CAPÍTULO 61
Duas manhãs depois, Teranaga estava examinando as cilhas da sua sela. Habilmente fez o cavalo se ajoelhar, relaxando os músculos do estômago, e apertou a correia mais dois furos. Animal degenerado, pensou ele, desprezando os cavalos pelas constantes manhas, traições e periculosidade mal-humorada. Este sou eu, Yoshi Toranaga-noh-Chikitada-noh-Minowai~a, não uma criança qualquer de cérebro confuso. Esperou um momento forçou o cavalo a se ajoelhar de novo. O cavalo grunhiu o freio, e ele apertou as corïeias completamente.
— Bom, senhor! Muito bom — disse o mestre de admiração. Era um homem velho, enrugado, tão forte quanto um barril de salmoura. — Muitos teriam ficado da primeira vez.
— Aí a sela do cavaleiro teria escorregado e o idiota teria sido atirado ao chão e suas costas talvez estivessem quebradas ao meio-dia. Neh?
Os samurais riram.
— Sim, e merecendo isso, senhor!
Em torno deles no estábulo estavam guardas e falcoeiros, segurando falcões e gaviões encapuzados. Tetsu-ko, o peregrinus, estava no lugar de honra e, ao seu lado, menor, o único sem capuz, Kogo, o milhafre, seus olhos dourados e inclementes inspecionando tudo.
Naga aproximou-se a cavalo.
— Bom dia, Pai.
— Bom dia, meu filho. Onde está seu irmão?
— O Senhor Sudara está esperando no acampamento, senhor.
— Bom — Toranaga sorriu para o jovem. Depois, porque gostava dele, puxou-o a um lado. — Ouça, meu filho, em vez de ir caçar, escreva as ordens de batalha para eu assinar quando voltar esta noite.
— Oh, Pai — disse Naga, explodindo de orgulho com a honra de formalmente aceitar o desafio lançado por Ishido, escrito pessoalmente por ele, pondo em execução a decisão, tomada na véspera pelo conselho de guerra, de ordenar aos exércitos que rumassem para os desfiladeiros. — Obrigado, obrigado.
— Depois: o Regimento de Mosquetes tem ordens de partir para Hakoné ao amanhecer de amanhã. Depois: o comboio de bagagem chegará de Yedo esta tarde. Certifique-se de que esteja tudo pronto.
— Sim, certamente. Dentro de quanto tempo iremos à luta?
— Muito em breve. Na noite passada recebi notícias de que Ishido e o herdeiro partiriam de Osaka para revistar os exércitos. Portanto agora está resolvido.
— Por favor, perdoe-me por não poder voar até Osaka como Tetsu-ko e matá-lo, e a Kiyama e a Onoshi, e resolver todo esse problema sem ter que incomodá-lo.
— Obrigado, meu filho. — Toranaga não se deu ao trabalho de revelar a ele os monstruosos problemas que teriam que ser solucionados antes que tais mortes pudessem tornar-se um fato. Correu os olhos ao seu redor. Todos os falcoeiros estavam prontos. E os guardas. Chamou o mestre de caça para perto de si. — Primeiro vou até o acampamento, depois tomaremos a estrada costeira por quatro ris para o norte.
— Mas os batedores já se encontram nas colinas... — O mestre de caça engoliu o resto da queixa e tentou se recompor. — Por favor, desculpe a minha, há, devo ter comido alguma coisa estragada, senhor.
— É o que parece. Talvez você devesse passar a sua responsabilidade a outro. Talvez esteja com o raciocínio afetado, sinto muito — disse Toranaga. Se eu não estivesse usando a caçada como um disfarce, teria substituído o mestre de caça. — Hein? — Sim, sinto muito, senhor — disse o velho samurai. — Permita-me perguntar, há, o senhor gostaria de caçar nas áreas que escolheu a noite passada ou gostaria, há, gostaria de caçar ao longo da costa?
— Ao longo da costa.
— Certamente, senhor. Por favor, com licença, vou providenciar a alteração. — O homem saiu correndo. Toranaga manteve os olhos nele. É tempo de que ele se aposente, pensou sem maldade. Então notou Omi aproximando-se dos estábulos com um jovem samurai ao seu lado, que mancava muito, um cruel ferimento de faca ainda lívido no rosto, resultado do combate em Osaka.
— Ah. Omi-san! — Retribuiu-lhes a saudação. — É esse o sujeito?
— Sim, senhor.
Toranaga chamou os dois à parte e interrogou o samurai habilmente. Fez isso por cortesia para com Omi, já tendo chegado às mesmas conclusões quando conversara com o homem na pri meira noite, assim como fora polido com o Anjin-san, perguntando o que continha a carta de Mariko, embora já soubesse o que Mariko escrevera.
— Mas, por favor, coloque com as suas próprias palavras, Mariko-san — dissera ele antes que ela partisse de Yedo para Osaka.
— Devo entregar o navio dele ao inimigo dele, senhor?
— Não, senhora — dissera ele, enquanto os olhos dela se enchiam de lágrimas. — Não. Repito: você vai sussurrar ao Tsukku-san os segredos que me contou, imediatamente aqui em Ycdo, depois ao sumo sacerdote e a Kiyama em Osaka, e dizer a todos que sem o navio o Anjin-san não é ameaça para eles. E escreverá a carta ao Anjin-san conforme sugeri, agora.
— Eles destruirão o navio.
— Tentarão fazer isso. Claro que pensarão na mesma resposta por si mesmos, portanto, na realidade, você não estará revelando nada, neh?
— Pode proteger o navio dele, senhor? — Será guardado por quatro mil samurais.
— Mas se tiverem êxito... o Anjin-san não vale nada sem o navio. Rogo pela vida dele.
— Não é preciso, Mariko-san. Garanto-lhe que ele é valioso para mim, com ou sem um navio. Prometo-lhe. Diga-lhe também, na carta, que, se o navio dele se perder, que por favor construa outro.
__ O quê?
— Você me disse que ele pode fazer isso, neh? Tem certeza? Se eu lhe der todos os carpinteiros e ferreiros?
— Oh, sim. Oh, como o senhor é inteligente! Oh, sim, ele disse muitas vezes que é um construtor de navios...
— Tem toda a certeza, Mariko-san?
— Sim, senhor.
— Bom.
— Então o senhor pensa que os padres cristãos terão êxito, mesmo contra. quatro mil homens?
— Sim. Sinto muito, mas os cristãos nunca deixarão o navio intacto, ou a ele mesmo vivo, enquanto o navio estiver flutuando e pronto para zarpar. É uma ameaça grande demais para eles. Esse navio está condenado, portanto não há mal em entregá-lo a eles. Mas você e eu sabemos e devemos saber que a única esperança do Anjin-san é construir outro navio. Sou o único que pode ajudá-lo a fazer isso. Resolva Osaka para mim e providenciarei para que ele construa o seu navio.
Eu disse a verdade a ela, pensou Toranaga ali no amanhecer em Yokohama, por entre o odor de cavalos, excremento e suor, seus ouvidos mal ouvindo agora o sa?nurai ferido e Omi, todo o seu ser entristecido por Mariko. A vida é tão triste, disse a si mesmo; cansado dos homens, de Osaka, de jogos, que causavam tanto sofrimento à existência, por maiores que fossem os prêmios a atingir.
— Obrigado por me dizer, Kosami — disse ele, quando o samurai terminou. — Agiu muito bem. Por favor, venha comigo. Vocês dois.
Toranaga voltou para junto da sua égua e fê-la ajoelhar uma última vez. Desta vez ela choramingou, mas ele não apertou mais a cilha. — Cavalos são muito piores do que homens em traição — disse, a ninguém em particular, e saltou para a sela e saiu a galope, seguido de seus guardas, Omi, e Kosami.
No acampamento, parou. Buntaro estava lá, ao lado de Yabu, Hiromatsu e Sudara, este com ura peregrinus no punho. Saudaram-no. — Bom dia -— disse ele jovialmente, chamando Omi com um gesto a participar da conversa, mas afastando todos os demais. — Está pronto, meu filho?
— Sim. Pai — disse Sudara. — Mandei alguns dos meus homens para as montanhas, a fim de verificarem que os batedores sejam perfeitos para o senhor.
— Obrigado, mas decidi caçar ao longo da costa. Imediatamente Sudara chamou um dos guardas e mandou-o a galope para trazer os homens de volta das colinas e conduzi-los para a costa. — Sinto muito, senhor, eu deveria ter pensado nisso e estar preparado. Por favor, desculpe-me.
— Sim. Então, Hiromatsu, como vai o treinamento? Hiromatsu, a espada inevitavelmente frouxa nas mãos, fez uma carranca. — Ainda acho que isso é desonroso e desnecessário. Logo seremos capazes de esquecê-lo. Mijaremos em cima de 1shido sem este tipo de traição.
— Por favor, desculpe-me — disse Yabu -, mas sem estas armas e esta estratégia, Hiromatsu-san, perderemos. Esta é uma guerra moderna, deste modo temos uma chance de vencer. — Olhou para Toranaga, que ainda não desmontara. — Fui informado durante a noite de que Jikkyu morreu.
— Tem certeza? — Toranaga fingiu surpresa. Obtivera a informação secreta no dia em que partira de Mishima.
— Sim, senhor. Parece que ele esteve doente algum tempo. Meu informante relata que ele morreu há dois dias — disse Yabu, regozijando-se abertamente. — O herdeiro é o filho dele, Hikoju.
— Aquele jovenzinho enfatuado? — disse Buntaro, com desdém.
— Sim. Concordo que ele não passa de um filhote. — Yabu parecia várias polegadas mais alto do que o habitual. — Senhor, isso não abre a estrada meridional? Por que não atacar pela estrada Tokaido imediatamente? Com a velha raposa morta, Izu está segura agora, e Suruga e Totomi estão tão indefesas quanto um. atum encalhado. Neh?
Toranaga desmontou pensativo.
— Bem? — perguntou a Hiromatsu calmamente.
O velho general respondeu imediatamente:
— Se pudéssemos dominar a estrada até o passo de Utsunoya e todas as pontes, e chegar á vertente Tenryu rapidamente — com todas as nossas comunicações garantidas -, retalharíamos o baixo-ventre de Ishido. Poderíamos conter Zataki nas montanhas, reforçar o ataque pela Tokaido e investir contra Osaka. Seríamos invencíveis.
— Enquanto o herdeiro comandar os exércitos de Ishido — disse Sudara -, poderemos ser vencidos.
— Não concordo — disse Hiromatsu.
— Nem eu, sinto muito — disse Yabu.
— Mas eu concordo — disse Toranaga, tão inexpressivo e grave quanto Sudara. Ainda não lhes falara sobre o possível acordo de Zataki em trair Ishido quando o momento fosse opor tuno. Por que deveria lhes dizer? pensou. Não é um fato ainda. Mas como é que você propõe pôr em prática o seu acordo solene com o seu meio irmão, casando-o com Ochiba se ele o apoiar, e ao mesmo tempo casar você mesmo com Ochiba, se for esse o preço dela? É uma pergunta razoável, disse-se ele. Mas é altamente improvável que Ochiba traia Ishido. Se o fizesse e esse fosse o preço, a resposta seria simples: meu irmão teria que se curvar ao inevitável.
Viu-os todos a olhá-lo.
— O que é?
Houve um silêncio. Então Buntaro disse:
— O que acontece, senhor, quando nos opomos à bandeira do herdeiro?
Nenhum deles jamais formulara essa pergunta formalmente, diretamente e publicamente.
— Se isso acontecer, eu perco — disse Toranaga. — Cometerei seppuku e aqueles que honram o testamento do táicum e a inconteste herança legal do herdeiro terão que se submeter com humildade, imediatamente, ao seu perdão. Os que não o fizerem não terão honra. Neh?
Todos assentiram. Então ele se voltou para Yabu para concluir o negócio que estava à mão, e tornou-se cordial de novo.
— Entretanto, ainda não estamos nesse campo de batalha, por tanto continuamos conforme planejamos. Sim, Yabu-sama, a estrada meridional é possível agora. De que morreu Jikkyu?
— De doença, senhor.
— Uma doença de quinhentos kokus?
Yabu riu, mas interiormente ficou furioso de que Toranaga houvesse rompido a sua rede de segurança. — Sim — disse — eu presumiria que sim, senhor. Meu irmão lhe contou? — Tora naga assentiu e pediu-lhe que explicasse aos demais. Yabu aquiesceu, não descontente, pois era um estratagema inteligente, e contou-lhes como Mizuno, seu irmão, passara o dinheiro proveniente do Anjin-san a um ajudante de cozinheiro que fora introduzido na cozinha particular de Jikkyu.
— Barato, neh? — disse Yabu alegremente. — Quinhentos kokus pela estrada meridional?
Hiro-matou disse rigidamente a Toranaga: — Por favor, desculpe-me, mas acho essa história repugnante.
Toranaga sorriu. — Traição é uma arma de guerra, neh? — Sim. Mas não de um samurai.
Yabu indignou-se. — Sinto muito, Senhor Hiro-matou, mas presumo que o senhor não tenha tido a intenção de me insultar? — Ele não teve a intenção. Teve, Hiro-matou? — disse Toranaga.
— Não, senhor — replicou o velho general. — Por favor, desculpe-me.
— Veneno, traição, deslealdade, assassinato sempre foram armas de guerra, amigo velho — disse Toranaga. — Jikkyu era um inimigo e um imbecil. Quinhentos kokeís pela estrada meri dional não é nada! Yabu-sama serviu-me bem. Aqui e em Osaka. Neh, Yabu-san?
— Sempre tentei servi-lo com lealdade, senhor.
— Sim, então, por favor, explique por que matou o Capitão Sumiyori antes do ataque ninja — disse Toranaga.
O rosto de Yabu não se alterou. Estava usando sua espada Yoshitomo, a mão, como sempre, frouxa sobre o punho da arma. — Quem diz isso? Quem me acusa disso, senhor?
Toranaga apontou para o grupo de marrons a quarenta passos de distância. — Aquele homem! Por favor, venha aqui, Kosami-san. — O jovem samurai desmontou, avançou coxeando e curvou-se.
Yabu cravou-lhe os olhos. — Quem é você, camarada?
— Sokura Kosami, da Décima Legião, designado para a guarda pessoal da Senhora Kiritsubo em Osaka, senhor — disse o jovem. — O senhor me pôs de guarda à porta dos seus aposentos — e de Sumiyori-san -, na noite do ataque ninja.
— Não me lembro de você. Atreve-se a dizer que matei Sumiyori?
O jovem hesitou. Toranaga disse: — Diga-lhe!
Kosami disse num fôlego: — Só tive tempo, senhor, antes de os ninjas caírem em cima de nós, de abrir a porta e gritar um aviso a Sumiyori-san, mas ele não se moveu. — Voltou-se para Toranaga, estremecendo sob o olhar de todos eles. — Ele... ele tinha sono leve, senhor, e foi só um momento depois de... isso é tudo, senhor.
— Você entrou no quarto? Sacudiu-o? — pressionou Yabu. — Não, senhor, oh, não, senhor, os ninjas chegaram tão depressa, que recuamos imediatamente e contra-atacamos assim que pudemos, foi como eu disse...
Yabu olhou para Toranaga. — Sumiyori-san estivera em serviço durante dois dias. Estava exausto — todos nós estávamos. O que isso prova? — perguntou a todos eles.
— Nada — disse Toranaga, ainda cordial. — Mas mais tarde, Kosami-san, você voltou ao quarto. Neh?
— Sim, senhor, Sumiyori-san ainda estava deitado nos futons do jeito que eu o vira e... e o quarto não estava em desordem, em absoluto, senhor, e ele tinha sido esfaqueado, senhor, esfa queado nas costas uma vez. Na hora pensei que tivessem sido os ninjas e mais nada, até que Omi-san me interrogasse.
— Ah! — Yabu voltou os olhos para o sobrinho, toda a sua hara centrada no seu traidor, medindo a distância entre eles. — Então você o interrogou?
— Sim, senhor — replicou Omi. — O Senhor Toranaga pediu-me que reexaminasse todas as histórias. Essa foi uma das mais estranhas que achei que poderiam ser trazidas à atenção do nosso amo.
— Uma das mais estranhas? Há outra?
— Seguindo as ordens do Senhor Toranaga, interroguei os criados que sobreviveram ao ataque, senhor. Havia dois. Sinto muito, mas ambos disseram que o senhor atravessou os aposentos deles com um samurai e retornou pouco depois, sozinho, gritando: "Ninfas"! Então eles...
— Eles nos atacaram e mataram o infeliz com uma lança e uma espada, e quase me abateram. Tive que recuar para dar o alarma. — Yabu voltou-se para Toranaga, cuidadosamente pondo os pés numa posição melhor para o ataque. — Já lhe tinha contado isso, senhor, tanto pessoalmente quanto no relatório escrito. O que criados têm a ver comigo?
— Bem, Otni-san? — perguntou Toranaga.
— Sinto muito, Yabu-sama — disse Omi -, mas ambos o viram abrir os ferrolhos de uma porta secreta no porão e ouviram-no dizer aos ninfas: "Sou Kasigi Yabu". Foi isso o que deu tempo a eles de se esconderem e não serem massacrados.
A mão de Yabu moveu-se uma fração. Instantaneamente Sudara saltou para a frente de Toranaga para protegê-lo e no mesmo momento a espada de Hiromatsu disparou na direção do pescoço de Yabu.
— Pare! — ordenou Toranaga.
A espada de Hiromatsu parou, seu controle miraculoso. Yabu não fizera movimento algum. Encarou-os, depois riu, insolente. — Serei eu um ronin imundo que atacaria seu suserano? Este é Kasigi Yabu, senhor de Izu, Suruga e Totomi. Neh? — Olhou diretamente para Toranaga. — De que sou acusado, senhor? De ajudar ninfas? Ridículo! O que têm as fantasias de criados a ver comigo? São mentirosos! Assim como este sujeito, que insinua uma coisa que não pode provar e eu não posso justificar!
— Não há provas, Yabu-sama — disse Toranaga. — Concordo integralmente. Não há provas em absoluto.
— Yabu-sama, o senhor fez essas costas? — perguntou Hiromatsu.
— Claro que não!
— Mas eu acho que fez — disse Toranaga -, portanto todas as suas terras estão confiscadas. Por favor, rasgue o ventre hoje. Antes do meio-dia.
A sentença era decisiva. Era o momento supremo para o qual Yabu estivera preparado a vida toda.
Karma, pensou, o cérebro trabalhando a uma velocidade frenética. Não há nada que eu possa fazer, a ordem é legal, Toranaga é meu suserano, eles podem me tirar a cabeça ou posso morrer com dignidade. De um jeito ou de outro estou morto. Omi traiu-me, mas esse é o meu karma. Os criados deviam ter sido todos mortos, conforme o plano, mas dois sobreviveram, e esse é o meu karma. Seja digno, disse-se ele, reunindo coragem. Pense com clareza e seja responsável.
— Senhor — começou ele, com uma demonstração de audácia -, primeiro, sou inocente desses crimes, Kosami está enganado, e os criados são mentirosos. Segundo, sou o melhor general de batalha que o senhor tem. Imploro pela honra de comandar o ataque pela Tokaido — ou o primeiro lugar na primeira batalha -, de modo que minha morte seja de uso direto.
— É uma boa sugestão, Yabu-san — disse Toranaga cordialmente -, e concordo sinceramente que o senhor é o melhor general para o Regimento de Mosquetes, mas, sinto muito, não confio no senhor. Por favor, rasgue o ventre afites do meio-dia. Yabu controlou a fúria cegante e satisfez sua honra como samurai e como líder do seu clã com a totalidade do seu autosacrifício. — Formalmente absolvo o meu sobrinho Kasigi Omisan de qualquer responsabilidade pela minha traição e formalmente o designo meu herdeiro.
Toranaga ficou tão surpreso quanto todos os demais.
— Muito bem — disse. — Sim, acho que isso é muito sábio. Concordo.
— Izu é o feudo hereditário dos Kasigi. Lego-o a ele.
— Izu já não é seu para dá-lo. O senhor é meu vassalo, neh?
Izu é uma das minhas províncias, a ser dada conforme eu desejar, neh?
Yabu encolheu os ombros. — Lego-o a ele, — Riu. — É um favor de vida. Neh?
— Pedir é justo. Sua solicitação está recusada. E, Yabusan, todas as suas últimas ordens estão sujeitas à minha aprovação. Buntaro-san, você será a testemunha formal. Agora, Yabusan, a quem deseja como assistente?
— Kasigi Omi-san.
Toranaga olhou para Omi. Omi curvou-se, — A honra será minha — disse.
— Bom. Então está tudo arranjado.
— E o ataque pela Tokaido? — disse Hiromatsu.
— Estaremos mais seguros atrás das nossas montanhas. — Jovialmente Toranaga retribuiu-lhes o cumprimento, montou, e partiu a trote. Sudara fez um gesto polido de cabeça e seguiu-o. Assim que Toranaga e Sudara se encontraram fora de alcance, Buntaro e Hiromatsu se descontraíram, mas Omi não, e nenhum deles tirou os olhos do braço da espada de Yabu.
— Onde quer que seja, Yabu-sama? — perguntou Buntaro. — Aqui, ali, na praia, ou num monte de bosta — para mim é tudo a mesma coisa. Não preciso de vestes cerimoniais. Mas, Omi-san, você não dará o golpe até que eu tenha feito dois cortes.
— Sim, senhor.
— Com a sua permissão, Yabu-sama, também serei testemunha — disse Hiromatsu.
— Por que não se preocupa com as suas hemorróidas?
O general indignou-se e disse a Buntaro: — Por favor, mande me chamar quando ele estiver pronto.
Yabu cuspiu.
— Já estou pronto. O senhor está?
Hiromatsu girou sobre os calcanhares.
Yabu pensou um momento, depois tirou a espada Yoshitomo, embainhada, do sash.
— Buntaro-san, talvez pudesse me fazer um favor. Dê isto ao Anjin-san. — Ofereceu a espada, depois franziu o cenho. — Pensando melhor, se não for incômodo, quer, por favor, mandar chamá-lo, para que eu possa entregar-lhe pessoalmente?
— Certamente.
— E, por favor, traga aquele padre fedorento também, de modo que eu possa conversar diretamente com o Anjin-san.
— Bom. Que providências o senhor deseja que sejam tomadas?
— Só quero papel, tinta, um pincel para o meu testamento e o meu poema de morte, e dois tatamis — não há razão para eu machucar os joelhos ou me ajoelhar no pó, como um camponês fedorento. Neh? — acrescentou Yabu, com bravata.
Buntaro dirigiu-se aos outros samurais, que mudavam de posição de um pé para o outro, com uma excitação contida. Negligentemente Yabu sentou-se de pernas cruzadas e esgaravatou os dentes com um talo de grama. Omi acocorou-se perto, cautelosamente longe do alcance da espada.
— Iiiiih! — disse Yabu -, estive tão perto do sucesso! — Esticou as pernas e martelou-as contra a terra num repentino acesso de raiva. — Iiiiiih, tão perto! Eh, karma, neh? Karma! — Depois riu sonoramente, pigarreou e cuspiu, orgulhoso de ainda ter saliva na boca. — Isto em todos os deuses, vivos, mortos ou que ainda vão nascer! Mas, Omi-san, morro feliz. Jikkyu está morto e quando eu cruzar o último rio e o vir esperando lá, rilhando os dentes, poderei cuspir-lhe no olho para sempre.
— Prestou um grande serviço ao Senhor Toranaga, senhor — disse Omi, falando com sinceridade, embora o observasse como um falcão. — O senhor tinha razão, e Punho de Aço e Sudara estão errados. Poderíamos atacar imediatamente — as armas nos farão atravessar.
— Aquele velho monte de esterco! Imbecil! — Yabu riu de novo. — Você o viu ficar roxo quando eu mencionei as hemorróidas dele? Ah! Pensei que elas iam explodir naquela hora. Samurai? Sou mais samurai do que ele! Vou mostrar a ele! Você não dará o golpe até que eu lhe dê a ordem!
— Posso humildemente agradecer-lhe por me conceder essa honra, e também por me fazer seu herdeiro? Formalmente juro que a honra dos Kasigi estará segura nas minhas mãos.
— Se eu não pensasse isso, não teria sugerido. — Yabu baixou a voz. — Você agiu certo me traindo a Toranaga. Eu teria feito o mesmo se fosse você, embora seja tudo mentira. É a desculpa de Toranaga. Ele sempre teve inveja das minhas proezas em combate, e da minha compreensão das armas de fogo e do valor do navio. É tudo idéia minha.
— Sim, senhor, eu me lembro.
— Você salvará a família. É tão astuto quanto um rato velho e sarnento. Conseguirá Izu de volta e mais — é tudo o que importa agora, e vai conservá-lo para os seus filhos. Você compreende as armas. E Toranaga. Neh?
— Juro que tentarei, senhor.
Os olhos de Yabu deram com a mão de Omi sobre a espada, notando-lhe a postura alertamente defensiva. — Acha que vou atacá-lo?
— Sinto muito, claro que não, senhor.
— Fico contente de que você esteja em guarda. Meu pai era como você. Sim, você é muito parecido com ele. -— Sem fazer qualquer movimento brusco, colocou as duas espadas no chão, fora de alcance. — Pronto! Agora estou indefeso. Há alguns momentos queria vé-lo morto, mas agora não. Agora você não precisa me temer.
— É sempre necessário temê-lo, senhor.
Yabu soltou uma risadinha e chupou outro talo de grama. Depois atirou-o fora. — Ouça, Omi-san, estas são minhas ordens como senhor dos Kasigi. Você levará meu filho para a sua casa e o usará, como ele é digno de ser usado. Depois: encontre bons maridos para a minha esposa e a minha consorte, e agradeça-lhes profundamente por me terem servido tão bem. Quanto ao seu pai, Mizuno: ordeno-lhe que cometa seppuku imediatamente.
— Posso solicitar para ele a alternativa de raspar a cabeça e tornar-se monge?
— Não. Ele é imbecil demais, você nunca poderá confiar nele — que atrevimento o dele, passar meus segredos a Toranaga! — e estará sempre no seu caminho. Quanto à sua mãe ... — Ele arreganhou os dentes - ... fica ordenada a raspar a cabeça, tornar-se monja, entrar num mosteiro fora de Izu e passar o resto da vida dizendo orações pelo futuro dos Kasigi. Budista ou xintoísta — prefiro xintoísta. Você concorda, xintoísta?
— Sim, senhor.
— Bom. Desse modo — acrescentou Yabu com um deleite malicioso — ela parará de distraí-lo dos assuntos Kasigi com seus lamentos constantes.
— Será feito.
— Bom. Ordeno-lhe que vingue as mentiras levantadas contra mim por Kosami e aqueles criados traiçoeiros. Cedo ou tarde, não me importa, desde que você o faça antes de morrer.
— Obedecerei.
— Esqueci de alguma coisa?
Cuidadosamente Omi se certificou de que não estavam sendo ouvidos. -— E quanto ao herdeiro? — perguntou com cautela. — Quando o herdeiro estiver em campo contra nós, perderemos, neh? — Pegue o Regimento de Mosquetes, abra caminho à força e mate-o, diga Toranaga o que disser. Yaemon é o seu alvo primordial.
— A minha conclusão também era essa. Obrigado.
— Bom. Mas melhor do que esperar todo esse tempo é colocar a cabeça dele a prêmio agora, secretamente, entre os ninjas... ou os Amidas.
— Como os encontro? — perguntou Omi, um tremor de voz. — A bruxa velha, Gyoko, a Mama-san, é uma das que sabem como.
— Ela?
— Sim. Mas cuidado com ela, e com os Amidas. Não os use levianamente, Omi-san. Nunca a toque, sempre a proteja. Ela sabe segredos demais e o pincel de escrita é um braço que se alonga da sepultura. Foi consorte não oficial de meu pai durante um ano... pode até ser que o filho dela seja meu meio irmão. Eh, cuidado com ela, sabe segredos demais.
— Mas onde arrumo dinheiro?
— Isso é problema seu. Mas arrume. Em qualquer lugar, de qualquer modo.
— Sim. Obrigado. Obedecerei.
Yabu aproximou-se mais. Imediatamente Omi se preparou, desconfiado, a espada quase fora da bainha. Yabu sentiu-se satisfeito de, mesmo indefeso, ainda ser um homem contra quem se acautelar. — Enterre este segredo muito profundamente. E ouça, sobrinho, seja um ótimo amigo do Anjin-san. Tente controlar a marinha que ele trará uni dia. Toranaga não compreende o valor real do Anjin-san, mas está certo em ficar atrás das montanhas. Isso dá a ele e a você tempo. Temos que sair da terra e nos pormos ao largo — nossos tripulantes nos navios deles -, com Kasigi no comando supremo. Os Kasigi devem se pôr ao mar, para comandar o mar. Ordeno.
— Sim... oh, sim — disse Omi. — Confie em mim. Isso acontecerá.
— Bom. Por último, jamais confie em Toranaga.
Omi disse com toda a sinceridade: — Não confio, senhor. Nunca confiei. E nunca confiarei.
— Bom. E quanto a esses imundos mentirosos, não se esqueça, trate deles. E de Kosami. — Yabu suspirou, em paz consigo. — Agora por favor, com licença, preciso pensar no meu poema de morte.
Omi levantou-se, recuou e, quando estava bem afastado, curvou-se e se afastou mais vinte passos. Em meio à segurança dos seus próprios guardas, sentou-se de novo e começou a esperar.
Toranaga e sua comitiva trotavam ao longo da estrada costeira que contornava a ampla baía, o mar chegando quase até a estrada, do lado direito. Ali a terra era baixa e pantanosa, com muitos charcos. Algumas ris ao norte a estrada se unia à Tokaido, a artéria principal. Mais vinte ris ao norte ficava Yedo. Toranaga tinha cem samurais consigo, dez falcoeiros e dez aves sobre o punho enluvado dos falcoeiros. Sudara tinha vinte guardas e três aves, e cavalgava como vanguarda.
— Sudara! — chamou Toranaga, como se fosse uma idéia súbita. — Pare na próxima estalagem. Quero comer alguma coisa!
Sudara acenou, dando a entender que ouvira, e prosseguiu a galope. Quando Toranaga chegou, criadas curvavam-se e sorriam, o estalajadeiro fazendo mesuras com toda a sua gente. Guardas cobriam o norte e o sul, e suas bandeiras estavam orgulhosamente plantadas.
— Bom dia, senhor, por favor, o que posso lhe servir para comer? — perguntou o estalajadeiro. — Obrigado por honrar a minha pobre hospedaria.
— Chá, e um pouco de talharim com soja, por favor. — Sim, senhor.
A comida foi trazida numa bela tigela quase imediatamente, cozida exatamente do modo como ele gostava, já que Sudara prevenira o estalajadeiro. Sem cerimônia, Toranaga se acocorou numa varanda e consumiu com prazer o prato simples, camponês, e observou a estrada à frente. Outros hóspedes se curvaram e foram tratar de seus próprios negócios, contentes, orgulhosos de se encontrarem na mesma hospedaria que o grande daimio. Sudara inspecionou os postos avançados, certificando-se de que estava tudo perfeito. — Onde estão os batedores agora? — perguntou ao mestre de caça.
— Alguns ao norte, alguns ao sul, e tenho homens extras nas colinas ali. — O velho samurai apontou para o interior na direção de Yokohama, infeliz e transpirando. ~ Por favor, desculpe-me, mas o senhor tem alguma idéia de aonde nosso amo gostaria de ir?
— Nenhuma, absolutamente. Mas não cometa mais enganos hoje.
— Sim, senhor.
Sudara terminou sua ronda, depois apresentou-se a Toranaga. — Está tudo satisfatório, senhor? Há alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor?
— Não, obrigado. — Toranaga terminou a tigela e tornou o resto da sopa. Depois disse numa voz inexpressiva: — Você estava correto no que disse sobre o herdeiro.
— Por favor, desculpe-me, tive medo de talvez tê-lo ofendido, sem intenção.
— Você estava certo — por que eu ficaria ofendido? Quando o herdeiro se erguer contra mim, o que você fará?
— Obedecerei às suas ordens.
— Por favor, mande o meu secretário vir aqui e volte com ele.
Sudara obedeceu. Kawanabi, o secretário — um ex-samurai e ex-sacerdote -, que sempre viajava com Toranaga, chegou rapidamente com a sua caixa de papéis de viagem, tintas, carimbos, e pincéis que se ajustavam no seu cesto de sela.
— Senhor?
— Escreva isto: "Eu, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, reemposso meu filho Yoshi Sudara-noh-Minowara como meu herdeiro, com todas as suas rendas e títulos restituídos".
Sudara curvou-se. — Obrigado, Pai — disse, a voz firme, mas perguntando a si mesmo: por quê?
— Jure formalmente aceitar todos os meus preceitos, testamentos — e o Legado.
Sudara obedeceu. Toranaga esperou em silêncio até Kawanabi escrever a ordem, depois assinou e tornou-a legal com seu carimbo, um pequeno pedaço quadrado de marfim com seu nome esculpido a uma extremidade. Pressionou-o contra a tinta escarlate quase sólida, depois na base do papel de arroz. A marca saiu perfeita. — Obrigado, Kawanabi-san, ponha a data de ontem. É tudo por enquanto.
— Por favor, desculpe, mas o senhor precisará de mais cinco cópias, para tornar a sua sucessão inviolável: uma para o Senhor Sudara, uma para o conselho de regentes, uma para a Casa de Registros, uma para os seus fichários pessoais, e outra para os arquivos.
— Faça-as imediatamente. E dê-me uma cópia extra.
— Sim, senhor. -— O secretário deixou-os. Toranaga olhou para Sudara e estudou o rosto estreito, inexpressivo. Quando fizera o anúncio deliberadamente repentino, Sudara não deixara transparecer nada, nem no rosto nem nas mãos. Nenhum contentamento, gratidão, orgulho — nem mesmo surpresa, e isso o entristeceu. Mas, pensou Toranaga, por que ficar triste, você tem outros filhos que sorriem, riem, cometem erros, gritam, enfurecem-se, "travesseiram" e têm muitas mulheres. Filhos normais. Este filho é para seguir você, para comandar depois que você estiver morto, para manter os Minowara unidos e passar o Kwanto e o poder a outros Minowara. Para ser gelado e calculista, como você. Não, não como eu, disse-se ele com sinceridade. Eu posso rir às vezes, ter compaixão às vezes, e gosto de peidar e "travesseirar", enfurecer-me, dançar, jogar xadrez, representar, e algumas pessoas me alegram, como Naga, Kiri, Chano e o Anjin-san, e gosto de caçar e vencer, vencer, vencer. Nada o alegra, Sudara, sinto muito. Nada. Exceto a sua esposa, a Senhora Genjiko. A Senhora Genjiko é o único elo fraco na sua corrente.
— Senhor? — perguntou Sudara.
— Eu estava tentando me lembrar de quando o vi rir pela última vez.
— Deseja que eu ria, senhor?
Toranaga meneou a cabeça, sabendo que educara Sudara para ser o filho perfeito para aquilo que tinha que ser feito. — Quanto tempo você levaria para se certificar de que Jikkyu está realmente morto?
— Antes de deixar o acampamento, enviei uma mensagem cifrada de alta prioridade para Mishima, para o caso de o senhor já não saber se isso era verdade ou não, Pai. Terei uma resposta dentro de três dias.
Toranaga bendisse os deuses por ter tido conhecimento antecipado da conspiração contra Jikkyu através de Kasigi Mizuno, e a notícia da morte desse inimigo. Por um momento reexaminou seu plano e não conseguiu encontrar falha alguma nele. Então, levemente nauseado, tomou a decisão. — Ordene aos Décimo Primeiro, Décimo Sexto, Nonagésimo Quarto e Nonagésimo Quinto regimentos, em Mishima, que se ponham em alerta imediatamente. Dentro de quatro dias lance-os pela Tokaido.
— Céu Carmesim? — perguntou Sudara, desconcertado. — O senhor vai atacar?
— Sim. Não vou esperar que venham contra mim.
— Então Jikkyu está morto? — Sim.
— Bom — disse Sudara. — Posso sugerir-lhe que acrescente o Vigésimo e o Vigésimo Terceiro?
— Não. Dez mil homens devem ser suficientes — com surpresa. Ainda tenho que defender toda a minha fronteira, para o caso de fracasso, ou de uma armadilha. E também há Zataki a conter.
— Sim — disse Sudara.
— Quem deve comandar o ataque?
— O Senhor Hiromatsu. É uma campanha perfeita para ele. — Por quê?
— É direto, simples, conservador e dá ordens claras, Pai. Será perfeito para essa campanha.
— Mas já não é conveniente como comandante-chefe?
— Sinto muito, Yabu-san tinha razão, as armas de fogo mudaram o mundo. Punho de Aço está ultrapassado agora.
— Quem, então?
— Apenas o senhor. Até depois da batalha, aconselho-o a não ter ninguém entre o senhor e a batalha.
— Considerarei isso — disse Toranaga. — Agora, vá a Mishima. Você preparará tudo. A força de assalto de Hiromatsu terá vinte dias para atravessar o rio Tenryu e garantir a estrada Tokaido.
— Por favor, desculpe-me, permita-me sugerir que o objetivo final deles seja um pouco adiante, o cume do Shiomi. Dê-lhes trinta dias.
— Não. Se eu der essa ordem, alguns homens atingirão o cume. Mas a maioria será morta e não será capaz de desferir o contra-ataque, ou acossar o inimigo enquanto nossas forças se retiram.
— Mas certamente o senhor enviará reforços imediatamente nos calcanhares deles?
— Nosso ataque principal atravessa as montanhas de Zataki. Isto é uma simulação. — Toranaga estava avaliando o filho com todo o cuidado. Mas Sudara não revelou nada, nem surpresa, nem aprovação, nem desaprovação.
— Ah. Desculpe. Por favor, desculpe-me, senhor.
— Com Yabu morto, quem deve comandar as armas de fogo?
— Kasigi Omi.
— Por quê?
— Ele as compreende. Mais que isso, ele é moderno, muito corajoso, muito inteligente, muito paciente — e também muito perigoso, mais perigoso do que o tio. Aconselho-o, se o senhor vencer e ele sobreviver, a encontrar alguma desculpa para mandálo para o Vazio.
— Se eu vencer?
— Céu Carmesim sempre foi um último plano. O senhor disse isso cem vezes. Se formos batidos na Tokaido, Zataki descerá com tudo para as planícies. As armas não nos ajudarão então. É um último plano. O senhor jamais gostou de últimos planos.
— E o Anjin-san? O que aconselha a respeito dele?
— Concordo com Omi-san e com Naga-san. Ele deve ser refreado. O resto dos homens dele não representam nada — são etas e logo se devorarão entre si, portanto não são nada. Aconselho que todos os estrangeiros sejam contidos ou expulsos. São uma praga — a ser tratada como tal.
— Então não haverá comércio de seda. Neh?
— Se o preço fosse esse, eu pagaria. Eles são uma praga.
— Mas precisamos ter seda e, para nos proteger, devemos aprender sobre eles, aprender o que sabem, rneh?
— Eles deveriam ser confinados em Nagasaki, sob guarda muito cerrada, e seu número estritamente limitado. Ainda poderiam comerciar uma vez por ano. Dinheiro não é o motivo essencial deles? Não é o que diz o Anjin-san?
— Ah, então ele é útil?
— Sim. Muito. Ensinou-nos a sabedoria dos editos de expulsão. O Anjin-san é muito sábio, muito corajoso. Mas é um brinquedo. Ele o diverte, senhor, como Tetsu-ko, portanto é valioso, embora continue sendo um brinquedo.
— Obrigado pelas suas opiniões. Assim que se desencadear o ataque, você regressará a Yedo e esperará outras ordens. — Disse-o deliberadamente. Zataki ainda detinha a Senhora Genjiko,
e o filho e três filhas do casal, como reféns na sua capital, Takato. Por solicitação de Toranaga, Zataki concedera a Sudara uma permissão de ausência, mas apenas por dez dias, e Sudara solenemente concordara com o trato e com a volta nesse prazo. Zataki era famoso pela sua rigidez quanto à honra. Legalmente ele poderia, e o faria, aniquilar todos os reféns por causa desse ponto de honra, independentemente de qualquer tratado ou acordo aberto ou sigiloso. Tanto Toranaga quanto Sudara sabiam que sem dúvida alguma Zataki faria isso se Sudara não retornasse conforme o prometido. — Você esperará em Yedo por outras ordens.
— Sim, senhor.
— Parta imediatamente para Mishima.
— Então poupará tempo se eu for por aqui. — Sudara apontou para o entroncamento à frente.
— Sim. Mando-lhe uma mensagem amanhã.
Sudara curvou-se, dirigiu-se para o seu cavalo c, com seus vinte guardas, partiu.
Toranaga pegou a tigela e comeu um último bocado de talharim, agora frio. — Oh, senhor, sinto muito, deseja mais um pouco? — disse a jovem criada sem fôlego, acorrendo. Tinha o rosto redondo, não era bonita, mas esperta e atenta — exatamente do jeito como ele gostava que fossem os seus criados c criadas. — Não, obrigado. Como você se chama?
— Yuki,,senhor.
— Diga ao seu amo que ele faz um bom talharim, Yuki. — Sim, senhor, obrigada. Obrigada, senhor, por honrar a nossa casa. Basta estalar os dedos para qualquer coisa que deseje e o senhor a terá instantaneamente.
Ele piscou para ela, que riu, recolheu a bandeja e saiu apressada. Contendo a impaciência, ele examinou a curva distante na estrada, depois os arredores. A hospedaria estava em boas condi ções, as passagens cobertas até o poço limpas e a terra varrida. Fora, no pátio, e em toda a volta, seus homens esperavam pacientemente, mas ele detectou nervosismo no mestre de caça e resolveu que aquele dia seria o último de serviço ativo do homem. Se Toranaga estivesse seriamente interessado na caçada em si, teria dito a ele que voltasse a Yedo agora, dando-lhe uma generosa pensão, e designado outro para o seu lugar.
Essa é a diferença entre mim e Sudara, pensou ele sem maldade. Sudara não hesitaria. Ordenaria ao homem que cometesse seppukií agora, o que pouparia a pensão e todo o incômodo posterior, e aumentaria a perícia do substituto. Sim, meu filho, conheço-o muito bem. Você é muito importante para mim.
E quanto à Senhora Genjiko e os filhos? perguntou-se ele, trazendo à tona a questão vital. Se a Senhora Genjiko não fosse irmã de Ochiba — c estimada como irmã favorita -, eu pesaro samente permitiria a Zataki eliminá-los a todos agora e assim pouparia Sudara de urra risco enorme no futuro, se eu morrer cedo, porque eles são o seu único elo fraco. Mas felizmente
Genjiko é irmã de Ochiba, portanto uma peça importante no grande jogo, e não tenho que permitir que isso aconteça. Eu deveria, tuas não o farei. Desta vez tenho que arriscar. Portanto me lembrarei de que Genjiko é valiosa em outros sentidos — é tão afiada quanto uma espinha de tubarão, faz filhos ótimos, e é fanaticamente implacável na defesa da prole, assim como Ochiba, com urna enorme diferença: Genjiko-san é leal primeiro a mim, Ochiba primeiro ao herdeiro.
Então isso está resolvido. Antes do décimo dia, Sudara deve estar de volta às mãos de Zataki. Uma extensão do prazo? Não, isso poderia deixar Zataki ainda mais desconfiado do que já está, e ele é o último homem que quero desconfiado agora. De que modo Zataki reagirá?
Você foi sábio em designar Sudara. Se houver um futuro, o futuro estará seguro nas mãos dele e de Genjiko, desde que sigam o Legado à letra. E a decisão de reempossá-lo agora foi correta e vai agradar a Ochiba.
Ele já escrevera a carta naquela manhã e a enviaria a ela na mesma noite, com uma cópia da ordem. Sim, isso lhe removerá uma espinha de peixe da goela, que a estava fazendo sufocar e que tinha sido deliberadamente cravada ali, há muito tempo, com essa finalidade. É bom saber que Genjiko é um dos elos fracos de Ochiba, talvez até o único. Qual é a fraqueza de Genjiko? Nenhuma. Pelo menos ainda não descobri uma, mas se houver, descobrirei.
Estava examinando seus falcões. Alguns estavam palrando, outros se alisando com o bico, todos em boa forma, todos encapuzados, menos Kogo, os grandes olhos amarelos dardejando, olhando tudo, tão interessado quanto ele próprio.
O que você diria, minha beleza, perguntou Toranaga à ave em silêncio, o que você diria se eu lhe contasse que devo ser impaciente e explodir e que o meu ataque principal será ao longo da Tokaido, e não através das montanhas de Zataki, conforme disse a Sudara? Você provavelmente diria: por quê? E eu responderia: porque confio em Zataki tanto quanto confio em eu mesmo poder voar. E eu não posso voar em absoluto. Neh?
Então viu os olhos de Kogo mover-se rapidamente para a estrada. Semicerrou os olhos para ver à distância e sorriu ao distinguir os palanquins e os cavalos de bagagem que se aproximavam dobrando a curva.
— Então, Fujiko-san? Como vai?
— Bem, obrigada, senhor, muito bem. — Ela se curvou de novo e ele notou que ela não sentia dores nas cicatrizes da queimadura. Seus membros agora estavam tão flexíveis como sempre, e havia um rubor agradável nas suas faces. — Posso perguntar como está o Anjin-san? — disse ela. — Ouvi dizer que a viagem de Osaka foi muito ruim, senhor.
— Ele está passando bem agora, com muito boa saúde.
— Oh, senhor, é a melhor notícia que poderia ter me dado. — Bom. — Ele se voltou para o palanquim seguinte para saudar Kiku, que sorriu alegremente e cumprimentou-o com grande afeto, dizendo que estava muito feliz de vê-lo e que sentira muita falta sua. — Faz muito tempo, senhor.
— Sim, por favor, desculpe-me, sinto muito — disse ele, excitado pela surpreendente beleza e alegria interior dela, apesar das suas próprias ansiedades opressivas. — Estou muito satis feito em vê-Ia. — Depois seus olhos foram para a última liteira. — Ah, Gyoko-san, há quanto tempo — acrescentou, seco como lenha.
— Obrigada, senhor, sim, renasci agora que estes velhos olhos tiveram a honra de vê-lo novamente. — A reverência de Gyoko, que estava cuidadosamente resplandecente, foi impecável, e ele captou um lampejo mínimo de um sobquimono escarlate, da seda mais cara. — Ah, como está forte, senhor, um gigante entre os homens — entoou ela.
— Obrigado. Está com boa aparência, também.
Kiku bateu palmas ante o gracejo e todos riram com ela. — Ouçam — disse ele, feliz por causa dela -, tomei providências para que todas vocês fiquem aqui por enquanto. Agora, Fujikosan, por favor, venha comigo.
Tomou Fujiko à parte e, depois de lhe oferecer chá e de tagarelarem sobre coisas sem importância, foi ao ponto. — Você concordou com meio ano e eu concordei com meio ano. Sinto muito, mas devo saber hoje se você mudará o acordo.
O rosto pequeno e quadrado perdeu o atrativo quando a alegria se esvaneceu. A ponta da sua língua tocou os dentes agudos um momento. — Como posso mudar o acordo, senhor? — Muito fácil. Está terminado. Ordeno.
— Por favor, desculpe-me, senhor — disse Fujiko, a voz sem modulação. — Eu não quis dizer isso. Fiz o acordo espontânea e solenemente diante de Buda, com o espírito do meu falecido marido e do meu falecido filho. Não pode ser mudado.
— Ordeno que seja.
— Sinto muito, senhor, por favor, desculpe-me, mas então o bushido me desobriga de obediência ao senhor. O seu contrato foi igualmente solene, e qualquer alteração tem que ser aceita por ambas as partes, sem coerção.
— O Anjin-san lhe agrada?
— Sou sua consorte. O necessário é que eu agrade a ele.
— Você poderia continuar vivendo com ele se o outro acordo não existisse?
— A vida com ele é muito, muito difícil, senhor. Todas as formalidades, a maioria das cortesias, todo tipo de costume que torna a vida segura, digna, polida e suportável tem que ser posto de lado, ou contornado, por isso a casa dele não é segura, não tem wa, não há harmonia pàra mim. É quase impossível fazer os criados compreender, ou eu mesma compreender... mas, sim, eu poderia continuar' a cumprir o meu dever para com ele. ' — Peço-lhe que dê por encerrado o acordo.
— Meu primeiro dever é para com o senhor. Meu segundo dever é para com o meu marido.
— Minha idéia, Fujiko-san, era que o Anjin-san se casasse com você. Aí você não seria uma consorte.
— Um samurai não pode servir a dois senhores, nem uma esposa a dois maridos. Meu dever é para com o meu falecido marido. Por favor, desculpe-me, não posso mudar.
— Com paciência tudo muda. Logo o Anjin-san saberá mais dos nossos hábitos e a casa dele também terá wa. Ele aprendeu incrivelmente desde que...
— Oh, por favor, senhor, não me interprete mal, o Anjin-san é o homem mais extraordinário que já conheci e, oh, sim, sei que a casa dele logo será uma casa de verdade, mas... mas, por favor, desculpe-me, devo cumprir o meu dever. Meu dever é para com o meu marido, meu único marido... — Esforçou-se por se controlar. — Deve ser, neh? Deve ser, senhor, ou então toda... toda a vergonha, o sofrimento, a desonra perdem o significado, neh? A morte dele, de meu filho, as espadas dele quebradas e enterradas na aldeia eta... Sem dever para com ele, todo o nosso bushido não é uma pilhéria imortal?
— Deve responder a uma pergunta, Fujiko-san: o seu dever para com uma solicitação minha, seu suserano, e para com um homem surpreendentemente corajoso que está se tornando um de nós e é seu amo, e — acrescentou, acreditando reconhecer o rubor no rosto dela — o seu dever para com o filho dele ainda não nascido, isso tudo não tem precedência sobre um dever anterior?
— Eu... eu não estou carregando o filho dele, senhor. — Tem certeza?
— Não, não tenho. — Está atrasada?
— Sim... mas só um pouco e isso poderia ser... Toranaga observava e esperava. Pacientemente. Ainda havia muito a fazer antes que ele pudesse partir a galope e soltar Tetsu-ko ou Kogo, e sentia-se ávido por esse prazer, mas isso seria apenas para ele, portanto sem importância. Fujiko era importante e ele prometera a si mesmo que pelo menos hoje fingiria ter vencido a guerra, que tinha tempo, podia ser paciente e resolver assuntos que era seu dever resolver. — Bem?
— Sinto muito, senhor, não.
— Então é não, Fujiko-san. Por favor, desculpe-me por ter perguntado, mas era necessário. — Toranaga não estava nem zangado nem satisfeito. A garota estava apenas fazendo o que era honroso fazer, e ele soubera, desde o momento em que concordara em fazer o trato com ela, que nunca haveria uma alteração. É isso o que nos torna únicos na terra, pensou ele com satisfação. Um trato com a morte é um trato santificado. Curvou-se para ela formalmente. — Cumprimento-a pela sua honra e senso de dever para com o seu marido, Usagi Fujiko — disse ele, citando o nome que cessara de existir.
— Oh, obrigada, senhor — disse ela, ante a honra que ele lhe fazia, as lágrimas escorrendo devido à total felicidade que a invadia, sabendo que esse gesto simples limpava o estigma do único marido que ela teria nesta vida.
— Ouça, Fujiko, vinte dias antes do último dia, você partirá para Yedo — aconteça o que acontecer a mim. A sua morte deve ocorrer durante a viagem e deve parecer acidental. Neh?
— Sim, sim, senhor.
— Isso será segredo nosso. Seu e meu apenas. — Sim, senhor.
— Até lá você continuará como cabeça da casa dele. — Sim, senhor.
— Agora, por favor, diga a Gyoko que venha aqui. Mandarei chamá-la de novo antes de partir. Tenho outras coisas a discutir com você.
— Sim, senhor — Fujiko curvou-se profundamente e disse: — Eu o abençôo por me libertar da vida. — Afastou-se.
Curioso, pensou Toranaga, como as mulheres podem mudar como camaleões — num momento feias, no outro atraentes, às vezes até bonitas, embora na realidade não sejam.
— Mandou me chamar, senhor?
— Sim, Gyoko-san. Que notícias tem para mim?
— De todo tipo, senhor — disse Gyoko, o rosto bem maquilado sem medo, um brilho nos olhos, mas as tripas se contorcendo. Sabia que não era por coincidência que aquele encontro estava ocorrendo, e seu instinto lhe dizia que Toranaga estava mais perigoso do que o habitual. — As providências para a corporação de cortesãs avançam satisfatoriamente, e as regras e regulamentos estão sendo rascunhados para a sua aprovação. Há uma área excelente ao norte da cidade que...
— A área que já escolhi fica perto da costa. O Yoshiwara. Ela o cumprimentou pela escolha, gemendo por dentro. O Yoshiwara — Brejo Vermelho — era atualmente um pântano, infestado de mosquitos, e teria que ser drenado e recuperado, antes de poder ser cercado e suportar uma construção. — Excelente, senhor. Depois: as regras e regulamentos para as gueixas também estão sendo preparados para o seu exame.
— Bom. Faça-os breves e concisos. Que inscrição você colocará sobre a entrada do Yoshiwara?
— "A luxúria não se refreia — alguma coisa tem que ser feita com relação a isso."
Ele riu, e ela sorriu, mas não se descontraiu, e acrescentou séria: — Permita-me agradecer-lhe de novo em nome das gerações futuras, senhor.
— Não foi por você ou por elas que eu concordei — disse Toranaga, e citou uma das suas notas no Legado: — "Os homens virtuosos no decorrer da história sempre censuraram as casas de tolerância ou lugares de `travesseiro', mas os homens não são virtuosos, e se um líder banir as casas e o `travesseiro', será um tolo, porque males maiores logo irromperão como uma peste de furúnculos".
— Como é sábio, senhor.
— E quanto a colocar todos os lugares de "travesseiro" numa única área, isso quer dizer que todos os não-virtuosos poderão ser vigiados, taxados e controlados, todos ao mesmo tempo. Você tem razão de novo, Gyoko-san, "a luxúria não se refreia". Logo se deteriora. O que mais?
— Kiku-san recuperou a saúde, senhor. Perfeitamente.
— Sim, eu vi. Ela está deliciosa! Desculpe... Yedo certamente é quente e rude no verão. Tem certeza de que ela está bem agora?
— Sim, oh sim, mas ela sentiu saudades do senhor. Devemos acompanhá-lo a Mishima?
— Que outros boatos você ouviu?
— Apenas que Ishido deixou o Castelo de Osaka. Os regentes formalmente declararam o senhor fora da lei — que impertinência, senhor.
— De que modo ele está planejando me atacar?
— Não sei, senhor — disse ela cautelosamente. — Mas imagino que seja um ataque bifurcado, ao longo da Tokaido com Ikawa Hikoju, partindo de Shinano, já que o Senhor Zataki tola mente se aliou ao Senhor Ishido contra o senhor. Mas atrás das suas montanhas o senhor está seguro. Oh, sim, estou certa de que o senhor viverá até uma idade bem avançada. Com a sua permissão, senhor, vou transferir todos os meus negócios para Yedo.
— Certamente. Enquanto isso, veja se consegue descobrir onde será a investida principal.
— Tentarei, oh, sim, senhor. Estes são tempos terríveis, senhor, quando irmão vai contra irmão, filho contra pai.
De olhos velados, Toranaga anotou mentalmente para aumentar a vigilância sobre Noboru, seu filho mais velho, cuja fidelidade última era para com o táicum. — Sim — concordou. — Tempos terríveis. Tempos de grandes mudanças. Algumas más, outras boas. Você, por exemplo, está rica agora, e o seu filho, por exemplo. Ele não está encarregado da sua fábrica de saquê em Odawara?
— Sim, senhor. — Gyoko ficou cinza por baixo da maquilagem.
— Tem tido grandes lucros, neh?
— Ele com certeza é o melhor administrador de Odawara, senhor.
— Assim ouvi dizer. Tenho um serviço para ele. O Anjin-san vai construir um novo navio. Estou providenciando todos os artesãos e materiais, por isso quero o lado comercial tratado com o maior cuidado.
Gyoko quase desmaiou de alívio. Presumira que Toranaga ia destruí-los a todos antes de partir para a guerra, ou taxá-la de modo exorbitante, porque descobrira que ela mentira sobre o Anjin-san e a Senhora Toda, ou sobre o infeliz aborto de Kiku, que não fora por acaso, como ela relatara tão lacrimosamente um mês atrás, mas por cuidadosa indução, por insistência, junto com a submissa anuência de Kiku. — Oh ko, senhor, quando quer meu filho em Yokohama? Ele garantirá que seja o navio mais barato jamais construido.
— Não o quero barato. Quero que seja o melhor — pelo preço mais razoável. Ele será supervisor e responsável, subordinado ao Anjin-san.
— Senhor, tem a minha garantia, o meu futuro, as minhas esperanças de futuro, de que será como o senhor deseja.
— Se o navio for construido perfeitamente, exatamente como o Anjin-san quer, dentro de seis meses a contar do primeiro dia, farei seu filho samurai.
Ela se curvou profundamente e por um momento não conseguiu falar. — Por favor, perdoe uma pobre imbecil, senhor. Obrigada, obrigada.
— Ele tem que aprender tudo o que o Anjin-san sabe sobre a construção do navio, de modo que se possam construir outros depois que ele parta. Neh?
— Será feito.
— Depois: Kiku-san. Os seus talentos merecem um futuro melhor do que apenas estar sozinha numa caixa, uma dentre muitas mulheres.
Gyoko levantou os olhos, novamente esperando pelo pior. — Vai vender o contrato dela, senhor?
— Não, ela não deveria ser cortesã novamente, ou mesmo uma das suas gueixas. Deveria estar numa família, uma senhora dentre poucas, muito poucas.
— Mas, senhor, se ela o vir, ainda que ocasionalmente, como poderia ter uma vida melhor em outro lugar?
Ele permitiu que ela o cumprimentasse, retribuiu, estendendo o cumprimento a Kiku, e disse: — Francamente, Gyoko-san, estou gostando demais dela e não posso me permitir ser distraído. Francamente ela é bonita demais para mim ... perfeita demais ... Por favor, desculpe-me, mas este deve ser outro dos nossos segredos.
— Concordo, senhor, claro, tudo o que desejar — disse Gyoko fervorosamente, ignorando tudo o que fora dito como mentiras, quebrando a cabeça à procura da verdadeira razão. -— Se a pessoa pudesse ser alguém que Kiku pudesse admirar, eu morreria contente.
— Mas somente depois de ver o navio do Anjin-san navegando, no prazo de seis meses — disse ele secamente.
— Sim ... oh, sim. — Gyoko moveu o leque, pois o sol estava quente agora, o ar úmido e abafado, tentando sondar por que Toranaga estava sendo generoso com elas duas, sabendo que o preço seria pesado, muito pesado. — Kiku-san ficará muito perturbada por deixar a sua casa.
— Sim, naturalmente. Acho que deveria haver alguma compensação pela obediência dela a mim, seu suserano. Deixe isso comigo, e por enquanto não toque no assunto com ela.
— Sim, senhor. E quando deseja que meu filho esteja em Yokohama?
— Você será informada antes de eu partir.
Ela se curvou e se afastou a trote. Toranaga foi nadar um pouco. Ao norte o céu estava muito escuro, e ele sabia que devia estar chovendo pesadamente lá.. Quando viu o pequeno grupo de cavaleiros vindo da direção de Yokohama, retornou.
Omi desmontou e desembrulhou a cabeça. — O Senhor Kasigi Yabu obedeceu, senhor, pouco antes do meio-dia. — A cabeça fora recentemente lavada, o cabelo penteado, e estava espetada na ponta de um pequeno pedestal, utilizado normalmente para esse exame.
Toranaga inspecionou um inimigo como já fizera dez mil vezes na vida, perguntando-se, como sempre, como se pareceria a sua própria cabeça depois da morte, examinada pelo seu conquistador, e se demonstraria terror, agonia, raiva, horror, ou tudo isso junto ou nada disso. Ou dignidade. A máscara de morte de Yabu mostrava somente uma cólera frenética, os lábios repuxados para trás num desafio feroz. — Ele morreu bem?
— O melhor que já vi, senhor. O Senhor Hiromatsu disse o mesmo. Os dois cortes, depois um terceiro na garganta. Sem auxílio e sem ruído — acrescentou Omi. — Aqui está o seu testamento.
— Você decepou a cabeça com um único golpe?
— Sim, senhor. Pedi permissão ao Anjin-san para usar a espada do Senhor Yabu.
— A Yoshitomo? A que eu dei a Yabu? Ele a deu ao Anjin-san?
— Sim, senhor. Eles conversaram por intermédio do Tsukku-san. Ele disse: "Anjin-san, dou-lhe isto para celebrar a sua chegada a Anjiro e como um agradecimento pelo prazer que o pequeno bárbaro me deu". Inicialmente o Anjin-san se recusou a aceitá-la, mas Yabu rogou-lhe que o fizesse e disse: "Nenhum destes comedores de esterco merece uma lâmina assim". O Anjin-san acabou concordando.
Curioso, pensou Toranaga. Eu esperava que Yabu desse a lâmina a Omi.
— Quais foram suas últimas instruções? — perguntou.
Orni contou-lhe. Exatamente. Se não estivessem todas escritas no testamento, que fora dado publicamente à testemunha formal, Buntaro, Omi não as teria comunicado todas e, na reali dade, teria inventado outras. Yabu tinha razão, pensou ele, furioso, lembrando-se de que devia ter sempre em mente que o pincel de escrita era um braço que se alongava da sepultura.
— Para honrar a bravura da morte do seu tio, devo respeitar-lhe os desejos de morte. Todos eles, sem alteração, neh? — disse Toranaga, testando-o.
— Sim, senhor. — Yuki!
— Sim, senhor — disse a criada. — Traga chá, por favor.
Ela saiu correndo, e Toranaga deixou a mente ponderar sobre as últimas vontades de Yabu. Eram todas muito sábias. Mizuno era um imbecil e totalmente no caminho de Omi. A mãe era uma megera velha, irritante e untuosa, também no caminho de Omi. — Muito bem, desde que você concorde, estão confirmadas. Todas elas. E também desejo aprovar os desejos de morte de seu pai antes de se tornarem finais. Como recompensa pela sua devoção, designo-o comandante do Regimento de Mosquetes.
— Obrigado, senhor, mas não mereço essa honra — disse Omi exultante.
— Naga será o segundo em comando. Depois: você fica nomeado cabeça dos Kasigi e o seu novo feudo serão as terras fronteiriças a Izu, de Atami, a leste, a Nimazu, a oeste, incluindo a capital, Mishima, com a renda anual de trinta mil kokus.
— Sim, senhor, obrigado. Por favor ... não sei como agradecer-lhe. Não sou digno dessas honras.
— Faça por sê-lo, Omi-sarna -— disse Toranaga afavelmente. — Tome posse do castelo de Mishima imediatamente. Parta de Yokohama hoje. Apresente-se ao Senhor Sudara em Mishima. O Regimento de Mosquetes será enviado para Hakoné e estará lá dentro de quatro dias. Depois, em particular, apenas para o seu conhecimento: estou mandando o Anjin-san de volta a Anjiro.
Ele construirá um novo navio lá. Você passará o seu feudo atual a ele. Imediatamente.
— Sim, senhor. Posso dar-lhe a minha casa?
— Sim, pode — disse Toranaga, embora, naturalmente, um feudo contivesse tudo+ o que estivesse no local, casas, propriedade, camponeses, pescadores, botes. Os dois homens olharam quan do a risada gorjeaste de Kiku veio ao ar, e viram-na no pátio fazendo o jogo de atirar o leque com a criada, Suisen, cujo contrato Toranaga também comprara como presente de consolo pelo infeliz aborto de Kiku.
A adoração de Orni foi evidente -todos poderiam notála, por mais que tentasse ocultá-la, tão súbita e inesperada fora a aparição dela. Então viram-na olhar na direção deles. Um sorriso adorável espalhou-se peio rosto dela, que acenou alegremente. Toranaga retribuiu e ela voltou ao jogo.
— É bonita, neh?
Omi sentiu as orelhas queimando. — Sim.
Originalmente Toranaga comprara o contrato de Kiku para separá-la de Omi, porque ela era uma das fraquezas de Orni e claramente um prêmio, a ser dado ou recusado, até que Omi tivesse declarado e provado sua real dedicação, e ajudado ou não na eliminação de Yabu. E ele ajudara, miraculosamente, e provara a si mesmo muitas vezes. Investigar os criados fora sugestão de Omi. Muitas, se não todas, das excelentes idéias de Yabu provieram de Omi. Um mês atrás Omi havia desvendado os detalhes da conspiração a fim de assassinar Naga e os outros oficiais marrons durante a batalha.
— Não há engano nisso, Omì-san? -— perguntara ele quando Omi se apresentara secretamente a ele, em Mishima, enquanto ele esperava o resultado do desafio de Mariko.
— Não, senhor. Kiwami Matano, do Terceiro Regimento de Izu, está lá fora.
O oficial de Izu, um homem de meia-idade, bochechudo, atarracado, revelara a conspiração toda, dando as senhas e explicando como funcionaria o esquema. — Eu não podia mais viver com a vergonha desse conhecimento, senhor. O senhor é o nosso suserano. Claro, para ser justo devo dizer que o plano era apenas para o caso de ser necessário. Imaginei que isso significasse a possibilidade de 1'abu-cama resolver mudar de lado durante a batalha. Sinto muito, o senhor era o alvo principal depois de Naga-san. Depois o Senhor Sudara.
— Quando foi dada a ordem para esse plano e quem está a par dele?
— Pauco depois de o regimento ser formado. Cinqüenta e quatro de nós sabemos, dei todos os nomes por escrito a Omisama. O plano, de codinome "Ameixeira", foi confirmado pessoal mente por Kasigi Yabu-sarna antes de ele partir para Osaka a última vez.
— Obrigado. Cumprimento-lhe a lealdade. Deve manter isso em segredo até que eu the diga. Depois receberá um feudo no valor de cinco mil kokus.
— Por favor, desculpe-me. não mereço nada, senhor. Imploro permissão para cometer .reppuku, por ter guardado esse segredo vergonhoso tanto tempo.
— A permissão é recusada. Será conforme eu ordenei.
— Por favor, desculpe-me, não mereço essa recompensa. Pelo menos permita-me continuar como estou. Era o meu dever e não merece recompensa. Na realidade eu deveria ser punido. — Qual é a sua renda agora?
— Quatrocentos kokus, senhor. É suficiente. — Considerarei o que você diz, Kiwa-mi-san.
Depois que o oficial se fora, ele dissera: — O que prometeu a ele, Omi-san?
— Nada, senhor. Ele me procurou espontaneamente ontem. -— Um homem honesto? Está me dizendo que ele é um homem honesto?
— Não sei nada sobre isso, senhor. Mas ele me procurou ontem, e eu corri para cá para lhe dizer.
— Então ele realmente será recompensado. Tal lealdade é mais importante do que qualquer coisa, neh?
— Sim, senhor.
— Não diga nada sobre isso a ninguém.
Omi partira e Toranaga perguntara a si mesmo se Mizuno e ele não teriam forjado a conspiração para desacreditar Yabu. Imediatamente colocou seus espiões para descobrirem a verdade. Mas a conspiração era autêntica, e a queima do navïo fora uma desculpa perfeita para eliminar os cinqüenta e três traidores, todos os quais tinham sido calocados entre os guardas de Izu naquela noite. Kiwami Matano fora mandado para a norte, com um bom feudo, embora modesto.
— Com certeza esse Kiwami é o mais perigoso de todos -~ dissera a Sudara, o único a ser informado da trama.
— Sim. E será vigiado o resto da vida e nunca merecerá
confiança. Mas geralmente o bem exïste nas pessoas más e a mal nas pessoas boas. Deve-se escolher o bem e eliminar o mal, sem sacrificar o bom. Não há desperdício nos meus domínios para ser jogado fora levianamente.
Sim, pensou Toranaga com grande satisfação, você certamente merece um prêmio, Omi.
— Ouça, Omi-san, a batalha começará em poucos dias. Voeé me serviu lealmente. No último campo de batalha, após a minha vitória, nomeá-lo-ei governador de Izu, e farei novamente da linhagem Kasìgi daimios hereditários.
— Sinto muito, senhor, por favor, desculpe-me, mas não mereço essa honra — dìsse Omi.
— Você é jovem mas promete muito, mais do que a sua idade deixaria supor. Seu avô era muito parecido com você, muito inteligente, mas não tinha paciência. — Novamente o som da risada das senhoras, e Toranaga observou Kiku, tentando resolver sobre ela, o plano original agora posta de lado.
— Passo perguntar-lhe o que quer dizer com "paciência", senhor? — dìsse Omí, instintivamente sentindo que Toranaga desejava que a pergunta fosse feita.
Toranaga ainda olhava para a garota, entusiasmado com ela. — Paciência quer dizer conter-se. Existem sete emoções, neh? Alegria, ira, ansiedade, adoração, pesar, medo e ódio. Se um homem não cede a elas, é paciente. Eu nãa sou tão forte quanto poderia ser, mas ,sou paciente. Compreende?
— Sim, senhor. Com toda a clareza.
— A paciência é muito necessária num líder. — Sìm.
— Aquela senhora, par exemplo. É uma distração para mim, bela demais, perfeita demais para mim, Sou simples demais para uma criatura tão rara. Por isso resolvi que ela pertence a outro lugar.
— Mas, senhor, mesmo como uma das suas damas menores... — Omi pronunciou a cortesia que os dois homens sabiam ser um fingimento, embora obrigatória, e o tempo todo rezava como nunca rezara antes, sabendo o que era possível, sabendo que nunca poderia pedir.
— Concorda totalmente — disse Toranaga. — Mas um grande talento merece sacrifício. — Ainda a observava jogando o leque, pegando o leque da criada de volta, sua alegria conta giaste. Então a vista das duas mulheres foi obscurecida pelos cavalos. Sinto muito, Kiku-san, pensou ele, mas tenho que passá-Ia adiante, instalá-la fora do meu alcance rapidamente. A verdade é que realmente estou gostando demais de você, embora Gyoko nunca acreditasse que eu lhe disse a verdade, nem Omi, nem você mesma. — Kiku-san é digna de ter sua própria casa. Com seu próprio marido.
— Melhor ser consorte do samurai mais baixo do que esposa de um fazendeiro ou mercador, por mais rico que seja.
— Não concordo.
Para Omi essas palavras encerraram o assunto. Karma, disse a si mesmo, seu sofrimento dominando-o. Afaste a tristeza, imbecil. O seu suserano decidiu, portanto está encerrado. Midori é uma esposa perfeita. Sua mãe vai se tornar monja, portanto agora a sua casa terá harmonia.
Tanta tristeza hoje. E felicidade: futuro daimio de Izu; comandante do regimento; o Anjin-san será mantido em Anjiro, conseqüentemente o primeiro navio será construído em Izu - Ponha de lado a sua tristeza. A vida é toda feita de tristeza.
Omi levantou os olhos para Toranaga, a mente clara, tudo no respectivo compartimento:
— Por favor, desculpe-me, senhor, peço-lhe perdão. Eu não estava pensando com clareza.
— Pode saudá-la se desejar, antes de partir.
— Obrigado, senhor. — Omi envolveu a cabeça de Yabu. — Deseja que eu a enterre ou que a exiba?
— Espete-a numa lança, de frente para os destroços do navio.
— Sim, senhor.
— Qual foi o poema de morte dele?
Omi disse:
— "O que são nuvens senão uma desculpa para o céu? O que é a vida Senão uma fuga da morte?"
Toranaga sorriu.
— Interessante — disse.
Omi curvou-se, entregou a cabeça embrulhada a um de seus homens e dirigiu-se por entre os cavalos e samurais até o pátio.
— Ah, senhora — disse ele, com uma formalidade gentil. — Estou muito satisfeito de vê-la bem e feliz.
— Estou com meu senhor, Omi-san, e contente. Como poderia eu estar, senão feliz?
— Sayonara, senhora.
— Sayonara, Omi-san.
Ela se curvou. Uma lágrima brotou e ela a secou, curvou-se de novo, enquanto ele se afastava. O andar firme, e teria chorado alto, mas então, como sempre, ouviu na memória as palavras tantas vezes pronunciadas, faladas gentilmente, faladas sabiamente: "Por que chora, criança? Nós, do Mundo Flutuante, vivemos apenas para o momento, dando todo o nosso tempo aos prazeres das flores de cerejeira, da neve, das folhas de bordo, do chamado de um grilo, da beleza da luz, minguando, crescendo e renascendo, cantando nossas canções e tomando chá e saquê, conhecendo perfumes e o toque das sedas, acariciando por prazer, e devaneando, sempre devaneando. Ouça, criança, nunca fique triste, sinta-se sempre vagando como um lírio na correnteza cio rio da vida. Como você tem sorte, Kiku-chan, você é uma princesa do Ukiyo, do Mundo Flutuante, devaneie, viva o momento..." Kiku secou uma segunda lágrima, uma última lágrima. Garota tola, chorando assim. Pare de chorar! ordenou a si mesma. Você tem uma sorte inacreditável! É consorte do maior daimio, embora seja uma consorte menor, não oficial, mas o que importa isso? Os seus filhos nascerão samurais. Esse não é o presente mais inacreditável do mundo? O adivinho não predisse essa boa fortuna incrível, que era para não se acreditar nunca? Mas agora é verdade, neh? Se você tem que chorar, há coisas mais impórtantes por que chorar. Sobre a semente crescendo no seu ventre, que o chá de gosto esquisito tirou de você. Mas por que chorar por isso? Ainda nem era uma criança, e quem era o pai? De verdade?
— Não sei, não com certeza, Gyoko-san, sinto muito, mas acho que é do meu senhor — dissera ela finalmente, desejando muito um filho dele para concretizar a promessa de samurai.
— Mas digamos que a criança nasça com olhos azuis e a pele clara? Poderia, neh? Conte os dias.
— Contei e retomei, oh, como contei!
— Então seja honesta consigo mesma. Sinto muito, mas o futuro de nós duas depende agora de você. Tem muitos anos férteis pela frente. Está só com dezoito anos, criança, neh? É melhor ter certeza, neh?
Sim, pensou ela de novo, como a senhora é sábia, Gyoko-san, e como eu fui tola, estava enfeitiçada. Era apenas um começo, e como somos sensatos, nós, japoneses, em saber que uma criança não é uma criança propriamente dita até trinta dias após o nascimento, quando o espírito se fixa firmemente no corpo e seu ,karma se torna inexorável. Oh, como tenho sorte, e quero um filho, outro e outro e nunca uma filha. Coitadas das meninas! ó deuses, abençoem o adivinho e obrigada, obrigada pelo meu karma, por eu ser favorecida pelo grande daimio, por meus filhos serem samurais e, oh, por favor, façam-me digna de tanta maravilha...
— O que é, ama? — perguntou a pequena Suisen, amedrontada com a alegria que parecia brotar de Kiku.
Kiku suspirou, contente. — Eu estava pensando no adivinho, no meu senhor, no meu karma, apenas devaneando, devaneando... Avançou pelo pátio, protegendo-se com a sombrinha escarlate, à procura de Toranaga. Ele estava quase escondido pelos cavalos e samurais e falcões no pátio, mas ela conseguiu vê-lo ainda na varanda, tomando chá agora, Fujiko curvando-se à sua frente de novo. Logo será a minha vez, pensou ela. Talvez esta noite possamos começar uma nova criança. Oh, por favor ... Então, extremamente feliz, voltou ao jogo.
Fora dos portões, Omi montou e partiu a galope com seus guardas, cada vez mais depressa, a velocidade revigorando-o, limpando-o, o pungente cheiro de suor do seu cavalo agradando-lhe. Não se voltou para olhar para ela, porque não havia necessidade. Sabia que abandonara toda a paixão da vida, e tudo o que adorara, aos pés dela. Tinha certeza de que nunca conheceria a paixão novamente, o êxtase de união espiritual que incandescia homem e mulher. Mas isso não lhe desagradou. Pelo contrário, pensou ele com uma claridade de gelo recém-descoberta, abençôo Toranaga por me libertar dessa servidão. Agora nada me prende. Nem pai nem mãe nem Kiku. Agora também posso ser paciente. Tenho vinte e um anos, sou quase daimio de Izu, e tenho um mundo a conquistar.
— Sim, senhor? -— estava dizendo Fujiko.
— Você irá diretamente daqui para Anjiro. Resolvi trocar o feudo do Anjin-san, Yokohama, por Anjiro. Vinte ris em cada direção a partir da aldeia, com uma renda anual de quatro mil kokus. Você ficará com a casa de Omi-san.
— Permita-me agradecer-lhe em nome dele, senhor. Sinto muito, estou entendendo que ele ainda não sabe disso?
— Não. Vou dizer-lhe hoje. Ordenei-lhe que construísse outro navio, Fujiko-san, para substituir o que se perdeu, e Anjiro será um estaleiro perfeito, muito melhor que Yokohama. Combi nei com a mulher Gyoko para que o filho mais velho dela seja supervisor comercial para o Anjin-san, e todos os materiais e artesãos serão pagos pela minha tesouraria. Você terá que ajudá-lo a estabelecer alguma forma de administração.
— Oh ko, senhor — disse ela, imediatamente preocupada. — O tempo que me sobra com o Anjin-san será tão curto.
— Sim. Terei que encontrar outra consorte para ele — ou esposa. Neh?
Fujiko levantou os olhos, os olhos estreitando-se. E disse: — Por favor, como posso ajudar?
— A quem sugere? — perguntou Toranaga. — Quero que o Anjin-san esteja contente. Homens contentes trabalham melhor, neh?
— Sim. — Fujiko rebuscou na mente. Quem se compararia a Mariko-san? Então sorriu. — Senhor, a atual esposa de Omi-san, Midori-san. A mãe dele a odeia, conforme o senhor sabe, e quer que Omi se divorcie — sinto muito, mas ela teve a surpreendente falta de educação de dizer isso na minha frente. Midori-san é uma senhora adorável e, oh, tão inteligente.
— Acha que Omi quer se divorciar? — Outra peça do quebra-cabeça que se encaixa no lugar.
— Oh, não, senhor, tenho certeza de que não. Que homem realmente deseja obedecer à mãe? Mas essa é a nossa lei, por isso ele deveria ter-se divorciado na primeira vez em que os pais mencionaram isso, neh? Ainda que sua mãe tenha um temperamento péssimo, com certeza ela sabe o que é melhor para ele, claro. Sinto muito, tenho que ser sincera, já que este assunto é muito importante. Claro que não tenho a intenção de ofender, senhor, mas o dever filial para com os pais é o sustentáculo da nossa lei.
— Concordo — disse Toranaga, ponderando sobre essa nova e feliz idéia. — O Anjin-san consideraria Midori-san uma boa sugestão?
— Não, senhor, não se o senhor ordenar o casamento ... mas, desculpe, não há necessidade de o senhor ordenar.
— Oh?
— O senhor talvez pudesse encontrar um meio de fazê-lo pensar nisso por si. Isso certamente seria melhor. Com Omi-san, claro, o senhor simplesmente ordena.
— Claro. Você aprovaria Midori-san?
— Oh, sim. Ela tem dezessete anos, seu filho é saudável, ela é de boa linhagem samurai, portanto daria belos filhos ao Anjin-san. Suponho que os pais de Omi insistirão para que Midori entregue o filho a Omi-san, mas, se não o fizerem, o Anjin-san poderia adotá-lo. Sei que o meu amo gosta dela, porque Marikosama contou-me que o arreliava com ela. Ela é de ótima linhagem samurai, muito prudente, muito inteligente. Oh, sim, ele estaria muito seguro com ela. Além disso seus pais estão mortos, portanto não haveria ressentimento por parte deles quanto ao casamento dela com um ... com o Anjin-san.
Toranaga brincou com a idéia. Eu certamente tenho que manter Omi desnorteado, disse a si mesmo. O jovem Omi pode se tornar um estorvo ao meu lado com toda a facilidade. Bem, não terei que fazer nada para que Midori se divorcie. O pai de Omi certamente terá últimas vontades definidas antes de cometer seppuku, e a esposa insistirá, com certeza, em que a última coisa mais importante que ele faça neste mundo seja casar o filho corretamente. Então Midori estará divorciada dentro de poucos dias, de qualquer modo. Sim, ela seria uma ótima esposa.
— Além dela, Fujiko-san, que tal Kiku, Kiku-san?
Fujiko olhou-o fixamente. — Oh, sinto muito, senhor, vai abandoná-la?
— Talvez. Bem?
— Eu teria pensado que Kiku-san seria uma perfeita consorte não oficial, senhor. É brilhante e maravilhosa. Mas embora eu entenda que ela seria uma distração enorme para um homem comum, sinto muito, levaria anos até que o Anjin-san fosse capaz de apreciar a qualidade rara do seu canto, da sua dança ou do seu espírito. Como esposa? — perguntou ela, com a ênfase suficiente para indicar total desaprovação. — As damas do Mundo do Salgueiro geralmente não são educadas do mesmo modo que... que as outras, senhor. Seus talentos repousam em outra parte. Ser responsável pelas finanças e os negócios da casa de um samurai é diferente do Mundo do Salgueiro.
— Ela poderia aprender?
Fujiko hesitou um longo momento. — O ideal para o Anjin-san seria Midori-san como esposa, Kiku-san como consorte.
— Elas poderiam aprender a viver com as, há, atitudes diferentes dele?
— Midori-san é samurai, senhor. Seria dever dela. O senhor lhe ordenaria. Kiku-san também.
— Mas não o Anjin-san?
— O senhor o conhece melhor do que eu. Mas em coisas de "travesseiro", há... seria melhor que ele, bem, pensasse nisso sozinho.
— Toda Mariko-sama teria dado uma esposa perfeita para ele. Neh?
— Essa idéia é extraordinária, senhor — replicou Fujiko, sem piscar. — Certamente ambos tinham um enorme respeito mútuo.
— Sim — disse ele secamente. — Bem, obrigado, Fujikosan. Considerarei o que você disse. Ele estará em Anjiro dentro de uns dez dias.
— Obrigada, senhor. Se eu puder sugerir, o porto de Ito e a nascente de Yokosé deveriam ser incluídos no feudo do Anjin-san.
— Por quê?
— Ito só para o caso de Anjiro não ser grande o bastante. Talvez fossem necessárias carreiras maiores, para um navio tão grande. Talvez estivessem disponíveis lá. Yokosé porq ...
— Estão?
— Sim, senhor. E ... — Você esteve lá?
— Não, senhor. Mas o Anjin-san se interessa pelo mar. O senhor também. Era meu dever tentar aprender sobre navios e navegação, e, quando fomos informados de que o navio do Anjin san tinha pegado fogo, perguntei a mim mesma se seria possível construir outro, e se fosse, onde e como. lzu é a escolha perfeita, senhor. Será fácil manter os exércitos de Ishido a distância.
— E por que Yokosé?
— E Yokosé porque um hatamoto deve ter um lugar nas montanhas, onde o senhor pudesse ser recebido no estilo que tem o direito de esperar.
Toranaga observava-a atentamente. Fujiko parecia muito dócil e modesta, mas ele sabia que era tão inflexível quanto ele mesmo, e nem um pouco pronta a ceder em nenhum dos dois pontos, a menos que ele ordenasse. — Concordo. E considerarei o que você disse sobre Midori-san e Kiku-san.
— Obrigada, senhor — disse ela com humildade, contente por haver cumprido o dever para com o amo e saldado seu débito com Mariko. Ito pelas carreiras, e Yokosé porque Mariko dissera que fora lá que o "amor" deles realmente começara.
— Tenho tanta sorte, Fujiko-chan — dissera-lhe Mariko em Yedo. — Nossa viagem para cá trouxe-me mais alegria do que eu tenho o direito de esperar em vinte vidas.
— Imploro-lhe que o proteja em Osaka, Mariko-san. Sinto muito, ele não é como nós, não é civilizado como nós, pobre homem. O nirvana dele é a vida e não a morte.
Isso ainda é verdade, pensou Fujiko novamente, abençoando a memória de Mariko. Mariko salvara o Anjin-san, ninguém mais — não o Deus cristão ou quaisquer deuses, não o próprio Anjin san, nem mesmo Toranaga, ninguém -, apenas Mariko, sozinha. Toda Mariko-noh-Akechi Jinsai o salvara.
Antes de morrer, vou erigir um santuário em Yokosé e deixarei um legado para outro em Osaka e outro em Yedo. Será um dos meus desejos de morte, Toranaga-sama, prometeu ela a si mesma, olhando para ele pacientemente, animada pelas outras coisas agradáveis que ainda havia por fazer em nome do Anjin-san. Midori como esposa, certamente, nunca Kiku como esposa, apenas como consorte e não necessariamente consortechefe, e o feudo aumentado até Shimoda, no extremo sul da costa de Izu. — Deseja que eu parta imediatamente, senhor?
— Fique aqui esta noite, depois vá direto amanhã. Não via Yokohama.
— Sim. Compreendo. Desculpe, posso tomar posse do novo feudo do meu amo em seu nome — e de tudo o que contém -, no momento em que eu chegar?
— Kawanabi-san lhe dará os documentos necessários antes que você parta. Agora, por favor, mande Kiku-san a mim. Fujiko curvou-se e saiu.
Toranaga grunhiu. Uma pena que essa mulher vá pôr fim à vida. Ela é quase valiosa demais para se perder, e esperta demais. Ito e Yokosé? Ito é compreensível. Por que Yokosé? E o que mais ela tinha em mente?
Viu Kiku atravessando o pátio banhado de sol, os pezinhos em tabis brancos, quase dançando, tão doce e elegante com suas sedas, a sombrinha carmesim, o desejo de cada homem à vista dele. Ah, Kiku, pensou ele, não posso me permitir esse desejo, desculpe-me. Não posso me permitir ter você nesta vida, sinto muito. Você deveria ter continuado onde estava, no Mundo Flutuante, cortesã de primeira classe. Ou, até melhor, gueixa. Com que idéia ótima aquela velha megera me saiu! Então você estaria segura, propriedade de muitos, a adorada de muitos, o ponto central de suicídios trágicos e disputas violentas e encontros maravilhosos, adulada e temida, coberta de dinheiro, que você trataria com desdém, uma lenda — enquanto a sua beleza durasse. Mas agora? Agora não posso conservá-la, sinto muito. Qualquer samurai a quem eu a dê leva para a casa uma faca de dois gumes: uma distração completa e a inveja de todos os outros homens. Neh? Poucos concordariam em se casar com você, sinto muito, mas essa é a verdade e este é um dia de verdades. Fujiko tinha razão. Você não foi educada para dirigir a casa de um samurai, sinto muito. Assim que a sua beleza se for... oh, a sua voz durará, criança, e o seu espírito, mas logo você será atirada ao monte de esterco do mundo. Sinto muito, mas isso também é verdade. Outra verdade é que as mais altas damas do Mundo Flutuante são conservadas no seu Mundo Flutuante para dirigir outras casas quando a idade se abate sobre elas, mesmo sobre as mais famosas, para chorar pelos amantes perdidos, pela juventude perdida em barris de saquê, aguado pelas suas lágrimas. As inferiores quando muito tornam-se esposas de um fazendeiro, um pescador, um mercador ou um rico vendedor ou artesão, de cuja vida você nasceu — a flor rara e inesperada que aparece na selva por nenhuma outra razão senão karma, para florescer rapidamente e se extinguir rapidamente.
Tão triste, muito triste. Como lhe dou filhos samurais? Conserve-a para o resto da vida, disse-lhe o seu coração secreto. Ela merece. Não se iluda como ilude aos outros. A verdade é que você poderia conservá-la facilmente, tirando-lhe um pouco, deixando-lhe muito, exatamente como à sua favorita, Tetsu-ko, ou Kogo. Kiku não é exatamente como um falcão para você? Apreciada, sim, única, sim, mas apenas um falcão que você alimenta no punho, para lançar sobre uma presa e chamar de volta com um engodo, para, após uma estação ou duas, soltar a esmo e desaparecer para sempre? Não minta a si mesmo, isso é fatal. Por que não conservá-la? Ela é apenas um falcão, embora muito especial, de vôo muito alto, muito bela de ver, mas nada mais, rara certamente, única certamente, e, oh, tão "travesseirável" ...
— Por que ri? Por que está tão feliz, senhor? — Porque você é uma alegria de se ver.
Blackthorne apoiou o próprio peso contra um dos três cabos grossos que estavam presos à quilha do navio. — Hipparuuuuuuu! — gritou — Puuuuuuuuuxem!
Havia cem samurais, só de tanga, puxando cada corda vigorosamente. Era de tarde agora, a maré estava baixa, e Blackthorne esperava poder deslocar o resto do navio e trazê-lo para a praia, para aproveitar tudo. Adaptara o primeiro plano quando descobrira, para júbilo seu, que todos os canhões tinham sido resgatados ao mar no dia seguinte ao holocausto e que estavam quase tão perfeitos quanto no dia em que haviam deixado a fundição perto de Chatham, no condado de Kent. Além disso quase mil balas de canhão, correntes e muitas coisas de metal tinham sido recuperadas. A maior parte estava retorcida e esfolada, mas ele tinha o essencial de um navio, melhor do que sonhara possível.
— Maravilhoso, Naga-san! Maravilhoso! — cumprimentara-o ele ao descobrir toda a extensão do que fora poupado.
— Oh, obrigado, Anjin-san. Tentei arduamente, sinto muito. — Não se lamente mais. Tudo bem agora!
Sim, regozijou-se ele. Agora The Lady pode ser um nadinha mais comprida e um nadinha mais larga, mas ainda será um galgo, para acabar com o inimigo.
Ah, Rodrigues, pensara ele sem rancor, estou contente de que você esteja a salvo, este ano, e que haja outro homem para afundar no ano que vem. Se Ferreira for capitão-mor de novo, será um presente do céu, mas não vou contar com isso e estou contente que você esteja indo embora. Devo-lhe a vida e você foi um piloto formidável.
— Hipparuuuuuuuu! — gritou ele de novo, e os cabos estremeceram, o mar escorrendo deles como suor, mas o navio não se moveu.
Desde aquele amanhecer na praia com Toranaga, a carta de Mariko nas mãos, os canhões descobertos logo depois, os dias deixaram de ter horas suficientes. Ele esboçara projetos iniciais, fizera e refizera listas, mudara os planos e muito cuidadosamente oferecera listas de homens e materiais necessários, não querendo que houvesse erro algum. E quando o dia findava, ele trabalhava no dicionário noite adentro, para aprender as novas palavras de que precisaria para dizer aos artesãos o que desejava, para descobrir o que eles já tinham e o que já podiam fazer. Muitas vezes, em desespero, tivera vontade de pedir ao padre que o ajudasse, mas sabia que não havia ajuda ali agora, que sua inimizade estava inexoravelmente fixada.
Karma, disse-se ele sem mágoa, com pena do padre pelo seu fanatismo ilegítimo.
— Hipparuuuuu!
Novamente os samurais fizeram força contra a garra da areia e do mar, então começaram a entoar uma canção e puxaram em uníssono. O casco moveu-se um nada, eles redobraram os esfor ços, então o resto do navio soltou-se com um estremecimento e eles se esparramaram na areia. Levantaram-se, rindo, cumprimentando-se, e se agarraram às cordas de novo. Mas o navio estava firme de novo.
Blackthorne mostrou-lhes como levar as cordas para um lado, depois para outro, tentando soltar o navio para bombordo ou estibordo, mas estava tão fixo como se estivesse ancorado.
— Terei que colocar bóias nele, depois a maré fará o trabalho e o erguerá — disse ele alto em inglês.
— Dozo? — disse Naga, desorientado.
— Ah, gomen nasal, Naga-san. — Por meio de sinais e desenhos na areia, explicou, amaldiçoando a sua falta de palavras, como fazer uma balsa e amarrá-la às costelas na maré baixa; depois a maré alta faria flutuar o navio e eles poderiam puxá-lo para a praia e abicá-lo. Na outra maré baixa seria fácil lidar porque eles teriam colocado rolos onde apoiar o casco.
— Ah so desu! — disse Naga, impressionado. Quando explicou aos demais oficiais, eles também se admiraram muito, e os vassalos de Blackthorne se envaideceram com a importância que deduziram disso.
Blackthorne notou isso e apontou um dedo para um deles. — Onde estão as suas maneiras?
— O quê? Oh, desculpe, senhor, por favor, desculpe-me por tê-lo ofendido.
— Hoje desculparei, amanhã não. Nade até o navio — desamarre esta corda. — O samurai roam tremeu e rolou os olhos nas órbitas. — Sinto muito, senhor, não sei nadar.
Fez-se silêncio na praia e Blackthorne sabia que estavam todos esperando para ver o que aconteceria. Ficou furioso consigo mesmo, pois uma ordem era uma ordem e involuntariamente ele dera uma sentença de morte que desta vez não era merecida. Pensou um momento. — As ordens de Toranaga-sama todos os homens aprender nadar. Neh? Todos os meus vassalos nadam dentro de trinta dias. Melhor nadar em trinta dias. Você, na água — a primeira aula agora.
Receoso, o samurai começou a entrar no mar, sabendo que era um homem morto. Blackthorne juntou-se a ele e, quando a cabeça do homem afundou, puxou-o para cima, sem nenhuma delicadeza, e fê-lo nadar, deixando-o submergir mas nunca perigosamente, até os destroços, o homem tossindo, tendo ânsias de vômito e prosseguindo. Depois puxou-o de volta à praia e a vinte jardas dos baixios empurrou-o para a frente. — Nade!
O homem fez isso como um gato semi-afogado. Nunca mais ele se daria ares de importância na frente do amo. Os companheiros aplaudiram e os homens na praia rolaram de rir na areia, os que sabiam nadar.
— Muito bom, Anjin-san — disse Naga. — Muito sábio. — Riu de novo, depois disse: — Por favor, mandei homens buscar bambu. Para balsa, neh? Amanhã tentar trazer tudo para cá. — Obrigado.
— Puxar mais hoje?
— Não, não, obrigado... -Blackthorne parou e seus olhos se turvaram. O Padre Alvito estava em pé sobre uma duna, observando-os. — Não, obrigado, Naga-san. Acaba tudo por aqui hoje. Por favor, com licença um momento. — Foi pegar as roupas e espadas, mas seus homens lhe trouxeram tudo rapidamente. Sem pressa, vestiu-se e enfiou a espada no sash.
— Boa tarde — disse ele, aproximando-se de Alvito. O padre parecia abatido, mas havia cordialidade no seu rosto, como houvera antes da violenta discussão nos arredores de Mishima. A cautela de Blackthorne aumentou.
— Ao senhor também, capitão-piloto. Vou partir esta manhã. instante. Importa-se?
— Não, em absoluto.
— O que vai fazer, tentar fazer flutuar o casco?
— Sim.
— Receio que isso não vá ajudar.
— Não tem importância. Vou tentar. Realmente acredita que pode construir outro navio?
— Oh, sim — disse Blackthorne com paciência, perguntando-se o que Alvito teria em mente.
— Vai trazer o resto da sua tripulação para cá, para ajudá-lo?
— Não — disse Blackthorne após um momento. — É melhor que fiquem em Yedo. Quando o navio estiver quase acabado... há muito tempo para trazê-los para cá.
— Eles vivem com etas, não?
— Sim.
— É essa a razão pela qual o senhor não os quer aqui?
— Uma delas.
— Não o censuro. Ouvi dizer que estão todos muito turbulentos e bêbados a maior parte do tempo. O senhor soube que, ao que consta, há uma semana mais ou menos houve uma pequena desordem entre eles e a casa se incendiou?
— Não. Alguém se feriu?
— Não. Mas só pela graça de Deus. Parece que um deles fez uma destilaria.
Alvito assentiu e olhou de novo para as costelas banhadas pelas ondas.
— Eu queria lhe dizer, antes de partir, que sei o que a perda de Mariko-san representa para o senhor. Fiquei extremamente entristecido com a sua história sobre Osaka, mas de certo modo exaltado. Compreendo o que significou o sacrifício dela... Ela lhe contou sobre o pai, toda aquela outra tragédia?
— Sim. Alguma coisa.
— Ah. Então o senhor também compreende. Conheci Ju-san Kubo muito bem.
— O quê? Refere-se a Akechi Jinsai?
— Oh, desculpe, sim. É esse o nome pelo qual ele é conhecido agora. Mariko-sama não lhe contou?
— Não.
— O táicum ironicamente o apelidou assim: Ju-san Kubo, Xógum dos Treze Dias. A rebelião dele — ao condenar seus homens ao grande seppuku — durou apenas treze dias. Era um homem excelente, mas odiava-nos, não porque éramos cristãos, mas porque éramos estrangeiros. Freqüentemente me perguntei se Mariko não se tornou cristã apenas para aprender os nossos procedimentos, a fim de nos destruir. Ele dizia freqüentemente que eu tinha envenenado Goroda contra ele.
— Envenenou?
— Não.
— Como era ele?
— Um homem baixo, calvo, muito orgulhoso, um excelente general e um poeta de grande notoriedade. Muito triste terminar daquele jeito, todos os Akechi. E agora a última deles. Pobre Mariko... mas o que ela fez salvou Toranaga, se Deus assim o desejar. — Os dedos de Alvito tocaram o rosário. Após um momento, disse: — Além disso, piloto, antes de partir quero me desculpar por... bem, estou contente que o padre-inspetor estivesse lá para salvá-lo.
— Desculpa-se pelo meu navio também?
— Não pelo Erasmus, porque não tive nada a ver com isso. Peço desculpas apenas por aqueles homens, Pesaro e o capitão-mor. Estou contente que o seu navio tenha sido destruído.
— Shikata ga nai, padre. Logo terei outro.
— Que tipo de embarcação tentará construir?
— Uma que seja grande e forte o suficiente.
— Para atacar o Navio Negro?
— Para navegar de volta à Inglaterra e me defender de qualquer um.
— Será um desperdício, todo esse esforço.
— Haverá outro "ato de Deus"?
— Sim. Ou sabotagem.
— Se houver e o meu navio falhar, construo outro, e se esse falhar, outro. Vou construir um navio e quando voltar à Inglaterra vou pedir, emprestar, comprar ou roubar um privateer e então voltarei para cá.
— Sim. Eu sei. É por isso que nunca partirá. O senhor sabe demais, Anjin-san. Disse-lhe isso antes e digo de novo, mas sem maldade. Realmente. É um bravo homem, um excelente adversário, digno de respeito, e eu o respeito, e deveria haver paz entre nós. Vamos nos ver muito um ao outro ao longo dos anos — se algum de nós sobreviver à guerra.
— Vamos nos ver?
— Sim. O senhor está muito bom em japonês. Logo será o intérprete pessoal de Toranaga. Não deveríamos discutir, o senhor e eu. Receio que nossos destinos estejam interligados. Mariko-san também lhe disse isso? A mim disse.
— Não. Ela nunca disse. O que mais ela lhe disse?
— Rogou-me que fosse seu amigo, que o protegesse se pudesse. Anjin-san, não vim aqui para espicaçá-lo, ou para discutir, mas para pedir paz antes de partir.
— Aonde vai?
— Primeiro a Nagasaki, de navio, saindo de Mishima. Há negociações comerciais a concluir. Depois para onde quer que Toranaga vá, onde quer que seja a batalha.
— Eles o deixarão comerciar livremente, apesar da guerra? — Oh, sim. Eles precisam de nós, vença quem vencer. Com certeza podemos ser razoáveis e fazer a paz, o senhor e eu. Peço por causa de Mariko-sama.
Blackthorne não disse nada por um instante. — Uma vez tivemos uma trégua, porque ela quis. Ofereço-lhe isso. Uma trégua, não uma paz — desde que o senhor concorde em não chegar a mais de cinqüenta milhas do ponto onde estiver o meu estaleiro. — Concordo, piloto, claro que concordo, mas o senhor não tem nada a recear de mim. Uma trégua, então, em memória dela. — Alvito estendeu a mão. — Obrigado.
Blackthorne apertou a mão com firmeza. Então Alvito disse: — O funeral dela será logo em Nagasaki. Deve ser na catedral. O padre-inspetor dirá o serviço pessoalmente. Parte de suas cinzas serão sepultadas lá.
— Ela gostaria disso. — Blackthorne observou os destroços do navio um momento, depois olhou de novo para Alvito. — Uma coisa que eu ... eu não mencionei a Toranaga: pouco antes de ela morrer eu a abençoei como um padre faria, e dei-lhe os últimos ritos do melhor modo que pude. Não havia mais ninguém e ela era católica. Não creio que me tenha ouvido, não sei se estava consciente. E repeti na cremação. Isso... isso seria a mesma coisa? Seria aceitável? Tentei fazê-lo diante de Deus, não o meu, nem o seu, mas Deus.
— Não, Anjin-san. Somos ensinados que não seria a mesma coisa. Mas dois dias antes de morrer ela pediu e recebeu absolvição do padre-inspetor, e foi santificada.
— Então ... então ela sabia o tempo todo que tinha que morrer... acontecesse o que acontecesse, ela era um sacrifício. — Sim, Deus a abençoe e estime!
— Obrigado por me dizer — disse Blackthorne. — Eu... eu estive sempre preocupado que a minha intercessão não servisse, embora eu ... Obrigado por me dizer.
— Sayonara, Anjin-san — disse Alvito, oferecendo a mão de novo.
— Sayonara, Tsukku-san. Por favor, acenda uma vela para ela ... por mim.
— Farei isso.
Blackthorne apertou a mão e ficou olhando o padre se afastar, alto e forte, um adversário digno. Seremos sempre inimigos, pensou. Ambos sabemos disso, com trégua ou sem trégua. O que você diria se soubesse do plano de Toranaga e do meu plano? Nada além do que já ameaçou, neh? Bom. Compreendemos um ao outro. Uma trégua não fará mal algum. Mas não vamos nos ver tanto assim, Tsukku-san. Enquanto o meu navio estiver sendo construído, tomarei o seu lugar como intérprete com Toranaga e os regentes, e logo você estará fora das negociações de comércio, mesmo enquanto os navios portugueses ainda carregarem a seda. E tudo isso também mudará. Minha frota será apenas o começo. Em dez anos o Leão da Inglaterra dominará estes mares. Mas primeiro The Lady, depois o resto ...
Contente, Blackthorne voltou para junto de Naga e estabeleceu planos para o dia seguinte, depois subiu a vertente até a sua casa temporária, perto da de Toranaga. Lá comeu arroz e peixe cru desfiado que um dos seus cozinheiros preparara para ele, e achou delicioso. Pegou um segundo prato e começou a rir.
— Senhor?
— Nada. — Mas mentalmente estava vendo Mariko e ouvindo-a dizer: — Oh, Anjin-san, um dia talvez até consigamos que o senhor goste de peixe cru, e então o senhor estará a caminho do nirvana, o Lugar da Paz Perfeita.
Ah, Mariko, pensou ele, estou muito contente com a absolvição verdadeira. E agradeço-lhe.
Agradece o quê, Anjin-san? ouviu-a dizer. A vida, Mariko, minha querida. Você ...
Muitas vezes, durante o dia e a noite, ele conversava com ela mentalmente, revivendo partes da vida deles juntos e contando-lhe sobre hoje, sentindo-lhe a presença muito próxima, sempre tão próxima que uma ou duas vezes ele olhara por sobre o ombro, esperando vê-Ia em pé, ali. Fiz isso esta manhã, Mariko, mas em vez de você era Buntaro, com Tsukku-san ao lado, ambos me fitando. Eu tinha a minha espada, mas ele estava com o grande arco nas mãos. Iiiiih, meu amor, precisei de toda a minha coragem para me aproximar e cumprimentá-los formalmente. Você estava assistindo? Teria tido orgulho de mim, tão calmo e samurai e petrificado. Ele disse rigidamente, falando por intermédio do Tsukku-san: — A Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko me informaram de como o senhor protegeu a honra de minha esposa e a delas. Como o senhor a salvou da vergonha. E a elas. Agradeço-lhe, Anjin-san. Por favor, desculpe-me pelo meu desprezível desequilíbrio de antes. Peço desculpas e agradeço. — Então se curvou para mim e foi embora, e eu tive muita vontade de que você estivesse aqui — para saber que está tudo protegido e ninguém jamais saberá.
Muitas vezes Blackthorne olhara por sobre o ombro, esperando vê-Ia ali, mas ela nunca estava e nunca estaria, e isso não o perturbava. Ela estava com ele para sempre, e ele sabia que a amaria nos bons tempos e nos tempos trágicos, mesmo no inverno da sua vida. Ela estava sempre presente nos seus sonhos. E agora esses sonhos eram bons, muito bons, e misturados com ela estavam esboços, planos, a escultura da figura de proa e velas e como fazer a quilha e como construir o navio, e depois, que alegria, a forma final de The Lady a toda vela, enfunada por um impetuoso vento sudoeste, subindo canal acima, o freio entre os dentes, adriças rangendo, botalós estirados numa manobra de bombordo e depois: "Todas as velas, ho! Joanetes, velas mestras, sobrejoanetes!" soltando-se das cordas, dando-lhe cada polegada, o canhoneio das velas com o navio tomando outra posição e "Conservem o rumo!", cada partícula de lona respondendo ao seu grito, e depois, finalmente, encorpada, uma dama de beleza inestimável virando a bombordo perto de Beachy Head para Londres ...
Toranaga subiu a elevação perto do acampamento, sua comitiva agrupada ao seu redor. Trazia Kogo sobre a luva, havia caçado ao longo da costa e agora se dirigia para as colinas acima da aldeia. Ainda restavam duas horas de sol e ele não queria desperdiçá-las, não sabendo quando teria tempo para caçar outra vez. Hoje foi para mim, pensou ele. Amanhã irei à guerra, mas hoje foi para pôr a minha casa em ordem, fingindo que o Kwanto estava seguro e Izu estava seguro, e a minha sucessão — que viverei para ver outro inverno e, na primavera, caçar por lazer. Ah, hoje foi muito bom.
Matara duas vezes com Tetsu-ko e a ave voara como num sonho, nunca estivera tão perfeita nem mesmo quando caçara com Naga, perto de Anjiro — aquele belo mergulho, de não se esque cer nunca, para pegar aquele astuto galo velho. Hoje ela pegara um grou com várias vezes o seu tamanho e voltara à isca perfeitamente. Um faisão fora apontado pelos cães e ele lançara o falcão para a posição circulante no ar. Depois o faisão fora abalado e o eleva-se, sobe e cai começara, para durar para sempre, um abate lindo. Novamente Tetsu-ko voltara à isca e se alimentara sobre o punho orgulhosamente.
Agora ele estava à procura de uma lebre. Ocorrera-lhe que o Anjin-san gostaria de carne. Assim, em vez de dar o dia por encerrado, satisfeito, Toranaga decidira caçar comida. Apertou o passo, não querendo falhar.
Seus batedores à dianteira passaram pelo acampamento, subiram a estrada coleante até o cume, e ele se sentia extremamente contente com o dia que tivera.
Seu olhar crítico varreu Q acampamento, procurando perigos, e não descobriu nenhum. Pôde ver homens em treinamento de armas — todo o treinamento e tiroteio do regimento estava proi bido enquanto Tsukku-san se encontrasse por perto -, e isso lhe agradou. A um lado, cintilando ao sol, estavam os vinte canhões que haviam sido salvos com tanto cuidado, e ele notou que Blackthorne estava sentado de pernas cruzadas no chão ali perto, concentrado sobre uma mesa baixa, sentado, agora, como qualquer pessoa normal se sentaria. Adiante via os restos do navio, notou que ainda não saíra do lugar, e perguntou-se como o Anjin-san o traria para a praia, se não pudesse ser puxado.
Porque, Anjin-san, você o trará para a praia, disse-se Toranaga, com toda a certeza.
Oh, sim. E construirá o seu navio e eu o destruirei como destruí o outro, ou o entregarei, outro bocado para os cristãos, que são mais importantes para mim do que os seus navios, meu amigo, sinto muito, e do que os outros navios esperando no seu país. Seus compatriotas os trarão para mim, e o tratado com a sua rainha. Não você. Preciso de você aqui.
Quando o momento for oportuno, Anjin-san, eu lhe contarei por que tive que queimar o seu navio, e então você não se importará, porque outras coisas o estarão ocupando, e compreenderá que o que eu lhe disse era verdade igualmente: era o seu navio ou a sua vida. Escolhi a sua vida. Foi correto, neh? Então riremos sobre o "ato de Deus", você e eu. Oh, foi fácil designar um turno especial de homens de confiança a bordo, com instruções secretas de espalhar pólvora com abundância na noite escolhida, depois de dizer a Naga — no momento em que Omi sussurrara sobre a conspiração de Yabu — que refizesse a escalação, de modo que a patrulha da praia e o vigia de convés fossem apenas homens de Izu, particularmente os cinqüenta e três traidores. Depois um único ninfa saído da escuridão com uma pederneira e o seu navio se tornou uma tocha. Claro que nem Omi nem Naga jamais estiveram a par da sabotagem.
Sinto muito, mas foi muito necessário, Anjin-san. Salvei-lhe a vida, que você desejava acima do seu navio. Cinqüenta vezes ou mais já tive que considerar a possibilidade de entregar a sua vida, mas até o momento consegui dar um jeito de evitar isso. Espero continuar a fazê-lo. Por quê? Este é um dia para verdade, neh? A resposta é que você me faz rir e eu preciso de um amigo. Não me atrevo a fazer amigos entre a minha própria gente, ou entre os portugueses. Sim, cochicharei isso num poço ao meio dia, mas só quando tiver certeza de estar sozinho: preciso ele run amigo. E também do seu conhecimento. Mariko-sarna estava certa de novo. Antes de você partir, quero saber tudo o que você sabe. Eu lhe disse que nós dois tínhamos muito tempo, você e eu.
Quero saber como navegar em torno da terra e compreender como uma pequena ilha pode derrotar um império imenso. Talvez a resposta se aplicasse a nós e à China, neh? Oh, sim, o táicum estava certo ein algumas coisas.
Na primeira vez que o vi, eu disse: — Não há desculpa para rebelião. — E você disse: — Há uma: se se vence! — Ah, Anjin-san, afeiçoei-me a você naquele momento. Concordo. Está tudo certo se se vence.
Estupidez fracassar. Imperdoável.
Você não fracassará, e estará seguro e feliz no seu grande feudo de Anjiro, onde Mura, o pescador, o protegerá dos cristãos e continuará a lhes fornecer informações falsas, conforme eu de termine. Que ingenuidade do Tsukku-san acreditar que algum dos meus homens, ainda que cristão, roubaria os seus portulanos e os daria secretamente aos padres sem o meu conhecimento ou a minha orientação. Ah, Mura, você tem sido fiel há trinta anos ou mais, logo receberá a sua recompensa! O que diriam os padres se soubessem que o seu verdadeiro nome é Akira Tonomoto, samurai — espião sob a minha orientação, assim como pescador, chefe de aldeia e cristão! Eles peidariam pó, neh?
Por isso não se preocupe, Anjin-san, eu estou me preocupando quanto ao seu futuro. Está em boas e fortes mãos e. ah, que futuro planejei para você!
— Devo ser consorte do bárbaro? oh! oh! oh! — gemera Kiku.
— Sim, dentro de um mês. Fujiko-san formalmente concordou. — Mais uma vez contara a verdade a Kiku e a Gyoko, pacientemente. — E mil kokus por ano após o nascimento do primeiro filho do Anjin-san.
-— Hein, mil... o que o senhor disse?
Ele repetira a promessa e acrescentara suavemente: — Afinal de contas, samurai é samurai, e duas espadas são duas espadas, e os filhos dele serão samurais. Ele é hatamoto, um dos meus vassalos mais importantes, almirante de todos os meus navios, um conselheiro pessoal íntimo — até um amigo. Neh?
— Sinto muito, mas, senhor...
— Primeiro você será consorte dele. — Desculpe, primeiro senhor?
— Talvez você devesse ser sua esposa. Fujiko-san disse-me que não deseja se casar, nunca mais, mas acho que ele deve se casar. Por que não com você? Se você lhe agradar o suficiente, e imagino que possa, e ainda, se o mantiver construindo o navio... neh? Sim, acho que você deve ser esposa dele.
— Oh sim, oh sim, oh sim! — Ela atirara os braços em torno do pescoço dele e o abençoara e pedira desculpas pela impulsiva falta de modos, interrompendo e não ouvindo com submis são, e o deixara, caminhando quatro passos acima do solo, quando um momento atrás estivera prestes a se atirar do penhasco mais próximo.
Ah, mulheres, pensou Toranaga, confuso e muito contente. Agora ela tem tudo o que deseja, assim como Gyoko — se o navio for construído em tempo, e será -, assim como os padres, assim como ...
— Senhor! -— Um dos caçadores estava apontando para uma moita ao lado da estrada. Ele freou e preparou Kogo, afrouxando os pioses que prendiam a ave ao seu punho, — Já — ordenou ele suavemente. Soltaram o cão.
A lebre irrompeu dos arbustos, correndo à procura de proteção, e nesse instante Toranaga soltou Kogo. Com batidas de asas imensamente potentes, ela se lançou em perseguição, direto como uma seta, passando à frente do animal em pânico. Adiante, cem passos do outro lado da ondulação do terreno, havia um matagal espinhoso, e a lebre disparou em ziguezague, a uma velocidade frenética, rumando para a segurança, Kogo fechando a brecha, cortando as extremidades, investindo sempre mais perto, a alguns pés do solo. Então postou-se acima da presa, atacou, a lebre guinchou, levantou-se nas patas traseiras e voltou em disparada, Kogo ainda em perseguição, chiando de raiva porque errara. A lebre rodopiou de novo numa arremetida final para um abrigo e guinchou quando Kogo atacou outra vez, fincou firme as garras no pescoço e na cabeça da lebre, e se agarrou sem medo, fechando as asas, sem se importar com as frenéticas contorções e volteíos do animal, enquanto sem esforço o milhafre lhe quebrava o pescoço. Um último guincho. Kogo largou a presa e lançou-se ao ar por um instante, sacudiu as penas arrepiadas de volta ao lugar com um estremecimento violento, depois pousou novamente sobre o corpo quente, contorcendo-se, as garras mais uma vez no aperto mortal. Então, e só então, soltou o seu guincho de vitória e sibilou de prazer com a matança. Seus olhos fitavam Toranaga.
Toranaga aproximou-se a trote e desmontou, oferecendo o engodo. Obedientemente o milhafre abandonou a presa e então, como Toranaga habilmente escondera o engodo, pousou sobre a luva esticada. Os dedos do daimio seguraram os pioses e ele pôde sentir o aperto das garras através do couro reforçado com aço do indicador.
— Iiiiih, foi muito bem-feito, minha beleza — disse ele, recompensando-a com um bocado, uma parte da orelha da lebre que um batedor cortara para ele. — Pronto, empanturre-se com isto, mas não demais — você ainda tem trabalho a fazer.
Sorrindo, o batedor levantou a lebre.
— Amo! Deve ter três, quatro vezes o peso dela. O melhor que vimos há semanas, neh?
— Sim. Mande-a para o acampamento, para o Anjin-san. — Toranaga subiu à sela de novo e acenou aos outros que prosseguissem, à caça novamente.
Sim, o abate foi muito bem executado, mas não teve nada da excitação do de um peregrinus. Um milhafre é apenas o que é, uma ave de cozinheiro, um matador, nascido para matar toda e qualquer coisa que se mova. É como você, Anjin-san, neh?
Sim, você é um gavião de asas curtas. Ah... mas Mariko era um peregrinus. Lembrou-se dela muito claramente e sentiu uma vontade imensa de que não tivesse sido necessário que ela fosse a Osaka e para o Vazio. Mas era necessário, disse-se ele pacientemente. Os reféns tinham que ser libertados. Não os meus parentes, mas todos os outros. Agora tenho mais cinqüenta aliados comprometidos secretamente. A sua coragem e a coragem e o auto-sacrifício da Senhora Etsu trouxeram-nos e a todos os Maeda para o meu lado, e, através deles, toda a costa ocidental. lshido tinha que ser atraído para fora do seu covil inexpugnável, os regentes divididos, e Ochiba e Kiyama trazidos, domados, ao meu punho. Você fez tudo isso e mais: deu-me tempo. Apenas o tempo monta armadilhas e produz engodos.
Ah, Mariko-chan, quem teria pensado que um nadínha de mulher como você, filha de Ju-san Kubo, meu velho rival, o arquitraidor Akechi Jinsai, poderia fazer tanto e descarregar uma vingança tamanha, tão lindamente e com tanta dignidade, contra o táicum, inimigo e assassino do seu pai.
Toranaga estava no topo agora.
Acariciou o peregrinus encapuzado sobre o punho uma última vez, depois removeu-lhe o capuz e lançou-o ao céu. Observou-lhe a espiral ascendente, sempre ascendente, procurando uma presa que ele não mais lhe apontaria como isca. A liberdade de Tetsu-ko é o meu presente a você, Mariko-san, disse ele ao espírito dela, observando o falcão circular cada vez mais alto. Para honrar a sua lealdade a mim e a sua devoção filial à nossa regra mais importante: que um filho respeitoso, ou filha, não pode descansar sob o mesmo céu enquanto o assassino de seu pai estiver vivo.
— Ah, muito sábio, senhor — disse o falcoeiro.
— Hein?
— Soltar Tetsu-ko, libertá-la. Da última vez que o senhor a soltou, pensei que ela nunca mais voltaria, mas não tinha certeza. Ah, senhor, é o maior falcoeiro do reino, o melhor, para saber, para ter certeza de quando devolvê-la ao céu.
Toranaga permitiu-se fazer uma carranca. O falcoeiro empalideceu, sem compreender por quê, rapidamente ofereceu Kogo de novo e recuou às pressas.
Sim, o momento de Tetsu-ko chegara, pensou Toranaga irritado, mas ainda assim foi um presente simbólico ao espírito de Mariko e à qualidade da sua vingança.
Sim. Mas e quanto a todos os filhos de todos os homens que você matou?
Ah, isso é diferente, aqueles mereceram morrer, todos eles, respondeu ele a si mesmo. Assim, você sempre se acautela contra quem avança até o raio de uma seta — isso é prudência normal. A observação agradou a Toranaga e ele resolveu acrescentá-la ao Legado.
Semicerrou que já não era cima, além de todas as cóleras, elevando-se sem esforço. Então alguma força fora do alcance visual de Toranaga tomou-a, fê-la girar para norte, e ela desapareceu.
— Ah, Tetsu-ko, obrigado. Faça muitas filhas — disse ele, e voltou a atenção para a terra, aqui embaixo.
A aldeia era nítida ao sol se pondo, o Anjin-san ainda estava à sua mesa, samurais treinando, fumaça elevando-se das cozinhas. Do outro lado da baía, vinte ris mais ou menos, ficava Yedo. Quarenta ris a sudoeste, Anjiro. Duzentas e noventa ris a oeste Osaka, e trinta ris ao norte, depois de Osaka, Kyoto.
É lá que deve ser a batalha principal, pensou ele. Perto da capital. Ao norte, contornando Gifu ou Ogaki ou Hashima, transversalmente sobre a Nakasendo, a Grande Estrada Norte. Talvez onde a estrada dobra para o sul, para a capital, perto da pequena aldeia de Sekigahara, nas montanhas. Em algum lugar lá. Oh, eu estaria a salvo durante anos atrás das minhas montanhas, mas esta é a chance pela qual esperei: a jugular de lshido está desprotegida.
Minha investida principal será ao longo da estrada Norte e não pela Tokaido, a estrada costeira, embora daqui até lá eu vá fingir mudar de idéia cinqüenta vezes. Meu irmão cavalgará co migo. Oh, sim, acho que Zataki se convencerá de que lshido o traiu com Kiyama. Meu irmão não é tolo. E manterei meu voto solene de dar-lhe Ochiba. Durante a batalha Kiyama mudará de lado, acho que mudará de lado, e quando o fizer, se fizer, cairá em cima do seu odiado rival, Onoshi. Esse será o sinal para as armas de fogo atacarem, eu enrolarei os flancos dos exércitos deles e vencerei. Oh, sim, vencerei — porque Ochiba, prudentemente, nunca deixará o herdeiro se pôr em campo contra mim. Sabe que, se o fizesse, eu seria forçado a matá-lo, sinto muito.
Toranaga começou a sorrir secretamente. No momento em que tiver vencido, darei a Kiyama todas as terras de Onoshi, e o convidarei a designar Saruji seu herdeiro. No momento em que eu for presidente do novo conselho de regentes, apresentaremos a proposta de Zataki à Senhora Ochiba, que ficará tão enraivecida com a impertinência dele que, para aplacar a primeira dama da terra do herdeiro, os regentes lamentavelmente terão que convidar meu irmão a partir para o Vazio. Quem deverá tomar o seu lugar como regente? Kasigi Omi. Kiyama será a presa de Omi ... sim, isso é sábio, e muito fácil, porque com certeza, nessa altura, Kiyama, senhor de todos os cristãos, estará ostentando a sua religião, que ainda é contra a nossa lei. Os editos de expulsão do táicum ainda são legais, neh? Certamente Omi e os outros dirão: — Voto para que os editos sejam invocados. — E uma vez que Kiyama se tenha ido, nunca mais deverá haver um regente cristão, e pacientemente o nosso arrocho se reforçará sobre o estúpido mas perigoso dogma estrangeiro que é uma ameaça à Terra dos Deuses, que sempre ameaçou a nossa wa... e que portanto deve ser destruído. Nós, regentes, encorajaremos os compatriotas do Anjin-san a tomar o comércio português. Tão logo seja possível, os regentes ordenarão que todo o comércio e todos os estrangeiros se confinem a Nagasaki, a uma parte minúscula de Nagasaki, sob uma guarda muito séria. E fecharemos o país a eles para sempre... a eles, às suas armas e aos seus venenos.
Tantas coisas maravilhosas a fazer, depois que eu tiver vencido, se eu vencer, quando eu vencer. Somos um povo muito previsível.
Será uma idade áurea. Ochiba e o herdeiro majestosamente instalarão a corte em Osaka, e de vez em quando nós nos curvaremos diante deles e continuaremos a governar em seu nome, do lado de fora do Castelo de Osaka. Dentro de três anos mais ou menos, o Filho do Céu me convidará a dissolver o conselho e a me tornar xógum pelo resto da minoridade do meu sobrinho. Os regentes me pressionarão a aceitar e, relutantemente, aceitarei. Depois de um ano ou dois, sem cerimônia, renunciarei em favor de Sudara, conservarei o poder como sempre, e ficarei de olhos firmes no Castelo de Osaka. Continuarei a esperar pacientemente e um dia aqueles usurpadores lá dentro cometerão um engano e desaparecerão, e de algum modo o Castelo de Osaka desaparecerá, apenas outro sonho dentro de um sonho, e o verdadeiro prêmio do grande jogo que começou assim que eu pude pensar, que se tornou possível no momento em que o táicum morreu, o verdadeiro prêmio será conquistado: o xogunato.
É por isso que venho lutando e planejando a vida toda. Eu, sozinho, sou o herdeiro do reino. Serei xógum. E darei início a uma dinastia.
É tudo possível agora, por causa de Mariko-san e do bárbaro estrangeiro, que veio do mar oriental.
Mariko-san, era seu karma morrer gloriosamente e viver para sempre. Anjin-san, meu amigo, é seu karma não deixar nunca esta terra. O meu é ser xógum.
Kogo, o milhafre, esvoaçou sobre o seu pulso e se acomodou, observando-o. Toranaga sorriu para a ave. Não escolhi ser o que sou. É o meu karma.
Naquele ano, ao amanhecer do vigésimo primeiro dia do décimo mês, o Mês sem Deuses, os exércitos principais se chocaram. Foi nas montanhas perto de Sekigahara, cortando a estrada Norte, o tempo péssimo — neblina, depois granizo. Pelo fim da tarde Toranaga havia vencido a batalha e o massacre começou. Quarenta mil cabeças rolaram.
Três dias depois Ishido foi capturado vivo. Toranaga cordialmente lembrou-o da profecia e mandou-o a ferros para Osaka, para exibição pública, ordenando aos etas que plantassem firmemente os pés do Senhor General Ishido na terra, deixando apenas a cabeça do lado de fora, e que convidassem os passantes a serrar o pescoço mais famoso do reino com uma serra de bambu. Ishido durou três dias e morreu muito velho.