CAPÍTULO 17


Todos fizeram uma profunda reverência. Toranaga notou que o bárbaro o imitou e não se levantou nem olhou, coisa que todos os bárbaros, exceto Tsukku-san, teriam feito. O piloto aprende depressa, pensou ele, com a cabeça ainda ardendo com o que ouvira. Estava fervilhando de perguntas, mas, usando a sua disciplina, afastou-as temporariamente para se concentrar no perigo presente.

Kiri acorreu para ceder à velha a almofada, ajudou-a a sentar-se, depois se ajoelhou atrás dela, numa assistência imóvel.

- Obrigada, Kiritsubo-san - disse a mulher, retribuindo a reverência deles. Chamava-se Yodoko. Era a viúva do taicum e agora, desde a morte dele, monja budista. - Desculpe por ter vindo sem ser convidada e por interrompê-lo, Senhor Toranaga.

- A senhora é sempre bem-vinda e dispensa convites, Yodoko-sama.

- Obrigada, sim, obrigada. - Ela deu uma olhada em Blackthorne e apertou os olhos para tentar enxergar melhor. -Mas acho que realmente interrompi. Não consigo ver quem... Ele é bárbaro? Meus olhos estão ficando cada vez piores. Não é Tsukku-san, e?

- Não, este é o novo bárbaro - disse Toranaga.

- Oh, ele! - Yodoko examinou mais perto. - Por favor, diga-lhe que não enxergo bem, por isso a minha indelicadeza.

Mariko fez o que lhe foi dito.

- Ele diz que muita gente no país dele é míope, Yodoko-sama, mas usam óculos. Perguntou se nós os temos. Disse-lhe que sim, alguns de nós, trazidos pelos bárbaros meridionais. Que a senhora costumava usá-los, mas não os usa mais.

- Sim. Prefiro a névoa que me rodeia. Sim, não gosto muito do que vejo hoje em dia. - Yodoko voltou-se e olhou para o menino, fingindo ter acabado de vê-lo. - Oh! Meu filho! Então você está aí. Estava à sua procura. Como é bom ver o kwampaku! - Curvou-se respeitosamente.

- Obrigado, Primeira Mãe. - Yaemon sorriu e também se inclinou. - Oh, a senhora devia ter ouvido o bárbaro. Desenhou um mapa do mundo para nós e nos contou coisas engraçadas sobre povos que nunca tomam banho! Nunca, a vida toda, e vivem em casas de neve e usam peles como maus kamis!

A velha dama bufou.

- Quanto menos vierem aqui, melhor, acho eu, meu filho. Nunca consegui compreendê-los e sempre cheiram pessimamente. Nunca consegui entender como o senhor taicum, seu pai, podia tolerá-los. Mas ele era um homem e você é um homem, e vocês têm mais paciência do que uma mulher inferior. Você tem um bom professor, Yaemon-sama. - Seus olhos esvoaçaram para Toranaga de novo. - O Senhor Toranaga tem mais paciência do que qualquer outra pessoa no império.

- A paciência é importante para um homem, e vital para um líder - disse Toranaga. - E a sede de conhecimento é uma boa qualidade também, hem, Yaemon-sama? E o conhecimento vem de lugares estranhos.

- Sim, tio. Oh, sim. Ele tem razão, não tem, Primeira Mãe?

- Sim, sim. Concordo. Mas estou contente por ser mulher e não ter que me preocupar com essas coisas, neh? - Yodoko abraçou o menino, que fora se sentar ao lado dela. - Então, meu filho, por que estou aqui? Para buscar o kwampaku. Por quê? Porque o kwampaku está atrasado para a refeição e para a aula de escrita.

- Detesto aulas de escrita e vou nadar!

- Quando eu tinha a sua idade - disse Toranaga com uma gravidade zombeteira -, também costumava detestar a escrita. Mas depois, quando tinha vinte anos, tive que parar de lutar em batalhas e voltar para a escola. Achei isso muito pior.

- Voltar para a escola, tio? Depois de deixá-la para sempre? Oh, que coisa terrível!

- Um chefe tem que escrever bem, Yaemon-sama. Não só com clareza mas com beleza, e o kwampaku mais que ninguém. De que outro modo ele vai poder escrever a Sua Alteza Imperial ou aos grandes daimios? Um chefe tem que ser melhor que seus vassalos em tudo, sob todos os aspectos. Um chefe tem que fazer muitas coisas difíceis.

- Sim, tio. É muito difícil ser kwampaku. - Yaemon franziu o cenho dando-se ares de importância. - Acho que vou fazer minhas lições agora e não quando tiver vinte anos, porque então terei importantes assuntos de Estado.

Ficaram todos muito orgulhosos dele.

- Você é muito sábio, meu filho - disse Yodoko.

- Sim, Primeira Mãe. Sou sábio como meu pai, conforme diz minha mãe. Quando é que a mãe vai voltar para casa?

Yodoko levantou os olhos e fitou Toranaga.

- Logo.

- Espero que volte bem logo - disse Toranaga. Sabia que Yodoko fora enviada por Ishido para buscar o menino. Toranaga trouxera-o, e aos guardas, diretamente ao jardim, para irritar ainda mais o inimigo. E também para mostrar ao menino o estranho piloto e assim privar Ishido do prazer de proporcionar essa experiência à criança.

- É muito exaustivo ser responsável pelo meu filho - estava dizendo Yodoko. - Seria muito bom ter a Senhora Ochiba aqui em Osaka, de volta a casa, al eu poderia regressar ao templo, neh? Como está ela, e a Senhora Genjiko?

- Estão ambas com excelente saúde - disse-lhe Toranaga, rindo consigo mesmo. Nove anos atrás, numa inusitada demonstração de amizade, o taicum o convidara reservadamente a se casar com a Senhora Genjiko, a irmã mais nova da Senhora Ochiba, sua consorte favorita. - Assim nossas casas estarão reunidas para sempre, neh? - dissera o taicum.

- Sim, senhor. Obedecerei, embora não mereça essa honra - respondera Toranaga respeitosamente, desejando o vínculo com o taicum. Mas sabia que embora Yodoko, a esposa do taicum, talvez aprovasse, a consorte Ochiba o detestava e usaria sua grande influência sobre o taicum para impedir o casamento. Além disso, seria mais prudente evitar ter a irmã de Ochiba como esposa, pois isso daria a ela poderes enormes sobre ele, sendo que o menor de todos não seria a chave do seu cofre. Mas, se ela se casasse com o filho dele, Sudara, então Toranaga, enquanto chefe supremo da família, teria o domínio completo. Fora necessária toda a sua habilidade para arranjar o casamento entre Sudara e Genjiko, mas acontecera, e agora Genjiko lhe era de um valor incalculável como defesa contra Ochiba, porque Ochiba adorava a irmã.

- Minha nora ainda não está em trabalho de parto - esperava-se que começasse ontem -, mas imagino que a Senhora Ochiba parta assim que não houver mais perigo.

- Depois de três meninas, já é tempo de Genjiko lhe dar um neto, neh? Farei algumas preces pelo nascimento.

- Obrigado - disse Toranaga, gostando dela como sempre, sabendo que era sincera no que dizia, ainda que ele só representasse perigo para a sua casa.

- Ouvi dizer que a sua Senhora Sazuko está grávida.

- Sim. Sou muito afortunado. - Toranaga aqueceu-se com a lembrança da sua mais nova consorte, a juventude dela, sua força, seu carinho. Espero que seja um filho, disse a si mesmo. Sim, seria muito bom. Dezessete é uma boa idade para se ter o primeiro filho, se se tem a saúde perfeita como a dela. - Sim, sou muito afortunado.

- Buda o abençoou. - Yodoko sentiu uma pontada de inveja. Parecia tão injusto que Toranaga tivesse cinco filhos vivos, quatro filhas, e já tivesse quatro netas. Com essa criança de Sazuko, que logo chegaria, e os muitos anos de vigor que lhe restavam e as muitas consortes em sua casa, poderia gerar muitos filhos mais. Quanto a ela, todas as suas esperanças estavam centradas naquela única criança de sete anos, seu filho tanto quanto de Ochiba. Sim, é igualmente meu filho, pensou ela. Como odiei Ochiba no começo...

Viu que todos a fitavam e se alarmou.

- Sim?

Yaemon estava de testa franzida.

- Eu disse se podemos ir e ter a minha aula, Primeira Mãe. Disse duas vezes.

- Desculpe, meu filho, eu estava devaneando. E o que acontece quando se fica velho. Sim, vamos então. - Kiri ajudou-a a se levantar. Yaemon saiu correndo na frente. Os cinzentos já estavam de pé. Um deles alcançou o menino e afetuosamente o colocou sobre os ombros. Os quatro samurais que a haviam escoltado esperavam separadamente.

- Caminhe comigo um pouco, Senhor Toranaga, sim? Preciso de um braço forte para me apoiar. - Toranaga pôs-se de pé com surpreendente agilidade. Ela tomou-lhe o braço, mas não lhe usou a força. - Sim. Preciso de um braço forte. Yaemon também. Assim como o reino.

- Estou sempre pronto para servi-la - disse Toranaga.

Quando estavam afastados dos outros, ela disse calmamente:

- Torne-se regente único. Tome o poder e governe sozinho. Até que Yaemon atinja a idade.

- O testamento do taicum proíbe isso. Mesmo que eu quisesse. E não quero. As restrições que ele fez impedem que um regente tome o poder. Não busco o poder isolado. Nunca busquei.

- Tora-chan - disse ela, usando o apelido que o taicum lhe dera há tanto tempo -, temos poucos segredos, você e eu. Poderia fazê-lo, se quisesse. Respondo pela Senhora Ochiba. Tome o poder. Torne-se shogun e faça...

- Senhora, o que diz é traição. Não pretendo ser shogun.

- Naturalmente, mas, por favor, ouça-me uma última vez. Torne-se shogun, faça de Yaemon seu único herdeiro, único. Ele poderia ser shogun depois de você. Ele não é Fujimoto pela Senhora Ochiba, pelo avô dela, Goroda, e, através dela, por toda a antiguidade? Fujimoto!

Toranaga olhou-a fixamente.

- Acha que os daimios concordariam com essa reivindicação ou que Sua Alteza, o Filho do Céu, poderia aprovar a designação?

- Não. Não para Yaemon mesmo. Mas se você fosse shogun primeiro, e o adotasse, poderia persuadi-los, a todos eles. Nós o apoiaremos, a Senhora Ochiba e eu.

- Ela concordou com isso? - perguntou Toranaga, atônito.

- Não. Nunca discutimos o assunto. A idéia é minha. Mas concordará. Respondo por ela. Antecipadamente.

- Esta conversa é impossível, senhora.

- Você pode lidar com Ishido, e com todos eles. Sempre pôde. Tenho medo do que ouço, Tora-chan, rumores de guerra, tomadas de posições, e os séculos de escuridão começando novamente. Quando a guerra começar, continuará para sempre e devorará Yaemon.

- Sim. Também acredito nisso. Sim, se começar, vai durar para sempre.

- Então tome o poder! Faça o que quiser, a quem quiser, como quiser. Yaemon é um menino de valor. Conheço você como conheço a ele. Tem a mente do pai e, com a sua orientação, todos lucraremos. Ele devia receber a herança.

- Não me oponho a ele, nem a sua sucessão. Quantas vezes preciso dizer?

- O herdeiro será destruído a menos que você o apóie ativamente.

- Eu o apóio! - disse Toranaga. - Sob todos os aspectos. Foi isso o que combinei com o taicum, seu falecido marido.

Yodoko suspirou e puxou o hábito mais para junto do corpo.

- Estes velhos ossos estão com frio. Tantos segredos e batalhas, traições e mortes e vitórias, Tora-chan. Sou apenas uma mulher, e muito, muito só. Estou contente por me ter dedicado a Buda agora e que a maioria dos meus pensamentos se volte para Buda e para a minha próxima vida. Mas nesta tenho que proteger meu filho e dizer estas coisas a você. Espero que perdoe minha impertinência.

- Sempre procuro e aprecio o seu conselho.

- Obrigada. - As costas dela se endireitaram um pouco.

- Ouça, enquanto eu estiver viva, nem o herdeiro nem a Senhora Ochiba se voltarão jamais contra você.

- Sim.

- Vai considerar o que propus?

- A vontade do meu falecido amo o proíbe. Não posso ir contra a vontade dele nem contra a minha promessa sagrada como regente.

Caminharam em silêncio. Então Yodoko suspirou.

- Por que não tomá-la por esposa?

Toranaga estacou.

- Ochiba?

- Por que não? É totalmente válida como escolha política. Uma escolha perfeita para você. E bela, jovem, forte, sua linhagem é a melhor, parte Fujimoto, parte Minowara, e ela tem uma imensa alegria de viver. Você não tem esposa oficial agora, portanto por que não? Isso solucionaria o problema da sucessão e impediria que o reino se dilacerasse. Você certamente teria outros filhos com ela. Yaemon o sucederia, depois os filhos dele ou os outros filhos dela. Você poderia tornar-se shogun. Teria o poder do reino e o poder de um pai, portanto poderia educar Yaemon ao seu modo. Você o adotaria formalmente e ele seria seu filho tanto quanto os outros que você tem. Por que não se casar com a Senhora Ochiba?

Porque ela é um gato selvagem, uma tigresa traiçoeira com o rosto e corpo de uma deusa, que pensa ser uma imperatriz e age como tal, pensou Toranaga. Eu nunca poderia confiar nela na minha cama. E o tipo de pessoa de quem tanto se pode esperar que lhe enfie uma agulha nos olhos durante o sono, quanto lhe faça uma carícia. Oh, não, ela não! Mesmo que eu a desposasse apenas em nome... com o que ela nunca concordaria... oh, não! E impossível! Por todo tipo de razões, inclusive porque me odiava e conspirou a minha ruína e a da minha casa, desde que concebeu pela primeira vez, há onze anos.

Mesmo nessa altura, mesmo aos dezessete anos, ela se empenhou pela minha destruição. Ah, tão suave aparentemente, como o primeiro pêssego maduro do verão, e igualmente perfumada. Mas por dentro uma espada de aço, com uma cabeça à altura, jogando com seus encantos, logo deixando o taicum louco por ela até conseguir a exclusão de todas as outras. Sim, ela intimidou o taicum desde os quinze anos, quando ele a tomou formalmente. Sim, e não se esqueça que na realidade foi ela que o levou para a cama, e não ele a ela, por mais que ele tenha acreditado nisso. Sim, mesmo aos quinze anos Ochiba sabia o que procurava e como obtê-lo. Então aconteceu o milagre: deu, finalmente, um filho ao taicum, ela, a única a conseguir isso, dentre todas as que ele teve na vida. Quantas mulheres? Cem, no mínimo, já que ele era um arminho que derramou o sumo do prazer em mais alcovas paradisíacas do que dez homens comuns! Sim. E mulheres de todas as idades e castas, casuais ou consortes, desde uma princesa Fujimoto até uma cortesã de quarta classe. Mas nenhuma jamais engravidou, embora mais tarde muitas das que o taicum repudiou ou de quem se divorciou tenham tido filhos com outros homens. Nenhuma, exceto a Senhora Ochiba.

Mas ela lhe deu o primeiro filho aos cinqüenta e três anos, uma pobre coisinha doentia, que morreu muito depressa, fazendo que o taicum rasgasse a roupa, quase louco de dor, responsabilizando a si mesmo e não a ela. Depois, quatro anos mais tarde, miraculosamente ela concebeu de novo, miraculosamente teve outro filho, miraculosamente saudável desta vez, ela com vinte e um anos agora. Ochiba, a Incomparável, chamara-a o taicum.

O taicum seria mesmo o pai de Yaemon ou não? O que eu não daria para saber a verdade! Será que jamais a conheceremos? Provavelmente não, mas o que eu não daria por uma prova, de um modo ou de outro!

Estranho que o taicum, tão inteligente para com todo o resto, não fosse esperto com Ochiba, idolatrando a ela e a Yaemon até a insanidade. Estranho que de todas as mulheres devesse ser ela a mãe do herdeiro, ela cujo pai, cujo padrasto e cuja mãe foram mortos por causa do taicum.

Teria ela tido a esperteza de dormir com outro homem, tomar-lhe a semente, depois destruir esse mesmo homem para se salvaguardar? E não uma vez, mas duas?

Poderia ser tão traiçoeira? Oh, sim.

Casar com Ochiba? Nunca.

- Fico honrado de que a senhora tenha feito tal sugestão - disse alto.

- Você é um homem, Tora-chan. Poderia manobrar uma mulher como ela facilmente. É o único homem no império que poderia, neh? Seria um casamento maravilhoso para você. Veja como ela luta para proteger os interesses do filho agora, e é apenas uma mulher indefesa. Seria uma esposa digna de você.

- Não creio que ela sequer considerasse a idéia.

- E se o fizesse?

- Eu gostaria de ficar sabendo. Reservadamente. Sim, isso seria uma honra inestimável.

- Muitos acreditam que apenas você se ergue entre Yaemon e a sucessão.

- Muitos são tolos.

- Sim. Mas você não é, Toranaga-sama. Nem a Senhora Ochiba.

Nem você, minha senhora, pensou ele.


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