CAPÍTULO 54


— Partiremos ao meio-dia.

— Não, Mariko-san. — A Senhora Sazuko estava quase em lágrimas.

— Sim — disse Kiri. — Sim, partiremos conforme você diz. — Mas eles nos deterão — exclamou a garota. — É tudo tão inútil.

— Não — disse-lhe Mariko —, está enganada, Sazuko-san, é muito necessário.

— Mariko-san tem razão — disse Kiri. — Temos ordens. — Sugeriu alguns detalhes para a partida. — Poderíamos facilmente estar prontas ao amanhecer, se você quisesse.

— Meio-dia é a hora em que devemos partir. Foi o que ele disse, Kiri-san — retrucou Mariko.

— Precisaremos de muito poucas coisas, neh?

— Sim.

— Pouquíssimas! — disse Sazuko. — Sinto muito, mas tudo é tão tolo, eles nos deterão!

— Talvez não, criança — disse Kiri. — Mariko diz que eles nos deixarão partir. O Senhor Toranaga também pensa isso. Portanto imagine que o farão. Vá descansar. Vamos, preciso conversar com Mariko-san.

A garota saiu, muito perturbada.

Kiri cruzou as mãos. — Sim, Mariko-san?

— Estou enviando uma mensagem cifrada por pombo-correio, contando ao Senhor Toranaga o que aconteceu esta noite. Partirá à primeira luz da manhã. Os homens de Ishido certamente tentarão destruir o restante dos meus pássaros amanhã se houver problema, e não posso trazê-los para cá. Há alguma mensagem que a senhora queira enviar imediatamente?

— Sim. Escreverei agora. O que acha que vai acontecer? — O Senhor Toranaga tem certeza de que nos deixarão ir, se eu for forte.

— Não concordo. E, por favor, desculpe-me, também não acho que você tenha muita fé na tentativa.

— Está enganada. Oh, claro que podem nos deter amanhã, e se fizerem isso haverá discussão e as ameaças mais terríveis, mas tudo isso não vai significar nada. — Mariko riu. — Oh, tantas ameaças, Kiri-san, e continuarão o dia todo e a noite toda. Mas ao meio-dia do dia seguinte, teremos permissão de partir. Kiri balançou a cabeça. — Se fôssemos autorizadas a escapar, cada refém em Osaka também partiria. Ishido ficará seriamente enfraquecido e perderá dignidade. Ele não pode se permitir isso.

— Sim. — Mariko estava muito satisfeita. — Ainda assim, está encurralado.

Kiri observava-a. — Dentro de dezoito dias nosso amo estará aqui, neh? Tem que estar aqui.

— Sim.

— Desculpe, mas então por que é tão importante que partamos imediatamente?

— Ele considera importante o suficiente, Kiri-san. O suficiente para ordenar isso.

— Ah, então ele tem um plano?

— Ele não tem sempre muitos planos?

— Uma vez que o Exaltado concordou em estar presente, nosso amo está numa armadilha, neh?

— Sim.

Kiri olhou para a shoji. Estava fechada. Inclinou-se para a frente e disse baixinho: — Então por que ele me pediu que pusesse secretamente essa idéia na cabeça da Senhora Ochiba?

A confiança de Mariko começou a se empanar. — Ele lhe disse que fizesse isso?

— Sim. De Yokosé, depois de se encontrar com o Senhor Zataki a primeira vez. Por que ele mesmo armou a armadilha? — Não sei.

Kiri mordeu os lábios. — Gostaria de saber. Logo saberemos, mas acho que você não está me contando tudo o que sabe, Mariko-san.

Mariko começou a se eriçar, mas Kiri tocou-a, novamente advertindo-lhe silêncio, e sussurrou: — A mensagem dele me disse que confiasse completamente em você, portanto não vamos dizer mais nada. Confio em você, Mariko-san, mas isso não faz a minha mente parar de funcionar. Neh?

— Por favor, desculpe-me.

— Tenho muito orgulho de você — disse Kiri em voz normal. — Sim, erguendo-se daquele jeito à frente de Ishido e todos eles. Gostaria de ter a sua coragem.

— É fácil para mim. Nosso amo disse que devíamos partir. — O que fazemos é muito perigoso, acho. Ainda assim, como posso ajudar?

— Dê-me o seu apoio.

— Você já tem isso. Sempre teve.

— Ficarei aqui com a senhora até amanhecer, Kiri. Mas primeiro tenho que conversar com o Anjin-san.

— Sim. É melhor que eu vá com você.

As duas mulheres saíram dos apartamentos de Kiri, uma escolta de marrons com elas, passando por outros marrons, que se curvaram, visivelmente orgulhosíssimos de Mariko. Kiri conduziu-a corredores abaixo, atravessou a extensão da grande sala de audiências, e o corredor adiante. Havia marrons de guarda ali, e cinzentos. Quando viram Mariko, todos se curvaram, marrons e cinzentos igualmente a honrando. Tanto Kiri quanto Mariko ficaram perplexas de encontrar cinzentos no seu domínio. Dissimularam a própria confusão e não disseram nada.

Kiri apontou uma porta.

— Anjin-san? — chamou Mariko.

— Hai? — A porta abriu-se. Blackthorne apareceu. Ao seu lado, dentro do aposento, mais dois cinzentos. — Alô, Mariko-san.

— Alô. — Mariko olhou para os cinzentos. — Tenho que conversar com o Anjin-san em particular.

— Por favor, converse com ele, senhora — disse o capitão dos cinzentos com grande deferência. — Infelizmente recebemos ordem do Senhor Ishido pessoalmente, sob pena de morte imediata, de não deixá-lo sozinho.

Yoshinaka, oficial do turno daquela noite, avançou. — Desculpe-me, Senhora Toda, tive que concordar com estes vinte guardas para o Anjin-san. Foi uma solicitação pessoal do Senhor Ishido. Sinto muito.

— Como o Senhor Ishido está apenas preocupado com a segurança do Anjin-san, eles são bem-vindos — disse ela, nem um pouco satisfeita.

— Ficarei responsável por ele enquanto a Senhora Toda estiver com ele — disse Yoshinaka ao capitão dos cinzentos. — O senhor pode esperar lá fora.

— Sinto muito — disse esse samurai com firmeza. — Eu e meus homens não temos alternativa senão vigiá-lo com nossos próprios olhos.

— Ficarei contente em permanecer aqui — disse Kiri. — Naturalmente é necessário que alguém fique.

— Sinto muito, Kiritsubo-san, devemos estar presentes. Por favor, desculpe-me, Senhora Toda — continuou o capitão, desconfortável —, mas nenhum de nós fala bárbaro.

— Ninguém sugeriu que os senhores seriam descorteses a ponto de ouvir — disse Mariko, prestes a se enfurecer. — Mas os costumes bárbaros são diferentes dos nossos.

— Obviamente os cinzentos devem obedecer ao seu senhor — disse Yoshinaka. — A senhora foi totalmente correta esta noite ao dizer que o primeiro dever de um samurai é para com o seu suserano, Senhora Toda, e totalmente correta em enfatizar isso em público.

— Perfeitamente correta, senhora — concordou o capitão dos cinzentos, com a mesma demonstração de orgulho. — Não há outra obrigação na vida de um samurai, neh?

— Obrigada — disse ela, reconfortada pelo respeito deles. — Também devemos honrar os costumes do Anjin-san, se pudermos, capitão — disse Yoshinaka. — Talvez eu tenha uma solução. Por favor, siga-me. — Conduziu-os de volta à sala de audiência. — Por favor, senhora, traga o Anjin-san e sentem-se ali. — Apontou para o estrado distante. — Os guardas do Anjin-san podem ficar junto às portas e cumprir seu dever para com o seu suserano, nós cumprimos o nosso, e a senhora conversa como deseja, de acordo com os costumes do Anjin-san. Neh?

Mariko explicou a Blackthorne o que Yoshinaka dissera, depois continuou, prudentemente em latim: — Eles não se afastarão de você esta noite. Não temos alternativa, a menos que eu mande matá-los imediatamente, se for isso o que você desejar.

— Minha vontade é conversar em particular com você — retrucou Blackthorne. — Mas não ao custo de vidas. Agradeço-lhe por me perguntar.

Mariko voltou-se para Yoshinaka. — Muito bem, obrigada, Yoshinaka-san. Quer, por favor, mandar alguém providenciar braseiros de incenso, para afastar os mosquitos?

— Naturalmente. Por favor, desculpe-me, senhora, há alguma notícia sobre a Senhora Yodoko?

— Não, Yoshinaka-san. Ouvimos dizer que ela ainda está repousando, sem sofrimento. — Mariko sorriu para Blackthorne. — Vamos sentar lá, Anjin-san?

Ele a seguiu. Kiri voltou aos seus aposentos e os cinzentos se postaram junto às portas da sala de audiências.

O capitão dos cinzentos ficou perto de Yoshinaka, a alguns passos dos outros. — Não gosto disso — sussurrou ele asperamente.

— A Senhora Toda vai puxar uma espada e matá-lo? Sem ofensa, onde estão os seus miolos?

Yoshinaka afastou-se coxeando para examinar os outros postos. O capitão olhou para o estrado. Mariko e o Anjin-san estavam sentados um diante do outro, bem iluminados por archotes. Ele não conseguia ouvir o que estavam dizendo. Concentrou-se nos lábios deles mas nem assim conseguiu entender, embora seus olhos fossem muito bons e ele soubesse falar português. Suponho que estejam falando a língua dos santos padres de novo, pensou. Língua hedionda, impossível de aprender.

E depois, que importância tem? Por que ela não deveria conversar com o herege em particular, se é isso o que quer? Nenhum dos dois vai durar muito tempo mais neste mundo. Muito triste. Oh, bendita Nossa Senhora, tome-a sob a sua guarda eterna, pela sua bravura.

— Latim é mais seguro, Anjin-san. — O leque dela fez um mosquito fugir zumbindo.

— Eles podem nos ouvir daqui?

— Não, não creio, se mantivermos a voz baixa e conversarmos conforme você ensinou, com muito pouco movimento da boca.

— Bom. O que ocorreu com Kiyama? — Eu o amo.

— E eu a amo. — Senti saudades. — Eu também. Como podemos nos encontrar sozinhos?

— Esta noite não é possível. Amanhã à noite será, meu amor. Tenho um plano.

— Amanhã? Mas e a sua partida?

— Amanhã eles podem me deter, Anjin-san — por favor, não se preocupe. Depois de amanhã estaremos todos livres para partir como desejarmos. Amanhã à noite, se eu for detida, estarei com você.

— Como?

— Kiri me ajudará. Não me pergunte como, o quê ou por quê. Será fácil...

Parou quando criadas trouxeram os pequenos braseiros. Logo os fios espiralados de fumaça repeliram as criaturas da noite. Quando se viram seguros de novo, conversaram sobre a viagem, contentes apenas com o fato de estarem juntos, amando-se sem se tocarem, sempre evitando falar em Toranaga e na importância do dia seguinte. Então ele disse: — Ishido é meu inimigo. Por que todos esses guardas estão à minha volta?

— Para protegê-lo. Mas também para vigiá-lo de perto. Penso que Ishido também poderia desejar usá-lo contra o Navio Negro e Nagasaki, o Senhor Kiyama e o Senhor Onoshi.

— Ah, sim, também pensei nisso.

Ela viu os olhos dele a esquadrinhá-la. — O que é, Anjin-san? — Ao contrário do que crê Yabu, acho que você não é estúpida, que tudo esta noite foi dito intencionalmente, deliberadamente planejado — por ordem de Toranaga.

Ela alisou uma ruga no seu quimono de brocado. — Ele me deu ordens. Sim.

Blackthorne passou ao português. — Ele a traiu. Você é um engodo. Sabe disso? É apenas uma isca para uma das armadilhas dele.

— Por que diz isso?

— Você é a isca. É óbvio, não é? Yabu é isca. Toranaga mandou-nos todos para cá como um sacrifício.

— Não, engana-se, Anjin-san. Sinto muito, mas está enganado.

Em latim ele disse: — Digo-lhe que é linda e a amo, mas que é mentirosa.

— Ninguém nunca me disse isso antes.

— Você também disse que ninguém tinha dito "Eu a amo". Ela baixou os olhos para o leque. — Vamos conversar sobre outras coisas.

— O que Toranaga ganha sacrificando-nos? Ela não respondeu.

— Mariko-san, tenho o direito de lhe perguntar. Não estou com medo. Só quero saber o que ele ganha.

— Não sei.

— Você! Jure pelo seu amor e pelo seu Deus.

— Até você? — replicou ela amargamente em latim. — Também você com os seus "jure por Deus" e perguntas, perguntas, perguntas?

— É a sua vida e a minha vida, e eu prezo a ambas. O que ele ganha?

A voz dela soou mais alta. — Ouça, sim, eu escolhi o momento, sim, não sou uma mulher estúpida e...

— Tenha cuidado, Mariko-san, por favor, conserve a voz baixa ou isso seria muito estúpido.

— Desculpe. Sim, foi feito intencionalmente e em público como Toranaga desejava.

— Por quê?

— Porque lshido é um camponês e tem que nos deixar partir. O desafio tinha que ser diante dos seus pares. A Senhora Ochiba aprova que vamos ao encontro do Senhor Toranaga. Conversei com ela e ela não se opõe. Não há nada para perturbá-lo. — Não gosto de vê-Ia inflamada. Ou venenosa. Ou malhumorada. Onde está a sua tranqüilidade? E onde estão as suas maneiras? Talvez você devesse aprender a observar as pedras crescendo. Neh?

A cólera de Mariko desapareceu e ela riu. — Ah! Você tem razão. Por favor, desculpe-me. — Sentiu-se revigorada, ela mesma de novo. — Oh, como o amo, e o honro, e fiquei orgulhosa de você esta noite, quase o beijei, ali na frente deles, como é seu costume.

— Nossa Senhora, isso os teria feito explodir, neh?

— Se eu estivesse sozinha com você, eu o beijaria até que os seus gritos por piedade enchessem o universo.

— Agradeço-lhe, senhora, mas está aí e eu aqui, e o mundo se ergue entre nós.

— Ah, mas não existe mundo entre nós. Minha vida é plena por sua causa.

Um momento depois ele disse: — E as ordens que Yabu lhe deu? De pedir desculpas e ficar?

— Não podem ser obedecidas, sinto muito. — Devido às ordens de Toranaga?

— Sim. Mas não pelas ordens dele, realmente. É a minha vontade, também. Tudo isso foi sugestão minha a ele. Fui eu que implorei para ser autorizada a vir aqui, meu querido. Diante de Deus, é essa a verdade.

— O que acontecerá amanhã?

Ela lhe contou o que dissera a Kiri, acrescentando: — Tudo vai sair melhor do que o planejado. lshido já não é o seu protetor? Juro que não sei como o Senhor Toranaga pode ser tão inteligente. Antes de eu partir ele me contou o que aconteceria, o que poderia acontecer. Sabia que Yabu não tinha poder em Kyushu. Apenas lshido ou Kiyama podiam protegê-lo lá. Não somos engodos. Estamos sob a proteção dele. Totalmente seguros.

— E os dezenove dias, dezoito agora? Toranaga tem que estar aqui, neh?

— Sim.

— Então isso não é, como diz lshido, um desperdício de tempo?

— Realmente não sei. Só sei que dezenove, dezoito ou mesmo três dias podem ser uma eternidade.

— Ou amanhã?

— Amanhã também. Ou o dia seguinte. — E se lshido não a deixar partir amanhã?

— Esta é a única chance que temos. Todos nós. lshido tem que ser humilhado.

— Tem certeza?

— Sim, diante de Deus, Anjin-san.

Blackthorne se arrancou de um pesadelo de novo, mas, no momento em que se viu realmente desperto, o sonho desapareceu. Cinzentos o fitavam de olhos arregalados através do mosquiteiro à luz do amanhecer que despontava.

— Bom dia — disse-lhes ele, odiando ser vigiado durante o sono.

Saiu de sob o mosquiteiro e dirigiu-se para o corredor, desceu as escadas, até atingir o toalete no jardim. Guardas, tanto marrons quanto cinzentos, acompanhavam-no. Ele mal os notava.

O amanhecer estava enevoado. A leste o céu já estava limpo da cerração. O ar cheirava a sal, carregado de maresia. As moscas já enxameavam. Vai fazer calor hoje, pensou ele.

Passos aproximaram-se. Através da abertura da porta, Blackthorne viu Chimmoko. Ela esperou pacientemente, tagarelando com os guardas, e quando ele saiu, curvou-se e saudou-o.

— Onde Mariko-san? — perguntou ele. — Com Kiritsubo-san, Anjin-san.

— Obrigado. Quando parte? — Logo, senhor.

— Diga Mariko-san eu gostaria dizer bom-dia antes partir — disse ele novamente, embora Mariko já tivesse prometido encontrá-lo antes de voltar para casa a fim de reunir seus pertences. — Sim, Anjin-san.

Ele assentiu do modo adequado a um samurai e se dirigiu para o banho. Não era costume tomar banho quente de manhã. Mas todas as manhãs ele ia lá e derramava água fria pelo corpo todo. — Iiiiih, Anjin-san — sempre diziam os seus guardas ou observadores —, isso com certeza faz muito bem para a sua saúde.

Vestiu-se e rumou para as ameias que davam para o adro daquela ala do castelo. Estava usando um quimono marrom e espadas, a pistola escondida no sash. Marrons de sentinela saudavam-no como a um deles, embora muito apreensivos pela presença dos cinzentos que o seguiam. Outros cinzentos amontoavam-se nas ameias opostas, olhando-os de cima, e fora do portão deles.

— Muitos cinzentos, muito mais do que o habitual. Compreende, Anjin-san? — disse Yoshinaka, saindo para o balcão. — Sim.

O capitão dos cinzentos aproximou-se. — Por favor, não chegue muito perto da beirada, Anjin-san. Sinto muito.

O sol estava no horizonte. O seu calor causou uma sensação agradável na pele de Blackthorne. Não havia nuvens no céu e a brisa estava se extinguindo.

O capitão dos cinzentos apontou para a espada de Blackthorne. — Essa é a Vendedor de Óleo, Anjin-san?

— Sim, capitão.

— Posso ter permissão de ver a lâmina?

Blackthorne puxou a espada parcialmente da bainha. O costume decretava que uma espada não devia ser totalmente sacada a menos que fosse para ser usada.

— Iiiiih, linda, neh? — disse o capitão. Os outros, marrons e cinzentos, amontoaram-se ao redor, igualmente impressionados. Blackthorne empurrou a espada de volta, não descontente. — Honra usar Vendedor de Óleo.

— Sabe usar uma espada, Anjin-san? — perguntou o capitão. — Não, capitão. Não como samurai. Mas aprendo.

— Ah, sim. Isso é muito bom.

No adro, dois andares abaixo, marrons treinavam, ainda na sombra. Blackthorne observou-os. — Quantos samurais aqui, Yoshinaka-san?

— Quatrocentos e três, Anjin-san, incluindo os duzentos que vieram comigo.

— E lá fora?

— Cinzentos? — Yoshinaka riu. — Muitos... muitíssimos. O capitão dos cinzentos mostrou os dentes com o sorriso. — Quase cem mil. Compreende, Anjin-san, "cem mil"?

— Sim. Obrigado.

Todos olharam à distância quando uma coluna de carregadores, cavalos de carga e três palanquins contornaram a esquina oposta, vindo sob guarda da extremidade do acesso. A avenida ainda estava profundamente obscurecida entre os altos muros vigiados. Archotes ainda ardiam nos suportes de parede. Mesmo àquela distância, eles podiam ver o nervosismo dos carregadores. Os cinzentos do outro lado pareceram mais silenciosos e atentos, o mesmo acontecendo com os marrons de guarda.

Os altos portões se abriram para dar passagem ao grupo, a escolta de cinzentos ficando de fora com os camaradas, depois se fecharam de novo. A grande barra de ferro retiniu de volta aos grandes apoios cravados bem fundo nos muros de granito. Não havia rastrilho guardando esse portão.

— Anjin-san — disse Yoshinaka —, por favor, desculpe-me. Preciso ver se tudo está bem. Tudo pronto, neh?

— Espero aqui.

— Sim. — Yoshinaka afastou-se.

O capitão dos cinzentos foi até o parapeito e olhou para baixo. Jesus Cristo, estava pensando Blackthorne, espero que ela tenha razão. Toranaga também. Não falta muito agora, hein? Avaliou a altura do sol e murmurou vagamente consigo mesmo em português: — Não falta muito para partir.

Inconscientemente o capitão grunhiu sua aquiescência e Blackthorne percebeu que o homem o compreendia claramente em português, era portanto católico e outro possível assassino. Sua mente precipitou-se de volta à noite passada, e ele se lembrou de que tudo o que dissera a Mariko fora em latim.

Foi mesmo? Mãe de Deus, e ela dizendo "... posso mandar mata-los"? Foi em latim? Será que ele também fala latim, como aquele outro capitão, o que foi morto durante a primeira fuga de Osaka?

O sol reunia forças agora e Blackthorne desviou os olhos do capitão. Se não me assassinou durante a noite, talvez nunca o faça, pensou ele, colocando aquele católico num compartimento.

Viu Kiri sair para o adro abaixo. Supervisionava criadas carregando cestos e baús até os cavalos de carga. Parecia minúscula, em pé nos degraus principais onde Sazuko fingira escorregar, colaborando para a fuga de Toranaga. Ao norte ficava o agradável jardim e a minúscula casa rústica onde vira Mariko e Yaemon, o herdeiro, pela primeira vez. Mentalmente acompanhou o cortejo do meio-dia saindo do castelo, serpeando através do labirinto, depois em segurança através dos bosques e descendo até o mar. Rezou para que ela estivesse em segurança e todos estivessem seguros. Uma vez que elas tivessem partido, Yabu e ele poderiam voltar à galera e zarpar.

Dali das ameias o mar parecia muito perto. Chamava-o. E o horizonte.

— Konbanwa, Anjin-san.

— Mariko-san! — Ela estava tão radiante como sempre. — Konbanwa — disse ele, depois em latim, com indiferença: — Cuidado com este homem cinzento, ele compreende — continuando instantaneamente em português para dar tempo a ela de se resguardar —, sim, não compreendo como pode estar tão bela tendo dormido tão pouco. — Pegou-lhe o braço e colocou-a de costas para o capitão, trazendo-a mais para perto do parapeito. — Olhe, lá está Kiritsubo-san!

— Obrigada. Sim, sim, eu... obrigada. — Por que não acena a Kiritsubo-san?

Ela fez o que lhe era pedido e chamou o nome da outra. Kiri os viu e retribuiu o aceno.

Após um momento, novamente descontraída e controlada, Mariko disse: — Obrigada, Anjin-san. O senhor é inteligente e muito sábio. — Cumprimentou o capitão casualmente e caminhou a esmo até uma saliência onde se sentou, depois de se certificar de que estava limpa. — Vai fazer um dia excelente, neh?

— Sim. Como dormiu?

— Não dormi, Anjin-san. Kiri e eu tagarelamos o resto da noite afora e eu vi o dia amanhecer. Adoro amanheceres. E o senhor?

— Meu descanso foi perturbado, mas... — Oh, sinto muito.

— Estou bem agora, realmente. Vai partir agora?

— Sim, mas voltarei ao meio-dia para buscar Kiri-san e a Senhora Sazuko. — Desviou o rosto do capitão e disse em latim: — Você. Lembra-se da Hospedaria das Flores?

— Certamente. Como poderia esquecer?

— Se houver um adiamento... esta noite será tão perfeita quanto cheia de paz.

— Ah, gostaria de que isso fosse possível. Mas prefiro vê-Ia em segurança a caminho.

Mariko continuou em português: — Agora tenho que ir, Anjin-san. O senhor me dá licença?

— Acompanho-a até o portão.

— Não, por favor, olhe daqui. O senhor e o capitão podem olhar daqui, neh?

— Naturalmente — disse Blackthorne no mesmo instante, compreendendo. — Vá com Deus.

— Você também — retrucou ela em latim.

Ele ficou junto ao parapeito. Enquanto esperava, a luz do sol incidiu sobre o adro, expulsando as sombras. Mariko apareceu lá embaixo. Viu-a saudar Kiri e Yoshinaka e conversarem os três, sem cinzentos inimigos por perto. Depois se curvaram. Ela levantou os olhos para ele, e acenou alegremente. Ele correspondeu. Os portões foram puxados para os lados e, com Chimmoko alguns discretos passos atrás, ela saiu, acompanhada pela sua escolta de dez marrons. Os portões giraram nos gonzos mais uma vez. Por um momento ele a perdeu de vista. Quando reapareceu, cinqüenta cinzentos da multidão que se encontrava fora dos muros rodearam-na como outra guarda de honra. O cortejo marchou pela avenida sem sol. Ele a observou até que ela dobrasse a última esquina. Sem se voltar nem uma vez.

— Vou comer agora, capitão — disse ele. — Sim, naturalmente, Anjin-san.

Blackthorne dirigiu-se para os seus aposentos e comeu arroz, vegetais em conserva e pedacinhos de peixe cozido, seguidos de frutas de Kyushu — pequenas maçãs ácidas, abricós e ameixas de polpa dura. Saboreou as frutas amargas e o chá.

— Mais, Anjin-san? — perguntou a criada.

— Não, obrigado. — Ofereceu frutas aos guardas, que aceitaram agradecidos, e quando terminaram ele voltou às ensolaradas ameias. Teria gostado de examinar a escorva de sua pistola escondida, mas achou melhor não chamar atenção para a arma. Examinara-a uma vez, durante a noite, da melhor maneira que pudera, sob o mosquiteiro, sob o lençol. Mas, sem ver realmente, não podia ter certeza quanto à bucha ou à pederneira.

Não há mais nada que você possa fazer, pensou. É um títere. Seja paciente, Anjin-san, o seu turno termina ao meio-dia. Avaliou a altura do sol. Deve ser o começo do período de duas horas da Cobra. Depois da Cobra vem o Cavalo. No meio da hora do Cavalo é pleno meio-dia.

Sinos nos templos por todo o castelo e a cidade badalaram o início da Cobra e ele ficou contente com a própria exatidão. Notou uma pedrinha no chão do parapeito. Foi até ela, pegou-a e colocou-a cuidadosamente numa saliência de uma seteira ao sol, depois recostou-se, apoiou os pés confortavelmente, e pôs-se a contemplá-la.

Os cinzentos observavam cada movimento seu. O capitão franziu o cenho. Depois de algum tempo, disse: — Anjin-san, qual é o significado da pedra?

— Por favor?

— A pedra. Por que a pedra, Anjin-san? — Ah! Observo a pedra crescer.

— Oh, desculpe. Compreendo. Por favor, perdoe-me por tê-lo perturbado.

Blackthorne riu consigo mesmo e voltou a fixar o olhar na pedra. — Cresça, sua bastarda — disse. Mas por mais que imprecasse, ordenasse ou bajulasse, ela não crescia.

Você realmente espera ver uma rocha crescer? perguntou-se. Não, claro que não, mas isso passa o tempo e gera tranqüilidade. Você não pode ter wa suficiente. Neh?

Iiiiiih, de onde virá o próximo ataque? Não há defesa contra um assassino se o assassino estiver preparado para morrer. Há?

Rodrigues examinou a escorva de uns mosquetes que pegara no cavalete ao lado do canhão de popa. Achou que a pederneira estava usada, portanto perigosa. Sem uma palavra, jogou o mosquete em cima do atirador. O homem mal teve tempo de agarrá-lo antes que a coronha lhe atingisse o rosto.

— Nossa Senhora, senhor piloto — exclamou o homem —, não há necessidade...

— Ouça, seu bosta sem mãe, da próxima vez que eu encontrar alguma coisa errada num mosquete ou canhão durante o seu turno, você vai levar cinqüenta chicotadas e perder a paga de três meses. Contramestre!

— Sim, piloto? — Pesaro, o contramestre, aproximou mais o seu corpanzil arfante e fez uma carranca para o jovem atirador. — Pegue os dois turnos! Examine cada mosquete e canhão, tudo. Só Deus sabe quanto vamos precisar deles.

— Providenciarei, piloto. — O contramestre voltou-se para o atirador. — Vou mijar no seu grogue desta noite, Gomez, por todo o trabalho extra, e é melhor que você o lamba com um sorriso. Ponha-se ao trabalho!

Havia oito pequenos canhões a meia-nau no convés principal, quatro a bombordo, quatro a estibordo e um morteiro de proa. O suficiente para rechaçar quaisquer piratas sem canhões, mas não o suficiente para enfrentar um ataque. A pequena fragata tinha dois mastros e chamava-se Santa Luz.

Rodrigues esperou até que os tripulantes estivessem realizando suas tarefas, depois deu-lhes as costas e se debruçou na amurada. O castelo cintilava fracamente ao sol, a cor de estanho envelhecido, exceto pelo torreão com seus muros brancos e azuis e telhados dourados. Ele cuspiu na água e observou a saliva para ver se chegava aos pilares do ancoradouro, como esperava, ou se caía no mar. Caiu no mar. — Merda — murmurou para ninguém, desejando estar com a sua própria fragata, a Santa Maria, sob o seu comando bem naquele momento. Maldito azar que ela esteja em Macau bem quando precisamos dela.

— Qual é o problema, capitão-mor? — perguntara ele alguns dias antes em Nagasaki, quando fora arrancado da sua cama quente, na sua casa que tinha vista para a cidade e a enseada.

— Tenho que ir a Osaka imediatamente — dissera Ferreira, emplumado e arrogante como um galo de briga, mesmo àquela hora matinal. — Chegou uma mensagem urgente de Dell'Aqua. — Qual é o problema agora?

— Ele não disse, só que era vital para o futuro do Navio Negro.

— Nossa Senhora, qual é a brincadeira de mau gosto que estão tramando agora? O que é vital? Nosso navio está tão sólido quanto qualquer navio ao mar, o casco está limpo e o cordame perfeito. O comércio vai melhor do que jamais imaginamos e no prazo previsto, os macacos estão se comportando, o maldito Harima está confiante e... — Parou quando a idéia lhe explodiu na cabeça. — O Inglês! Ele zarpou?

— Não sei, mas se tiver zarpado...

Rodrigues olhara boquiaberto para a entrada da grande enseada, como que esperando ver o Erasmus já a bloqueá-los, ostentando a odiada bandeira da Inglaterra, esperando ali como um cão raivoso até o dia em que eles tivessem que se pôr ao largo, dirigindo-se para Macau e depois para casa. — Jesus, mãe de Deus e todos os santos, não deixem isso acontecer!

— Qual é o nosso meio mais rápido? Uma lorcha?

— A Santa Luz, capitão-mor. Podemos zarpar em menos de uma hora. Ouça, o Inglês não pode fazer nada sem homens. Não se esqueça...

— Minha Nossa Senhora, ouça você! Ele sabe falar a algaravia deles, eh? Por que não poderia usar macacos, eh? Há japonas piratas suficientes para lhe dar vinte vezes uma tripulação.

— Sim, mas não atiradores e marinheiros, como ele precisaria. Ele não teve tempo suficiente para treinar japonas. No ano que vem talvez, mas não contra nós.

— Por que, em nome da Virgem e dos santos, os padres lhe deram um dicionário eu nunca entenderei. Bastardos intrometidos! Deviam estar possuídos pelo Diabo! É quase como se o Inglês fosse protegido pelo Diabo!

— Digo-lhe que ele é apenas esperto!

— Há muitos que estão aqui há vinte anos e não sabem falar uma palavra da algaravia dos japonas, mas o Inglês sabe, eh? Digo-lhe que ele entregou a alma a Satã e em troca é protegido por magia negra. De que outro modo você explicaria? Há quantos anos você vem tentando falar a língua deles e você até vive com uma japonesa? Leche, ele poderia facilmente usar piratas japonas.

— Não, capitão-mor, ele tem que conseguir homens aqui, estamos à sua espera e o senhor já colocou todos os suspeitos a ferros.

— Com vinte mil cruzados em prata e uma promessa sobre o Navio Negro, ele pode contratar todos os homens de que necessita, inclusive os carcereiros e a maldita cela em torno deles. Cabrón! Talvez consiga até comprar você também.

— Cuidado com a língua!

— Você é o espanhol mais sem mãe e sem leite que existe, Rodrigues! A culpa é sua que ele esteja vivo, você é responsável. Deixou-o escapar duas vezes! — O capitão-mor postou-se diante dele enfurecido. — Deveria tê-lo matado quando ele esteve em seu poder.

— Talvez, mas isso é espuma na esteira da minha vida, já ficou para trás — dissera Rodrigues asperamente. — Fui até lá para matá-lo quando pude.

— Matou?

— Eu lhe disse vinte vezes. O senhor não tem ouvidos! Ou é a bosta espanhola de sempre nas suas orelhas, assim como na sua boca! — A mão dele se estendera para a pistola e o capitão mor sacara a espada, então a assustada garota japonesa se colocara entre eles. — Pro favoo, Rod-san, no raivas — no discusson, pro favoo! Criston, pro favoo!

A cólera ofuscante se extinguira e Ferreira dissera: — Digo-lhe diante de Deus que o Inglês foi gerado pelo Demônio! Quase o matei e você a mim, Rodrigues. Vejo claramente agora. Ele colocou um feitiço em todos nós, particularmente em você!

Agora ao sol de Osaka, Rodrigues estendeu a mão até o crucifixo que usava ao pescoço e rezou uma prece desesperada para ser protegido de todos os feiticeiros e para sua alma imortal ser conservada a salvo de Satã.

O capitão-mor não tem razão? Essa não é a única resposta? raciocinou ele de novo, cheio de pressentimentos. A vida do Inglês é encantada. Agora é íntimo do arquidiabo Toranaga, conseguiu o seu navio de volta, o dinheiro de volta e wakos, a despeito de tudo, e realmente fala como um deles e isso é impossível tão depressa, mesmo com o dicionário, mas ele conseguiu o dicionário e uma ajuda inestimável. Jesus Deus e Nossa Senhora, tirem o mau-olhado de cima de mim!

— Por que deu o dicionário ao Inglês, padre? — perguntara ele a Alvito em Mishima. — Certamente deveria ter adiado isso. — Sim, Rodrigues — confidenciara-lhe o Padre Alvito —, e eu não precisava ter me desviado do meu caminho para ajudá-lo. Mas estou convencido de que existe uma chance de convertê-lo. Tenho certeza. Toranaga está liquidado agora... É apenas um homem e uma alma. Tenho que tentar salvá-lo.

Padres, pensou Rodrigues. Leche em todos os padres. Mas não em Dell'Aqua e Alvito. Oh, minha Nossa Senhora, peço desculpas por todos os meus maus pensamentos sobre ele e o Padre Alvito. Perdoe-me e destrua o Inglês de algum modo antes que eu o tenha sob as minhas vistas. Não desejo matá-lo por causa do meu voto sagrado, embora, diante da Senhora, eu saiba que ele deve morrer depressa.

O timoneiro em serviço virou a ampulheta e tocou oito badaladas. Era pleno meio-dia.


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