CAPÍTULO 43


Toranaga observou o padre alto aproximando-se através da clareira, a luz bruxuleante dos archotes fazendo o rosto enxuto mais severo do que o habitual, acima do negrume da barba. O hábito budista do padre era laranja e elegante, e um rosário e uma cruz pendiam-lhe da cintura.

A dez passos de distância, Alvito parou, ajoelhou-se e curvou-se respeitosamente, dando início às formalidades costumeiras.

Toranaga estava sentado sozinho sobre o estrado, guardas num semicírculo à sua volta, mas à distância. Apenas Blackthorne estava perto, indolentemente recostado à plataforma, conforme lhe fora ordenado, os olhos cravados no padre. Alvito não pareceu notá-lo.

— É bom vê-lo, senhor — disse o padre, quando foi polido fazer isso.

— Vê-lo, também, Tsukku-san. — Toranaga fez sinal ao padre que se pusesse confortável sobre a almofada que fora colocada sobre o tatami, no chão, diante da plataforma. — Faz muito tempo desde que o vi pela última vez.

— Sim, senhor, há muito o que contar. — Alvito estava profundamente consciente de que a almofada estava sobre a terra e não sobre o estrado. Além disso, estava agudamente consciente das espadas de samurai que Blackthorne agora usava tão perto de Toranaga e do modo negligente como se portava. — Trago uma mensagem confidencial do meu superior, o padre-inspetor, que o saúda com deferência.

— Obrigado. Mas primeiro fale-me de você.

— Ah, senhor — disse Alvito, sabendo que Toranaga era perspicaz demais para não ter notado o remorso que o atormentava, por mais que ele tivesse tentado dissimular. — Esta noite estou consciente demais dos meus próprios fracassos. Esta noite eu gostaria de poder renunciar aos meus deveres terrenos e ir para um retiro orar, implorar pelo favor de Deus. — Ele se sentia envergonhado pela própria falta de humildade. Embora o pecado de José tivesse sido terrível, Alvito agira com ódio, raiva e estupidez. Era culpa sua que uma alma tivesse sido proscrita, se perdesse para sempre. — Nosso Senhor uma vez disse: "Por favor, Pai, afasta de mim esse cálice". Mas mesmo ele teve que reter o cálice. Nós, no mundo, temos que tentar seguir-lhe os passos do melhor modo que pudermos. Por favor, desculpe-me por permitir que o meu problema se mostre.

— Qual foi o seu cálice, amigo velho?

Alvito contou-lhe. Sabia que não havia motivo para esconder os fatos, pois naturalmente Toranaga os ouviria muito em breve, se já não os conhecesse, e era muito melhor ouvir a verdade do que uma versão deturpada. — É tristíssimo perder um irmão, terrível fazer um proscrito, por mais terrível que tenha sido o crime. Eu deveria ter sido mais paciente. A culpa foi minha.

— Onde está ele agora?

— Não sei, senhor.

Toranaga chamou um guarda. — Encontre o cristão renegado, e traga-o a mim ao meio-dia de amanhã. — O samurai afastou-se correndo.

— Rogo piedade para ele, senhor — disse Alvito rapidamente, falando com sinceridade. Mas sabia que qualquer coisa que dissesse faria pouco para dissuadir Toranaga de uma trilha já escolhida. Novamente teve vontade de que a Companhia tivesse o seu próprio braço secular, capacitado a deter e punir os apóstatas, como por toda parte no resto do mundo. Recomendara reiteradamente que isso fosse criado, mas a idéia fora sempre rejeitada, ali no Japão, e também em Roma, pelo geral da ordem. Mas sem o braço secular, pensou ele cansado, nunca seremos capazes de exercer uma disciplina real sobre nossos irmãos e o nosso rebanho.

— Por que não há padres japoneses ordenados na sua Companhia, Tsukku-san?

— Porque, senhor, nem um dos nossos acólitos está, ainda, suficientemente bem treinado. Por exemplo, o latim é uma necessidade absoluta, porque a nossa ordem exige que qualquer irmão viaje para qualquer lugar do mundo a qualquer momento, e infelizmente é uma língua muito difícil de aprender. Nenhum está treinado ainda, ou pronto.

Alvito acreditava nisso com todo o coração. Também era implacavelmente contra um clero jesuíta japonês ordenado, em oposição ao padre-inspetor. — Eminência — sempre dissera ele, suplico-lhe, não se deixe enganar pela aparência modesta e decorosa deles. Por baixo são características em que não se pode confiar, e o orgulho e a condição de japoneses sempre dominarão no final. Nunca serão servos autênticos da Companhia, ou soldados de confiança de Sua Santidade, o vigário de Cristo na terra, obedientes a ele apenas. Nunca.

Alvito relanceou o olhar momentaneamente para Blackthorne, depois olhou de novo para Toranaga, que disse: — Mas dois ou três desses padres aprendizes falam latim, neh, e português? É verdade o que o homem disse, neh? Por que eles não foram escolhidos?

— Sinto muito, mas o geral da nossa Companhia não os considera suficientemente preparados. Talvez a trágica queda de José seja um exemplo.

— É sério quebrar um juramento solene — disse Toranaga. Lembrou-se do ano em que os três meninos haviam zarpado de Nagasaki, num Navio Negro, para serem festejados na corte do rei espanhol e na corte do sumo-sacerdote dos cristãos, o mesmo ano em que Goroda fora assassinado. Nove anos depois regressaram, o tempo todo cuidadosamente controlados. Tinham partido como ingênuos e jovens cristãos fanáticos, e regressado igualmente tacanhos e quase tão mal informados como quando partiram. Desperdício estúpido, pensou Toranaga, desperdício de uma oportunidade incrível, de que Goroda se recusou a tirar vantagem, por mais que tenha sido aconselhado a fazer isso.

— Não, Tora-san, precisamos dos cristãos contra os budistas — dissera Goroda. — Muitos sacerdotes e monges budistas são soldados, neh? A maioria deles. Os cristãos não, neh? Deixemos o Padre Gigante ter os três jovens que ele quer, são apenas cabeças ocas de Kyushu, neh? Digo-lhe que estimule os cristãos. Não me perturbe com um plano de dez anos, mas queime cada mosteiro budista ao alcance. Budistas são como moscas sobre carniça, e os cristãos nada além de um saco de peidos.

Agora não são, pensou Toranaga com irritação crescente Agora são vespões.

— Sim — disse alto. — É muito sério quebrar um juramento, gritar e perturbar a harmonia de uma hospedaria.

— Por favor, desculpe-me, senhor, e perdoe-me por mencionar os meus problemas. Obrigado por ter ouvido. Como sempre, o seu interesse me faz sentir melhor. Posso ser autorizado a saudar o piloto?

Toranaga assentiu.

— Devo cumprimentá-lo, piloto — disse Alvito em português. — Suas espadas lhe assentam bem.

— Obrigado, padre, estou aprendendo a usá-las — replicou Blackthorne. — Mas, sinto dizer, não sou muito bom com elas ainda. Continuarei usando pistolas, alfanjes ou canhões, quando tiver que combater.

— Rezo para que o senhor nunca mais precise combater, piloto, e que seus olhos se abram para a infinita mercê de Deus.

— Os meus estão abertos. Os seus é que estão enevoados.

— Pela salvação da sua alma, piloto, conserve os olhos abertos, e a mente também. Talvez o senhor possa se enganar. Ainda assim, devo agradecer-lhe por haver salvado a vida do Senhor Toranaga.

— Quem lhe contou isso?

Alvito não respondeu. Voltou-se para Toranaga.

— O que foi dito? — perguntou Toranaga, rompendo o silêncio.

Alvito contou-lhe, acrescentando: — Embora ele seja o inimigo da minha fé e um pirata, estou contente de que o tenha salvado, senhor: Deus se move por caminhos misteriosos. O senhor o honrou grandemente fazendo-o samurai.

— Ele também é hatamoto. — Toranaga ficou satisfeito com a fugaz surpresa do padre. — Trouxe o dicionário?

— Sim, senhor, com vários dos mapas que o senhor queria, mostrando algumas das bases portuguesas desde Goa. O livro se encontra na minha bagagem. Posso mandar alguém buscá-lo, ou posso dá-lo pessoalmente a ele mais tarde?

— Dê-o a ele mais tarde. Esta noite, ou amanhã. Também trouxe o relatório?

— Sobre as supostas armas que se acredita tenhamos trazido de Macau? O padre-inspetor o está preparando, senhor.

— E as quantidades de mercenários japoneses utilizados em cada uma das suas novas bases?

— O padre-inspetor solicitou um relatório atualizado sobre todos eles, senhor, que lhe entregará assim que estejam completos.

— Bom. Agora conte-me como soube da minha salvação.

— Dificilmente acontece alguma coisa a Toranaga-noh-Minowara que não se torne assunto de boato e lenda. Vindo de Mishima, ouvimos dizer que o senhor quase tinha sido engolido por um terremoto, mas que o Bárbaro Dourado o havia puxado para fora. Além disso, que o senhor havia feito o mesmo por ele e por uma dama ... presumo que seja a Senhora Mariko?

Toranaga assentiu brevemente. — Sim. Ela está aqui em Yokosé. — Pensou um momento, depois disse: — Amanhã ela gostaria de se confessar, de acordo com os seus costumes. Mas apenas as coisas que sejam não-políticas. Eu imaginaria que isso exclui tudo o que se refira a mim, e aos meus vários hatamotos, neh? Também expliquei isso a ela.

Alvito curvou-se, compreendendo. — Com a sua permissão, eu poderia dizer missa para todos os cristãos aqui, senhor? Seria muito discreta, naturalmente. Amanhã?

— Considerarei isso. — Toranaga continuou a falar sobre assuntos inconseqüentes algum tempo, depois disse: — Tem uma mensagem para mim? Do seu padre-chefe?

— Com humildade, senhor, rogo para lhe dizer que é uma mensagem particular.

Toranaga fingiu pensar nisso, embora tivesse determinado com exatidão como o encontro se processaria e já tivesse dado ao Anjin-san instruções específicas de como agir e o que dizer. — Muito bem. — Voltou-se para Blackthorne: — Anjin-san, pode ir agora, conversaremos mais tarde.

— Sim, senhor — retrucou Blackthorne. — Desculpe, o Navio Negro. Chegar Nagasaki?

— Ah, sim, obrigado — replicou Toranaga, satisfeito que a pergunta de Anjin-san não tivesse soado ensaiada. — Bem, Tsukku-san, ele já atracou?

Alvito ficou desconcertado com o japonês de Blackthorne e grandemente perturbado com a questão. — Sim, senhor. Atracou há catorze dias.

— Ah, c orze? — disse Toranaga. — Compreende, Anjin-san?

— Sim. Obrigado.

— Bom. Mais alguma coisa você pode perguntar ao Tsukkusan mais tarde, neh?

— Sim, senhor. Por favor, com licença. — Blackthorne levantou-se, curvou-se e saiu calmamente.

Toranaga observou-o afastando-se. — Um homem muito interessante... para um pirata. Agora, me conte primeiro sobre o Navio Negro.

— Chegou em segurança, senhor, com a maior carga de seda que jamais existiu. — Alvito tentou soar entusiasmado. — O acordo feito entre os senhores Harima, Kiyama, Onoshi e o senhor está em vigor. Por esta época, no próximo ano, o seu tesouro estará mais rico com dezenas de milhares de kobans. A qualidade das sedas é a melhor, senhor. Trouxe uma cópia da declaração para o seu mestre quarteleiro. O Capitão-Mor Ferreira envia-lhe os seus respeitos, esperando vê-lo pessoalmente em breve. Foi essa a razão do meu atraso em vir vê-lo. O inspetor geral me mandou às pressas de Osaka a Nagasaki, para providenciar que tudo fosse perfeito. Exatamente quando eu estava saindo de Nagasaki, ouvimos dizer que o senhor partira de Yedo, rumando para Izu, por isso vim para cá tão rápido quanto possível, de navio até o Porto Nimazu, com um dos nossos cúteres mais velozes, depois por terra. Em Mishima, encontrei o Senhor Zataki e pedi permissão para juntar-me a ele.

— Seu navio ainda está em Nimazu?

— Sim, senhor. Vai esperar por mim lá.

— Bom. — Por um momento Toranaga se perguntou se mandaria ou não Mariko para Osaka naquele navio, depois resolveu tratar do assunto mais tarde. — Por favor, dê a declaração ao mestre quarteleiro esta noite.

— Sim, senhor.

— E o acordo sobre a carga deste ano está selado? — Sim. Absolutamente.

— Bom. Agora a outra parte. A parte importante.

As mãos de Alvito ficaram secas. — Nem o Senhor Kiyama nem o Senhor Onoshi concordarão em desertar o General Ishido. Sinto muito. Não concordarão em se colocar sob a sua bandeira agora, apesar da nossa sugestão mais intensa.

A voz de Toranaga tornou-se baixa e cruel. — Já lhe assinalei que exijo mais que sugestões!

— Sinto muito trazer más notícias quanto a esta parte, senhor, mas nenhum deles concordaria em mudar de idéias publicamente a...

— Ah, publicamente, você diz? E em particular... secretamente?

— Em particular eles ficaram tão inflexíveis quanto pub... — Você conversou com eles separadamente ou juntos?

— Naturalmente juntos e em separado, muito confidencialmente, mas nada do que sugerimos...

— Você apenas "sugeriu" um rumo de ação? Por que não lhes deu ordens?

— E como o padre-inspetor disse, senhor, não podemos dar ordens a qualquer daimio ou a qualquer...

— Ah, mas você pode dar ordens a um dos seus irmãos, neh? Sim, senhor.

Você ameaçou torná-los proscritos também? Não, senhor. Por quê? Porque não cometeram pecado mortal — disse Alvito com firmeza, conforme havia combinado com Dell'Aqua, mas o seu coração batia acelerado agora, porque o Senhor Harima, que legalmente possuía Nagasaki, lhes contara em particular que toda a sua imensa riqueza e influência iriam para o lado de Ishido. — Por favor, desculpe-me, senhor, mas não faço regras divinas, assim como o senhor não fez o código do bushido, o Caminho do Guerreiro. Nós, nós temos que nos sujeitar ao que...

— Você baniu um pobre imbecil por um ato natural como "travesseirar", mas quando dois dos seus convertidos se comportam de modo antinatural, sim, até traiçoeiramente, quando eu busco o seu auxílio, o seu auxílio urgente, e sou seu amigo, você faz apenas "sugestões". Você compreende a seriedade disso, neh?

— Sinto muito, senhor. Por favor, desculpe-me, mas...

— Talvez eu não o desculpe, Tsukku-san. Foi dito antes: agora todo mundo tem que escolher um lado — disse Toranaga.

— Claro que estamos do seu lado, senhor. Mas não podemos ordenar ao Senhor Kiyama ou ao Senhor Onoshi que façam qualquer coisa...

— Felizmente eu posso dar ordens ao meu cristão.

— Senhor?

— Posso ordenar e o Anjin-san estará livre. Com o navio dele. Com os canhões dele.

— Tenha cuidado com ele, senhor. O piloto é diabolicamente inteligente, mas é um herege, um pirata e não deve merecer conf...

— Aqui o Anjin-san é samurai e hatamoto. Ao mar talvez seja um pirata. Se é um pirata, imagino que atrairá muitos outros corsários e wakos a si, muitos deles. O que um estrangeiro faz em mar aberto é problema dele, neh? Nossa política foi sempre essa. Neh?

Alvito conservou-se em silêncio e tentou fazer o cérebro funcionar. Ninguém planejara que o inglês se tornaria tão próximo de Toranaga.

— Esses dois daimios cristãos não farão compromisso algum, nem mesmo um compromisso secreto?

— Não, senhor. Tentamos at... — Nenhuma concessão, nenhuma? — Não, senhor...

— Nenhum trato, nenhum acordo, nenhum compromisso, nada?

— Não, senhor. Tentamos todos os induzimentos e toda persuasão. Por favor, acredite-me. — Alvito sabia que estava na armadilha e parte do seu desespero se mostrou. — Se fosse eu, sim, eu os ameaçaria com excomunhão, embora fosse uma falsa ameaça porque eu nunca a concretizaria, não a menos que eles cometessem um pecado mortal e não confessassem ou se arrependessem e submetessem. Mas uma ameaça por causa de um ganho temporal seria um grande erro de minha parte, senhor, um pecado mortal. Eu arriscaria a danação eterna.

— Está dizendo que, se eles pecassem contra o seu credo, você os baniria?

— Sim. Mas não estou sugerindo que isso poderia ser usado para trazê-los para o seu lado, senhor. Por favor, desculpe-me, mas eles... eles estão totalmente contra o senhor no momento. Sinto muito, mas essa é a verdade. Ambos deixaram isso muito claro, juntos e em particular. Diante de Deus, rezo para que eles mudem de idéia. Nós, o padre-inspetor e eu, demos ao senhor a nossa palavra de que tentaríamos, diante de Deus. Cumprimos a nossa promessa. Diante de Deus, falhamos.

— Então perderei — disse Toranaga. — Você sabe disso, não sabe? Se eles continuarem aliados a Ishido, todos os daimios cristãos se colocarão do lado deles. Então tenho que perder. Vinte samurais contra cada um dos meus, neh?

— Sim.

— Qual é o plano deles? Quando me atacarão? — Não sei, senhor.

— Se soubesse me contaria? — Sim ... sim, contaria.

Duvido, pensou Toranaga, e desviou o olhar para a noite, o fardo da preocupação quase a esmagá-lo. Será que afinal de contas terá que ser Céu Carmesim, perguntou a si mesmo, desamparado. O estúpido e fadado ao fracasso ataque a Kyoto?

Odiava a gaiola vergonhosa dentro da qual se encontrava. Como o táicum e Goroda antes dele, tinha que tolerar os padres cristãos, porque eram tão inseparáveis dos mercadores portugueses quanto as moscas dos cavalos, exercendo um absoluto poder temporal e espiritual sobre o seu obstinado rebanho. Sem os padres não havia comércio. Sua boa vontade como negociadores e intermediários na operação do Navio Negro era vital, porque falavam a língua e contavam com a confiança de ambos os lados, e, se alguma vez os padres viessem a ser completamente proibidos no império, todos os bárbaros obedientemente partiriam, para nunca mais voltar. Toranaga se lembrava da vez em que o táicum tentara, se livrar dos padres e ao mesmo tempo encorajar o comércio. Durante dois anos não houvera Navio Negro. Os espiões relataram como o chefe gigante dos padres, postado como uma aranha negra venenosa em Macau, ordenara que não houvesse mais comércio como represália aos editos de expulsão do táicum, sabendo que o táicum acabaria se humilhando. No terceiro ano ele se curvara ao inevitável e convidara os padres a voltar, fazendo vista grossa aos seus próprios editos e à traição e rebelião que os padres haviam patrocinado. Não há escapatória dessa realidade, pensou Toranaga. Nenhuma. Não acredito no que diz o Anjin-san — que o comércio é tão essencial para os bárbaros quanto é para nós, que a sua cobiça os fará comerciar, não importa o que façamos aos padres. O risco é grande demais para fazer uma experiência e não há tempo e eu não tenho o poder. Experimentamos uma vez e falhamos. Quem sabe? Talvez os padres pudessem esperar dez anos; são inclementes o suficiente. Se os padres ordenarem que não haja comércio, creio que não haverá. Não poderíamos esperar dez anos. Nem cinco. E se expulsarmos todos os bárbaros, deve levar vinte anos para que o bárbaro inglês preencha a lacuna, se é que o Anjin-san está falando a verdade integral e se — e esse é um "se" imenso — os chineses concordassem em comerciar com eles, contra os bárbaros meridionais. Não acredito que os chineses mudassem seu padrão. Nunca fizeram isso. Vinte anos é tempo demais. Dez anos é tempo demais.

Não há escapatória dessa realidade. Ou da pior realidade de todas, o espectro que secretamente petrificava Goroda e o táicum e agora está empinando a cabeça asquerosa de novo: que os fanáticos e destemidos padres cristãos, se pressionados demais, colocariam toda a sua influência, o poder de comércio, o poder marítimo, por trás de um dos grandes daimios cristãos. Depois, engendrariam uma força de invasão vestida de ferro, conquistadores igualmente fanáticos, armados com os mosquetes mais modernos para apoiar esse daimio cristão — como quase fizeram na última vez. Por si mesmos, qualquer número de bárbaros invasores e seus padres não são nada contra as nossas esmagadoras forças conjuntas. Nós esmagamos a hordas de Kublai-cã e podemos lidar com qualquer invasor. Mas aliados a um dos nossos, um grande daimio cristão com exércitos de samurais, e havendo guerras civis por todo o reino, isso poderia, finalmente, dar a esse daimio o poder absoluto sobre todos nós.

Kiyama ou Onoshi? É óbvio, agora, que tem que ser o esquema do padre. O momento é perfeito. Mas que daimio?

Ambos, inicialmente, ajudados por Harima de Nagasaki. Mas quem portará a bandeira final? Kiyama — porque Onoshi, o leproso, não vai durar muito nesta terra e porque a óbvia recompensa a Onoshi por apoiar seu odiado inimigo e rival, Kiyama, seria uma garantida, indolor e eterna vida no paraíso cristão, com um assento permanente à direita do Deus cristão.

Entre si, agora, eles têm quatrocentos mil samurais. Sua base é Kyushu e essa ilha está a salvo do meu alcance. Juntos, aqueles dois poderiam subjugar facilmente a ilha inteira, e depois teriam tropas ilimitadas, provisões ilimitadas, todos os navios necessários a uma invasão, toda a seda, e Nagasaki. No país inteiro há, talvez, outros quinhentos ou seiscentos mil cristãos. Desses, mais da metade — os convertidos pelos jesuítas — são samurais, todos lindamente misturados às forças de todos os daimios, uma vasta rede de traidores em potencial, espiões ou assassinos — caso os padres assim ordenassem. E por que não o fariam? Conseguiriam aquilo que desejam acima da própria vida: poder absoluto sobre todas as nossas almas, conseqüentemente sobre toda esta Terra dos Deuses — herdar a nossa terra e tudo o que ela contém —, exatamente conforme o Anjin-san explicou que já aconteceu cinqüenta vezes nesse Novo Mundo deles... Convertem um rei, depois o usam contra a sua própria gente, até que o país inteiro seja engolido. É tão fácil para eles, esse minúsculo bando de padres bárbaros, conquistar-nos.

Quantos deles existem no Japão? Cinqüenta ou sessenta? Mas têm o poder. E acreditam. Estão preparados para morrer de bom grado pelas próprias crenças, com orgulho e bravura, com o nome do seu Deus nos lábios. Vimos isso em Nagasaki quando a experiência do táicum provou ser um erro desastroso. Nenhum dos padres abjurou, dezenas de milhares testemunharam as mortes na fogueira, dezenas de milhares foram convertidos, e esse "martírio" deu à religião cristã um prestígio imenso, de que os padres cristãos, desde então, vêm se nutrindo.

A mim, os padres falharam, mas isso não os dissuade do seu curso implacável. Isso é realidade, também.

Portanto é Kiyama.

O plano já estará estabelecido, com Ishido, que é um simplório, e a Senhora Ochiba e Yaemon também? Harima já aderiu a eles secretamente? Devo atirar o Anjin-san contra o Navio Negro e Nagasaki imediatamente?

O que devo fazer?

Nada além do habitual. Ser paciente, procurar a harmonia, pôr de lado todas as preocupações sobre Eu ou Você, Vida ou Morte, Alívio ou Pós-Vida, Agora ou Depois, e pôr em funcionamento um novo plano. Que plano? Queria ele gritar em desespero. Não há um sequer!

— Entristece-me que aqueles dois fiquem com o verdadeiro inimigo.

— Juro que tentamos, senhor — Alvito o observava compadecidamente, vendo-lhe a opressão do espírito.

— Sim. Acredito nisso. Acredito que você e o padre-inspetor mantiveram a sua promessa solene, por isso manterei a minha. Podem começar a construir o seu templo em Yedo imediatamente. O terreno já foi designado. Não posso proibir os padres, os outros, cabeludos, de entrar no império, mas pelo menos posso torná-los indesejados nos meus domínios. Os novos bárbaros serão igualmente indesejados, se jamais chegarem. Quanto ao Anjin-san... — Toranaga encolheu os ombros. — Mas quanto tempo isto tudo... bem, é karma, neh?

Alvito estava agradecendo a Deus com todo o fervor pela sua mercê e favor, com a inesperada moratória. — Obrigado, senhor — disse, quase incapaz de falar. — Sei que o senhor não se arrependerá. Rezo para que os seus inimigos se dispersem como cisco e que o senhor possa colher as recompensas do paraíso.

— Sinto muito pelas minhas palavras ásperas. Foram ditas pela cólera. Há tanto... — Toranaga levantou-se pesadamente. — Você tem a minha permissão para dizer o seu serviço amanhã, amigo velho.

— Obrigado, senhor — disse Alvito, curvando-se profundamente, com pena do homem normalmente majestoso. — Obrigado de todo o coração. Que a Divindade o abençoe e o ache na sua guarda.

Toranaga arrastou-se para a hospedaria, seus guardas seguindo-o — Naga-san!

— Sim, Pai — disse o jovem, acorrendo.

— Onde está a Senhora Mariko?

— Lá, senhor, com Buntaro-san. — Naga apontou para a pequena casa de chá iluminada com lanternas, dentro do cercado no jardim, os vultos indistintos lá dentro. — Devo interromper a cha-no-yu? — Uma cha-no-yu era uma cerimônia do chá formal, extremamente ritualizada.

— Não. Nunca se deve interferir nisso. Onde estão Omi e Yabu-san?

— Na hospedaria deles, senhor. — Naga indicou a construção baixa que se esparramava do outro lado do rio, perto da ribanceira oposta.

— Quem escolheu aquela?

— Eu, senhor. Por favor, desculpe-me, o senhor me pediu que encontrasse uma hospedaria para eles do outro lado da ponte. Compreendi mal?

— O Anjin-san?

— Está no seu quarto, senhor. Está esperando para o caso de o senhor querer vê-lo.

Novamente Toranaga meneou a cabeça. — Vê-lo-ei amanhã. — Após uma pausa, disse na mesma voz distraída: — Vou tomar um banho agora. Depois não quero ser incomodado até o amanhecer, exceto...

Naga esperava apreensivo, observando o pai fitar o vazio, grandemente desconcertado pela atitude dele. — Sente-se bem, Pai?

— O quê? Oh, sim... sim, estou bem. Por quê?

— Nada... por favor, desculpe-me. Ainda quer caçar ao amanhecer?

— Caçar? Ah, sim, é uma boa idéia. Obrigado por sugeri-la, sim, isso seria muito bom. Providencie. Bem. Boa noite... Ah, sim, o Tsukku-san tem a minha permissão para dizer uma missa particular amanhã. Todos os cristãos podem comparecer. Você também.

— Senhor?

— No primeiro dia do Ano Novo você se tornará cristão. — Eu!?

— Sim. De livre e espontânea vontade. Diga isso ao Tsukku-san em particular.

— Senhor?

Toranaga caiu em cima dele. — Ficou surdo? Já não compreende a coisa mais simples?

— Por favor, desculpe-me. Sim, Pai, compreendo.

— Bom. — Toranaga voltou à sua atitude distraída, depois se afastou, a guarda pessoal a reboque. Todos os samurais se curvaram rigidamente, mas ele não os notou.

Um oficial se aproximou de Naga, igualmente apreensivo. — O que há com o nosso senhor?

— Não sei, Yoshinawa-san. — Naga olhou para a clareira.

Alvito estava acabando de sair, rumando para a ponte, um único samurai a escoltá-lo. — Deve ter alguma coisa a ver com ele.

— Nunca vi o Senhor Toranaga caminhar tão pesadamente. Nunca. Dizem... dizem que o padre bárbaro é mágico, um bruxo. Deve ser, para falar a nossa língua tão bem, neh? Ele poderia ter posto um encantamento no nosso senhor?

— Não. Nunca. Não no meu pai.

— Os bárbaros também fazem a minha espinha tremer, Naga-san. Ouviu falar sobre a briga... Tsukku-san e seu bando berrando e discutindo como etas sem educação?

— Sim. Repugnante. Tenho certeza de que aquele homem deve ter destruído a harmonia do meu pai.

— Se me pedir, uma seta na garganta daquele padre pouparia o nosso amo de muitos problemas.

— Sim.

— Talvez devêssemos falar a Buntaro-san sobre o Senhor Toranaga? É o nosso oficial superior.

— Concordo... mas mais tarde. Meu pai disse claramente que eu não devia interromper a cha-no-yu. Esperarei até que termine.

Na paz e silêncio da pequena casa, Buntaro abriu com toda a delicadeza a pequena caixa de chá de louça, da dinastia T’ang, e, com cuidado igual, pegou a colher de bambu, iniciando a parte final da cerimônia. Habilmente tirou com a colher a quantidade exata de pó verde e colocou-o na xícara de porcelana sem asa. Um antigo caldeirão de ferro fundido cantava sobre o braseiro. Com a mesma graça tranqüila, Buntaro verteu a água borbuIhante na xícara, recolocou o caldeirão no tripé, depois gentilmente bateu o pó e a água com o batedor de bambu para misturar perfeitamente.

Juntou uma colherada de água fria, curvou-se para Mariko, ajoelhada à sua frente, e ofereceu a xícara. Ela se curvou e a pegou com requinte igual, admirando o líquido verde, e tomou três goles, descansou, depois sorveu de novo, terminando-o. Devolveu a xícara. Ele repetiu a simetria do preparo formal do chá e novamente lhe ofereceu. Ela lhe pediu que provasse o chá ele mesmo, conforme era esperado dela. Ele sorveu, depois mais uma vez, e terminou. Depois ele preparou uma terceira xícara, e uma quarta. A quinta foi polidamente recusada.

Com grande cuidado, ritualmente, ele lavou e enxugou a xícara, usando um pano de algodão exclusivo, e colocou os objetos em seus lugares. Curvou-se para ela e ela para ele. A chano-yu estava terminada.

Buntaro sentia-se contente por ter feito o melhor possível e por haver agora, pelo menos no momento, paz entre eles. Naquela tarde não houvera paz alguma.

Ele fora ao encontro do palanquim dela. Imediatamente, como sempre, sentira-se vulgar e tosco em contraste com a frágil perfeição da mulher — como um dos aipos peludos, selvagens, desprezados e bárbaros, que habitaram o país um dia, mas que agora tinham sido expulsos para o extremo-norte, para o outro lado dos estreitos, para a ilha inexplorada de Hokkaido. Todas as suas bem pensadas palavras o abandonaram e ele canhestramente a convidara à cha-no-yu, acrescentando: — Faz anos que nós... Nunca lhe ofereci uma, mas esta noite será conveniente. — Depois deixara escapar, sem ter a intenção de dizê-lo, sabendo que era estúpido, deselegante e um erro imenso: — O Senhor Toranaga disse que era tempo que conversássemos.

— Mas o senhor acha que não?

Apesar da sua determinação, ele corou e sua voz soou rascante. — Eu gostaria de que houvesse harmonia entre nós, sim, mais. Não mudei, neh?

— Naturalmente, senhor, por que deveria mudar? Se existe alguma falha, não cabe ao senhor mudar, mas a mim. E se existe alguma falha, é por minha causa, por favor, desculpe-me.

— Eu a desculparei — dissera ele, lá ao lado do palanquim, profundamente consciente de que estavam sendo observados, entre outros pelo Anjin-san e por Omi. Ela era tão amável, minúscula e singular, seu cabelo penteado para o alto, seus olhos baixos aparentemente tão modestos, e no entanto, para ele, agora, cheia do mesmo gelo negro que sempre o lançava a uma fúria cega, impotente, fazendo-o querer matar e gritar e mutilar e esmagar e comportar-se do modo como um samurai nunca deveria se comportar.

— Reservei a casa de chá para esta noite — disse-lhe ele. — Para esta noite, após a refeição noturna. Recebemos ordem de fazer a refeição noturna com o Senhor Toranaga. Eu ficaria honrado se você aceitasse o meu convite para depois.

— Sou eu quem fica honrada. — Ela se curvou e esperou com os mesmos olhos baixos, e ele teve vontade de socá-la no chão até a morte, depois mergulhar a faca em cruz no próprio ventre e deixar a dor eterna limpar-lhe o tormento da alma.

Ele a viu levantar os olhos na sua direção, perspicaz.

— Havia mais alguma coisa, senhor? — perguntou, muito suavemente.

O suor escorria pelas costas e pelas coxas dele, manchando-lhe o quimono, o peito doendo, assim como a cabeça. — Você vai... você vai ficar na hospedaria esta noite. — Depois se afastou e tomou cuidadosas disposições para o comboio de bagagem inteiro. Assim que pôde, passou seus deveres a Naga e se afastou com uma truculência simulada, em direção da margem do rio. Quando ficou sozinho, mergulhou nu na torrente, sem se preocupar com a própria segurança, e lutou com o rio até a cabeça clarear e a dor martelante desaparecer.

Deitara-se na margem, recompondo-se. Agora que ela aceitara, ele tinha que começar. Havia pouco tempo. Reunira as forças e caminhara de volta ao tosco portão do jardim que ficava dentro do jardim principal e permanecera ali algum tempo, repensando seu plano. Naquela noite queria que tudo fosse perfeito. Obviamente a cabana era imperfeita, assim como o jardim — uma grosseira tentativa provinciana de uma verdadeira casa de chá. Não importa, pensou ele, agora completamente absorto na sua tarefa, terá que servir. A noite ocultará muitas falhas e as luzes terão que criar a forma que falta.

Os criados já haviam trazido as coisas que ele ordenara mais cedo — tatamis, lâmpadas de cerâmica a óleo, e utensílios de limpeza —, as melhores de Yokosé, tudo muito novo, mas modesto, discreto e despretensioso.

Ele tirou o quimono, pousou as espadas, e começou a limpar. Primeiro a minúscula sala de recepção, a cozinha e a varanda. Depois o caminho sinuoso e as lajes assentadas no musgo, e finalmente as rochas e o jardim em torno. Ele lavou, varreu, escovou até que tudo estivesse imaculado, rebaixando-se à humilhação do trabalho manual que era o início da cha-no-yu, onde se exigia que o anfitrião sozinho deixasse tudo impecável. A primeira perfeição era a limpeza absoluta.

Pelo crepúsculo havia acabado a maior parte dos preparativos. Depois tomara um banho meticuloso, suportara a refeição noturna e o canto. Assim que pôde, trocara-se de novo, vestindo roupas mais escuras, e voltara correndo para o jardim. Trancara o portão. Primeiro colocara o pavio nas lâmpadas de óleo. Depois, cuidadosamente, borrifara água nas lajes e nas árvores — que agora estavam salpicadas aqui e ali com uma luz bruxuleante —, até que o minúsculo jardim se transformasse num mundo de fadas de gotas de orvalho dançando ao calor da brisa de verão. Reposicionara algumas lanternas. Finalmente satisfeito, destrancara o portão e se dirigira para o vestíbulo. Os pedaços de carvão cuidadosamente selecionados, que tinham sido meticulosamente colocados numa pirâmide sobre areia branca, ardiam corretamente. As flores pareciam corretas no takonoma. Mais uma vez ele limpara os utensílios já impecáveis. O caldeirão começara a cantar e ele se sentira satisfeito com o som que era enriquecido pelos pedacinhos de ferro que colocara tão diligentemente na base.

Ouviu os passos dela nas lajes, o som de suas mãos mergulhando ritualmente na cisterna de água fresca do rio e sendo secas. Três passos suaves subindo a varanda. Mais dois até a soleira acortinada. Até ela tinha que se curvar para atravessar a minúscula porta, construída deliberadamente pequena para deixar humilde todo mundo. Numa cha-no-yu todos eram iguais, anfitrião e convidado, o mais alto daimio e o mais simples samurai. Até um camponês, se fosse convidado.

Primeiro ela estudou o arranjo de flores do marido. Ele escolhera um único botão de rosa branca selvagem, pingara uma única pérola de água sobre a folha verde, e colocara-o sobre pedras vermelhas. O outono se aproxima, estava ele sugerindo com a flor, falando através da flor, não chore pelo outono, a época de morrer, quando a terra começa a dormir; desfrute do tempo de começar de novo e experimente o frio glorioso do ar outonal nesta noite de verão... logo a lágrima desaparecerá, e a rosa, apenas as pedras permanecerão — logo você e eu desapareceremos, e apenas as pedras permanecerão.

Ele a observou, esquecido de si, agora mergulhado no transe próximo que um mestre de chá às vezes tinha a boa fortuna de experimentar, completamente em harmonia com o ambiente que o cercava. Ela se curvou para a flor em homenagem, aproximou-se e ajoelhou-se diante dele. O seu quimono era marrom-escuro, um fio de ouro queimado nas costuras realçando-lhe a coluna branca do colo e o rosto; o obi era do mais escuro dos verdes, combinando com o sobquimono; o cabelo simples, natural, sem adornos.

— Seja bem-vinda — disse ele com uma mesura, começando o ritual.

A honra é minha — replicou ela, aceitando o seu papel.

Ele serviu o minúsculo repasto numa imaculada bandeja de laca, os pauzinhos colocados num lado, as fatias de peixe sobre o arroz que ele preparara, e para completar o efeito algumas flores campestres que ele encontrara perto da margem do rio, distribuídas num desarranjo perfeito. Quando ela terminou de comer e Buntaro, por sua vez, terminou de comer, ele ergueu a bandeja, cada movimento formalizado — para ser observado, avaliado, recordado — e levou-a através da porta baixa para a cozinha.

Então, sozinha, em repouso, Mariko olhou o fogo criticamente, as brasas numa montanha incandescente, sobre o mar de areia branca embaixo do tripé, seus ouvidos ouvindo o som sibilante do fogo, fundindo-se ao suspirar do caldeirão que chiava levemente e, da cozinha que não era visível, a sibilação de pano sobre a porcelana e água limpando o que já estava limpo. Depois seus olhos passearam pelas vigas entrelaçadas, pelos bambus e juncos que formavam o telhado. As sombras lançadas pelas poucas lâmpadas que ele colocara aparentemente ao acaso tornavam o pequeno grande, o insignificante raro, e o conjunto uma harmonia perfeita. Depois de ter visto tudo e avaliado a própria alma, Mariko voltou para o jardim, para a bacia rasa que, ao longo de eras, a natureza formara na rocha. Mais uma vez purificou as mãos e a boca com a água fria, fresca, enxugando-as numa nova toalha.

Quando ela se acomodara de novo em seu lugar, ele disse: — Talvez agora pudéssemos tomar chá?

— A honra seria minha. Mas, por favor, não se dê a tanto incômodo por minha causa.

— A honra é minha. Você é minha convidada.

Então ele a servira. E agora era o término.

Em meio ao silêncio, Mariko não se moveu um instante. Permaneceu na sua tranqüilidade, não querendo ainda reconhecer o fim nem perturbar a paz que a rodeava. Mas sentiu o vigor crescente nos olhos dele. A cha-no-yu estava encerrada. Agora a vida devia começar de novo.

— O senhor o fez perfeitamente — sussurrou ela, sua tristeza dominando-a. Uma lágrima deslizou-lhe dos olhos, e a sua queda arrancou o coração de Buntaro ao peito.

— Não... não. Por favor, desculpe-me... você é perfeita... foi comum — disse ele, desconcertado com um aplauso tão inesperado.

— Foi a melhor que jamais vi — disse ela, tocada pela total honestidade na voz dele.

— Não. Não, por favor, desculpe-me, se foi belo, foi por sua causa, Mariko-san. Foi apenas belo — você a tornou melhor.

— Para mim foi impecável. Tudo. Que triste que outros, mais dignos do que eu, também não pudessem tê-la presenciado! — Seus olhos reluziam à luz piscante.

— Você a presenciou. Isso é tudo. Era apenas para você. Outros não teriam compreendido.

Ela agora sentiu as lágrimas quentes nas faces. Normalmente se teria envergonhado delas, mas agora não a incomodaram. — Obrigada, como posso agradecer-lhe?

Ele pegou um galho de timo selvagem e, de dedos trêmulos, inclinou-se para a frente e gentilmente apanhou uma de suas lágrimas. Silenciosamente baixou os olhos para a lágrima e o raminho sumiu em contraste com o seu punho imenso. — O meu trabalho... qualquer trabalho... é inadequado diante da beleza disto. Obrigado.

Observou a lágrima na folha. Um pedaço de carvão tombou da montanha e, sem pensar, ele pegou as tenazes e recolocou-o. Algumas centelhas dançaram no ar, do topo da montanha, que se transformou num vulcão em erupção.

Ambos devanearam numa doce melancolia, reunidos pela simplicidade da lágrima única, contentes, juntos no silêncio, reunidos pela humildade, sabendo que o que fora dado fora retribuído em pureza.

Mais tarde ele disse: — Se o nosso dever não o proibisse, eu lhe pediria que se juntasse a mim na morte. Agora.

— Eu iria com o senhor. Contente — respondeu ela de imediato. — Vamos para a morte. Agora.

— Não podemos. Nosso dever é para com o Senhor Toranaga.

Ela tirou o estilete do obi e reverentemente colocou-o sobre o tatami. — Então, por favor, permita-me preparar o caminho. — Não. Isso seria falhar com o nosso dever.

— O que tem que ser, será. O senhor e eu não podemos decidir.

— Sim. Mas não podemos ir antes do nosso amo. Nem você nem eu. Ele necessita de cada vassalo digno de confiança por um pouco mais. Por favor, desculpe-me, devo proibi-lo.

— Eu ficaria satisfeita em ir esta noite. Estou preparada. Mais do que isso, desejo totalmente ir para o além. Sim. Minha alma está transbordando de alegria. — Um sorriso hesitante.

— Por favor, desculpe-me por ser egoísta. O senhor está perfeitamente certo sobre o nosso dever.

A lâmina afiada cintilava à luz das lâmpadas. Eles a observaram, perdidos em contemplação. Então ele quebrou o encanto.

— Por que Osaka, Mariko-san?

— Há coisas a serem feitas lá que apenas eu posso fazer.

O cenho dele aprofundou-se enquanto observava a luz de um pavio gotejante bater na lágrima e se refratar num bilhão de cores.

— Que coisas?

— Coisas que dizem respeito ao futuro da nossa casa e que devem ser feitas por mim.

— Nesse caso você deve ir. — Olhou-a inquisitivo. — Mas você sozinha?

— Sim. Desejo me certificar de que todos os arranjos de família estão perfeitos entre nós e o Senhor Kiyama para o casamento de Saruji. Dinheiro, dote, terras, e assim por diante. Há o feudo aumentado dele a formalizar. O Senhor Hiromatsu e o Senhor Toranaga exigem que isso seja feito. Eu sou a responsável pela casa.

— Sim — disse ele lentamente —, é seu dever. — Seus olhos encontraram os dela. — Se o Senhor Toranaga diz que você pode ir, então vá, mas não é provável que você tenha permissão para ficar lá. Ainda assim... deve voltar rapidamente. Muito rapidamente. Seria imprudente ficar em Osaka um momento além do necessário.

— Sim.

— Por mar seria mais rápido do que por terra. Mas você sempre detestou o mar.

— Ainda detesto.

— Você tem que estar lá logo?

— Não creio que meio mês ou um mês fizesse diferença. Talvez, não sei. Só sinto que devo ir imediatamente.

— Então deixaremos o momento e o assunto da ida ao Senhor Toranaga, se ele permitir que você vá. Com o Senhor Zataki aqui, e os dois pergaminhos, isso só pode significar a guerra. Ir será perigoso demais.

— Sim. Obrigada.

Contente de que aquilo estivesse terminado, ele olhou em torno na pequena sala, satisfeito, sem se preocupar agora com o fato de que sua feia corpulência dominava o espaço, cada uma das suas coxas mais vasta do que a cintura dela, seus braços mais grossos do que o pescoço dela. — Esta sala foi excelente, melhor do que me atrevi a esperar. Gostei de estar aqui. Fui lembrado de novo de que um corpo não é nada além de uma cabana na selva. Obrigado a você por ter estado aqui. Estou muito contente de que tenha vindo a Yokosé, Mariko-san. Não fosse por sua causa, eu nunca teria dado uma cha-no-yu aqui e nunca me teria sentido tão unificado com a eternidade.

Ela hesitou, depois cautelosamente pegou a caixa de chá T'ang. Era um pote simples, com tampa, sem ornamentos. O esmalte laranja-amarronzado estava gasto, deixando uma borda desigual de porcelana nua na base, dramatizando a importância do oleiro e sua relutância em dissimular a simplicidade do seu material. Buntaro a comprara de Sen-Nakada, o mais famoso mestre de chá que jamais existira, por vinte mil kokus. — E tão bonita — murmurou ela, apreciando-lhe o toque. — Tão perfeita para a cerimônia.

— Sim.

— O senhor foi realmente um mestre esta noite, Buntaro-san. Deu-me muita felicidade. — A sua voz era baixa e intensa, e ela se inclinou um pouco para a frente. — Tudo foi perfeito para mim, o jardim e como o senhor usou talento para superar as falhas com luz e sombra. E isto — tocou novamente a caixa de chá. — Tudo perfeito, até o símbolo que o senhor escreveu na toalha, ai, afeição. Para mim, esta noite, afeição foi a palavra perfeita. — Novamente as lágrimas lhe escorreram pelas faces... — Por favor, desculpe-me — disse, enxugando-as.

Ele se curvou, embaraçado com tal elogio. Para dissimular, começou a envolver a caixa nos abafadores de seda. Quando terminou, colocou-a noutra caixa e pousou-a cuidadosamente diante dela. — Mariko-san, se a nossa casa tem problemas de dinheiro, pegue isto. Venda.

— Nunca! — Era a única posse, além das espadas e do arco, que ele prezava na vida. — Isso seria a última coisa que eu venderia.

— Por favor, desculpe-me, mas se pagar aos meus vassalos é um problema, pegue isto.

— Há o suficiente para todos eles, com cuidado. E as melhores armas e os melhores cavalos. Nisso nossa casa é forte. Não, Buntaro-san, a T'ang é sua.

— Não nos resta muito tempo. A quem eu deveria legá-la? Saruji?

Ela olhou para as brasas e o fogo consumindo o vulcão, humilhando-o. — Não. Não até que ele seja um mestre de chá digno, igual ao pai. Aconselho-o a deixar a T'ang ao Senhor Toranaga, que a merece, e pedir a ele que, antes de morrer, julgue se o nosso filho merecerá recebe-la.

— E se o Senhor Toranaga perder e morrer antes do inverno, como estou certo de que perderá?

— O quê?

— Aqui, em particular, posso lhe dizer calmamente essa verdade, sem fingimento. Não é uma parte importante da cha-no-yu não se fingir? Sim, ele vai perder, a menos que consiga Kiyama e Onoshi — e Zataki.

— Nesse caso, determine no seu testamento que a T'ang deve ser enviada com um cortejo a Sua Alteza Imperial, solicitando-lhe que a aceite. Certamente a T'ang merece a divindade.

— Sim. Essa seria a escolha perfeita.— Ele estudou a faca, depois acrescentou tristemente: — Ah, Mariko-san, não há nada a se fazer pelo Senhor Toranaga. Seu karma está escrito. Ele vence ou perde. E se vencer ou perder, haverá uma grande matança.

— Sim.

Meditativo, ele desviou os olhos da faca e contemplou o ramo de timo selvagem, a lágrima ainda pura. Mais tarde, disse: — Se ele perder, antes que eu morra, ou que seja morto, eu ou um dos meus homens matará o Anjin-san.

O rosto dela ficou etéreo contra a escuridão. A brisa suave moveu-lhe alguns fios de cabelo, fazendo-a parecer-se ainda mais com uma estátua.

— Por favor, desculpe-me, posso perguntar por quê?

— Ele é perigoso demais para continuar vivo. Seu conhecimento, suas idéias, que ouvi até de quinta mão... Ele infectará o reino, até o Senhor Yaemon. O Senhor Toranaga já está sob o encantamento dele, neh?

— O Senhor Toranaga aprecia o conhecimento dele — disse ela.

— No momento em que o Senhor Toranaga morrer será a ordem para a morte do Anjin-san. Mas espero que os olhos do nosso senhor se abram antes disso. — A lâmpada gotejante crepitou e extinguiu-se. Ele deu uma olhada nela. — Você está sob encantamento.

— É um homem fascinante. Mas sua mente é tão diferente da nossa... seus valores... sim, tão diferente em tantos sentidos, que às vezes é quase impossível compreendê-lo. Uma vez tentei explicar uma cha-no-yu a ele, mas isso estava além da sua capacidade de compreensão.

— Deve ser terrível ter nascido bárbaro... terrível — disse Buntaro.

— Sim.

Os olhos dele caíram sobre a lâmina do estilete. — Algumas pessoas pensam que o Anjin-san foi japonês numa vida anterior. Não é como os outros bárbaros e... tenta arduamente falar e agir como um de nós, embora falhe, neh?

— Gostaria que o senhor o tivesse visto quase cometer seppuku, Buntaro-san... foi extraordinário. Vi a morte visitá-lo, ser afastada pela mão de Omi. Se ele foi japonês anteriormente, isso explicaria muitas coisas. O Senhor Toranaga o considera muito valioso para nós agora.

— É tempo que você pare de treiná-lo e se torne japonesa de novo.

— Senhor?

— Acho que o Senhor Toranaga está sob o encantamento dele. E você também.

— Por favor, desculpe-me, mas não acho que eu esteja.

— Aquela noite em Anjiro, aquela que acabou mal, naquela noite senti que você estava do lado dele, contra mim. Claro que foi um mau pensamento, mas senti isso.

O olhar dela afastou-se da lâmina. Olhou para ele firmemente e não respondeu. Outra lâmpada crepitou rapidamente e extinguiu-se. Agora só restava uma na sala.

— Sim, eu o odiei naquela noite — continuou Buntaro, na mesma voz calma —, e quis vê-lo morto, assim como a você e a Fujiko-san. Meu arco cochichava comigo, como faz algumas vezes, pedindo uma morte. E quando, na manhã seguinte, eu o vi descendo a colina com aquelas covardes pistolazinhas nas mãos, minhas setas imploraram para beber-lhe o sangue. Mas eu pus de lado a idéia de matá-lo e me humilhei, odiando minha falta de educação mais do que a ele, envergonhado pela minha falta de educação e pelo saque. — Seu cansaço mostrava-se agora. — Muitas vergonhas a suportar, você e eu. Neh?

— Sim.

— Não quer que eu o mate?

— Deve fazer aquilo que sabe ser o seu dever — disse ela. — Assim como eu sempre farei o meu.

— Ficamos na hospedaria esta noite — disse ele. — Sim.

Então, como ela fora uma convidada perfeita e a cha-no-yu a melhor que ele jamais realizara, ele mudou de idéia e deu-lhe tempo e paz em medida igual à que recebera dela. — Vá para a hospedaria. Durma — disse. Sua mão pegou o estilete e estendeu-o a ela. — Quando os bordos estiverem despidos de folhas, ou quando você regressar de Osaka, começaremos. Como marido e mulher.

— Sim. Obrigada.

— Concorda espontaneamente, Mariko-san?

— Sim. Obrigada.

— Diante do seu Deus?

— Sim. Diante de Deus.

Mariko curvou-se e aceitou a faca, recolocou-a no esconderijo, curvou-se de novo e partiu.

Seus passos morreram a distância. Buntaro baixou os olhos para o raminho ainda no seu punho, a lágrima ainda presa a uma folha minúscula. Seus dedos tremeram ao, gentilmente, pousar o galho sobre a última brasa. As folhas de um verde puro começaram a se contorcer e a se carbonizar. A lágrima desapareceu com um silvo.

Então, em silêncio, ele começou a chorar com raiva, subitamente certo, no mais íntimo do seu ser, de que ela o traíra com o Anjin-san.


Blackthorne viu-a sair do jardim e atravessar o pátio bem iluminado. Susteve o fôlego ante a brancura da sua beleza. O amanhecer estava se insinuando no céu oriental.

— Alô, Mariko-san.

— Oh ... alô, Anjin-san! O senhor... desculpe, o senhor me assustou ... não o tinha visto. Levantou-se cedo.

— Não. Gomen nasal, estou na hora. — Ele sorriu e apontou para a manhã, que não estava muito distante. — É um hábito que adquiri ao mar, acordar pouco antes do amanhecer, em bom tempo para subir ao convés e medir o sol. — Seu sorriso ampliou-se. — Foi a senhora que acordou cedo!

— Eu não havia percebido que era... que a noite já se fora. — Samurais estavam postados aos portões e soleiras, observando curiosos, Naga entre eles. A voz dela tornou-se quase imperceptível ao passar para o latim. — Vigie os seus olhos, rogo-lhe: Até a escuridão da noite contém arautos da destruição.

— Peço perdão.

Desviaram o olhar quando cavalos subiram em tropel até o portão principal. Falcoeiros, o grupo de caça e guardas. Desanimado, Toranaga surgiu de dentro da casa.

— Está tudo pronto, senhor — disse Naga. — Posso ir com o senhor?

— Não, não, obrigado. Descanse um pouco. Mariko-san, como foi a cha-no-yu?

— Muito bonita, senhor. Muitíssimo bonita. — Buntaro-san é um mestre. Você tem sorte. — Sim, senhor.

— Anjin-san! Gostaria de ir caçar? Eu gostaria de aprender como é que você faz voar um falcão.

— Senhor?

Mariko traduziu imediatamente.

— Sim, obrigado — disse Blackthorne.

— Bom. — Toranaga indicou-lhe um cavalo. — Venha comigo.

— Sim, senhor.

Mariko observou-os partir. Depois de vê-los subir a trote o caminho, dirigiu-se ao seu quarto. A criada ajudou-a a se despir, a remover a maquilagem e a soltar o cabelo. Depois disse à criada que ficasse no quarto, que ela não queria ser perturbada até o meio-dia.

— Sim, ama.

Mariko deitou-se, fechou os olhos e permitiu que seu corpo mergulhasse na maravilhosa maciez dos acolchoados. Estava exausta e jubilosa. A cha-no-yu a havia impelido a uma estranha altura de paz, limpando-a, e a partir dali, a decisão sublime e plena de alegria de ir para a morte a colocara num pináculo ainda mais elevado, que nunca atingira antes. O retorno à vida deixara-a com uma misteriosa e inacreditável lucidez quanto à beleza de estar viva. Ela parecera estar fora de si mesma ao responder pacientemente a Buntaro, certa de que suas respostas e o seu desempenho tinham sido igualmente perfeitos. Enrodilhou-se na cama, muito contente de que essa paz existisse agora ... até que as folhas caíssem.

Oh, Nossa Senhora, orou fervorosamente, agradeço-lhe pela sua mercê em me conceder o meu glorioso alívio. Agradeço-lhe e adoro-a com todo o coração, com toda a minha alma e por toda a eternidade.

Repetiu uma ave-maria em humildade e depois, pedindo perdão, de acordo com o seu costume e em obediência ao seu suserano, por outro dia colocou o seu Deus num compartimento da mente.

O que eu teria feito, ruminou pouco antes de o sono se apossar dela, se Buntaro tivesse pedido para compartilhar o meu leito?

Eu teria recusado.

E se ele tivesse insistido, conforme o seu direito?

Eu teria cumprido a promessa que fiz a ele. Oh, sim. Nada mudou.


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