CAPÍTULO 23
- Anjin-san... Anjin-san!
Semiconsciente, ele deixou que Mariko o ajudasse a tomar um pouco de saquê. A coluna parara, os marrons cerradamente dispostos em torno da liteira com cortinas, os cinzentos da escolta à frente e atrás. Buntaro gritara para uma das criadas, que imediatamente providenciara o frasco numa das kagas de bagagem, dissera aos seus guardas pessoais que mantivessem todos longe da liteira de "Kiritsubo-san", depois correra para Mariko.
- O Anjin-san está bem?
- Sim. Sim, acho que sim - respondeu Mariko. Yabu
juntou-se a eles. Tentando desviar a atenção do capitão dos cinzentos, Yabu disse com negligência: - Podemos prosseguir, capitão. Deixaremos alguns homens e Mariko-san. Quando o bárbaro
se recuperar, ela e os homens seguirão.
- Com todo o respeito, Yabu-san, esperaremos. Estou encarregado de entregá-los todos a salvo na galera. Como um grupo
- disse o capitão.
Todos olharam quando Blackthorne engasgou ligeiramente
com o vinho.
- Obrigado - murmurou ele. - Estamos seguros agora?
Quem mais sabe que...
- O senhor está seguro agora! - interrompeu-o ela deliberadamente.
Estava de costas para o capitão e recomendou-lhe cautela
com os olhos. - Anjin-san, o senhor está seguro e não há motivo
de preocupação. Compreende? O senhor teve algum tipo de ataque. Olhe ao seu redor - está em segurança agora!
Blackthorne fez conforme ela lhe ordenou. Viu o capitão e os
cinzentos, e compreendeu. Suas forças estavam voltando rapidamente agora, ajudadas pelo vinho. - Desculpe, senhora. Foi
apenas pânico, acho. Devo estar ficando velho. Fico fora de mim
com freqüência e depois nunca consigo me lembrar do que aconteceu. Falar português é exaustivo, não? — Passou para o latim.
- A senhora compreende?
- Certamente.
- Esta língua é "mais fácil"?
- Talvez - disse ela, aliviada por ele ter compreendido a necessidade de cautela, mesmo usando o latim, que para os japoneses era uma língua quase incompreensível e impossível de ser aprendida, exceto para um punhado de homens do império, todos treinados pelos jesuítas e na maioria comprometidos com o sacerdócio. Ela era a única mulher em todo o seu mundo que sabia falar, ler e escrever latim e português. - Ambas as línguas são difíceis, cada uma tem perigos.
- Quem mais conhece os "perigos"?
- Meu marido e aquele que nos comanda.
- Tem certeza?
- Foi o que ambos deram a entender.
O capitão dos cinzentos agitou-se, impaciente, e disse alguma coisa a Mariko.
- Ele perguntou se o senhor ainda está perigoso, se suas mãos e pés devem ser amarrados. Respondi que não. O senhor está curado do seu acesso agora.
- Sim - disse ele, passando de novo para o português.
- Tenho ataques com freqüência. Se alguém me bate no rosto, fico louco. Sinto muito. Nunca consigo me lembrar do que acontece nessas ocasiões. E o dedo de Deus. - Viu que o capitão se concentrava nos seus lábios e pensou: apanhei-o, seu bastardo, aposto como você compreende português.Sono, a criada, estava com a cabeça curvada ao lado das cortinas da liteira. Ouviu e voltou até Mariko.
- Desculpe, Mariko-sama, mas minha ama pergunta se o louco já está bem para continuarmos. Ela pergunta se a senhora lhe cederia sua liteira, porque minha ama acha que devemos nos apressar por causa da maré. Todo o transtorno que o louco causou deixou-a ainda mais perturbada. Mas, sabendo que o louco é apenas afligido pelos deuses, ela fará preces para que ele recobre a saúde, e lhe dará pessoalmente alguns remédios assim que estivermos a bordo.
Mariko traduziu.
- Sim. Estou bem agora. - Blackthorne levantou-se mas oscilou sobre os pés.
Yabu vociferou uma ordem.
- Yabu-san diz que o senhor viaja na liteira, Anjin-san. - Mariko sorriu quando ele começou a protestar. - Sou realmente muito forte e o senhor não precisa se preocupar. Caminharei ao seu lado e o senhor poderá conversar, se quiser.
Ele se permitiu ser ajudado até a liteira. Imediatamente se puseram em movimento de novo. O passo bamboleante era calmante e ele se reclinou, exaurido. Esperou até que o capitão dos cinzentos se afastasse em direção à vanguarda da coluna, e sussurrou em latim, prevenindo Mariko:
- Aquele centurião compreende a outra língua.
- Sim. E acho que compreende um pouco de latim também. - Respondeu-lhe ela, igualmente num sussurro quase inaudível. Caminhou um momento. - Sinceramente o senhor é um homem corajoso. Agradeço-lhe por tê-lo salvado.
- A senhora tem mais coragem do que eu.
- Não, o Senhor Deus colocou meus pés no caminho e tornou-me um pouco útil. Agradeço-lhe novamente.
A cidade à noite era um reino encantado. As casas ricas tinham muitas lanternas coloridas, a óleo e a vela, pendendo dos portões e nos jardins, as telas shoji difundindo uma deliciosa transparência. Até as casas pobres eram alegradas pelas shojis. Havia lanternas iluminando o caminho de pedestres e kagas, e dos samurais, que andavam a cavalo.
- A iluminação das casas são lâmpadas de óleo, e também usamos velas, mas com a chegada da noite muita gente vai para a cama - explicou Mariko enquanto continuavam pelas ruas da cidade, dando voltas e mais voltas, os pedestres curvando-se e os muito pobres permanecendo de joelhos até que eles passassem. O mar cintilava ao luar.
- Conosco acontece o mesmo. Como vocês cozinham? Num fogão de madeira? - As forças de Blackthorne voltaram rapidamente e suas pernas já não pareciam de gelatina. Ela recusara a liteira de volta, de modo que ele continuava sentado apreciando o ar e a conversa.
- Usamos um braseiro de carvão. Não comemos alimentos como os seus, de modo que nossa cozinha é mais simples. Só arroz e um pouco de peixe, cru na maior parte, ou cozido sobre brasas com um molho picante e vegetais em conserva. Um pouco de sopa talvez. Nada de carne... nunca comemos carne. Somos um povo frugal, temos que ser, já que apenas parte da nossa terra, talvez um quinto do solo, pode ser cultivado... e somos muitos. Entre nós é uma virtude ser frugal, mesmo considerando a quantidade de comida que comemos.
- A senhora é corajosa. Agradeço-lhe. As flechas não foram disparadas por causa do escudo das suas costas - disse ele em latim.
- Não, capitão dos navios. Foi pela vontade de Deus.
- A senhora é corajosa e é linda.
Ela caminhou em silêncio por um instante. Ninguém me havia chamado de linda antes... ninguém, pensou ela.
- Nãosou corajosa e não sou linda. As espadas são lindas. A hora é linda.
- A coragem é linda e a senhora a tem em abundância.
Mariko não respondeu. Estava se lembrando daquela manhã, de todas as más palavras e maus pensamentos. Como pode um homem ser tão corajoso e tão estúpido, tão gentil e tão cruel, tão caloroso e tão detestável - tudo ao mesmo tempo? O Anjin-san foi de uma coragem sem limites ao desviar a atenção de Ishido da liteira, e totalmente esperto ao fingir loucura e assim tirar Toranaga da armadilha. Como Toranaga foi sábio escapando desse modo! Mas seja prudente, Mariko. Pense em Toranaga e não nesse estrangeiro. Lembre-se do mal que ele representa e pare de sentir essa tepidez úmida nos quadris, que você nunca teve antes, a tepidez de que as cortesãs falam e os livros de histórias de "travesseiro" descrevem.
- Sim - disse ela. - A coragem é linda e o senhor a tem em abundância. - Depois voltou ao português. - Latim é uma língua tão fatigante!
- A senhora aprendeu na escola?
- Não, Anjin-san, foi mais tarde. Depois de me casar, vivi no extremo-norte por muito, muito tempo. Estava sozinha, com exceção de criados e aldeãs, e os únicos livros que tinha eram em português e latim - algumas gramáticas, livros religiosos e uma Bíblia. Aprender as línguas ajudou muitíssimo a passar o tempo e ocupou-me a mente. Tive muita sorte.
- Onde estava seu marido?
- Na guerra.
- Quanto tempo a senhora esteve sozinha?
- Temos um ditado que diz que o tempo não tem uma medida única, que o tempo pode ser como a geada, a luz, uma lágrima, ou cerco, tempestade, crepúsculo, ou até como uma rocha.
- É um ditado sábio - disse Blackthorne. E acrescentou: - O seu português é muito bom, senhora. E o latim. Melhor do que o meu.
- O senhor tem mel na língua, Anjin-san!
- É honto!
- "Honto" é uma boa palavra. A honro é que um dia um padre cristão chegou à aldeia. Éramos como duas almas perdidas. Ficou quatro anos e ajudou-me imensamente. Fico contente por saber falar bem - disse ela, sem vaidade. - Meu pai queria que eu aprendesse línguas.
- Por quê?
- Achava que devemos conhcer o demônio com que temos que lidar.
- Era um homem sábio.
- Por quê?
- Um dia lhe contarei a história, é muita tristeza.
- Por que a senhora ficou sozinha por uma rocha de tempo?
- Por que não descansa? Ainda temos um longo caminho pela frente?
- A senhora quer sentar? – Novamente ele começou a se levantar mas ela balanou a cabela.
- Não, obrigada. Por favor, fique onde está. Gosto de caminhar.
- Muito bem. Mas a senhora não quer mais conversar?
- Se lhe agrada, podemos conversar. O que quer saber?
- Por que ficou sozinha uma rocha de tempo?
- Meu marido me mandou embora. Minha presença o ofendera. Foi perfeitamente correto ao fazer isso. Honrou-me não se divorciando de mim. Depois honrou-me ainda mais aceitando-me, e ao nosso filho, de volta. - Mariko olhou para ele. - Meu filho tem quinze anos agora. Na realidade sou uma velha senhora.
- Não acredito, senhora.
- É honto.
- Que idade tinha quando se casou?
- Muita, Anjin-san. Muita idade.
- Temos um ditado. A idade é como geada ou cerco ou crepúsculo, e às vezes até como uma rocha. - Ela riu. Tudo nela é tão gracioso, pensou ele, hipnotizado. - Na senhora, venerável dama, a idade assenta lindamente.
- Para uma mulher, Anjin-san, a idade nunca é linda.
- A senhora é sábia e linda - disse ele em latim, que veio facilmente e, embora soasse mais formal e imponente, era mais íntimo. Vigie-se, pensou ele.
Ninguém nunca me chamou de linda antes, repetiu ela para si mesma. Gostaria que fosse verdade.
- Aqui não é prudente notar a mulher de outro homem - disse em voz alta. - Nossos costumes são muito severos. Por exemplo, se uma mulher casada é encontrada sozinha com um homem numa sala com a porta fechada, simplesmente sozinhos e conversando em particular, por lei o marido dela, ou o irmão, ou o pai, tem o direito de matá-la instantaneamente. Se a garota não for casada, o pai pode, naturalmente, sempre fazer com ela o que lhe aprouver.
- Isso não é justo nem civilizado. - Ele lamentou o deslize imediatamente.
- Consideramo-nos muito civilizados, Anjin-san. - Mariko ficou contente por ser insultada de novo, pois isso quebrou o encanto e afastou a tepidez que estava sentindo. - Nossas leis são muito sábias. Há mulheres demais, livres e sem compromissos, para que um homem tome uma que já pertence a outro. Na verdade é uma proteção para as mulheres. O dever de uma esposa é unicamente para com o marido. Seja paciente. Verá como somos civilizados, como somos avançados. As mulheres têm um lugar, os homens têm outro. Um homem pode ter apenas uma esposa oficial de cada vez - mas, naturalmente, muitas consortes -, mas as mulheres aqui têm muito mais liberdade do que as senhoras espanholas e portuguesas, pelo que me disseram. Podemos ir livremente aonde quisermos, quando quisermos. Podemos abandonar nossos maridos, se desejarmos, divorciarmo-nos deles. Podemos nos recusar a casar, se quisermos. Somos donas de nossa própria fortuna e propriedade, do nosso corpo e espírito. Temos poderes tremendos, se desejarmos. Quem cuida de todos os seus bens, do seu dinheiro, da sua casa?
- Eu, naturalmente.
- Aqui a esposa cuida de tudo. O dinheiro não é nada para um samurai. Está abaixo da crítica para um homem autêntico. Cuido de todos os negócios de meu marido. Ele toma todas as decisões. Eu executo seus desejos e pago as contas. Isso o deixa totalmente livre para cumprir seu dever para com seu senhor, o qual é seu único dever. Oh, sim, Anjin-san, deve ser paciente antes de criticar.
- Não havia a intenção de crítica, senhora. Simplesmente nós acreditamos na santidade da vida, ninguém pode levianamente ser condenado a morte a menos que um tribunal legal, um tribunal legal da rainha, concorde.
Ela se recusou a ser abrandada.
- O senhor diz muitas coisas que eu não compreendo, Anjin-san. Mas não disse "não justo e não civilizado"?
- Sim.
- Isso, então, é uma crítica, neh? O Senhor Toranaga pediu-me que lhe assinalasse que é inconveniente criticar sem conhecer. Deve lembrar-se de que a nossa civilização, a nossa cultura, tem milhares de anos de idade. Três mil estão documentados. Oh, sim, somos um povo antigo. Tão antigo quanto os chineses. A quantos anos remonta a sua cultura?
- Não muitos, senhora.
- Nosso imperador, Go-Nijo, é o centésimo sétimo de uma linhagem intacta, que remonta a Jimmu-tenno, o primeiro elo terrestre, que descendia de cinco gerações de espíritos terrestres e, antes deles, de sete gerações de espíritos celestiais que vieram de Kuni-toko-tachi-noh-Mikoto, o primeiro espírito, que apareceu quando a terra se separou dos céus. Nem a China pode alardear uma história assim. Há quantas gerações os seus reis governam o seu país?
- Nossa rainha é a terceira da dinastia Tudor, senhora. Mas está velha e não tem filhos, portanto será a última.
- Cento e sete gerações, Anjin-san, até a divindade - repetiu ela, orgulhosa.
- Se acredita nisso, senhora, como pode dizer também que é católica?
Ele a viu se empertigar, depois encolheu os ombros.
- Sou cristã há apenas dez anos, portanto uma noviça, e embora acredite no Deus cristão, em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, com todo o coração, nosso imperador descende diretamente dos deuses ou de Deus. Ele é divino. Há muitas coisas que não consigo explicar nem compreender. Mas a divindade do meu imperador está fora de questão. Sim, sou cristã, mas primeiro sou japonesa.
Será que é essa a chave de todos vocês? Serem primeiro japoneses? perguntou Blackthorne a si mesmo. Ele a observava, atônito com o que ela dizia. Os costumes deles são malucos! O dinheiro não significa nada para um verdadeiro homem? Isso explica por que Toranaga foi tão desdenhoso quando mencionei dinheiro no primeiro encontro. Cento e sete gerações? Impossível! Morte instantânea só por estar inocentemente numa sala fechada com uma mulher? Isso é barbarismo - um convite aberto ao crime. Eles defendem e admiram o assassinato! Não foi o que disse Rodrigues? Não foi o que fez Omi? Simplesmente não assassinou aquele camponês? Pelo sangue de Cristo, eu não pensava em Omi há dias. Ou na aldeia. Ou no buraco ou em mim de joelhos diante dele. Esqueça-o, ouça a ela, seja paciente, conforme ela diz, faça-lhe perguntas porque ela fornecerá os meios de dobrar Toranaga ao seu plano. Agora Toranaga está em dívida com você. Você o salvou. Ele sabe disso, todo mundo sabe. Ela não lhe agradeceu, não por salvá-la mas por ter salvado a ele?
A coluna movia-se através da cidade rumando para o mar. Ele viu Yabu mantendo o passo e por um momento os berros de Pieterzoon lhe soaram com força aos ouvidos. - Uma coisa de cada vez - murmurou, quase que com seus botões.
- Sim - estava dizendo Mariko. - Deve ser muito difícil para o senhor. Nosso mundo é tão diferente do seu. Muito diferente mas muito sábio. - Ela podia ver o vulto indistinto de Toranaga dentro da liteira à frente, e mais uma vez agradeceu a Deus pela sua fuga. Como explicar ao bárbaro a nosso respeito, cumprimentá-lo pela sua coragem? Toranaga lhe ordenara que explicasse, mas como? - Deixe-me contar-lhe uma história, Anjin-san. Quando eu era jovem, meu pai era um general a serviço de um daimio chamado Goroda. Naquela época o Senhor Goroda não era o grande ditador, mas um daimio ainda em luta pelo poder. Meu pai convidou esse Goroda e seus principais vassalos para um banquete. Nunca lhe ocorreu que não havia dinheiro para comprar toda a comida, o saquê, a louça de laca e os tatamis que tal visita, por costume, exigia. Antes que o senhor pense que minha mãe era má administradora, deixe-me dizer-lhe que não era. Cada centavo da renda de meu pai ia para os seus próprios samurais vassalos, e embora oficialmente ele só tivesse o suficiente para quatro mil guerreiros, economizando, poupando e manipulando, minha mãe viu-o comandar em batalha cinco mil e trezentos homens, para glória do seu suserano. Nós, a família - minha mãe, as consortes de meu pai, meus irmãos e irmãs -, mal tínhamos o que comer. Mas que importava isso? Meu pai e seus homens tinham as melhores armas e os melhores cavalos, e davam o melhor de si ao seu senhor.
"Sim, não havia dinheiro suficiente para aquele banquete, então minha mãe foi aos peruqueiros de Kyoto e vendeu-lhes o cabelo. Lembro que foi como se as trevas se abatessem sobre ela. Mas ela o vendeu. Os peruqueiros o cortaram no mesmo dia, deram-lhe uma peruca barata, ela comprou tudo o que era necessário e poupou a honra de meu pai. Era dever dela pagar as contas, e ela pagou. Cumpriu seu dever. Para nós, o dever é tudo o que importa."
- O que disse ele, seu pai, quando descobriu?
- O que deveria dizer senão agradecer-lhe? Era dever dela encontrar o dinheiro. Poupar-lhe a honra.
- Ela devia amá-lo muito.
- "Amor" é uma palavra cristã, Anjin-san. Amor é um pensamento cristão, um ideal cristão. Não temos palavra para"amor", do modo como compreendo o significado dela. Dever, lealdade, honra, respeito, desejo, essas palavras e pensamentos são o que temos, e tudo de que necessitamos. Ela o olhou e, a despeito de si mesma, trouxe à mente o momento em que ele salvara Toranaga e, com Toranaga, o seu marido. Nunca se esqueça de que estavam ambos acuados lá, estariam ambos mortos agora, não fosse este homem.
Ela certificou-se de que não havia ninguém por perto.
- Por que o senhor fez o que fez?
- Não sei. Talvez porque. - Ele parou. Havia tantas coisas que poderia dizer: "Talvez porque Toranaga estava indefeso e eu não queria ser retalhado... Porque se ele fosse descoberto seríamos todos apanhados... Porque eu sabia que ninguém além de mim estava a par, e dependia de mim arriscar... Porque eu não queria morrer - há tanto o que fazer para desperdiçar minha vida, e Toranaga é o único que pode me devolver meu navio e minha liberdade". Em vez disso, respondeu, em latim: - Porque Deus disse: "Dai a César o que é de César".
- Sim - disse ela, e acrescentou na mesma língua: - Sim, era isso o que eu estava tentando dizer. A César umas coisas, e a Deus outras coisas. O mesmo acontece conosco. Deus é Deus e nosso imperador vem de Deus. E César é César, para ser honrado como César. - Sensibilizada pela compreensão e pela ternura na voz dele, ela disse: - O senhor é sábio. As vezes penso que compreende mais do que diz.
Você não está fazendo o que jurou nunca fazer? perguntou-se Blackthorne. Não está se fazendo de hipócrita? Sim e não. Não devo nada a eles. Sou um prisioneiro. Roubaram-me o navio, as mercadorias, e assassinaram um de meus homens. São pagãos - bem, alguns são pagãos e o resto é católico. Não devo nada a pagãos nem a católicos. Mas você gostaria de levá-la para a cama e a estava elogiando, não estava?
Deus amaldiçoe todas as consciências!
O mar estava mais perto agora, a meia milha de distância. Ele podia ver muitos navios, e a fragata portuguesa com suas luzes de âncora. Seria uma presa e tanto, pensou ele. Com vinte rapazes bons de briga eu a capturaria. Voltou-se para Mariko. Mulher estranha, de uma estranha família. Por que ela ofendeu Buntaro, aquele babuino? Como pôde dormir com aquilo, ou se casar com aquilo? O que é "muita tristeza"?
- Senhora - disse ele, mantendo a voz gentil -, sua mãe deve ter sido uma mulher excepcional. Fazer aquilo!
- Sim. Mas devido ao que fez, viverá para sempre. Agora é uma lenda. Era tão samurai quanto... quanto meu pai.
- Pensei que apenas homens fossem samurais.
- Oh, não, Anjin-san. Homens e mulheres são igualmente samurais, guerreiros com responsabilidades para com seus senhores. Minha mãe foi uma autêntica samurai, seu dever para com o marido excedia a tudo.
- Ela está na sua casa agora?
- Não. Nem ela, nem meu pai, nem nenhum dos meus irmãos, irmãs ou parentes. Sou a última da minha linhagem.
- Houve uma catástrofe?
Mariko de repente se sentiu cansada. Estou cansada de falar latim e essa língua portuguesa de sons abomináveis e cansada de ser professora, disse a si mesma. Não sou professora. Sou apenas uma mulher que conhece o seu dever e quer cumpri-lo em paz. Não quero sentir essa tepidez de novo, não quero nada desse homem que me perturba tanto. Não quero nada dele.
- De certo modo, Anjin-san, foi uma catástrofe. Um dia lhe falarei sobre isso. - Ela acelerou o passo ligeiramente e se afastou, aproximando-se da outra liteira. As duas criadas sorriram nervosas.
- Ainda temos muito que andar, Mariko-san? - perguntou Sono.
- Espero que não - disse, ela, tranqüilizadora.
O capitão dos cinzentos assomou abruptamente da escuridão, do outro lado da liteira. Ela perguntou a si mesma quanto do que dissera ao Anjin-san fora ouvido às ocultas.
- Quer uma kaga, Mariko-san? Está ficando cansada? - perguntou o capitão.
- Não, obrigada. - Ela retardou a marcha deliberadamente, afastando-o da liteira de Toranaga. - Não estou cansada em absoluto.
- O bárbaro está se comportando? Não a está incomodando?
- Oh, não. Parece absolutamente calmo agora.
- Do que estavam falando?
- De todo tipo de coisa. Eu estava tentando explicar-lhe algumas de nossas leis e costumes. - Fez um gesto na direção do torreão do castelo, gravado contra o céu. - O Senhor Toranaga me pediu que tentasse inculcar-lhe um pouco de bom senso.
- Ah, sim, o Senhor Toranaga. - O capitão olhou brevemente para o castelo, depois novamente para Blackthorne. - Por que o Senhor Toranaga está tão interessado nele, senhora?
- Não sei. Suponho que seja porque ele é uma anomalia.
Dobraram uma esquina, para outra rua, com casas por trás de jardins murados. Havia poucas pessoas à vista. Adiante havia ancoradouros e o mar. Mastros erguiam-se acima das construções e o ar estava denso com o cheiro de algas marinhas.
- De que mais falaram?
- Eles têm umas idéias muito estranhas. Pensam em dinheiro o tempo todo.
- Dizem que o país deles inteiro é feito de imundos mercadores piratas. Nem um samurai entre eles. O que o Senhor Toranaga quer com ele?
- Sinto muito, mas não sei.
- Corre o boato de que ele é cristão, que clama ser cristão. É mesmo?
- Não do nosso tipo de cristão, capitão. O senhor é cristão, capitão?
- Meu amo é cristão, portanto sou cristão. Meu amo é o Senhor Kiyama.
- Tenho a honra de conhecê-lo bem. Ele honrou meu marido tratando o casamento de uma de suas netas com meu filho.
- Sim, eu sei, Senhora Toda.
- O Senhor Kiyama melhorou? Tomei conhecimento de que os médicos não deixaram ninguém vê-lo.
- Não o vejo há uma semana. Nenhum de nós. Talvez seja a sífilis chinesa. Deus o proteja disso e amaldiçoe todos os chineses! - Olhou de relance na direção de Blackthorne. - Os médicos dizem que esses bárbaros trouxeram a peste para a China, para Macau, e depois para as nossas praias.
- Sumus omnes in manu Dei - disse ela. Estamos todos nas mãos de Deus.
- Ita, amen - retrucou o capitão sem pensar, caindo na armadilha.
Blackthorne também percebera o deslize e viu um relâmpago de raiva no rosto do capitão e ouviu-o dizer alguma coisa por entre os dentes a Mariko, que corou e também parou. Ele deslizou para fora da liteira e voltou até eles.
- Se o senhor fala latim, centurião, seria muito gentil em conversar um pouco comigo. Estou ávido por aprender sobre este seu grande país.
- Sim, falo a sua língua, estrangeiro.
- Não é a minha língua, centurião, mas a da Igreja e de todas as pessoas cultas do meu mundo. O senhor a fala bem. Como e quando aprendeu?
O cortejo estava passando por eles e todos os samurais, tanto os cinzentos quanto os marrons, os observavam. Buntaro, perto da liteira de Toranaga, parou e se voltou. O capitão hesitou, depois recomeçou a andar e Mariko ficou contente por Blackthorne se ter juntado a eles. Caminharam em silêncio um instante.
- O centurião fala a língua fluentemente, esplendidamente, não e? - disse ele a Mariko.
- Sim, de fato. O senhor a aprendeu num seminário, centurião?
- O senhor também, estrangeiro - disse o capitão friamente, sem prestar atenção nela, detestando a lembrança do seminário de Macau, para onde fora mandado criança por Kiyama, para aprender as línguas. - Agora que falamos diretamente, diga-me com sinceridade por que o senhor perguntou a esta senhora: "Quem mais sabe...?" Quem mais sabe o quê?
- Não me recordo. Minha mente estava delirando.
- Ah, delirando, hem? Então por que o senhor disse: "Dai a César o que é de César"?
- Foi apenas um gracejo. Eu estava discutindo com esta senhora, que me contou histórias esclarecedoras, mas às vezes difíceis de compreender.
- Sim, há muito que compreender. O que o fez enlouquecer no portão? E como se recuperou tão depressa do ataque?
- Foi a benevolência de Deus.
Estavam mais uma vez caminhando ao lado da liteira, o capitão furioso por ter caído na armadilha com tanta facilidade. Fora prevenido pelo Senhor Kiyama, seu amo, de que a mulher era dona de uma esperteza sem limites:
- Não se esqueça de que ela traz a nódoa da traição dentro de todo o seu ser, e o pirata foi gerado por Satanás. Observe, ouça e lembre-se. Talvez ela se inculpe e se torne uma futura testemunha contra Toranaga, para os regentes. Mate o pirata no momento em que a emboscada tiver início.
As setas saíram da noite e a primeira cravou-se na garganta do capitão, que, ao sentir os pulmões encher-se com fogo derretido e a morte a engoli-lo, teve um último pensamento de espanto, porque a emboscada não era para acontecer naquela rua, mas mais adiante, junto aos ancoradouros, e o ataque não era para ser contra eles, mas contra o pirata.
Outra seta se chocou contra a coluna da liteira a uma polegada da cabeça de Blackthorne. Duas setas atravessaram as cortinas fechadas da liteira de Kiritsubo, à frente, e outra atingiu Asa na cintura. Quando ela começou a gritar, os carregadores largaram as liteiras e sumiram na escuridão. Blackthorne rolou no chão para se proteger, levando Mariko consigo para o abrigo da liteira tombada. Cinzentos e marrons dispersaram-se. Uma chuva de setas derramou-se sobre as duas liteiras. Uma bateu surdamente no chão no ponto onde Mariko estivera um instante antes. Buntaro estava cobrindo a liteira de Toranaga com o corpo do melhor modo que podia, uma seta cravada nas costas da sua armadura de couro, bambu e malhas de ferro. Quando a saraivada cessou, ele investiu e abriu as cortinas com um repelão. As duas setas encontravam-se enterradas no peito e no flanco de Toranaga, mas ele estava ileso e arrancou as farpas da armadura de proteção que usava sob o quimono. Depois lançou fora o chapéu de aba larga e a peruca. Buntaro perscrutou a escuridão, à procura do inimigo, em guarda, uma seta pronta no arco, enquanto Toranaga se desvencilhava das cortinas e, puxando a espada de sob a manta, se punha de pé com um salto. Mariko começou a se arrastar na direção de Toranaga, a fim de ajudá-lo, mas Blackthorne puxou-a de volta com um grito de advertência, ao ver que novas setas eram disparadas contra as liteiras, matando dois marrons e um cinzento. Outra passou tão perto de Blackthorne, que lhe arrancou um pedaço de pele da bochecha. Uma outra prendeu-lhe a saia do quimono na terra. Sono, a criada, estava ao lado da garota desfigurada de dor, que corajosamente retinha os próprios gritos. Então Yabu gritou, apontou e atacou. Divisavam-se alguns vultos indefinidos sobre um dos telhados de telhas. Uma última saraivada sibilou na escuridão, sempre visando as liteiras.
Buntaro e outros marrons bloquearam o caminho delas até Toranaga. Um homem morreu. Uma flecha dilacerou uma junta no ombro da armadura de Buntaro e ele grunhiu de dor. Marrons e cinzentos encontravam-se perto do muro agora, em busca do inimigo, mas os atacantes desapareceram no negrume da noite e, embora uma dúzia de marrons e cinzentos corressem para a esquina a fim de interceptá-los, todos sabiam que não havia esperança de êxito. Blackthorne ergueu-se vacilante e ajudou Mariko a se levantar. Ela estava abalada mas ilesa.
- Obrigada - disse ela, e correu na direção de Toranaga, para ajudar a escondê-lo dos cinzentos. Buntaro gritava a alguns de seus homens que apagassem as tochas perto das liteiras. Então um dos cinzentos disse: - Toranaga! - e embora falasse baixo, todos ouviram. A tremulante luz dos archotes, a maquilagem riscada pelo suor fazia Toranaga parecer grotesco.
Um dos oficiais cinzentos curvou-se, ansioso. Ali, inacreditavelmente, estava o inimigo de seu amo, livre, fora dos muros do castelo.
- O senhor esperará aqui, Senhor Toranaga. Você - falou ele com rispidez a um de seus homens -, apresente-se ao Senhor Ishido imediatamente - e o homem disparou na corrida.
- Detenha-o - disse Toranaga tranqüilamente. Buntaro disparou duas setas. O homem tombou agonizante. Num átimo o oficial sacou da espada de duas mãos e saltou para Toranaga com um grito de batalha, mas Buntaro estava preparado e aparou o golpe. Simultaneamente, os marrons e os cinzentos, todos misturados, sacaram as espadas e atacaram. A rua foi engolida em torvelinho pela escaramuça. Buntaro e o oficial golpeavam e se esquivavam. Repentinamente um cinzento separou-se do bando o investiu contra Toranaga, mas Mariko imediatamente agarrou um archote, avançou e atirou-o no rosto do oficial. Buntaro cortou o atacante em dois, depois girou sobre os calcanhares, atirou longe o segundo homem, e derrubou um outro que tentava atingir Toranaga enquanto Mariko retrocedia rapidamente, com uma espada nas mãos agora, os olhos sempre em Toranaga ou em Buntaro, o monstruoso guarda-costas.
Quatro cinzentos se agruparam e se lançaram contra Blackthorne, que ainda estava parado junto da sua liteira. Indefeso, viu-os se aproximar. Yabu e um marrom deram um pulo para interceptá-los, lutando demoniacamente. Blackthorne por sua vez agarrou uma tocha com um salto e, como uma maça rodopiante, momentaneamente deixou os atacantes desnorteados. Yabu matou um deles, desmembrou outro, depois quatro marrons retrocederam para liquidar os dois últimos cinzentos. Sem hesitação, Yabu o marrom ferido se lançaram ao ataque mais uma vez, protegendo Toranaga. Blackthorne avançou, pegou uma arma comprida, meio espada, meio lança, e correu mais para perto de Toranaga. Este era a única pessoa que permanecia imóvel, de espada embainhada, em meio à balbúrdia da rixa.
Os cinzentos lutavam corajosamente. Quatro se uniram para uma investida suicida contra Toranaga. Os marrons esfacelaram o ataque e ganharam mais terreno. Os cinzentos reagruparam-se e atacaram de novo. Depois um superior ordenou que três deles se retirassem e fossem em busca de reforços, e o resto guardasse a retirada deles. Os três cinzentos arrancaram e, embora fossem perseguidos e Buntaro acertasse um, dois escaparam.
O resto morreu.