LIVRO CINCO
CAPÍTULO 52
Mais uma vez nas apinhadas estradas costeiras de Osaka, após a longa viagem de galera, Blackthorne sentiu de novo o mesmo peso esmagador da cidade que sentira ao vê-Ia a primeira vez. Grandes setores tinham sido devastados pelo tai-fun e algumas áreas ainda estavam enegrecidas pelo fogo, mas sua imensidade permanecia quase intacta e ainda dominada pelo castelo. Mesmo daquela distância, mais de uma légua, ele podia ver o colossal cinturão da primeira muralha, as ameias sobranceiras, tudo diminuído pela pairante malignidade do torreão.
— Cristo — disse Vinck nervosamente, em pé ao lado dele na proa, parece impossível ser tão grande. Amsterdam seria um cocozinho de mosca ao lado dela.
— Sim. A tempestade danificou a cidade, mas não seriamente. Nada poderia tocar o castelo.
O tai-fun açoitara violentamente de sudoeste duas semanas atrás. Tinham tido sinais em profusão, com céu baixo, lufadas e chuva, e haviam impelido a galera para uma enseada segura a fim de esperar passar a tempestade. Esperaram cinco dias. Para além da enseada, o oceano se encrespara e os ventos foram os mais violentos e fortes que Blackthorne experimentara.
— Cristo — repetiu Vinck. — Gostaria que estivéssemos em casa. Deveríamos estar em casa há um ano.
Blackthorne trouxera Vinck consigo de Yokohama e mandara os outros de volta a Yedo, deixando o Erasmus ancorado em segurança e guardado sob o comando de Naga. A tripulação ficara feliz em partir — assim como ele ficara feliz de ver o último deles. Houvera mais contendas naquela noite e uma violenta discussão sobre a prata do navio. O dinheiro era da companhia, não dele. Van Nekk era o tesoureiro da expedição e mercador-chefe e, juntamente com o capitão-mor, tinha jurisdição legal sobre ele. Depois de terem contado e recontado, e de se descobrir que faltavam mil moedas, Van Nekk, apoiado por Jan Roper, discutira sobre a quantia que Blackthorne poderia levar para contratar novos homens.
— Está querendo demais, piloto! Terá que oferecer-lhes menos!
— Jesus Cristo! Seja quanto for, temos que pagar. Preciso de marujos e atiradores. — Esmurrara a mesa da grande cabina. — De que outro modo vamos poder voltar para casa?
Finalmente acabara convencendo-os a deixá-lo levar o suficiente, e ficara aborrecido de que eles o tivessem feito perder a calma com toda aquela rabularia.
No dia seguinte embarcara-os de volta a Yedo, um décimo do tesouro dividido entre eles, o resto sob guarda no navio.
— Como sabemos que estará seguro aqui? — perguntou Jan Roper, carrancudo.
— Fique e vigie-o você mesmo, então!
Mas nenhum deles quisera ficar a bordo. Vinck concordara em ir com ele.
— Por que ele, piloto? — perguntara Van Nekk. — Porque é um marinheiro e precisarei de ajuda. Blackthorne ficara contente em ver o último deles. Uma vez ao largo, começou a modificar Vinck segundo hábitos japoneses. Vinck enfrentou isso estoicamente, confiando em Blackthorne, tendo navegado anos demais com ele para não lhe conhecer a fibra. — Piloto, pelo senhor eu tomarei banho e me lavarei todos os dias, mas serei amaldiçoado diante de Deus antes de usar uma dessas camisolas sifilíticas!
Dentro de dez dias Vinck estava alegremente indicando o rumo, semidespido, o largo cinturão de couro sobre a pança, uma adaga enfiada na bainha e presa às costas e uma das pistolas de Blackthorne segura dentro da camisa esfarrapada, mas limpa. — Não temos que ir ao castelo, temos, piloto?
— Não.
— Jesus Cristo... eu prefiro mesmo ficar longe de lá.
O dia estava ótimo, o sol alto fazendo tremeluzir o mar calmo. Os remadores ainda estavam fortes e disciplinados.
— Vinck, ali é que foi a emboscada!
— Jesus Cristo, olhe aqueles bancos de areia!
Blackthorne lhe contara sobre a dificuldade da sua fuga, os sinais de fogo naqueles parapeitos, as pilhas de cadáveres na praia, a fragata inimiga caindo-lhe em cima por barlavento.
— Ah, Anjin-san. — Yabu juntou-se a eles. — Bom, neh? — Apontou para a devastação.
— Mau, Yabu-sama. — É inimigo, neh?
— O povo não é inimigo. Apenas lshido e samurais são inimigos, neh?
— O castelo é inimigo — disse Yabu, refletindo seu desassossego e o de todos a bordo. — Aqui todos são inimigos. Blackthorne observou Yabu mover-se para a proa, o vento agitando-lhe o quimono sobre o torso rijo.
Vinck baixou a voz. — Quero matar esse bastardo, piloto. — Sim. Também não me esqueci do velho Pieterzoon, não se preocupe.
— Nem eu, Deus seja o meu juiz! É de espantar o modo como o senhor fala a língua deles. O que foi que ele disse?
— Só estava sendo polido. — Qual é o plano?
— Atracamos e esperamos. Ele vai desembarcar por um dia ou dois e nós baixamos a cabeça e esperamos. Toranaga disse que enviaria mensagens para os salvo-condutos de que necessitaríamos, mas ainda assim, vamos ficar a bordo. — Blackthorne examinou as águas à procura de perigos, mas não descobriu nada. No entanto, disse a Vinck: — É melhor calcular as braças agora, só como precaução!
— Sim!
Por um instante Yabu observou Vinck indicando o rumo, depois, meio a esmo, voltou para junto de Blackthorne. — Anjin-san, talvez fosse melhor o senhor tomar a galera e seguir até Nagasaki. Não esperar, hein?
— Está bem — disse Blackthorne cordialmente, sem morder a isca.
Yabu riu. — Gosto do senhor, Anjin-san! Mas, sinto muito, sozinho morrerá logo. Nagasaki é muito ruim para o senhor!
— Osaka ruim, todo lugar ruim!
— Karma. — Yabu sorriu de novo. Blackthorne fingiu compartilhar da piada.
Tinham tido variações da mesma conversa muitas vezes durante a viagem. Blackthorne aprendera muito sobre Yabu. Odiava-o ainda mais, desconfiava ainda mais, respeitava-o mais, e sabia que seus karmas estavam interligados.
— Yabu-san tem razão, Anjin-san — dissera Uraga. — Ele pode protegê-lo em Nagasaki, eu não.
— Por causa do seu tio, o Senhor Harima?
— Sim. Talvez eu já esteja declarado criminoso, neh? Meu tio é cristão, embora eu o ache um cristão de arroz.
— O que é isso?
— Nagasaki é feudo dele. Nagasaki tem uma grande enseada sobre a costa de Kyushu, mas não a melhor. Então ele rapidamente vê a luz, neh? Torna-se cristão e ordena que todos os seus vassalos façam o mesmo. Ordenou-me que me tornasse cristão e que fosse para a escola jesuítica, depois me mandou como um dos enviados cristãos ao papa. Deu terra aos jesuítas e — como o senhor diria — adula-os. Mas o coração dele é apenas japonês. — Os jesuítas sabem o que você pensa?
— Sim, claro.
— Acreditam nessa história de cristãos de arroz?
— Eles não dizem a nós, convertidos deles, no que é que realmente acreditam, Anjin-san. Nem a si mesmos na maioria das vezes. São treinados para terem segredos, usá-los, acolhê-los, mas nunca para revelá-los. Nisso são muito japoneses.
— É melhor que fique aqui em Osaka, Uraga-san.
— Por favor, desculpe-me, senhor, sou seu vassalo. Se o senhor for a Nagasaki, eu irei.
Blackthorne sabia que Uraga estava se tornando um auxiliar inestimável. O homem estava revelando muitos dos segredos dos jesuítas: o como, porquê e quando das suas negociações comerciais, seus funcionamentos internos e inacreditáveis maquinações internacionais. E era igualmente informativo sobre Harima e Kiyama e sobre como pensavam os daimios cristãos, e por que, provavelmente, permaneceriam do lado de Ishido. Deus, sei coisas agora que não teriam preço em Londres, pensava ele, e ainda há muito a aprender. Como posso passar a informação? Por exemplo, que o comércio da China com o Japão, só de seda, vale dez milhões em ouro por ano, e que, bem agora, os jesuítas têm um dos seus padres na corte do imperador da China em Pequim, honrado com dignidade de corte, um confidente dos governantes, falando chinês perfeitamente. Se ao menos eu pudesse mandar uma carta... se ao menos tivesse um mensageiro.
Em troca de todo o conhecimento, Blackthorne começou a ensinar Uraga sobre navegação, sobre o grande cisma religioso, e sobre o parlamento. Também ensinou a ele e a Yabu como disparar uma arma de fogo. Uraga é um bom homem, pensava ele. Não há problema. Exceto a vergonha que ele tem pela falta do rabo-de-cavalo de samurai. Isso crescerá logo.
Houve um grito de advertência do vigia de popa.
— Anjin-san! — O capitão japonês apontava para a frente, para um elegante cúter, remado por vinte homens, que se aproximava por estibordo. No topo do mastro estava o emblema de Ishido. Junto dele, o emblema do conselho de regentes, o mesmo sob o qual Nebara Jozen e seus homens tinham viajado para Anjiro, para a morte.
— Quem é? — perguntou Blackthorne, sentindo a tensão por todo o navio, todos os olhos perscrutando a distância.
— Ainda não consigo enxergar, sinto muito — disse o capitão.
— Yabu-san?
Yabu sacudiu os ombros. — Um oficial.
Quando o cúter chegou mais perto, Blackthorne viu um ancião sentado sob o dossel de popa, usando um traje cerimonial enfeitado e o manto com asas. Não usava espadas. Ao seu redor estavam os cinzentos de Ishido.
O mestre do tambor cessou a batida para permitir ao cúter emparelhar. Homens acorreram para ajudar o oficial a subir a bordo. Um piloto japonês pulou atrás dele e após numerosas mesuras assumiu o comando formal da galera.
Yabu e o ancião também foram formais e meticulosos. Finalmente se sentaram sobre almofadas de nível desigual, o oficial tomando a posição mais favorecida na popa. Samurais, cinzentos e de Yabu, rodearam-nos, sentando-se de pernas cruzadas ou ajoelhando-se no convés principal, em lugares ainda mais inferiores. — O conselho lhe dá as boas-vindas, Kasigi Yabu, em nome de Sua Alteza Imperial — disse o homem. Era baixo e atarracado, um tanto acabado, um conselheiro graduado de protocolo junto aos regentes, que também tinha posição na corte imperial. Chamava-se Ogaki Takamoto, era um príncipe de sétimo grau, e sua função era agir como um dos intermediários entre a corte de Sua Alteza Imperial, o Filho do Céu, e os regentes. Seus dentes eram tingidos de preto, à maneira que todos os cortesãos da corte imperial, por costume, haviam adotado há séculos.
— Obrigado, Príncipe Ogaki. É um privilégio estar aqui em nome do Senhor Toranaga — disse Yabu, enormemente impressionado com a honra que lhe estava sendo feita.
— Sim, estou certo de que é. Naturalmente o senhor está em seu próprio nome também, neh? — disse Ogaki secamente. — Naturalmente — retrucou Yabu. — Quando chega o Senhor Toranaga? Sinto muito, mas o tai-fun me atrasou cinco dias e não recebo notícias desde que parti.
— Ah, sim, o tai-fun. Sim, o conselho ficou muito feliz ao saber que a tempestade não o atingiu. — Ogaki tossiu. — Quanto ao seu amo, lamento dizer-lhe que ainda nem chegou a Odawara. Houve adiamentos intermináveis e algumas doenças. Lamentável, neh?
— Oh, sim, muito... nada sério, espero? — perguntou Yabu às pressas, imensamente contente por estar a par do segredo de Toranaga.
— Não, afortunadamente, nada de sério. — Novamente a tosse seca. — O Senhor Ishido tomou conhecimento de que o seu amo chegará a Odawara amanhã.
Yabu ficou convenientemente surpreso. — Quando parti, vinte e um dias atrás, estava tudo pronto para a sua partida imediata, então o Senhor Hiromatsu adoeceu. Sei que o Senhor Toranaga ficou gravemente preocupado, mas ansioso por dar início à sua viagem, assim como eu estou ansioso por começar os preparativos para a sua chegada.
— Está tudo preparado — disse o homenzinho.
— Naturalmente o conselho não fará objeções se eu verificar as providências, neh? — Yabu foi expansivo. — É essencial que a cerimônia seja digna do conselho e da ocasião, neh?
— Digna de Sua Majestade Imperial, o Filho do Céu. A convocação é dele agora.
— Naturalmente mas... — A sensação de bem-estar de Yabu extinguiu-se. — O senhor que dizer... quer dizer que Sua Alteza Imperial estará lá?
— O Exaltado concordou com a humilde solicitação dos regentes de aceitar pessoalmente a obediência do novo conselho, de todos os principais daimios, inclusive do Senhor Toranaga, sua família e vassalos. Os conselheiros superiores de Sua Alteza Imperial foram solicitados a escolher um dia auspicioso para esse... esse ritual. O vigésimo segundo dia deste mês, neste quinto ano da era Keicho.
Yabu ficou estupidificado. — Dentro de... de dezenove dias?
— Ao meio-dia. — Enfastiado, Ogaki tirou um lenço de papel da manga e delicadamente assoou o nariz. — Por favor, desculpe-me. Sim, ao meio-dia. Os presságios foram perfeitos. O Senhor Toranaga foi informado por um mensageiro imperial há catorze dias. Sua humilde e imediata aceitação chegou aos regentes faz três dias. — Ogaki puxou um pequeno pergaminho. — Aqui está o seu convite, Senhor Kasigi Yabu, para a cerimônia. Yabu estremeceu ao ver o selo imperial com o crisântemo de dezesseis pétalas, sabendo que ninguém, nem mesmo Toranaga, poderia recusar tal convocação. Uma recusa seria insulto impensável à Divindade, uma rebelião declarada, e como toda a terra pertencia ao imperador reinante, resultaria em perda imediata de toda a terra, junto com o convite imperial para se cometer seppuku no mesmo instante, emitido em seu nome pelos regentes, também selado com o Grande Selo. Tal convite seria absoluto e teria que ser obedecido.
Aflito, Yabu tentou recuperar a compostura.
— Desculpe, o senhor está indisposto? — perguntou Ogaki solicitamente.
— Sinto muito — balbuciou Yabu, mas nunca, nem nos meus sonhos mais desvairados... Ninguém poderia ter imaginado que o Exaltado nos... nos honraria tanto, neh?
— Concordo, oh, sim. Extraordinário!
— Surpreendente... que Sua Alteza Imperial considere a... possibilidade de sair de Kyoto e ... e vir a Osaka.
— Concordo. Ainda assim, no vigésimo segundo dia, o Exaltado e a Insígnia Imperial estarão aqui. — A Insígnia Imperial, sem a qual nenhuma sucessão era válida, eram os Três Tesouros Sagrados, considerados divinos, que todos acreditavam terem sido trazidos à terra pelo deus Ninigi-no-Mikoto e passado por ele, pessoalmente, ao seu neto, Jimmu Termo, o primeiro imperador humano, e por este, pessoalmente, ao seu sucessor, até o detentor atual, o Imperador Go-Nijo: a Espada Sagrada, a Jóia e o Espelho. A Espada Sagrada e a Jóia sempre viajavam formalmente com o imperador, toda vez que ele tivesse que pernoitar fora do palácio; o Espelho era conservado dentro do santuário interno no grande relicário xintoísta de Ise. A Espada, o Espelho e a Jóia pertenciam ao Filho do Céu. Eram símbolos divinos da autoridade legítima, da sua divindade, de que quando ele estava em movimento, o trono divino movia-se com ele. E assim, de que com ele ia todo o poder.
Com a voz áspera e baixa, Yabu disse: — É quase impossível acreditar que os preparativos para a chegada dele possam ser feitos em tempo.
— Oh, o Senhor General Ishido, em nome dos regentes, solicitou ao Exaltado no momento em que foi informado pelo Senhor Zataki em Yokosé de que o Senhor Toranaga concordara, de modo igualmente surpreendente, em vir a Osaka curvar-se ao inevitável. Apenas a grande honra que o seu amo concede aos regentes os prontificou a solicitar ao Filho do Céu que agraciasse a ocasião com a Presença. — Novamente a tosse seca. — Por favor, desculpe-me, o senhor me daria talvez a sua aceitação formal por escrito, tão logo seja conveniente?
— Posso fazê-lo imediatamente? — perguntou Yabu, sentindo-se fraco.
— Estou certo de que os regentes apreciariam isso. Debilmente Yabu mandou buscar material para escrever. Dezenove martelava-lhe o cérebro. Dezenove dias! Toranaga pode adiar apenas dezenove dias e então tem que estar aqui também. Tempo suficiente para eu chegar a Nagasaki e voltar em segurança a Osaka, mas não o suficiente para desferir o ataque por mar contra o Navio Negro e tomá-lo, portanto tempo insuficiente para pressionar Harima, Kiyama ou Onoshi, ou os padres cristãos, em conseqüência, tempo insuficiente para desencadear Céu Carmesim, em conseqüência o esquema inteiro de Toranaga é apenas outra ilusão ... oh, oh, oh!
Toranaga fracassou. Eu deveria ter sabido que ele fracassaria. A resposta ao meu dilema está clara: ou confio cegamente em Toranaga para forçar passagem para fora desta rede e ajudo o Anjin-san, conforme o planejado, a conseguir os homens e tomar o Navio Negro ainda mais depressa, ou tenho que me dirigir a Ishido e contar-lhe tudo o que sei e tentar negociar pela minha vida e por Izu.
Qual?
Papel, pincel e tinta chegaram. Yabu pôs de lado a angústia um momento e se concentrou em escrever de modo tão perfeito e bonito quanto podia. Era impensável responder à Presença com uma mente desordenada. Quando concluiu a aceitação, havia tomado a decisão crítica: seguiria completamente o conselho de Yuriko. Imediatamente o peso rolou de sobre a sua wa e ele se sentiu grandemente purificado. Assinou com um floreio arrogante.
Como ser o melhor vassalo de Toranaga? Muito simples: remova Ishido desta terra.
Como fazer isso e contar com tempo suficiente para escapar? Então ouviu Ogaki dizer: — O senhor está convidado para uma recepção formal, amanhã, oferecida pelo Senhor General Ishido em honra do aniversário da Senhora Ochiba.
Ainda com trajes de viagem, Mariko abraçou Kiri primeiro, depois a Senhora Sazuko, admirou o bebê, e abraçou Kiri de novo. Criadas particulares se apressavam, alvoroçadas, ao redor delas, trazendo chá e saquê, levando embora as bandejas, correndo para dentro e para fora com almofadas e ervas aromáticas, abrindo e fechando as shojis que davam para o jardim interno naquela seção do Castelo de Osaka, abanando leques, tagarelando, e também chorando.
Finalmente Kiri bateu palmas, dispensou as criadas, e dirigiu-se pesadamente para a sua almofada especial, dominada pela excitação e felicidade. Estava muito corada. Rápidas, Mariko e a Senhora Sazuko abanaram-na e serviram-na e só depois de três xícaras grandes de saquê ela conseguiu recuperar o fôlego.
— Oh, assim está melhor — disse ela. — Sim, obrigada, criança, sim, tomarei mais um pouco! Oh, Mariko-chan, você está aqui de verdade?
— Sim, sim. De verdade, Kiri-san!
Sazuko, parecendo muito mais jovem do que os seus dezessete anos, disse: — Oh, estivemos tão preocupadas apenas com rumores e...
— Sim, nada além de rumores, Mariko-chan — interrompeu Kiri. — Oh, há tanta coisa que quero saber, sinto-me fraca. — Pobre Kiri-san, tome, beba um pouco de saquê — disse Sazuko solicitamente. — Talvez devesse afrouxar o obi e...
— Estou perfeitamente bem agora! Por favor, não se incomode, criança. — Kiri exalou e cruzou as mãos sobre o amplo estômago. — Oh! Mariko-san, é tão bom ver um rosto amigo de novo, vindo de fora do Castelo de Osaka.
— Sim — ecoou Sazuko, chegando mais perto de Mariko, e disse num turbilhão: — Sempre que saímos pelo nosso portão, cinzentos enxameiam à nossa volta como se fôssemos abelhas rainhas. Não temos autorização de deixar o castelo, exceto com permissão do conselho — nenhuma das senhoras, nem as do Senhor Kiyama, e o conselho quase nunca se reúne e eles só falam por meias palavras, portanto nunca há permissão alguma, e o médico ainda diz que não devo viajar por enquanto, mas estou ótima e o bebê está ótimo e... Mas primeiro conte-nos...
Kiri interrompeu: — Antes diga-nos como vai nosso amo. A garota riu, com a mesma vivacidade. — Eu ia perguntar isso, Kiri-san!
Mariko respondeu conforme Toranaga ordenara: — Está comprometido com a sua linha de ação, está confiante e contente com a decisão que tomou. — Ela ensaiara muitas vezes durante a viagem. Ainda assim, a força da tristeza que criou quase a fez querer irromper com a verdade. — Sinto muito — disse.
— Oh! — Sazuko tentou não soar assustada.
Kiri se ajeitou, tomando uma posição mais confortável. — Karma é karma, neh?
— Então... então não houve mudança... esperança alguma? — perguntou a garota.
Kiri deu-lhe tapinhas na mão. — Acredite que karma é karma, criança, e que o Senhor Toranaga é o maior e o mais sábio homem vivo. Isso basta, o resto é ilusão. Mariko-chan, tem mensagens para nós?
— Oh, desculpe. Sim, tome. — Mariko tirou os três pergaminhos da manga. — Dois para a senhora, Kiri-chan, um do nosso amo e outro do Senhor Hiromatsu. Este é para você, Sazuko, do nosso senhor, mas ele me pediu que lhe dissesse que está com saudades e quer ver o filho mais novo. Ele me fez memorizar três coisas para lhe dizer. Ele sente muita saudade de você e quer ver o filho mais novo. Ele sente muita saudade... da garota.
Lágrimas rolaram pelas faces. Murmurou um pedido de desculpas e saiu correndo da sala, apertando o pergaminho nas mãos.
— Pobre criança. É muito duro para ela aqui. — Kiri não rompeu os lacres dos seus pergaminhos. — Você sabe que Sua Majestade Imperial estará presente?
— Sim. — Mariko foi igualmente grave. — Um mensageiro do Senhor Toranaga me alcançou há uma semana. A mensagem não dava detalhes além disso, e citava o dia em que ele chegará aqui. Recebeu notícias dele?
— Diretamente não... nada de particular, já faz um mês. Como está ele? Realmente?
— Confiante. — Ela tomou um gole de saquê. — Oh, posso servi-Ia?
— Obrigada.
— Dezenove dias não é muito tempo, é, Kiri-chan?
— É tempo suficiente para ir a Yedo e voltar se você se apressar, tempo suficiente para viver uma vida, se você quiser, mais que suficiente para realizar uma batalha ou perder um império — tempo para um milhão de coisas, mas não o suficiente para comer todos os pratos raros e tomar todo o saquê... — Kiri sorriu levemente. — Eu certamente não vou fazer dieta nos próximos vinte dias. Estou... — Parou. — Oh, por favor, desculpe-me... ouvir-me tagarelar e você ainda nem se trocou ou tomou banho.
— Oh, por favor, não se preocupe. Não estou cansada. — Mas deve estar. Vai ficar na sua casa?
— Sim. É lá que o passe do Senhor General Ishido me permite ir. — Mariko sorriu atravessado. — A acolhida dele foi brilhante.
Kiri fez uma carranca. — Duvido de que ele fosse bem-vindo mesmo no inferno.
— Oh? Sinto muito, o que foi agora?
— Nada mais do que antes. Sei que ele ordenou que o Senhor Sugiyama fosse torturado e assassinado, embora não tenha provas. Na semana passada uma das consortes do Senhor Oda tentou safar-se com os filhos, disfarçada de varredora de rua. As sentinelas atiraram neles "por engano".
— Que horror!
— Naturalmente, grandes "desculpas"! Ishido alega que a segurança é tudo o que há de importante. Houve um atentado forjado contra o herdeiro, é a desculpa dele.
— Por que as senhoras não partem abertamente?
— O conselho ordenou que esposas e famílias esperem pelos maridos, que devem retornar para a cerimônia. O grande senhor general sente "com grande gravidade a responsabilidade pela segurança delas para permitir-lhes vagar por aí". O castelo está mais fechado do que uma ostra velha.
— Lá fora também, Kiri-san. Há muito mais barreiras na Tokaido do que antes, e a segurança de Ishido está muito forte dentro de cinqüenta ris. Patrulhas por toda parte.
— Todo mundo está com medo dele, menos nós e os nossos poucos samurais, e não somos mais problema para ele do que uma bolha no traseiro de um dragão.
— Até os nossos médicos?
— Eles também. Sim, ainda nos aconselham a não viajar, mesmo que fosse permitido, coisa que não será nunca.
— A Senhora Sazuko está bem, o bebê está bem, Kiri-san? — Sim, você pode ver por si mesma. E eu também estou. — Kiri suspirou, o esforço mostrando-se agora, e Mariko notou que havia mais cinza no cabelo dela agora do que antes. — Nada mudou desde que escrevi para o Senhor Toranaga em Anjiro. Somos reféns e continuaremos como reféns com todo o resto até o Dia. Então haverá uma resolução.
— Agora que Sua Alteza Imperial vai chegar... isso torna tudo conclusivo, neh?
— Sim. Parece que sim. Vá descansar, Mariko-chan, mas coma conosco esta noite. Então poderemos conversar, neh? Oh, a propósito, uma novidade para você. O seu famoso bárbaro hatamoto — abençoado seja por ter salvado o nosso amo, ouvimos falar sobre isso — atracou em segurança esta manhã com Kasigi Yabu-san.
— Oh! Eu estava tão preocupada com eles. Partiram um dia antes de mim, por mar. Fomos todos apanhados pelo tai-fun, perto de Nagoya, mas para nós não foi muito sério. Eu estava com medo que ao mar... Oh, isso é um alívio...
— Aqui não foi muito grave, exceto pelos incêndios. Milhares de casas arderam, mas não morreram mais de duas mil pessoas. Ouvimos dizer que a intensidade maior da tempestade atingiu Kyushu, na costa leste, e parte de Shikoku. Dezenas de milhares morreram. Ninguém sabe ainda a extensão total dos danos.
— Mas a colheita? — perguntou Mariko rapidamente.
— Grande parte, aqui, foi destruída, campos atrás de campos. Os fazendeiros esperam que se recupere, mas quem sabe? Se o Kwanto não for prejudicado durante a estação, o arroz de lá pode ter que sustentar o império inteiro neste ano e no próximo. — Seria muito melhor se o Senhor Toranaga controlasse essa colheita e não Ishido. Neh?
— Sim. Mas, sinto muito, dezenove dias não é tempo suficiente para tomar posse de uma colheita, nem com todas as preces do mundo.
Mariko terminou o seu saquê. — Sim...
— Se o navio deles partiu um dia antes de você — disse Kiri, você deve ter se apressado.
— Achei melhor não perder tempo, Kiri-chan. Para mim não é prazer viajar.
— E Buntaro-san? Está bem?
— Sim. Está encarregado de Mishima e da fronteira toda no momento. Vi-o brevemente no caminho para cá. A senhora sabe onde Kasigi Yabu-sama está alojado? Tenho uma mensagem para ele.
— Numa das casas de hóspedes. Descobrirei em qual e lhe mandarei um recado imediatamente. — Kiri aceitou mais vinho. — Obrigada, Mariko-chan. Ouvi dizer que o Anjin-san continua na galera.
— Ele é um homem muito interessante, Kiri-san. Tornou-se muito útil para o nosso amo.
— Ouvi dizer. Quero que você me conte tudo sobre ele, o terremoto e todas as novidades. Oh, sim, haverá uma recepção formal amanhã pelo aniversário da Senhora Ochiba, oferecida pelo Senhor Ishido. Naturalmente você será convidada. Fui informada de que o Anjin-san também vai ser convidado. A Senhora Ochiba quer ver como ele é. Você se lembra de que o herdeiro o encontrou uma vez. Não foi a primeira vez que você o viu também?
— Sim. Pobre homem, então tem que ser exibido, como uma baleia cativa?
— Sim — disse Kiri, e acrescentou placidamente: — Como todas nós. Somos todas cativas, Mariko-chan, gostemos disso ou não.
Uraga desceu furtivamente a viela, às pressas, na direção da praia, a noite escura, o céu claro e estrelado, o ar agradável. Estava vestido com o hábito laranja de sacerdote budista, seu inestimável chapéu, e sandálias baratas de palha. Atrás dele estavam os depósitos e a massa alta, quase européia, da missão jesuítica. Dobrou uma esquina e apertou o passo. Havia poucas pessoas nas proximidades. Uma companhia de cinzentos carregando archotes patrulhava a praia. Ele diminuiu a marcha ao passar cortesmente por eles, embora com a arrogância de um sacerdote. Os samurais mal o notaram.
Seguiu, certeiro, pela praia, passou por botes de pesca embicados na areia, os odores do mar e da praia densos na brisa ligeira. A maré estava baixa. Dispersos pela baía e pelos bancos de areia estavam pescadores noturnos, parecendo muitos vagalumes, caçando com lanças à luz de archotes. Duzentos passos à frente ficavam os atracadouros e molhes, com muita craca incrustada. Atracada a um deles estava uma lorcha jesuítica, as bandeiras de Portugal e da Companhia de Jesus esvoaçando, archotes e mais cinzentos perto da enseada de embarque. Ele mudou de direção para se esquivar ao navio, voltando alguns quarteirões para dentro da cidade, depois tomou a rua Dezenove, virou por ruelas sinuosas, e saiu mais uma vez na rua que acompanhava os ancoradouros.
— Você! Alto!
A ordem veio da escuridão. Uraga parou, em pânico repentino. Cinzentos avançaram para a claridade e o cercaram. — Aonde vai, sacerdote?
— Ao leste da cidade — disse Uraga vacilante, a boca seca. — Ao nosso santuário nicheren.
— Ah, é nicheren, neh?
Outro samurai disse asperamente: — Eu não sou desses. Sou zen-budista, como o senhor general.
— Zen... ah, sim, zen é o melhor — disse outro. — Gostaria de poder entender isso. É difícil demais para minha velha cabeça.
Ele está suando um bocado para um sacerdote, não está? Por que está suando?
— Está querendo dizer que sacerdotes não transpiram? Alguns riram e alguém aproximou mais um archote.
— Por que deveriam suar? — disse o homem, áspero. — Tudo o que fazem é dormir o dia todo e "travesseirar" a noite toda — monjas, meninos, cães, eles mesmos, qualquer coisa que arranjem, e o tempo todo se empanturrar com alimento pelo qual não trabalharam. Sacerdotes são parasitas, como pulgas.
— Ei, deixe-o em paz, é apenas... — Tire o chapéu, sacerdote.
Uraga empertigou-se. — Por quê? E por que insultar um homem que serve a Buda? Buda não lhe está fazendo...
O samurai avançou, ameaçador. — Eu disse: tire o chapéu! Uraga obedeceu. Sua cabeça fora recentemente raspada como a de um sacerdote, e ele bendisse o kami, ou espírito ou dom de Buda que fosse, que o induzira a tomar essa precaução a mais, no caso de ser apanhado infringindo o toque de recolher. Todos os samurais do Anjin-san tinham sido confinados na embarcação pelas autoridades do porto, à espera de instruções superiores. — Não há motivo para ter essas péssimas maneiras — enfureceu-se ele com uma inconsciente autoridade de jesuíta. — Servir a Buda é uma vida honrosa, e tornar-se sacerdote é honroso e deveria ser a parte final da velhice de todo samurai. Ou você não sabe nada sobre o bushido? Onde estão as suas boas maneiras?
— O quê? Você é samurai?
— Claro que sou samurai. De que outro modo ousaria falar a um samurai sobre más maneiras? — Uraga colocou o chapéu. — Seria melhor que você estivesse patrulhando do que abordando e insultando sacerdotes inocentes! — Afastou-se com arrogância, os joelhos moles.
Os samurais o observaram algum tempo, depois um cuspiu. — Sacerdotes!
— Ele tinha razão — disse com acrimônia o samurai mais velho. — Onde estão as suas maneiras?
— Sinto muito. Por favor, desculpe-me.
Uraga seguiu pela estrada, muito orgulhoso de si mesmo. Mais perto da galera, acautelou-se de novo e esperou um instante ao abrigo de uma construção. Depois, tomando ânimo, encaminhou-se para a área iluminada por archotes.
— Boa noite — disse polidamente aos cinzentos, à toa ao lado da prancha de embarque, e acrescentou a bênção religiosa: — Namu Amida Butsu. Em nome do Buda Amida.
— Obrigado. Namu Amida Butsu. — Os cinzentos o deixaram passar sem embaraços. Suas ordens eram que o bárbaro e todos os samurais estavam proibidos de desembarcar, exceto Yabu e sua guarda de honra. Ninguém dissera nada sobre o sacerdote budista que viajava no navio.
Muito cansado agora, Uraga subiu ao convés principal.
— Uraga-san — chamou baixinho Blackthorne, do tombadilho. — Aqui em cima.
Uraga semicerrou os olhos para se adaptar à escuridão. Viu Blackthorne e sentiu o antigo e forte cheiro de corpo e teve certeza de que a segunda sombra ali era o outro bárbaro, de nome impronunciável, que também sabia falar português. Ele quase se esquecera de como era estar longe do odor bárbaro, que era parte da sua vida. O Anjin-san era o único que ele conhecera que não tresandava, o que era uma razão pela qual podia servi-lo.
— Ah, Anjin-san — sussurrou, e aproximou-se saudando rapidamente os dez guardas que estavam dispersos em torno do convés.
Esperou ao pé da escada até que Blackthorne lhe fizesse sinal para subir ao tombadilho. — Foi muito...
— Espere — advertiu Blackthorne igualmente baixo, e apontou. — Olhe na praia. Ali, perto do depósito. Está vendo? Não, um pouco ao norte ... ali, vê agora? — Uma sombra moveu-se rapidamente, depois mergulhou na escuridão de novo.
— Quem era?
— Eu estive observando você desde que apareceu na estrada. Ele o vinha seguindo. Nunca o viu?
— Não senhor — respondeu Uraga, sentindo de novo o pressentimento. — Não vi ninguém, não senti ninguém.
— Ele não tinha espadas, portanto não era samurai. Um jesuíta?
— Não sei. Acho que não. Fui muito cuidadoso lá. Por favor, desculpe-me por não tê-lo visto.
— Não tem importância. — Blackthorne olhou para Vinck. — Desça agora, Johann. Terminarei este turno e o acordarei ao amanhecer. Obrigado por esperar.
Vinck tocou o topete e desceu. O cheiro pegajoso partiu com ele. — Eu estava ficando preocupado com você — disse Blackthorne. -— O que aconteceu?
— O mensageiro de Yabu-sama foi lento, Anjin-san. Eis o meu relatório: fui com Yabu-sama e esperei do lado de fora do castelo do meio-dia até pouco depois de escurecer, quando... — O que ficou fazendo esse tempo todo? Exatamente?
— Exatamente, senhor? Escolhi um lugar tranqüilo perto do mercado, dando para a Primeira Ponte, e coloquei a mente em meditação — a prática jesuítica, Anjin-san, mas não sobre Deus, só sobre o senhor e Yabu-sama e o seu futuro, senhor. — Uraga sorriu. — Muitos passantes puseram moedas na minha tigela de pedinte. Deixei meu corpo descansar e a mente vagar, embora vigiasse a Primeira Ponte o tempo todo. O mensageiro de Yabu-sama veio após o escurecer e fingiu rezar comigo até ficarmos completamente sozinhos. Ele sussurrou isto: "Yabu-sama diz que ficará no castelo esta noite e que retornará amanhã de manhã. Haverá uma função oficial no castelo amanhã à noite, oferecida pelo General Ishido, para a qual o senhor será convidado. Finalmente o senhor deve considerar ‘setenta'". — Uraga o examinou, atento. — O samurai repetiu isso duas vezes, de modo que presumo que seja um código particular, senhor.
Blackthorne assentiu mas não esclareceu que aquele era um dos muitos sinais pré-combinados entre ele e Yabu. "Setenta" significava que ele devia providenciar que o navio estivesse preparado para uma retirada imediata. Mas com todos os seus samurais, marujos e remadores confinados a bordo, o navio estava pronto. E como todos estavam muito conscientes de que se encontravam em águas inimigas e todos muito perturbados, Blackthorne sabia que não exigiria esforço pôr o navio ao largo.
— Continue, Uraga-san.
— Isso foi tudo, exceto que eu devia lhe dizer que Toda Mariko-san chegou hoje.
— Ah! Ela... Não foi muito rápida essa viagem por terra de Yedo até aqui?
— Sim, senhor. Na realidade, enquanto esperava, vi o destacamento dela cruzar a ponte. Foi durante a tarde, na metade da hora do Bode. Os cavalos estavam cobertos de suor e lama, e os carregadores muito cansados. Yoshinaka-san os comandava. — Algum deles viu você?
— Não, senhor. Acho que não. — Quantos eles eram?
— Cerca de duzentos samurais, com carregadores e cavalos de bagagem. A escolta de cinzentos tinha duas vezes esse número. Um dos cavalos de bagagem tinha cestos de pombos-correio. — Bom. E depois?
— Assim que pude, parti. Há uma casa de talharim perto da missão, que muitos mercadores freqüentam, corretores de seda e arroz, gente da missão. Eu... eu estive lá, comi e ouvi. O padre-inspetor está de novo exercendo aqui. Muitos convertidos mais na área de Osaka. Foi concedida permissão para uma missa enorme dentro de vinte dias, em honra dos senhores Kiyama e Onoshi.
— Isso é importante?
— Sim, e surpreendente que um serviço assim seja permitido abertamente. É para celebrar a festa de São Bernardo. Vinte dias é o dia, após a cerimônia de obediência diante do Exaltado.
Yabu contara a Blackthorne sobre o imperador por intermédio de Uraga. A notícia correra pelo navio inteiro, aumentando a premonição de catástrofe de todo mundo.
— O que mais?
— No mercado ouvi muitos rumores. Muitos de mau agouro. Yodoko-sama, a viúva do táicum, está muito doente. Isso é grave, Anjin-san, porque o conselho dela é sempre ouvido e sempre razoável. Alguns dizem que o Senhor Toranaga já está perto de Nagoya, outros dizem que ainda não atingiu Odawara, por isso ninguém sabe no que acreditar. Todos concordam em que a colheita será terrível este ano, aqui em Osaka, o que significa que o Kwanto se torna muitíssimo mais importante. A maioria das pessoas acha que a guerra civil começará assim que o Senhor Toranaga estiver morto, quando os grandes daimios começarão a combater entre si. O preço do ouro está muito alto e os índices de juros subiram a setenta por cento...
— Isso é impossivelmente alto, você deve estar enganado. — Blackthorne se levantou, descontraiu as costas, depois se debruçou cautelosamente à amurada. Polidamente Uraga e todos os samurais também se levantaram. Teria sido falta de boas maneiras que eles continuassem sentados com o amo em pé.
— Por favor, desculpe-me, Anjin-san — disse Uraga — nunca é menos do que cinqüenta por cento, e geralmente de sessenta e cinco a setenta, até oitenta. Há quase vinte anos, o padre-inspetor solicitou a Sua Sant... solicitou ao papa que nos permitisse... que permitisse à Sociedade emprestar a dez por cento. Ele tinha razão ao afirmar que a sugestão — foi aprovada, Anjin-san — traria resplendor e muitos convertidos ao cristianismo, pois, naturalmente, apenas os cristãos podiam conseguir empréstimos, sempre modestos. Não se pagam taxas assim no seu país?
— Raramente. Isso é usura! Compreende "usura"?
— Compreendo a palavra, sim. Mas usura não começaria para nós abaixo de cem por cento. Eu também ia lhe dizer que o arroz está muito caro e que é um mau presságio — está o dobro do que estava quando estive aqui há poucas semanas. A terra está barata. Agora seria uma boa ocasião para comprar terra aqui. Ou uma casa. Com o tai-fun e os incêndios, talvez dez mil casas se tenham perdido e duas, três mil pessoas morrido. Isso é tudo, Anjin-san.
— Isso é muito bom. Você agiu muito bem. Errou de vocação!
— Senhor?
— Nada — disse Blackthorne, ainda sem saber até que ponto podia arreliar Uraga. — Você fez muito bem.
— Obrigado, senhor.
Blackthorne pensou um instante, depois perguntou sobre a comemoração do dia seguinte e Uraga aconselhou-o da melhor maneira que pôde. Finalmente Uraga lhe contou como escapara da patrulha.
— O seu cabelo o teria traído? — perguntou Blackthorne. — Oh, sim. Seria o suficiente para que eles me levassem consigo. — Uraga enxugou o suor da testa. — Sinto muito, está quente, neh?
— Muito — concordou Blackthorne polidamente, e deixou a mente classificar as informações. Olhou para o mar, inconscientemente examinando o céu, o mar e o vento. Estava tudo ótimo e em ordem, os barcos de pesca complacentemente à deriva com a maré, por perto e afastados, um lanceiro na proa de cada um, sob uma lanterna, espetando de tempos em tempos, e quase sempre trazendo na volta uma bela bruma-do-mar, um mugem ou um vermelho que se contorciam e agitavam na lança. — Uma última coisa, senhor. Fui à missão... perto da missão. Os guardas estavam muito alerta e eu nunca conseguiria entrar... pelo menos, acho que não, a não ser que passasse ao lado de um deles. Espiei algum tempo, mas antes de vir embora vi entrar Chimmoko, a criada da Senhora Toda.
— Tem certeza?
— Sim. Havia outra criada com ela. Acho... — A Senhora Mariko? Disfarçada?
— Não, senhor. Tenho certeza de que não era... essa segunda criada era alta demais.
Blackthorne olhou o mar novamente e murmurou, meio consigo mesmo: — Qual é o significado disso?
— A Senhora Mariko é crist... é católica, neh? Conhece muito bem o padre-inspetor. Foi ele quem a converteu. A Senhora Mariko é a dama mais importante, mais famosa do reino, depois das três mais altas: a Senhora Ochiba, a Senhora Genjiko e Yodoko-sama, a esposa do táicum.
— Mariko-san poderia querer se confessar? Ou uma missa? Ou uma consulta? Ela mandou Chimmoko para arranjar isso? — Qualquer uma dessas coisas, Anjin-san, ou todas elas. Todas as damas dos daimios, tanto dos amigos do senhor general quanto as dos que poderiam se opor a ele, estão confinadas no castelo, neh? Uma vez lá dentro, ficam lá, como peixes num aquário dourado, esperando para serem pescados.
— Basta! Chega de conversa agourenta.
— Sinto muito. Ainda assim, Anjin-san, acho que agora a Senhora Toda não sairá mais. Até o décimo nono dia.
— Eu lhe disse que basta! Tomei conhecimento dos reféns e de que há um último dia. — Estava silencioso no convés, todas as vozes abafadas. A guarda descansava tranqüila, esperando pelo turno. A água batia molemente no casco e as cordas rangiam agradavelmente.
Após um momento, Uraga disse: — Talvez Chimmoko tenha levado um convite ... uma solicitação para que o padre-inspetor vá vê-la. Ela estava realmente sob guarda quando cruzou a Primeira Ponte. Certamente Toda Mariko-noh-Buntaro-noh-Jinsai esteve sob guarda desde o primeiro momento em que atravessou as fronteiras do Senhor Toranaga. Neh?
— Podemos saber se o padre-inspetor vai ao castelo? — Sim. Isso é fácil.
— Como saber o que é dito... ou feito?
— Isso é muito difícil. Sinto muito, mas eles falariam português ou latim, neh? E quem fala essas duas línguas além de mim e do senhor? Eu seria reconhecido por ambos. — Uraga apontou para o castelo e a cidade. — Há muitos cristãos lá. Qualquer um obteria grande favor eliminando o senhor, ou a mim... neh?
Blackthorne não respondeu. Não era necessário resposta. Estava vendo o torreão delineado contra as estrelas e lembrou-se de Uraga falando-lhe do lendário e ilimitado tesouro que o torreão protegia, o saque-arrecadação do império, do táicum. Mas agora sua mente estava no que Toranaga poderia estar fazendo, pensando ou planejando, e exatamente onde Mariko estava e qual era a finalidade de ir a Nagasaki. — Então o senhor está dizendo que o décimo nono dia é o último, um dia de morte, Yabu-san? — repetira ele, quase nauseado com a informação de que a armadilha estava lançada sobre Toranaga. E portanto sobre ele e o Erasmus.
— Shikata ga nai! Vamos rapidamente a Nagasaki e voltamos. Depressa, compreende? Apenas quatro dias para conseguir homens. Depois voltamos.
— Mas por quê? Toranaga aqui, todos morrem, neh? — dissera ele. Mas Yabu desembarcara, dizendo-lhe que partiriam dois dias depois. Agitado, ele o observara afastando-se, desejando ter trazido o Erasmus e não a galera. Se tivesse o Erasmus, sabia que de algum modo teria desviado de Osaka e rumado direto para Nagasaki, ou ainda mais provavelmente, teria investido para o horizonte a fim de encontrar alguma enseada de boa conformação e teria tirado tempo da eternidade para treinar seus vassalos a lidar com o navio.
Você é um imbecil, repreendeu-se ele. Com os poucos tripulantes que tem, você não teria conseguido atracá-lo aqui, quanto mais encontrar essa enseada para esperar passar a tempestade do demônio. Você já estaria morto.
— Não se preocupe, senhor. Karma — estava dizendo Uraga.
— Sim. Karma. — Então Blackthorne ouviu perigo vindo do mar, seu corpo se moveu antes que a mente o ordenasse, e ele estava girando quando a seta passou zunindo, errando-o por uma distância mínima para ir se fincar no tabique. Saltou para Uraga para fazê-lo se abaixar quando outra seta da mesma saraivada sibilou na direção de Uraga, cravando-se na sua garganta. Os dois se encolheram em segurança sobre o convés, Uraga guinchando e samurais gritando e perscrutando o mar por sobre a amurada. Cinzentos da guarda na praia subiram a bordo. Outra saraivada veio da noite, do mar, e todos se dispersaram para se proteger. Blackthorne rastejou até a amurada, espreitou através de um embornal e viu um barco de pesca próximo apagando o seu archote para sumir na escuridão. Todos os botes estavam fazendo o mesmo, e numa fração de segundo ele viu remadores puxando freneticamente, a luz cintilando nas suas espadas e arcos.
O uivo de dor de Uraga transformou-se numa agonia balbuciante, enquanto os cinzentos se precipitavam para o tombadilho, arcos preparados, o navio todo em tumulto agora. Vinck subiu depressa ao convés, pistola pronta, correndo em ziguezague. — Cristo, o que está acontecendo, o senhor está bem, piloto? — Sim. Cuidado, eles estão em barcos de pesca! — Blackthorne escorregou para junto de Uraga, que estava segurando a flecha, sangue vazando-lhe pelo nariz, boca e ouvidos.
— Jesus — arquejou Vinck.
Blackthorne agarrou a farpa da seta com a mão, colocou a outra sobre a carne quente e pulsante, e puxou com toda a força. A seta saiu habilmente, mas no seu rastro o sangue esguichou num jorro pulsante. Uraga começou a sufocar.
Agora cinzentos e samurais de Blackthorne os rodeavam. Alguns haviam trazido escudos e protegiam Blackthorne, descuidados da própria segurança. Outros tremiam, embora o perigo tivesse passado. Outros soltavam imprecações contra a noite, disparando na noite, ordenando que os desaparecidos barcos do pesca voltassem.
Blackthorne segurou Uraga nos braços, impotente, sabendo que havia alguma coisa que ele devia fazer, mas não sabendo o quê, sabendo que nada podia ser feito, o nauseante cheiro adocicado da morte obstruindo-lhe as narinas, o cérebro berrando como sempre "Jesus Cristo, graças a Deus não é o meu sangue, não o meu, graças a Deus".
Viu os olhos de Uraga implorando, a boca movendo-se em emitir som algum, o peito arfando, depois viu seus próprios dedos moverem-se por si mesmos e fazerem o sinal-da-cruz diante dos olhos, sentiu o corpo de Uraga estremecendo, palpitando, a boca gritando sem som, fazendo-o lembrar-se dos peixes fisgados. Uraga levou um tempo atroz para morrer.