CAPÍTULO 1


Blackthorne acordou de repente. Por um instante pensou estar sonhando, pois se encontrava em terra firme e num quarto inacreditável. Pequeno, muito limpo e coberto de esteiras macias.

Ele estava deitado num espesso acolchoado, com outro atirado por cima do corpo. O teto era de cedro polido e as paredes, de ripas de cedro, em quadrados, revestidas com um papel opaco que tornava a luz suave e agradável. Ao lado dele havia uma bandeja vermelha com tigelinhas. Uma delas continha legumes cozidos, frios, que ele devorou avidamente, quase sem notar o sabor picante. Outra continha uma sopa de peixe, e ele a tomou de um trago.

Outra ainda estava cheia de um mingau grosso de trigo ou cevada, de que ele deu cabo rapidamente, comendo com os dedos. A água numa cuia de formato curioso estava morna e com um gosto estranho - levemente amargo, mas saboroso.

Então notou o crucifixo no nicho.

Esta casa é espanhola ou portuguesa, pensou, contrariado.

Isto será o Japão ou Catai?

Um painel da parede abriu-se deslizando. Uma mulher de meia-idade, atarracada, rosto redondo, estava ajoelhada ao lado da porta, curvando-se e sorrindo. Tinha a pele dourada, os olhos pretos e estreitos, e o longo cabelo negro habilmente arrumado no alto da cabeça. Vestia um quimono de seda cinza, meias soquetes brancas com uma sola grossa, e uma larga faixa púrpura na cintura.

- Goshujinsama, gokibun wa ikaga desu ka? - disse ela.

Esperou enquanto ele a fitava inexpressivamente, depois disse a mesma coisa outra vez.

- Estamos no Japão? - perguntou ele. - Japão? Ou Catai?

Ela fixou-lhe o olhar sem compreender, e disse uma outra coisa que ele não conseguiu entender. Nisso percebeu que estava nu. Sua roupa não estava à vista. Por meio de sinais, mostrou a ela que queria se vestir. Depois apontou para as tigelas de comida e ela entendeu que ele ainda estava com fome.

Sorriu, curvou-se e correu a porta.

Ele deitou-se de costas, exausto, com a desagradável e nauseante imobilidade do chão fazendo sua cabeça rodar. Com um esforço, tentou se recompor. Lembro de estar lançando a âncora, pensou. Com Vinck. Acho que era Vinck. Estávamos numa enseada, o navio havia se chocado contra um banco de areia e parado.

Podíamos ouvir as ondas quebrando na praia, mas estava tudo a salvo. Havia luzes em terra e depois eu estava na minha cabina e na escuridão. Não me lembro de nada. Depois havia luzes na escuridão e vozes estranhas. Eu estava falando inglês, depois português. Um dos nativos falava um pouco de português. Ou será que era um português? Não, acho que era nativo. Perguntei a ele onde estávamos? Não lembro. Em seguida estávamos de volta ao recife, o vagalhão surgiu outra vez, fui arrastado para o mar e para o afogamento — estava gelado -, não, o mar estava morno, parecia uma cama de seda, com a espessura de uma braça. Devem ter me carregado para terra firme e colocado aqui.

- Deve ter sido esta cama que me pareceu tão macia e quente - disse em voz alta. - Nunca tinha dormido sobre seda antes. - Sua fraqueza o dominou e ele dormiu um sono sem sonhos.

Quando despertou, havia mais comida em tigelas de louça e sua roupa estava ali ao lado, numa pilha caprichosa. Fora lavada, passada e remendada com pontos minúsculos, perfeitos.

Mas sua faca desaparecera, assim como suas chaves.

É melhor arrumar uma faca, e logo, pensou ele. Ou uma pistola.

Seus olhos toparam com o crucifixo. Apesar da veneração, sentiu crescer a excitação. A vida toda ouvira histórias contadas por pilotos e marinheiros sobre as riquezas inacreditáveis do império secreto de Portugal no Oriente, sobre como haviam convertido os pagãos ao catolicismo e assim os reduziram à escravidão, sobre o lugar onde o ouro era tão fácil de conseguir quanto lingotes de ferro, e as esmeraldas, rubis, diamantes e safiras eram tão abundantes quanto seixos numa praia.

Se o que se refere ao catolicismo for verdade, disse ele a si mesmo, talvez o resto também seja. O resto sobre as riquezas.

Sim. Mas quanto mais depressa eu estiver armado, de volta ao Erasmus e atrás do canhão, melhor.

Comeu, vestiu-se e ergueu-se vacilante, sentindo-se fora de seu elemento como sempre acontecia quando estava em terra.

Faltavam as botas. Dirigiu-se para a porta, cambaleando ligeiramente, e estendeu uma mão para se apoiar, mas os frágeis quadrados de ripas não agüentaram seu peso e se despedaçaram, rasgando o papel. Ele se aprumou. No corredor, a mulher fitava-o de olhos arregalados, horrorizada.

- Desculpe - disse ele, estranhamente embaraçado com a própria falta de jeito. A pureza do quarto fora de certo modo maculada. — Onde estão minhas botas?

A mulher o encarava sem compreender. Então, pacientemente, ele repetiu a pergunta acompanhando-a de sinais, e ela se precipitou para uma passagem, ajoelhou-se, abriu outra porta de ripas, e fez-lhe sinal que a seguisse. Havia vozes nas proximidades, e o som de água corrente. Ele atravessou a porta e encontrou-se em outro cômodo, também quase sem mobília. Abria-se para uma varanda com degraus que levavam a um pequeno jardim cercado por um muro alto. Ao lado dessa entrada principal estavam duas velhas, três crianças de quimono vermelho e um velho, obviamente um jardineiro, com um ancinho na mão. Imediatamente todos se curvaram com gravidade e mantiveram a cabeça baixa.

Para seu assombro, Blackthorne viu que o velho, à exceção de uma tanga estreita, mínima, que mal e mal lhe cobria o sexo, estava nu.

- Dia - disse ele, sem saber o que dizer.

Eles permaneceram imóveis, ainda curvados.

Confuso, ele os observou, depois, desajeitadamente, curvou-se também. Todos se endireitaram e lhe sorriram. O velho inclinou-se mais uma vez e voltou a seu trabalho no jardim. As crianças olharam-no atentamente e, rindo, saíram correndo. As velhas desapareceram no interior da casa. Mas ele podia sentir-lhes os olhos pregados nele.

Viu as botas ao pé da escada. Mas antes que pudesse pegá-las, a mulher de meia-idade já estava de joelhos, para seu constrangimento, ajudando-o a calçá-las.

- Obrigado - disse ele. Pensou um instante e depois apontou para si mesmo: - Blackthorne - disse vagarosamente - Blackthorne. - Em seguida apontou para ela: - Qual é o seu nome?

Ela o olhava sem compreender.

- Black-thorne - repetiu ele com cuidado, apontando-se, e depois apontando para ela: - Qual é o seu nome?

Ela franziu o cenho e depois, num transbordamento de compreensão, apontou para si mesma e disse: - Onna! Onna!

- Onna! - repetiu ele, ambos orgulhosos de si mesmos.

- Onna.

Ela assentiu, feliz:

- Onna!

O jardim não se parecia com nada que ele tivesse visto antes: uma pequena cascata, um riacho, uma pontezinha, caminhos de seixos, cuidados com esmero, rochas, flores e arbustos. É tão limpo, pensou ele. Tão caprichoso.

- Incrível! - disse.

- Nquerrrriv? — repetiu ela, solícita.

- Nada - disse ele. Depois, sem saber o que mais podia fazer, afastou-a com um gesto. Obediente, ela curvou-se polidamente e deixou-o.

Blackthorne sentou-se ao sol cálido, encostado a um mourão.

Sentindo-se muito fraco, ficou observando o velho arrancar ervas daninhas de um jardim já completamente sem ervas daninhas.

Gostaria de saber onde estão os outros. Será que o capitão-mor ainda está vivo? Quantos dias será que eu dormi? Lembro que acordei, comi e dormi de novo, uma comida tão desagradável quanto os sonhos.

As crianças passaram alvoroçadas, correndo umas atrás das outras, e a nudez do jardineiro fez com que Blackthorne se sentisse embaraçado por elas, pois quando o homem se dobrava ou se abaixava podia-se ver tudo, e ele estava pasmo de que as crianças parecessem não notar. Por cima do muro viu os telhados de telhas e de colmo de outras construções e, bem a distância, altas montanhas. Um vento fresco varria o céu, fazendo avançar os cúmulos. Havia abelhas à procura de alimento e fazia um dia de primavera adorável. Seu corpo implorava por mais sono, mas ele se obrigou a levantar e dirigiu-se para o portão do jardim. O jardineiro sorriu, curvou-se, correu a abrir o portão, curvou-se e fechou-o atrás dele.

A aldeia erguia-se em torno da enseada em forma de crescente, voltada para leste, umas duzentas casas talvez, diferentes de todas as que já vira, aninhadas ao pé da montanha que se estendia até a praia. Acima havia campos dispostos em plataformas e estradas de cascalho, rumando para o norte e para o sul.

Abaixo, o lado que dava para o mar era pavimentado com pedras arredondadas, e havia uma rampa de lançamento, também de pedra, indo da praia até o mar. uma enseada boa e segura, um quebra-mar de pedra, homens e mulheres limpando peixe e tecendo redes, um barco de projeto inigualável sendo construído no lado norte. A leste e ao sul, ao largo, havia ilhas. Os recifes deviam estar ali, ou além do horizonte.

Na enseada havia muitos outros barcos de formas esquisitas, na maioria embarcações de pesca, alguns com uma vela grande, vários a remo — os remadores mantinham-se em pé e empurravam a água, ao invés de estarem sentados e puxando a água, como ele teria feito. Alguns dos barcos dirigiam-se para mar aberto, outros apontavam para o embarcadouro de madeira, e o Erasmus fora ancorado com habilidade, a cinqüenta jardas da praia, em boa profundidade, com três cabos na proa. Quem fez isso? perguntou Blackthorne a si mesmo. Havia barcos dos lados do navio, e ele podia ver nativos a bordo. Mas nenhum dos seus companheiros. Onde poderiam estar?

Olhou em torno na aldeia e tomou consciência das muitas pessoas que o observavam. Quando viram que ele as havia notado, todas se curvaram e, ainda pouco â vontade, ele curvou-se em retribuição. Reiniciou-se uma atividade feliz e eles passaram de um lado para o outro, parando, regateando, curvando-se uns para os outros, aparentemente esquecidos dele, como muitas borboletas multicores. Mas ele sentiu olhos a estudá-lo de cada janela e desvão de porta enquanto caminhava para a praia.

O que há com eles que parece tão esquisito? perguntou a si mesmo. Não é só a roupa e o comportamento. É... eles não têm armas, pensou, atônito. Nada de espadas ou pistolas! Por que será?

Lojas abertas, repletas de mercadorias estranhas e fardos, alinhavam-se na ruazinha. O soalho das lojas era elevado e os vendedores e compradores ajoelhavam-se ou acocoravam-se nos limpos soalhos de madeira. Ele viu que a maioria usava tamancos ou sandálias de junco, alguns as mesmas meias brancas com sola grossa, cortadas entre o artelho grosso e o artelho seguinte para segurar as correias, mas todos deixavam os tamancos e as sandálias do lado de fora. Os que estavam descalços limpavam os pés e deslizavam em sandálias limpas, de uso interno, à espera deles.

Isso é muito sensato, se se pensa na coisa, disse Blackthorne a si mesmo, admirado.

Então viu o homem aproximando-se e o medo fluiu-lhe, nauseante, dos testículos para o estômago. O padre era obviamente português ou espanhol, e embora seu manto ondeante fosse alaranjado não havia dúvida alguma quanto ao rosário e ao crucifixo ao cinto, ou quanto à fria hostilidade em seu rosto. O manto estava sujo da viagem e as botas em estilo europeu manchadas de lama. Olhava a enseada, para o Erasmus, e Blackthorne sabia que ele devia reconhecer o navio como holandês ou inglês, novo para a maioria dos mares, mais delgado e veloz, um navio mercante de combate, copiado e melhorado a partir dos navios piratas ingleses que haviam causado tanta devastação ao Spanish Main.

Com o padre estavam dez nativos, de cabelos e olhos pretos, um vestido como ele, exceto por ter chinelos de tiras. Os outros usavam mantos multicoloridos ou calças folgadas ou simplesmente tangas. Mas nenhum deles estava armado.

Blackthorne quis correr enquanto havia tempo, mas sabia que não tinha forças para isso e não havia lugar algum onde se esconder. Sua altura, o tamanho e a cor dos cabelos o tornavam discrepante naquele mundo. Pôs-se de costas contra o muro.

- Quem é você? - disse o padre em português. Era um homem magro, moreno, bem nutrido, com seus vinte e cinco anos, e uma longa barba.

- Quem é você? - disse Blackthorne, sustentando-lhe o olhar.

- Aquele é um navio pirata neerlandês. Você é um herege holandês. São piratas. Deus tenha piedade de vocês!

- Não somos piratas. Somos pacíficos mercadores, exceto para os nossos inimigos. Sou o piloto daquele navio. Quem é você?

- Padre Sebastio. Como foi que chegou aqui? Como?

- Fomos atirados na praia. Que lugar é este? O Japão?

- Sim, o Japão, Nippon - disse o padre com impaciência.

Voltou-se para um dos homens, mais velho do que os demais, pequeno e magro, com braços fortes e mãos calejadas, o alto da cabeça raspado e o resto do cabelo puxado para cima num rabo fininho, tão grisalho quanto suas sobrancelhas. O padre falou-lhe num japonês vacilante, apontando para Blackthorne. Ficaram todos chocados e um deles fez o sinal-da-cruz, protegendo-se.

- Holandeses são hereges, rebeldes e piratas. Qual é o seu nome?

- Este povoado é português?

Os olhos do padre estavam duros e injetados.

- O chefe da aldeia diz que avisou as autoridades sobre você. Seus pecados deram cabo de você. Onde está o resto da sua tripulação?

- Fomos desviados da rota. Só precisamos de comida, água e tempo para consertar o nosso navio. Depois partiremos. Podemos pagar cada.. .

- Onde está o resto da sua tripulação?

- Não sei. A bordo. Acho que estão a bordo.

O padre interrogou novamente o chefe, que respondeu e gesticulou para a outra extremidade da aldeia, explicando detalhadamente. O padre voltou-se para Blackthorne.

- Aqui os criminosos são crucificados, piloto. Você vai morrer. O daimio está vindo com os samurais. Deus tenha piedade de você.

- O que é "daimio"?

- Um senhor feudal. É o dono desta província toda. Como você chegou aqui?

- E "samurais"?

- Guerreiros, soldados, membros da casta guerreira - disse o padre, com irritação crescente. - De onde veio e quem é você?

- Não reconheço o seu sotaque - disse Blackthorne, para desconcertá-lo. - Você é espanhol?

- Sou português - enfureceu-se o padre, mordendo a isca. - Já lhe disse, sou o Padre Sebastio, de Portugal. Onde você aprendeu um português tão bom, hein?

- Mas Portugal e Espanha são o mesmo país, agora - disse Blackthorne, com escárnio. - Vocês têm o mesmo rei.

- Somos uma nação separada. Somos um povo diferente. Sempre fomos. Hasteamos nossa própria bandeira. Nossas possessões ultramarinas são separadas, sim, separadas. O Rei Filipe concordou com isso quando roubou meu país. - O Padre Sebastio controlou-se com esforço, os dedos tremendo. - Tomou meu país à força de armas há vinte anos! Seus soldados e aquele tirano espanhol gerado pelo Demônio, Duque de Alba, aniquilaram o nosso verdadeiro rei. Que vá! Agora o filho de Filipe reina, mas também não é nosso verdadeiro rei. Brevemente teremos o nosso próprio rei de volta. - E acrescentou, maldoso: - Você sabe que isso é verdade. O que o perverso Alba fez ao seu país, fez ao meu.

- Isso é mentira. Alba foi um flagelo na Neerlândia, mas nunca a conquistou. Ela ainda é livre. Sempre será. Mas em Portugal ele esmagou um pequeno exército e o país todo capitulou. Não há coragem. Vocês podiam expulsar os espanhóis, se quisessem, mas nunca o farão. Não têm cojones. Exceto para queimar inocentes em nome de Deus.

- Que Deus o queime no fogo do inferno por toda a eternidade - vociferou o padre. - Satã vaga pelo mundo, mas será aniquilado. Os hereges serão aniquilados. Você é maldito diante de Deus!

Malgrado seu, Blackthorne sentiu o terror religioso começar a se erguer dentro dele.

- Os padres não têm o ouvido de Deus, nem falam com a sua voz. Somos livres do seu julgo miserável, e vamos permanecer livres!

Fazia só quarenta anos que Maria Tudor, a Sanguinária, fora rainha da Inglaterra e o espanhol Filipe II, o Cruel, seu marido.

Essa filha de Henrique VIII, profundamente religiosa, trouxera de volta à Inglaterra os padres católicos, os inquisidores, os julgamentos de heresia e o domínio do papa estrangeiro, e revogara as restrições do pai e as mudanças históricas da Igreja de Roma na Inglaterra, contra a vontade da maioria. Reinara durante cinco anos, e o reino fora dilacerado pelo ódio, o medo e a carnificina.

Mas havia morrido e Elizabeth se tornara rainha aos vinte e quatro anos. Blackthorne sentia-se pleno de admiração e amor filial quando pensava em Elizabeth. Fazia quarenta anos que ela guerreava contra o mundo. Havia superado e batido papas, o Santo Império Romano, a França e a Espanha, todos juntos.

Excomungada, desprezada, injuriada no exterior, levou-nos para a enseada — a salvo, fortes, independentes.

- Somos livres - disse Blackthorne ao padre. - Vocês estão arruinados. Temos nossas próprias escolas agora, nossos livros, nossa Bíblia, nossa Igreja. Vocês, espanhóis, são todos iguais. Lixo! Vocês, frades, são todos iguais. Adoradores de ídolos!

O padre ergueu o crucifixo e segurou-o entre si e Blackthorne como um escudo.

- Oh, Deus, proteja-nos deste mal! Não sou espanhol, já lhe disse! Sou português. E não sou frade. Sou irmão da Sociedade de Jesus!

- Ah, um deles, um jesuíta!

- Sim. Que Deus tenha piedade da sua alma! - O Padre Sebastio disse rispidamente alguma coisa em japonês e os homens lançaram-se na direção de Blackthorne. Este se apoiou contra o muro e atingiu um homem com força, mas os outros caíram-lhe em cima como um enxame e ele se sentiu sufocar.

- Nanigoto da?

Abruptamente a escaramuça cessou.

O jovem estava a dez passos de distância. Usava calções, tamancos e um quimono leve, e trazia duas espadas embainhadas presas ao cinto. Uma parecia uma adaga. A outra, uma espada para ser manejada com as duas mãos, mortífera, era comprida e ligeiramente curva. O homem tinha a mão direita casualmente sobre o punho dela.

- Nanigoto da? - perguntou rudemente, e como ninguém respondesse instantaneamente: - NANIGOTO DA?

Os japoneses caíram de joelhos, cabeça inclinada até o pó.

Somente o padre permaneceu em pé. Fez uma mesura e começou a explicar vacilante, mas o homem, desdenhoso, ignorou-o rudemente e apontou para o chefe:

- Mura!

Mura, o chefe da aldeia, manteve a cabeça baixa e começou a explicar rapidamente. Apontou várias vezes para Blackthorne, uma para o navio e duas para o padre. Agora não havia movimento algum na rua. Todas as pessoas visíveis estavam ajoelhadas o de cabeça bem baixa. O chefe terminou.

Arrogantemente o homem armado fez algumas perguntas, a que o outro respondeu com deferência e presteza. Então o soldado disse algo ao chefe, acenou com desprezo declarado para o padre, depois para Blackthorne, e o homem grisalho traduziu para o padre, que enrubesceu.

O homem que era uma cabeça mais baixo e muito mais jovem do que Blackthorne, com um belo rosto ligeiramente marcado de varíola, fixou o olhar no estrangeiro:

- Onushi ittai doko kara kitanda? Doko no kuni no monoda?

Disse o padre, nervosamente:

- Kasigi Omi-san pergunta de onde você vem e qual é a sua nacionalidade.

- O Sr. Omisan é o daimio? - perguntou Blackthorne, com medo das espadas, malgrado seu.

- Não. É um samurai, o - encarregado da aldeia. O sobrenome dele é Kasigi. Omi é o nome. Aqui eles sempre põem o sobrenome na frente. "San" significa "honorável", e se acrescenta a todos os nomes como polidez. Você faria melhor aprendendo a ser polido e tratando de encontrar bons modos rapidamente. Aqui não se tolera falta de modos. — Sua voz tornou-se cortante. — Responda logo, vamos!

- Amsterdã. Sou inglês.

O choque do Padre Sebastio foi evidente. Disse "inglês, Inglaterra" ao samurai e iniciou uma explicação, mas Omi, impaciente, interrompeu-o abruptamente e vociferou uma torrente de palavras.

- Omi-san pergunta se você é o comandante. O chefe da aldeia diz que só alguns de vocês, hereges, estão vivos, e a maioria está doente. Há um capitão-mor?

- Sou o comandante - respondeu Blackthorne, ainda que, na verdade, agora que estavam em terra, o capitão-mor estivesse no comando. - Estou no comando - acrescentou, sabendo que o Capitão-Mor Spillbergen não podia comandar nada, em terra ou em curso, mesmo quando estava apto e bem.

Outra enxurrada de palavras do samurai.

- Omi-san diz que, como você é o comandante, tem permissão para andar pela aldeia livremente, por onde quiser, até que o senhor dele chegue. O senhor dele, o daimio, decidirá a sua sorte. Até lá você tem permissão para viver como hóspede na casa do chefe da aldeia e para ir e vir como lhe convier. Mas não deve sair da aldeia. Seus homens estão confinados na casa onde se encontram e não estão autorizados a deixá-la. Compreendeu?

- Sim. Onde está a minha tripulação?

O Padre Sebastio apontou vagamente para um amontoado de casas perto de um desembarcadouro, obviamente desolado com a decisão e a impaciência de Omi.

- Lá! Aproveite sua liberdade, pirata. Seu mal deu cabo de...

- Wakarimasu ka? - disse Omi diretamente a Blackthorne.

- Ele disse: "Você compreende?"

- Como é "sim" em japonês?

O Padre Sebastio disse ao samurai:

- Wakarimasu.

Desdenhosamente, Omi afastou-se com um gesto. Todos se curvaram profundamente. Exceto um homem, que se ergueu deliberadamente, sem se curvar.

Com uma velocidade cegante, a espada mortífera descreveu um sibilante arco prateado no ar e a cabeça do homem tombou-lhe de sobre os ombros, e uma fonte de sangue jorrou sobre a terra. O corpo agitou-se algumas vezes até ficar imóvel. Involuntariamente o padre havia recuado um passo. Ninguém mais na rua movera um músculo. Permaneciam de cabeça baixa e imóveis. Blackthorne estava rígido, horrorizado.

Omi pôs o pé descuidadamente sobre o cadáver.

- Ikinasai! - disse, gesticulando para que se fossem.

Os homens à sua frente curvaram-se de novo, até o chão.

Depois ergueram-se e se afastaram, impassíveis. A rua começou a se esvaziar. E as lojas. O Padre Sebastio baixou os olhos para o corpo. Gravemente fez o sinal-da-cruz sobre ele e disse:

- In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. - Devolveu o olhar do samurai, sem medo agora.

- Ikinasai! - A ponta da espada que surgira de repente continuava no corpo. Após um longo momento o padre voltou-se e afastou-se. Com dignidade. Omi observou-o um instante, depois deu uma olhada a Blackthorne. Este recuou e, quando se viu a uma distância segura, dobrou rapidamente uma esquina e desapareceu.

Omi começou a rir ruidosamente. A rua estava vazia agora.

Quando a risada se esgotou, ele agarrou a espada com ambas as mãos e começou metodicamente a cortar o corpo em pedacinhos.

Blackthorne estava num pequeno barco, o barqueiro remando alegremente em direção ao Erasmus. Não tivera dificuldade em conseguir o barco e podia ver homens no convés principal. Eram todos samurais. Alguns tinham peitoral de aço, mas a maioria usava simples quimonos, como eram chamados os trajes, e as duas espadas. Todos usavam o cabelo do mesmo jeito: o topo da cabeça raspado e o cabelo, atrás e dos lados, reunido num rabo, com óleo, depois dobrado sobre a coroa e habilmente amarrado. Apenas os samurais podiam usar esse estilo e, para eles, era obrigatório. Apenas os samurais podiam usar as duas espadas - sempre a comprida, mortífera, para ser usada com as duas mãos, e a curta, parecida com adaga -, e para eles as espadas eram obrigatórias.

Os samurais alinharam-se ao longo das amuradas do navio dele, observando-o.

Cheio de inquietação, subiu ao passadiço e dirigiu-se para o convés. Um samurai, mais elaboradamente vestido do que os outros, veio-lhe ao encontro e curvou-se. Blackthorne aprendera bem e correspondeu à reverência de maneira idêntica, e todo mundo no convés sorriu cordialmente. Ele ainda sentia o horror da matança repentina na rua, e os sorrisos deles não lhe acalmaram os pressentimentos. Foi até a gaiúta e parou abruptamente. Colada na porta, de lado a lado, havia uma larga faixa de seda vermelha e, ao lado dela, um pequeno sinal numa escrita estranha e coleante. Hesitou, examinou a outra porta, mas também essa estava lacrada com uma faixa semelhante, e havia um sinal igual pregado ao tabique.

Estendeu a mão para remover a seda.

- Hotte oke! - Para deixar a coisa absolutamente clara, o samurai de guarda meneou a cabeça. Já não estava sorrindo.

- Mas este navio é meu e eu... - Blackthorne conteve a própria ansiedade, de olhos nas espadas. Tenho que ir lá para baixo, pensou. Tenho que pegar os portulanos, o meu e o secreto.

Jesus Cristo, se forem encontrados e dados aos padres ou aos japoneses, estamos liquidados. Qualquer tribunal do mundo - afora na Inglaterra e na Neerlândia - nos condenaria como piratas com essa evidência. Meu portulano dá datas, lugares, quantidades de saquês pilhados, o número de mortos nos nossos três desembarques nas Américas e na África espanhola, o número de igrejas saquêadas, e como queimamos cidades e embarcações. E o português?

Esse é a nossa sentença de morte, pois naturalmente foi roubado.

No mínimo fora comprado de um traidor português, e pela lei deles qualquer estrangeiro apanhado de posse de qualquer dos portulanos deles, para não mencionar um que desvendasse o estreito de Magalhães, devia ser morto imediatamente. E se o portulano fosse encontrado a bordo de um navio inimigo, o navio devia ser queimado e todos a bordo executados sem piedade.

- Nanno yoo da? - disse um dos samurais.

- Você fala português? - perguntou Blackthorne nessa língua.

O homem resmungou:

- Wakarimasen.

Um outro se aproximou e respeitosamente falou ao chefe, que assentiu concordando.

- Portugueis amigu - disse o samurai em português com um sotaque pesado. Abriu o alto do quimono e mostrou o pequeno crucifixo de madeira que lhe pendia ao pescoço.

- Cristão! - Apontou para si mesmo e sorriu. - Cristão.

- Apontou para Blackthorne: - Cristão, ka?

Blackthorne hesitou, assentiu:

- Cristão.

- Portugueis?

- Inglês.

O homem tagarelou com o chefe, depois ambos deram de ombros e olharam para ele:

- Portugueis?

Blackthorne balançou a cabeça, não querendo discordar deles em nada.

- Meus amigos? Onde?

O samurai apontou na direção da extremidade leste da aldeia.

- Amigos.

- Este é o meu navio. Quero ir lá embaixo. - Disse isso de várias maneiras e com sinais, e eles compreenderam.

- Ah, so desu! Kinjiru! - disseram enfaticamente, indicando os avisos, e sorriram.

Estava absolutamente claro que ele não era autorizado a descer. "Kinjiru" deve significar "proibido", pensou Blackthorne irritado. Bem, que vá para o inferno! Agarrou o trinco da porta e abriu-a parcialmente.

- KINJIRU!

Fizeram-no voltar-se com um empurrão para encará-los. Suas espadas estavam meio desembainhadas. Imóveis os dois homens esperaram que ele mudasse de idéia. Alguns outros, no convés, observavam impassíveis.

Blackthorne sabia que não tinha opção a não ser recuar, de modo que sacudiu os ombros e afastou-se para examinar as amarras e o navio o melhor que podia. As velas esfarrapadas estavam arriadas e amarradas. Mas as cordas eram diferentes de quaisquer outras que, já tivesse visto, de modo que presumiu que tivessem sido os japoneses que haviam posto a embarcação em segurança.

Começou a descer o passadiço e parou. Suou frio quando viu todos a fitá-lo malevolamente e pensou: Jesus Cristo, como pude ser tão estúpido! Curvou-se polidamente e imediatamente a hostilidade desvaneceu-se e todos se curvaram, novamente sorridentes.

Mas ele ainda sentia o suor escorrendo-lhe pela espinha e odiou tudo o que se relacionava ao Japão, desejou estar com a sua tripulação, de volta a bordo, armado, e ao largo.

- Pelo Senhor Jesus, acho que você está errado, piloto - disse Vinck. Seu sorriso desdentado era largo e obsceno. - Se a gente conseguir suportar a lavagem que eles chamam de comida, este é o melhor lugar onde já estive. Tive duas mulheres em três dias e elas são como coelhos. Fazem qualquer coisa desde que a gente lhes mostre como.

- Tem razão. Mas não se pode fazer nada sem carne ou conhaque. Nem por muito tempo. Estou esgotado, e só pude dar uma - disse Maetsukker, contraindo o rosto estreito. - Esses bastardos amarelos não vão compreender que precisamos de carne, cerveja e pão. E conhaque ou vinho.

- Isso é o pior! Senhor Jesus, meu reino por um grogue!

- Baccus van Nekk estava cheio de melancolia. Aproximou-se, parou junto de Blackthorne e examinou-o atentamente. Era muito míope e perdera o último par de óculos na tempestade. Mas mesmo com eles, sempre parava tão perto das pessoas quanto possível. Era chefe dos mercadores, tesoureiros e representante da Companhia das Índias Orientais Holandesas, que havia levantado o dinheiro para a viagem. - Estamos em terra, a salvo, e ainda não bebi nada! Nem uma linda gota! Terrível. Você conseguiu alguma bebida, piloto?

- Não. - Blackthorne não gostava que ninguém ficasse tão perto, mas Baccus era um amigo e quase cego, por isso não se afastou.

- Só água quente com ervas.

- Eles simplesmente não vão compreender o que é grogue. Nada para beber além de água quente e ervas. Que o bom Deus nos ajude! Imagine se não houver álcool no país todo! - Suas sobrancelhas se ergueram. - Faça-me um enorme favor, piloto, peça alguma bebida, sim?

Blackthorne encontrara a casa que lhes fora designada na extremidade oriental da aldeia. O guarda samurai o deixara passar, mas seus homens confirmaram que não podiam sair além do portão do jardim. A casa tinha muitos cômodos, como a sua, mas era maior e equipada com muitos criados de idades variadas, tanto homens quanto mulheres.

Onze de seus homens estavam vivos. Os mortos tinham sido levados pelos japoneses. Generosas porções de verduras frescas haviam começado a afugentar o escorbuto, e todos eles, exceto dois, estavam sarando rapidamente. Aqueles dois tinham sangue nos intestinos e hemorragias nas vísceras. Vinck lhes fizera uma sangria, mas isso não ajudara. Esperava que morressem ao anoitecer. O capitão-mor, em outro quarto, ainda estava muito doente.

Sonk, o cozinheiro, um homenzinho atarracado, estava dizendo com uma risada:

- É bom aqui, como diz Johann, piloto, com exceção da comida e de não haver grogue. Está tudo bem com os nativos desde que não se ande de sapatos na casa deles. Esses bastardinhos amarelos ficam loucos se a gente não tira o sapato.

- Ouçam - disse Blackthorne -, há um padre aqui. Um jesuíta.

- Jesus Cristo! - As pilhérias desapareceram completamente quando ele lhes falou sobre o padre e sobre a decapitação.

- Por que ele cortou a cabeça do homem, piloto?

- Não sei.

- É melhor voltarmos para bordo. Se os papistas nos pegam em terra...

Havia um medo intenso na sala agora. Salamon, o mudo, observava Blackthorne. Mexia a boca, uma bolha de catarro aparecendo nos cantos.

- Não, Salamon, não há engano algum - disse Blackthorne gentilmente, respondendo à pergunta silenciosa. - Ele disse que era jesuíta.

- Cristo, jesuíta, dominicano, ou seja, que diabo for, não faz a mínima diferença - disse Vinck. - É melhor voltarmos para bordo. Piloto, você pede àquele samurai, hein?

- Estamos nas mãos de Deus - disse Jan Roper. Era um dos mercadores aventureiros, um homem jovem, de olhos apertados, com uma testa alta e um nariz fino. - Ele nos protegerá contra os adoradores de Satã.

Vinck olhou para Blackthorne.

- E quanto aos portugueses, piloto? Viu algum por aí?

- Não. Não há sinal algum deles na aldeia.

- Vão todos se aglomerar aqui assim que souberem de nós. - Maetsukker disse isso por todos e o jovem Croocq deixou escapar um gemido.

- Sim, e se há um padre, tem que haver outros. - Ginsel lambeu os lábios secos. - E depois, os amaldiçoados conquistadores deles nunca estão muito longe.

- Tem razão - acrescentou Vinck, inquieto. - Eles são como piolhos.

- Jesus Cristo! Papistas! - resmungou alguém. - E conquistadores!

- Mas estamos no Japão, piloto? - perguntou Van Nekk.

- Ele lhe disse isso?

- Sim. Por quê?

Van Nekk aproximou-se e baixou a voz.

- Se os padres estão aqui e alguns nativos são católicos, talvez a outra parte seja verdade, a que fala de riquezas, ouro, prata e pedras preciosas. - Um silêncio se abateu sobre eles. - Viu alguma coisa, piloto? Algum ouro? Alguma gema nos nativos, ou ouro?

- Não. Nada. - Blackthorne pensou um instante. - Não lembro de ter visto. Nenhum colar, pérola ou bracelete. Ouçam, há mais uma coisa a dizer-lhes. Fui a bordo do Erasmus, mas ele está lacrado. - Relatou o que acontecera e a ansiedade deles aumentou.

- Jesus, se não podemos voltar para bordo e há padres em terra e papistas... Temos que dar o fora daqui. - A voz de Maetsukker começou a tremer. - Piloto, o que vamos fazer? Vão nos queimar! Conquistadores... esses bastardos vão saber como usar as espadas.

- Estamos nas mãos de Deus - lembrou Jan Roper confiantemente. - Ele nos protegerá do Anticristo. Foi essa a promessa dele. Não há nada a temer.

- O modo como o samurai Omi-san gritou com o padre... tenho certeza de que o odeia - disse Blackthorne. - Isso é bom, hein? O que eu gostaria de saber é por que o padre não estava usando os trajes normais. Por que o manto alaranjado? Nunca vi isso antes.

- Sim, é curioso - disse Van Nekk.

Blackthorne encarou-o:

- Talvez a posição deles aqui não seja forte. Isso poderia nos ajudar enormemente.

- O que devemos fazer, piloto? - perguntou Ginsel.

- Ter paciência e esperar até que o chefe deles, o daimio, chegue. Ele nos deixará partir. Por que não? Não lhe fizemos mal algum. Temos mercadorias para comerciar. Não somos piratas. Não temos nada a temer.

- Absolutamente certo, e não se esqueçam de que o piloto disse que os selvagens não são todos papistas - disse Van Nekk, mais para encorajar a si mesmo do que aos outros. - Sim. É bom que os samurais odeiem o padre. E são os samurais que estão armados. Não é tão mau assim, hein? Simplesmente estar atentos aos samurais e recuperar nossas armas, é essa a idéia. Estaremos a bordo antes que vocês se dêem conta.

- O que acontecerá se o daimio for papista? - perguntou Jan Roper.

Ninguém lhe respondeu. Depois Ginsel disse:

- Piloto, o homem com a espada? Ele cortou o outro em pedaços, depois de lhe arrancar a cabeça?

- Sim.

- Cristo! São bárbaros! Lunáticos! - Ginsel era um jovem alto, de boa aparência, braços curtos e pernas muito arqueadas. - O escorbuto lhe levara todos os dentes. - Depois que lhe arrancou a cabeça fora, os outros simplesmente se afastaram? Sem dizer nada?

- Sim.

- Jesus Cristo, um homem desarmado, assassinado assim? Por que ele fez isso? Por que o matou?

- Não sei, Ginsel. Mas você nunca viu tamanha rapidez. Num momento a espada estava embainhada, no momento seguinte a cabeça do homem estava rolando.

- Deus nos proteja!

- Meu amado Senhor Jesus - murmurou Van Nekk -, se não pudermos voltar ao navio... Deus amaldiçoe aquela tempestade, sinto-me tão indefeso sem os óculos!

- Quantos samurais estavam a bordo, piloto? — perguntou Ginsel.

- Vinte e dois no convés. Mas havia mais na praia.

- A ira do Senhor recairá sobre os pagãos e pecadores, e eles arderão no inferno por toda a eternidade.

- Gostaria de ter certeza disso, Jan Roper - disse Blackthorne, um nervosismo na voz, como se sentisse o medo de que a vingança de Deus se derramasse pela sala. Estava muito cansado e queria dormir.

- Pode ter certeza, piloto. Oh, sim, eu tenho. Rezo para que seus olhos se abram para a verdade de Deus. Para que você venha a entender que estamos aqui apenas por sua causa, o que restou de nós.

- O quê? - disse Blackthorne perigosamente.

- Por que foi, realmente, que você convenceu o capitão-mor a tentar encontrar o Japão? Não fazia parte das nossas ordens. Devíamos pilhar o Novo Mundo, levar a guerra para dentro das fronteiras do inimigo, depois ir para casa.

- Havia navios espanhóis ao sul e ao norte, e lugar algum para onde fugir. Perdeu a memória junto com os miolos?

Tivemos que navegar para oeste, era a nossa única chance.

- Em momento algum eu vi inimigos, piloto. Nenhum de nós viu.

- Ora, vamos, Jan - disse Van Nekk, cansado. - O piloto fez o que julgou melhor. Claro que os espanhóis estavam lá.

- Sim, essa é a verdade, e estávamos a milhares de léguas de quaisquer amigos e em águas inimigas, por Deus! - falou Vinck rapidamente. - Essa é a verdade de Deus, e a verdade de Deus foi que pusemos a coisa em votação. Nós todos dissemos sim.

- Eu não.

- A mim ninguém perguntou - disse Sonk.

- Oh, Jesus Cristo!

- Acalme-se, Johann - disse Van Nekk, tentando aliviar a tensão. - Somos os primeiros a atingir o Japão. Lembram-se das histórias todas, hein? Se conservarmos os miolos, estaremos ricos. Temos mercadorias para comerciar e há ouro aqui, tem que haver. Onde mais poderíamos vender nossa carga? Não lá no Novo Mundo, caçados e acossados. Estavam nos caçando e os espanhóis sabiam que estávamos ao largo de Santa Maria. Tivemos que abandonar o Chile e não havia como escapar de volta através do estreito — claro que eles estariam de tocaia à nossa espera, claro que estariam! Não, aqui estava a nossa única chance e foi uma boa idéia. Nossa carga trocada por especiarias, ouro e prata, hein? Pensem no lucro - o normal é de mil vezes. Estamos nas ilhas das especiarias. Vocês conhecem as riquezas do Japão e de Catai, vocês sempre ouviram falar nelas. Nós todos ouvimos. Por que outro motivo nós todos nos engajamos? Ficaremos ricos, vocês verão!

- Somos homens mortos, como os outros todos. Estamos na terra de Satã.

- Cale a boca, Roper! - disse Vinck, zangado. - O piloto agiu certo. Não é culpa dele que os outros tenham morrido, não é culpa dele. Sempre morrem homens nestas viagens.

Os olhos de Jan Roper estavam injetados, as pupilas minúsculas.

- Sim, Deus guarde a alma deles. Meu irmão foi um.

Blackthorne olhou dentro daqueles olhos fanáticos, odiando Jan Roper. Interiormente perguntava a si mesmo se realmente havia navegado para oeste a fim de se esquivar dos navios inimigos. Ou teria sido porque ele era o primeiro inglês atravessando o estreito, o primeiro em posição, pronto e capaz de penetrar para oeste, e por isso o primeiro com a chance de circunavegar o globo?

- Os outros não morreram por causa da sua ambição, piloto? Deus o castigará! - sibilou Jan Roper.

- Agora cale a boca. - A palavra de Blackthorne foi gentil e final.

Jan Roper sustentou-lhe o olhar com a mesma cara gelada de traços acentuados, mas ficou de boca fechada.

- Bom. - Blackthorne sentou-se pesadamente no chão e apoiou-se contra um dos pilares.

- O que devemos fazer, piloto?

- Esperar e sarar. O chefe deles virá logo, então teremos tudo arranjado.

Vinck olhava para o jardim lá fora, para o samurai sentado imóvel sobre os calcanhares, ao lado do portão.

- Olhem aquele bastardo. Está lá há horas, nunca se mexe, nunca diz nada, nem cutuca o nariz.

- Mas ele não representa problema algum, Johann. Nenhum em absoluto - disse Van Nekk.

- Sim, mas tudo o que fizemos até agora foi dormir, fornicar e comer a lavagem.

- Piloto, ele é apenas um homem. Nós somos dez - disse Ginsel tranqüilamente.

- Pensei nisso. Mas ainda não estamos bem o suficiente. Vai levar uma semana para que o escorbuto passe - respondeu Blackthorne, preocupado. - Há muitos deles a bordo. Eu não gostaria de me ocupar sequer de um sem uma lança ou uma pistola. Vocês são vigiados à noite?

- Sim. Trocam a guarda três ou quatro vezes. Alguém viu uma sentinela pegar no sono? - perguntou Van Nekk.

Balançaram a cabeça.

- Poderíamos estar a bordo esta noite - disse Jan Roper. - Com a ajuda de Deus subjugaremos os pagãos e tomaremos o navio.

- Limpe a merda dos seus ouvidos! O piloto acabou de lhe dizer! Você não ouve? - exclamou Vinck, contrariado.

- Está certo - concordou Pieterzoon, um artilheiro. - Pare de importunar o velho Vinck!

Os olhos de Jan Roper apertaram-se ainda mais.

- Cuidado com a sua alma, Johann Vinck. E com a sua, Hans Pieterzoon. O Dia do Juízo se aproxima. - Afastou-se e foi sentar na varanda.

Van Nekk rompeu o silêncio.

- Tudo vai dar certo. Vocês verão.

- Roper está certo. Foi a ganância que nos pôs aqui - disse o jovem Croocq, a voz trêmula. - Foi o castigo de Deus que...

- Pare com isso!

O rapaz estremeceu.

- Sim, piloto. Desculpe, mas bem... - Maximilian Croocq era o mais novo deles, tinha só dezesseis anos, e fora engajado para a viagem porque seu pai era o capitão de um dos navios e eles iam fazer fortuna. Mas vira o pai ter uma péssima morte quando saquêaram a cidade espanhola de Santa Magdellana, na Argentina. O butim fora bom, e ele vira o que era estupro e o experimentara, odiando a si mesmo, saturado de cheiro de sangue e de matança. Mais tarde vira morrer mais amigos seus e os cinco navios tornarem-se um, e agora se sentia como o mais velho de todos. - Desculpe. Desculpe.

- Há quanto tempo estamos em terra, Baccus? - perguntou Blackthorne.

- Este é o terceiro dia. - Van Nekk aproximou-se de novo, pôs-se de cócoras. - Não me lembro da chegada com muita clareza, mas quando acordei os selvagens estavam por todo o navio. Mas muito polidos e gentis. Deram-nos comida e água quente. Levaram embora os mortos e lançaram as âncoras. Não lembro muito, mas acho que nos rebocaram para um ancoradouro seguro. Você delirava quando o carregaram para a praia. Quisemos conservá-lo conosco, mas não deixaram. Um deles falava algumas palavras em português. Parecia ser o chefe, tinha o cabelo grisalho. Não entendia "piloto-mor", mas conhecia "capitão". Ficou absolutamente claro que ele queria que o nosso "capitão" tivesse alojamento diferente do nosso, mas disse que não precisávamos nos preocupar, porque você seria bem cuidado. Nós também. Depois nos guiou para cá, a maioria veio carregada, e disse que devíamos ficar dentro de casa até que o capitão dele viesse. Não queríamos deixar que o levassem, mas não havia nada que pudéssemos fazer. Você perguntará ao chefe sobre vinho ou conhaque, piloto? - Van Nekk lambeu os lábios, sedento, e acrescentou: - Agora que penso nisso, ele também mencionou "daimio". O que vai acontecer quando o daimio chegar?

- Alguém tem uma faca ou pistola?

- Não - disse Van Nekk, coçando distraído os piolhos na cabeça. - Levaram todas as nossas roupas para limpar e ficaram com as armas. Não pensei nada sobre isso na hora. Também pegaram minhas chaves, assim como a minha pistola. Eu tinha todas as minhas chaves numa argola. A da sala forte, da caixa-forte e do paiol.

- Está tudo muito bem trancado a bordo. Não é preciso se preocupar com isso.

- Não gosto de estar sem as minhas chaves. Fico muito nervoso. Malditos olhos os meus. Eu saberia como usar um conhaque bem agorinha. Até um frasco de cerveja.

- Jesus! O samiri cortou-o em pedaços, foi? - disse Sonk a ninguém em particular.

- Pelo amor de Deus, cale a boca. É "samurai". Você sozinho é suficiente para fazer um homem se borrar todo - disse Ginsel.

- Espero que aquele padre bastardo não venha aqui - disse Vinck.

- Estamos seguros nas mãos do bom Deus. - Van Nekk ainda estava tentando soar confiante. - Quando o daimio vier, seremos libertados. Recuperaremos nosso barco e nossas armas. Vocês verão. Venderemos toda a nossa mercadoria e voltaremos à Holanda e a salvo, depois de termos dado a volta ao mundo, os primeiros holandeses a conseguirem isso. Os católicos irão para o inferno e isso é o fim da história.

- Não, não é - disse Vinck. - Papistas fazem a minha pele se arrepiar toda. Não posso evitar isso. Isso e a idéia de conquistadores. Acha que chegarão em grande número, piloto?

- Não sei. Diria que sim! Gostaria que tivéssemos toda a nossa esquadra aqui.

- Pobres bastardos - disse Vinck. - Pelo menos estamos vivos.

- Talvez tenham voltado para casa - disse Maetsukker.

- Talvez tenham voltado de Magalhães, quando a tempestade nos dispersou.

- Espero que você esteja certo - disse Blackthorne. - Mas acho que estão completamente perdidos.

Ginsel estremeceu.

- Pelo menos estamos vivos.

- Com papistas aqui e esses pagãos miseráveis, eu não daria um peido de puta velha pelas nossas vidas.

- Maldito o dia em que saí da Holanda! - disse Pieterzoon.

- Maldito grogue! Se eu não estivesse mais bêbado do que a cadela de um violinista, ainda estaria em Amsterdã, com a minha velha.

- Amaldiçoe o que quiser, Pieterzoon. Mas não a bebida. É a substância da vida.

- Eu diria que estamos num cano de esgoto, enterrados até o queixo, e a maré está subindo depressa. - Vinck girou os olhos nas órbitas. - Sim, muito depressa.

- Nunca pensei que atingiríamos terra - disse Maetsukker. Parecia-se com um furão, exceto que não tinha dentes. Nunca. E menos ainda o Japão. Papistas nojentos e fedorentos! Nunca sairemos vivos daqui! Gostaria que tivéssemos algumas armas. Que desembarque podre! Eu não quis dizer nada, piloto - apressou-se a esclarecer, quando Blackthorne o olhou -, apenas má sorte, isso é tudo.

Mais tarde os criados lhes trouxeram comida de novo. Sempre a mesma coisa: verduras - cozidas e cruas - com um pouco de vinagre, sopa de peixe e o mingau de trigo ou cevada. Todos desprezaram os pedacinhos de peixe cru e pediram carne e bebida. Mas não foram compreendidos, e depois, quase ao pôr-do-sol, Blackthorne foi embora. Cansara-se dos medos deles, dos ódios e obscenidades. Disse-lhes que voltaria após o amanhecer.

Nas ruas estreitas, as lojas estavam movimentadas. Achou a sua rua e o portão da casa. As manchas na terra tinham sido varridas e o corpo desaparecera. É quase como se eu tivesse sonhado a coisa toda, pensou. O portão do jardim abriu-se antes que ele pudesse tocá-lo.

O velho jardineiro, ainda de tanga, embora o vento estivesse fresco, sorriu e curvou-se.

- Konbanwa.

- Alô - disse Blackthorne, sem pensar. Subiu os degraus, parou, lembrando-se das botas. Tirou-as e foi descalço até a varanda e o quarto. Atravessou um corredor, mas não conseguiu encontrar seu quarto.

- Onna! - chamou.

Apareceu uma velha.

- Hai?

- Onde está Onna?

A velha franziu o cenho e apontou para si mesma.

- Onna?

- Oh, pelo amor de Deus - disse Blackthorne, irritado.

- Onde é o meu quarto? Onde está Onna? - Correu outra porta de treliça. Quatro japoneses estavam sentados no chão em torno de uma mesa, comendo. Ele reconheceu um deles como o homem grisalho, o chefe da aldeia, que estivera com o padre. Todos se inclinaram. - Oh, perdão! - disse ele, e fechou a porta.

- Onna! - chamou.

A mulher pensou um instante, depois chamou-o com um gesto. Ele a seguiu por outro corredor. Ela puxou uma porta para o lado. Ele reconheceu seu quarto pelo crucifixo. Os acolchoados já estavam estendidos.

- Obrigado - disse, aliviado. - Agora, vá buscar Onna!

A velha afastou-se, silenciosa. Ele sentou-se, a cabeça e o corpo doendo, e desejou que houvesse uma cadeira, perguntando a si mesmo onde as guardavam. Como chegar a bordo? Como conseguir algumas armas? Deve haver um modo. Ouviu passos abafados voltando e viu três mulheres agora, a velha, uma garota de rosto redondo, e a de meia-idade.

A velha apontou para a garota, que parecia um pouco assustada.

- Onna.

- Não. - Blackthorne levantou-se, mal-humorado, e sacudiu um dedo na frente da mulher de meia-idade. - Esta é Onna, por Deus! Você não sabe seu nome? Onna! Estou com fome. Posso comer alguma coisa? - Esfregou o estômago, parodiando fome. Elas se entreolharam. Então a mulher de meia-idade sacudiu os ombros, disse alguma coisa que fez as outras rir, foi até a cama e começou a se despir. As outras duas se acocoraram, de olhos arregalados e expectantes.

Blackthorne estava apavorado.

- O que está fazendo?

- Ikimasho! - disse ela, puxando para o lado a larga faixa de cintura e abrindo o quimono. Tinha os seios chatos e murchos, e uma vasta barriga. Estava absolutamente claro que ela ia se pôr na cama. Ele balançou a cabeça, disse-lhe que se vestisse, pegou-lhe o braço e começaram todos a tagarelar e a gesticular, e a mulher a ficar bastante zangada. Tirou a longa combinação e, nua, tentou voltar para a cama. O alvoroço se interrompeu e todas se curvaram quando o chefe da aldeia chegou silenciosamente pelo corredor.

- Nanda? Nanda? - perguntou.

A velha explicou o que estava acontecendo.

- Você quer esta mulher? - perguntou, incrédulo, num português com sotaque pesado, quase incompreensível, apontando para a mulher nua.

- Não. Não, claro que não. Só queria que Onna me trouxesse comida. - Blackthorne apontou-a impaciente. - Onna!

- "Onna" quer dizer "mulher". - O japonês apontou para cada uma: - Onna, onna, onna. Você quer onna?

Blackthorne sacudiu a cabeça, cansado.

- Não. Não, obrigado. Cometi um engano. Desculpe. Qual é o nome dela?

- Por favor?

- Qual é o nome dela?

- Ah! Namae é Haku. Haku.

- Haku?

- Hai. Haku!

- Desculpe, Haku-san. Pensei que "onna" fosse seu nome.

O homem explicou a Haku e ela não ficou nem um pouco satisfeita. Mas ele disse alguma coisa e elas todas olharam para Blackthorne, riram por trás das mãos e saíram. Haku afastou-se nua, levando o quimono no braço, com uma vasta dose de dignidade.

- Obrigado - disse Blackthorne, furioso com a própria estupidez.

- Esta minha casa. Meu namae Mura.

- Mura-san. O meu é Blackthorne.

- Por favor?

- Meu namae. Blackthorne.

- Ah, Berr-rakk-fon. - Mura tentou várias vezes, mas não conseguiu dizer o nome. Acabou desistindo e continuou a estudar o colosso à sua frente. Era o primeiro bárbaro que via, com exceção do Padre Sebastio e do outro padre, muitos anos atrás. Mas de qualquer modo, pensou, os padres têm cabelo e olhos pretos e altura normal. Mas este homem alto, de cabelo dourado, barba dourada, olhos azuis e uma estranha palidez na pele onde ela é coberta e uma vermelhidão onde é exposta. Surpreendente! Eu pensava que todos os homens tivessem cabelo preto e olhos escuros. Nós todos temos. Os chineses têm, e a China não é o mundo todo, com exceção da terra dos bárbaros portugueses do sul? Surpreendente! E por que o Padre Sebastio odeia tanto este homem? Porque é um adorador de Satã? Eu não pensaria isso, porque o Padre Sebastio poderia expulsar o Diabo se quisesse. Puxa, nunca tinha visto o bom padre tão zangado! Nunca. Surpreendente! Olhos azuis e cabelo dourado são a marca de Satã?

Mura olhou Blackthorne e lembrou-se de como tentara interrogá-lo a bordo do navio e depois, quando este capitão ficara inconsciente, resolvera trazê-lo para sua casa porque era o líder e devia merecer consideração especial. Haviam-no deitado sobre o acolchoado e o despiram, muito curiosos.

- As partes sem par dele certamente são impressionantes, neh? - dissera Saiko, a mãe de Mura. - Pergunto a mim mesma quão grandes não devem ser quando eretas.

- Grandes - respondera ele, e todos riram, a mãe, a esposa, os amigos, os criados e o médico.

- Suponho que as mulheres deles devam ser... devam ser igualmente dotadas - dissera Niji, sua esposa.

- Que absurdo, garota - dissera a mãe. - Um bom número das nossas cortesãs poderiam alegremente fazer a acomodação necessária. - Meneou a cabeça, espantada. - Nunca tinha visto nada como ele em toda a minha vida. Muito esquisito mesmo, neh?

Lavaram-no e ele não saíra do estado de coma. O médico não achara prudente mergulhá-lo num banho propriamente dito até que despertasse. — Talvez devêssemos nos lembrar, Mura-san, de que não sabemos como o bárbaro realmente é - dissera com cauteloso bom senso. — Sinto muito, mas poderíamos matá-lo por engano. Obviamente ele está no limite de suas forças. Devemos praticar a paciência.

- Mas e os piolhos no cabelo dele? - perguntara Mura.

- Por enquanto terão que ficar aí. Compreendo que todos os bárbaros os tenham. Sinto muito, mas eu aconselharia paciência.

- O senhor não acha que poderíamos ao menos lavar a cabeça dele? - dissera a esposa. - Seríamos muito cuidadosas. Tenho certeza de que a senhora supervisionaria nossos pobres esforços. Isso ajudaria o bárbaro e manteria nossa casa limpa.

- Concordo. Podem lavar a cabeça dele - dissera a mãe com determinação. - Mas eu certamente gostaria de saber qual é o tamanho dele quando ereto.

Agora Mura deu uma olhada para baixo da cintura de Blackthorne involuntariamente. Depois se lembrou do que o padre lhes dissera sobre aqueles satanistas e piratas. Deus, o Pai, nos proteja deste mal, pensou. Se soubesse que ele era tão terrível, nunca o teria trazido para a minha casa. Não, disse a si mesmo. Você é obrigado a tratá-lo como um hóspede especial até que Omi-san determine outra coisa. Mas você teve bom senso ao mandar avisar o padre e Omi-san imediatamente. Muito bom senso. Você é o chefe, você protegeu a aldeia e você, sozinho, é responsável. Sim. E Omi-san o responsabilizará pela morte desta manhã e pela impertinência do morto, e com toda a razão.

- Não seja estúpido, Tamazaki! Está pondo em risco o bom nome da aldeia, neh? - prevenira ele uma dúzia de vezes ao amigo, o pescador. — Pare com a sua intolerância. Omi-san não tem opção a não ser escarnecer dos cristãos. O nosso daimio não detesta cristãos? O que mais Omi-san pode fazer?

- Nada, concordo, Mura-san, por favor, desculpe-me. - Tamazaki sempre respondera assim formalmente. - Mas os budistas devem ter mais tolerância, neh? Os dois não são zen-budistas? - O zen-budismo era auto-disciplinador; contava fortemente com a auto-ajuda e a meditação para encontrar a Iluminação. A maioria dos samurais pertencia à seita zen-budista, já que ela convinha perfeitamente, parecia até destinada a um guerreiro orgulhoso, que buscava a morte.

- Sim, o budismo ensina a tolerância. Mas quantas vezes eu preciso lembrar-lhe que eles são samurais, e isto é Izu e não Kyushu, e mesmo que fosse Kyushu, você ainda seria o errado. Sempre. Neh?

- Sim. Por favor, desculpe-me, sei que estou errado. Mas algumas vezes sinto que não posso viver com a minha humilhação interior quando Omi-san é tão insultante para com a verdadeira fé.

E agora, Tamazaki, você está morto por sua própria escolha, porque insultou Omi-san não se curvando simplesmente porque ele disse "... este malcheiroso padre da religião estrangeira". Ainda que o padre realmente cheire e a verdadeira fé seja estrangeira. Meu pobre amigo. A verdade não vai alimentar sua família agora ou remover o estigma da minha aldeia. Oh, Madona, abençoe o meu velho amigo e dê-lhe a alegria do paraíso.

Espero muitos problemas com Omi-san, disse Mura a si mesmo. E como se isso não fosse mau o bastante, agora ainda vem o nosso daimio.

Uma ansiedade penetrante o invadia sempre que pensava no seu senhor feudal, Kasigi Yabu, daimio de Izu, tio de Omi — a crueldade e a falta de honra do homem, o modo como trapaceava com todas as aldeias quanto à parte justa de cada uma na pesca e na colheita, e o peso opressivo do seu governo. Quando a guerra chegar, perguntou Mura a si mesmo, por que lado Yabu vai se declarar, o do Senhor Ishido ou o do Senhor Toranaga? Estamos numa armadilha entre os gigantes, e empenhados com ambos.

Ao norte, Toranaga, o maior general vivo, senhor de Kwanto, as Oito Províncias, o daimio mais importante da terra, general chefe dos exércitos do leste; a oeste, os domínios de Ishido, senhor do castelo de Osaka, conquistador da Coréia, protetor do herdeiro, general-chefe dos exércitos do oeste. E ao norte, o Tokaido, a grande estrada costeira, que une Yedo, capital de Toranaga, a Osaka, capital de Ishido - trezentas milhas para oeste sobre as quais suas legiões têm que marchar.

Quem vencerá a guerra? Ninguém. Porque a guerra deles vai envolver o império novamente, as alianças se romperão, províncias lutarão contra províncias, até ser aldeia contra aldeia, como sempre foi. Exceto nos últimos dez anos. Nos últimos dez anos, inacreditavelmente, houvera uma ausência de guerra chamada paz por todo o império, pela primeira vez na história. Eu estava começando a gostar da paz, pensou Mura.

Mas o homem que fez a paz está morto. O soldado camponês que se tornou samurai e depois general e depois o maior general e finalmente o taicum, o absoluto Senhor Protetor do Japão, está morto há um ano, e seu filho de sete anos de idade é jovem demais para herdar o poder supremo. Assim, o menino, como nós, é um refém. Entre os gigantes. E a guerra é inevitável. Agora nem mesmo o taicum pode proteger seu amado filho, sua dinastia, sua herança, ou seu império.

Talvez seja como deve ser. O taicum conquistou a terra, fez a paz, forçou todos os daimios a abaixar-se como camponeses à sua frente, reorganizou feudos conforme a própria veneta - promovendo alguns, dissolvendo outros - e depois morreu. Era um gigante entre pigmeus. Mas talvez esteja certo que toda a sua obra e grandeza morressem com ele. O homem não é apenas uma flor levada pelo vento, e somente as montanhas, o mar, as estrelas e esta Terra dos Deuses são reais e duradouros?

Estamos todos numa armadilha e isso é um fato; a guerra virá logo, e isso é um fato; Yabu decidirá sozinho de que lado estamos, e isso é um fato; a aldeia será sempre uma aldeia, porque os campos macios são ricos, o mar abundante, e esse é um último fato.

Mura trouxe a mente firmemente de volta ao pirata bárbaro à sua frente. Você é um demônio, enviado para nos flagelar, pensou, e só nos causou problemas desde que chegou. Não podia ter escolhido outra aldeia?

- O capitão-san quer onna? - perguntou solicitamente. Por sugestão sua, o conselho da aldeia fizera arranjos materiais para os bárbaros, tanto por polidez quanto por ser um meio simples de mantê-los ocupados até que as autoridades chegassem. Que a aldeia se entretivesse com as histórias subseqüentes das ligações, mais do que se compensasse pelo dinheiro que tivera de ser investido.

- Onna - repetiu, naturalmente presumindo que, como o pirata estava de pé, ficaria igualmente contente de se pôr de bruços, sua Lança Sagrada calidamente envolvida antes de dormir, e de qualquer modo tinham-se feito todos os preparativos.

- Não! - Blackthorne queria apenas dormir. Mas como sabia que precisava que aquele homem estivesse do seu lado, forçou um sorriso, indicou o crucifixo.

- Você é cristão?

Mura assentiu.

- Cristão.

- Eu sou cristão.

- Padre diz não. Não cristão.

- Sou cristão. Não católico. Mas ainda sou cristão.

Mura não conseguiu compreender. E não houve como Blackthorne pudesse explicar, embora tentasse muito.

- Quer onna?

- O ... o dimio ... quando vem?

- Dimio? Não entende.

- Dimio ... ah, quero dizer, daimio.

- Ah, daimio. Hai, daimio! - Mura sacudiu os ombros. - Daimio vem quando vem. Dormir. Primeiro limpar. Por favor.

- O quê?

- Limpar. Banho, por favor.

- Não entendo.

Mura chegou mais perto e franziu o nariz com desagrado.

- Fede. Mau. Como todos os portugueis. Banho. Esta casa limpa.

- Tomo banho quando tiver vontade e não cheiro mal! - encolerizou-se Blackthorne. - Todo mundo sabe que os banhos são perigosos. Você quer que eu pegue o defluxo? Acha que sou algum maldito estúpido? Suma daqui e me deixe dormir!

- Banho! - ordenou Mura, chocado com a explosão de raiva do bárbaro, o cúmulo dos maus modos. E não era só que o bárbaro cheirasse mal, como de fato cheirava, mas, pelo que lhe constava, fazia três dias que ele não se banhava corretamente, e a cortesã com toda a razão se recusaria a deitar-se com ele, por maior que fosse a sua paga. Esses estrangeiros horríveis, pensou.

Surpreendente! Como seus hábitos são surpreendentemente imundos! Não importa. Sou o responsável por você. Você aprenderá bons modos. Vai tomar banho como um ser humano e a Mãe vai saber aquilo que quer saber. — Banho!

- Agora saia antes que eu o arrebente em pedaços! - Blackthorne encarou-o furioso, gesticulando para que se fosse.

Houve uma pausa momentânea e os outros três japoneses apareceram com três das mulheres. Mura explicou resumidamente o que estava acontecendo, depois disse a Blackthorne com determinação:

- Banho. Por favor.

- Fora!

Mura avançou sozinho para dentro do quarto. Blackthorne levantou o braço para a frente, não querendo ferir o homem, só para empurrá-lo. De repente soltou um berro de dor. De algum modo Mura lhe atingira o cotovelo com o lado da mão e agora o braço de Blackthorne pendia, momentaneamente paralisado. Furioso, atacou. Mas o quarto rodou, ele caiu de cara no chão, houve outra dor paralisante, penetrante, nas suas costas e ele não pôde se mover.

- Por Deus... - Tentou levantar-se, mas as pernas se curvaram ao seu peso. Depois, calmamente, Mura estendeu o dedo pequeno, mas duro como ferro, e tocou um centro nervoso na nuca de Blackthorne. Houve uma dor ofuscante.

- Meu bom Jesus...

- Banho? Por favor?

- Sim, sim - ofegou Blackthorne através de sua agonia, atônito de ter sido dominado com tanta facilidade por um homem tão minúsculo e agora jazer indefeso como qualquer criança, pronto para ter a garganta cortada.

Anos antes Mura aprendera as artes do judô e caratê, assim como a lutar com espada e lança. Isso fora quando ele era um guerreiro e lutara por Nakamura, o general camponês, o taicum - muito antes de o taicum tornar-se taicum -, quando os camponeses podiam ser samurais e os samurais podiam ser camponeses, ou artesãos, ou mesmo modestos mercadores, e guerreiros novamente. Estranho, pensou Mura distraidamente, olhando para o gigante caído, que praticamente a primeira coisa que o taicum tenha feito quando se tornou todo-poderoso tenha sido ordenar que todos os camponeses deixassem de ser soldados e imediatamente depusessem todas as armas. O taicum lhes; proibira as armas para sempre e estabelecera o sistema de castas imutáveis, que agora controlava todas as vidas no império: os samurais acima de todos, abaixo deles os camponeses, depois os artesãos, em seguida os mercadores, seguidos pelos atores, os párias e os bandidos, e finalmente, na base da escala, os eta, os não-humanos, os que lidavam com corpos mortos, com a defumação do couro e a manipulação de animais mortos, que também eram os carrascos públicos, os mutiladores e os que marcavam com ferro quente. Claro que todo bárbaro estava abaixo de consideração nessa escala.

- Por favor, desculpe-me, capitão-san - disse Mura, fazendo uma profunda reverência, envergonhado pela perda de dignidade do bárbaro, que jazia deitado ali, gemendo como um bebê de peito. Sim, sinto muito, pensou, mas tinha que ser feito. Você me provocou além de tudo o que era razoável, mesmo para um bárbaro. Grita como um lunático, perturba minha mãe, rompe a tranqüilidade de minha casa, incomoda os criados, e minha esposa já teve que substituir uma porta shoji. Eu não podia permitir que a sua óbvia falta de educação continuasse sem oposição. Ou permitir-lhe ir contra os meus desejos na minha própria casa. Na realidade é para o seu próprio bem. E depois, não é tão mau assim, porque vocês, bárbaros, na realidade não têm dignidade a perder. Exceto os padres - eles são diferentes. Ainda cheiram horrivelmente, mas são os ungidos de Deus, o Pai, portanto têm muita dignidade. Mas você... você é um mentiroso e um pirata.

Não tem honra. Que surpreendente! Bradando ser cristão! Infelizmente isso não vai ajudá-lo em absoluto. O nosso daimio odeia a verdadeira fé e os bárbaros, e os tolera só porque tem que tolerá-los. Mas você não é português nem cristão, portanto não é protegido pela lei, neh? Assim, ainda que você seja um homem morto, ou pelo menos um homem mutilado, é meu dever fazer que você siga o seu destino estando limpo.

- Banho muito bom!

Ajudou os outros homens a carregar Blackthorne, ainda entorpecido, através da casa, pelo jardim, ao longo de um caminho coberto do qual ele sentia muito orgulho, e para dentro da casa de banho. As mulheres vinham atrás.

Tornou-se uma das grandes experiências de sua vida. Na época soube que contaria e recontaria a história aos amigos incrédulos, esvaziando barris de saquê quente, como era chamado o vinho nacional do Japão; aos seus companheiros mais velhos, pescadores, aldeães, aos filhos deles, que também não lhe acreditariam de imediato. Mas-eles, por sua vez, regalariam os próprios filhos com o relato, e o nome de Mura, o pescador, viveria para sempre na aldeia de Anjiro, que ficava na província de Izu, na costa sudeste da ilha principal de Honshu. Tudo porque ele, Mura, o pescador, teve a boa fortuna de ser chefe da aldeia no primeiro ano após a morte do taicum e, portanto, temporariamente, responsável pelo chefe dos estranhos bárbaros que surgiram do mar oriental.


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