada desviou-se de Blackthorne, indo atingir a amurada. Com dificuldade Blackthorne tentou se afastar, mas o homem alcançou-o, arrastou-o para o convés e cravou-lhe os dedos nos olhos. Outra seta atingiu o segundo cinzento no ombro e ele largou a espada, gritando de dor e raiva, tentando em vão arrancar a flecha. Uma terceira seta fê-lo contorcer-se. O sangue jorrou-lhe da boca aos borbotões e, sufocado, os olhos vítreos, o samurai tateou rumo a Blackthorne e caiu sobre ele quando o último cinzento chegou para a matança, uma curta faca pontuda nas mãos. Desferiu o golpe, Blackthorne indefeso, mas uma mão amiga segurou o braço da faca, depois a cabeça do inimigo desapareceu de cima do pescoço, cedendo lugar a um jorro de sangue. Os dois cadáveres foram puxados de cima de Blackthorne e ele foi posto de pé. Enxugando o sangue do rosto, viu vagamente que Mariko estava estendida no convés, samurais ronins agitando-se em torno dela. Ele se soltou dos que o ajudavam e cambaleou na direção dela, mas seus joelhos cederam e ele desabou.