CAPÍTULO 41


O mensageiro desceu a galope a estrada na escuridão, em direção à aldeia adormecida. O céu estava matizado pelo amanhecer e os barcos de pesca noturna que estiveram lançando as redes perto dos bancos de areia vinham regressando. O mensageiro cavalgara sem descanso desde Mishima, através dos desfiladeiros e estradas ruins, requisitando cavalos descansados em todos os lugares onde pôde.

O cavalo martelou pelas ruas da aldeia — observado, agora, por olhos escondidos — através da praça e subindo o caminho para a fortaleza. Seu estandarte ostentava o emblema de Toranaga e ele conhecia a senha atual. Não obstante, foi detido e identificado quatro vezes antes de ser autorizado a entrar e ter uma audiência com o oficial do turno.

— Despachos urgentes de Mishima, Naga-san, mandados pelo Senhor Hiromatsu!

Naga pegou o rolo e correu para dentro. Ante a shoji pesadamente guardada, parou.

— Pai?

— Sim?

Naga correu a porta e esperou. A espada de Toranaga deslizou de volta para a bainha. Um dos guardas trouxe uma lâmpada de óleo.

Toranaga sentou-se sob o mosquiteiro e rompeu o lacre. Duas semanas antes ordenara que Hiromatsu, com um regimento de elite, se dirigisse secretamente para Mishima, a cidade-castelo na estrada Tokaido que guardava a entrada para o caminho que levava através das montanhas até as cidades de Atami e Odawara, na costa leste de Izu. Atami era o portão de ingresso para Odawara, ao norte. Odawara era a chave da defesa do Kwanto inteiro.

Hiromatsu escrevia:


Senhor, seu meio irmão, Zataki, senhor de Shinano, chegou aqui hoje, vindo de Osaka, pedindo um salvo-conduto para vê-lo em Anjiro. Viaja formalmente com cem samurais e carregadores, sob o emblema do “novo” conselho de regentes. Lamento informar-lhe que as notícias da Senhora Kiritsubo são corretas. Zataki tornou-se traidor e está abertamente alardeando a sua aliança com Ishido. O que ela não sabia é que Zataki agora é regente no lugar do Senhor Sugiyama. Ele me mostrou sua designação oficial, corretamente assinada por Ishido, Kiyama, Onoshi e Ito. Pedir-lhe que a mostrasse era tudo o que eu podia fazer para conter meus homens diante da arrogância dele e obedecer às suas ordens de deixar passar qualquer mensageiro de Ishido. Quis matar esse comedor de bosta pessoalmente. Viajando com ele vai o padre bárbaro, Tsukku-san, que chegou por mar ao porto de Numazu, proveniente de Nagasaki. Ele pediu permissão para visitá-lo, então despachei-o com o mesmo grupo. Mandei duzentos dos meus homens para escoltá-los. Chegarão a Anjiro dentro de dois dias. Quando o senhor retorna a Yedo? Os espiões dizem que Jikkyu está se mobilizando secretamente e chegam notícias de Yedo de que os clãs do nordeste estão prontos para atacar com Ishido, agora que Shinano de Zataki está contra o senhor. Rogo-lhe que deixe Anjiro imediatamente — retire-se por mar. Deixe Zataki segui-lo até Yedo, onde podemos lidar com ele adequadamente.


Toranaga socou o punho contra o chão.

— Naga-san. Traga Buntaro-san, Yabu-san e Omi-san imediatamente.

Chegaram todos rapidamente. Toranaga leu-lhes a mensagem.

— É melhor cancelarmos totalmente o treinamento. Mandem o Regimento de Mosquetes, todos os homens, para as montanhas. Não queremos nenhuma falha de segurança agora.

— Por favor, desculpe-me, senhor — disse Omi —, mas poderia considerar a interceptação do grupo sobre as montanhas. Digamos em Yokosé. Convide o Senhor Zataki — Omi escolheu o título cuidadosamente — para experimentar as águas de uma das nascentes das redondezas, mas faça a reunião em Yokosé. Então, depois de ele ter entregado a mensagem, ele e todos os seus homens podem ser escoltados até a fronteira, ou destruídos, como o senhor desejar.

— Não conheço Yokosé.

— É linda — disse Yabu com ares de importância —, quase no centro de Izu, senhor, num vale entre as montanhas. Fica ao lado do rio Kano. O Kano corre de norte, conseqüentemente através de Mishima e Numato, até o mar, neh? Yokosé fica numa encruzilhada de estradas que levam de norte a sul e de leste a oeste. Sim. Yokosé seria um bom lugar para encontrá-lo, senhor. A nascente Shuzenji fica perto — muito quente, muito boa, urna das nossas melhores. O senhor deve visitá-la, senhor. Acho que Omi-san fez uma boa sugestão.

— Poderíamos defendê-la com facilidade?

— Sim, senhor — disse Omi rapidamente. — Há uma ponte. O terreno cai abruptamente das montanhas. Quaisquer atacantes teriam que combater numa estrada coleante. As duas passagens podem ser defendidas com poucos homens. O senhor nunca sofreria uma emboscada. Temos homens mais que suficientes para defendê-lo e massacrar dez vezes o número deles — se necessário.

— Nós os massacraremos aconteça o que acontecer, neh? — disse Buntaro, com desprezo. — Mas melhor lá do que aqui. Senhor, por favor, deixe-me tornar o lugar seguro. Quinhentos arqueiros, nenhum mosqueteiro, todos a cavalo. Junto com os homens que meu pai enviou, teremos mais que o suficiente.

Toranaga conferiu a data no despacho.

— Atingirão a encruzilhada quando?

Yabu olhou para Omi pedindo confirmação.

— Esta noite, o mais tardar?

— Sim. Talvez não antes do amanhecer de amanhã.

— Buntaro-san, parta imediatamente — disse Toranaga. — Detenha-os em Yokosé, mas mantenha-os do outro lado do rio. Partirei ao amanhecer, amanhã, com outros cem homens. Devemos estar lá pelo meio-dia. Yabu-san, encarregue-se do nosso Regimento de Mosquetes por enquanto e guarde a nossa retirada. Ponha-o em emboscada do outro lado da estrada Heikawa, de modo que, se necessário, possamos nos retirar com a sua ajuda.

Buntaro começou a se retirar, mas parou quando Yabu disse, apreensivo:

— Como pode haver traição, senhor? Eles só têm cem homens.

— Espero traição. O Senhor Zataki não colocaria a própria cabeça nas minhas mãos sem um plano, pois, é claro, eu lhe tirarei a cabeça se puder — disse Toranaga. — Sem ele para liderar os seus fanáticos, teremos uma chance muito maior de atravessar as montanhas do seu feudo. Mas por que será que está arriscando tudo? Por quê?

Tentativamente, Omi disse:

— Ele não poderia estar pronto para trocar de aliado novamente?

Todos sabiam da antiga rivalidade que existia entre os meio irmãos. Uma rivalidade amistosa até agora.

— Não, não ele. Nunca confiei nele antes. Algum de vocês o faria agora?

Eles menearam a cabeça.

— Certamente não há nada para perturbá-lo, senhor — disse Yabu. — O Senhor Zataki é um regente, sim, mas é apenas um mensageiro, neh?

Imbecil, queria gritar Toranaga, você não compreende nada?

— Logo saberemos. Buntaro, vá imediatamente.

— Sim, senhor. Escolherei cuidadosamente o lugar para a reunião, mas não o deixe se aproximar além de dez passos. Estive com ele na Coréia. É rápido demais com a espada.

— Sim.

Buntaro saiu às pressas. Yabu disse: — Talvez Zataki possa ser tentado a trair Ishido. Uma recompensa talvez? Qual será a isca para ele? Mesmo sem a sua liderança, as montanhas de Shinano são cruéis.

— A isca é óbvia — disse Toranaga. — O Kwanto. Não é isso o que ele quer, o que sempre quis? Não é isso o que querem todos os meus inimigos? Não é isso o que o próprio Ishido quer?

Não lhe responderam. Não havia necessidade.

— Que Buda nos ajude — disse Toranaga gravemente. — A paz do táicum terminou. A guerra está começando.

Os ouvidos de Blackthorne, treinados no mar, tinham percebido a urgência nos cascos aproximando-se e sussurraram-lhe perigo. Ele acordara imediatamente, pronto para atacar ou recuar, todos os sentidos aguçados. Os cascos passaram, depois subiram a colina em direção à fortaleza, para morrer de novo.

Ele esperou. Não ouviu som de escolta seguindo. Provavelmente um mensageiro sozinho, pensou. De onde? É a guerra, já?

O alvorecer estava iminente. Agora Blackthorne podia ver uma pequena parte do céu. Estava nublado e carregado de chuva, o ar quente com um travo de sal, elevando o mosquiteiro de tempos em tempos. Um mosquito zumbia fracamente do lado de fora. Ele se sentiu muito satisfeito por estar dentro, seguro no momento. Goze da segurança e da tranqüilidade enquanto duram, disse a si mesmo.

Kiku dormia ao seu lado, enrolada como um gatinho. Com o cabelo em desalinho, parecia-lhe ainda mais bela. Cuidadosamente ele relaxou de novo na maciez dos acolchoados sobre o chão de tatami.

Isto é muito melhor do que uma cama. Melhor do que qualquer beliche — meu Deus, muito melhor! Mas logo estarei de novo a bordo, neh? Logo cairemos em cima do Navio Negro e o tomaremos, neh? Acho que Toranaga concordou embora não tenha dito isso abertamente. Simplesmente não concordou à moda japonesa? "Nada poderá jamais ser resolvido no Japão senão por métodos japoneses." Sim, acredito que isso seja verdade.

Gostaria de estar mais bem informado. Ele não disse a Mariko que traduzisse tudo e explicasse sobre os seus problemas políticos? Gostaria de ter dinheiro para comprar a minha nova tripulação. Ele não me deu dois mil kokus?

Pedi duzentos ou trezentos corsários. Ele não me deu duzentos samurais com todo o poder e dignidade de que necessito? Eles me obedecerão? Claro. Ele me fez samurai e hatamoto. Portanto obedecerão até a morte e eu os levarei para bordo do Erasmus, serão o meu destacamento de abordagem e eu comandarei o ataque.

Estou com uma sorte inacreditável! Tenho tudo o que quero. Exceto Mariko. Mas tenho até a ela. Tenho seu espírito secreto, o seu amor. E possuí o seu corpo na noite passada, a noite mágica que nunca existiu. Amamos sem amar. Faz muita diferença?

Não há amor entre mim e Kiku, apenas um desejo que floresceu. Foi formidável para mim. Espero que o tenha sido igualmente para ela. Tentei ser japonês integralmente e cumprir o meu dever, satisfazê-la como ela me satisfez.

Ele se lembrou de como usara um anel de prazer. Sentira-se muito desajeitado e constrangido e se voltara de costas para colocá-lo, petrificado ante a idéia de que sua força desapareceria. Mas não desapareceu. E depois, quando o anel estava no lugar, eles haviam "travesseirado" novamente. O corpo dela estremecia, se contorcia, e a vibração o elevara a um plano mais premente do que ele jamais conhecera.

Depois, quando conseguiu respirar de novo, começou a rir e ela sussurrara: — Por que ri? — e ele respondera: — Não sei, só sei que você me fez feliz.

Nunca tinha rido nesse momento, nunca. Tornou tudo perfeito. Não amo Kiku-san — eu a estimo. Amo Mariko-san sem reservas e gosto completamente de Fujiko-san.

Você dormiria com Fujiko-san? Não. Pelo menos, acho que não poderia.

Seu dever não é esse? Se você aceita os privilégios de samurai e exige que os outros o tratem totalmente como samurai, com tudo o que isso significa, deve aceitar as responsabilidades e deveres, neh? É apenas justo, neh? E honroso, neh? É seu dever dar um filho a Fujiko.

E Felicity. O que ela diria disso?

E quando você partir, como fica Fujiko-san, e como fica Mariko-san? Você realmente voltará para cá, abandonando o título de cavaleiro e as honras até maiores que certamente lhe serão concedidas, desde que retorne carregado de riquezas? Você navegará para os abismos hostis mais uma vez, para se arrebentar através do horror enregelante do estreito de Magalhães, suportar tempestade e mar e escorbuto e motim por outros seiscentos e noventa e oito dias para fazer um segundo desembarque aqui? Para levar esta vida de novo?

Decida!

Então se lembrou do que Mariko lhe dissera sobre compartimentos da mente: — Seja japonês, Anjin-san, o senhor tem que fazer isso, para sobreviver. Faça o que fazemos, renda-se ao ritmo do karma francamente. Alegre-se com as forças que estão além do seu controle. Coloque todas as coisas nos seus compartimentos separados e entregue-se à wa, a harmonia da vida. Entregue-se, Anjin-san, karma é karma, neh?

Sim. Decidirei quando chegar o momento.

Primeiro tenho que arranjar uma tripulação. Depois capturo o Navio Negro. Em seguida navego meio caminho em torno do mundo até a Inglaterra. Então compro e equipo os navios de guerra. E depois decidirei. Karma é karma.

Kiku mexeu-se, depois se enterrou mais fundo nos acolchoados, aconchegando-se mais a ele. Blackthorne sentiu-lhe o calor através dos quimonos de seda. E inflamou-se.

— Anjin-chan — murmurou ela, ainda adormecida. — Hai?

Não a despertou. Contentou-se em embalá-la e descansar, arrebatado pela serenidade que a entrega fio karma lhe dera. Mas antes de adormecer, abençoou Mariko por ter-lhe ensinado.

— Sim, Omi-san, certamente — disse Gyoko. — Vou buscar o Anjin-san imediatamente. Por favor, desculpe-me. Alço, venha comigo.

Gioko mandou Ako buscar chá, depois apressou-se jardim adentro, perguntando-se que notícias vitais o mensageiro noturno a galope teria trazido, pois também ela ouvira o tropel. E por que Omi está tão estranho hoje? Perguntou-se ela. Por que tão frio, áspero e perigoso? E por que veio pessoalmente, para uma tarefa tão baixa? Por que não enviou um samurai qualquer?

Ah, quem sabe? Omi é um homem. Como se pode compreendê-los, particularmente os samurais? Mas alguma coisa está errada, terrivelmente errada. Será que o mensageiro trouxe uma declaração de guerra? Suponho que sim. Se é a guerra, então é a guerra, e a guerra nunca prejudicou o nosso negócio. Daimios e samurais ainda precisarão de entretenimento, como sempre — mais até, em guerra —, e na guerra o dinheiro tem menos valor do que nunca para eles. Bom, bom, bom. Ela sorriu consigo mesma. Lembra-se da guerra, quarenta e muitos anos atrás, quando você tinha dezessete anos e era a menina dos olhos de Mishima? Lembra-se de todo o riso, "travesseiro" e noites de orgulho que se fundiram naqueles dias? Lembra-se de como serviu o Velho Baldy em pessoa, o pai de Yabu, o velho e bondoso cavalheiro que cozinhava criminosos como o filho faz agora? Lembra-se de como você teve que dar duro para deixá-lo flexível — ao contrário do filho! Gyoko soltou uma risadinha. "Travesseiramos" três dias e três noites, depois ele se tornou meu protetor por um ano inteiro. Bons tempos — um bom homem. Oh, como "travesseirávamos"!

Guerra ou paz, não importa! Shikata ga nai? Há o suficiente investido com os prestamistas e os comerciantes de arroz, um pouco aqui, um pouco ali. Depois há a fábrica de saque em Odawara, a casa de chá em Mishima está prosperando, e hoje o Senhor Toranaga vai comprar o contrato de Kiku!

Sim, tempos interessantes à frente, e como a noite anterior fora fantasticamente interessante! Kiku estivera brilhante, a explosão do Anjin-san aflitiva. E depois, quando a Senhora Toda os deixara, o talento de Kiku tornara tudo perfeito e a noite bem-aventurada. Ah, homens e mulheres. Tão previsíveis. Especialmente os homens. Bebês, sempre. Tolos, difíceis, terríveis, petulantes, flexíveis, horríveis — maravilhosos mais raramente —, mas todos nascidos com aquela saliência única, incrivelmente compensadora, que nós no negócio chamamos de Raiz de Jade, Cabeça de Tartaruga, Bico de Yang, Seta Aquecida, Intrometido do Macho, ou simplesmente Pedaço de Carne.

Que insultante! E no entanto tão adequado!

Gyoko casquinou e perguntou a si mesma pela décima milésima vez: por todos os deuses, vivos, mortos e ainda por nascer, o que faríamos neste mundo sem o Pedaço de Carne?

Ela correu de novo, seus passos audíveis apenas o bastante para anunciar a sua presença. Subiu os degraus de cedro polido. Sua batida foi experiente.

— Anjin-san... Anjin-san, desculpe, mas o Senhor Toranaga mandou buscá-lo. O senhor deve se dirigir à fortaleza imediatamente.

— O quê? O que foi que disse?

Ela repetiu em linguagem mais simples.

— Ah! Compreender! Está bem ... eu lá depressa — ela ouviu-o dizer, com seu sotaque engraçado.

— Sinto muito, por favor, desculpe-me. Kiku-san?

— Sim, Mama-san? — Num instante a shoji se abriu. Kiku sorriu para ela, apertando o quimono junto ao corpo, o cabelo lindamente desarranjado. — Bom dia, Mama-san, teve bons sonhos?

— Sim, sim, obrigada. Sinto muito perturbá-la, Kiku-san, gostaria de um pouco de chá fresco?

— Oh! — O sorriso de Kiku desapareceu. Aquela era a frase em código que Gyoko podia usar livremente diante de qualquer cliente, para dizer a Kiku que seu cliente mais especial, Omi-san, estava na casa de chá. Desse modo Kiku sempre podia terminar mais depressa a sua história, ou canção, ou dança, e ir ao encontro de Omi-san, se quisesse. Kiku "travesseirava" com muito poucos, embora entretivesse a muitos — se pagassem o preço. Muito, muito poucos podiam pagar todos os serviços dela.

— O que é? — perguntou Gyoko, atenta.

— Nada, Mama-san. Anjin-san — chamou Kiku alegremente —, desculpe, gostaria de tomar um chá?

— Sim, por favor.

— Estará aqui imediatamente — disse Gyoko. — Ako! Depressa, criança!

— Sim, ama. — Ako entrou com a bandeja de chá e duas xícaras, e serviu. Gyoko se afastou, novamente se desculpando por incomodá-los. Kiku deu a xícara a Blackthorne pessoalmente. Ele bebeu, sedento, depois ela o ajudou a se vestir. Ako estendeu um quimono limpo para ela. Kiku estava muito atenciosa, mas consumida pela idéia de que logo teria que acompanhar o Anjin-san até o lado de fora do portão e curvar-se para ele em despedida. Fazia parte das boas maneiras. Mais que isso, era um privilégio seu, e dever. Apenas as cortesãs de primeira classe eram autorizadas a ultrapassar a soleira para conferir aquela honra rara; todas as outras tinham que ficar dentro do pátio. Era impensável que ela não terminasse a noite como era esperado — isso seria um terrível insulto ao hóspede —, e no entanto...

Pela primeira vez na vida, Kiku não estava com vontade de se curvar para um convidado em despedida diante de outro convidado.

Não posso, não com o Anjin-san diante de Omi-san.

Por quê? perguntou a si mesma. É por que o Anjin-san é bárbaro e você está envergonhada de que todo mundo saiba que você foi possuída por um bárbaro? Não. Toda Anjiro já sabe e um homem é como qualquer outro, a maior parte do tempo. Este homem é samurai, hatamoto, e almirante dos navios do Senhor Toranaga! Não, não é nada disso.

O que é então?

É porque descobri durante a noite que estava envergonhada pelo que Omi-san fez a ele. Assim como nós todos devíamos estar. Omi-san nunca lhe devia ter feito aquilo. O Anjin-san está marcado a ferro e os meus dedos pareciam sentir a marca através da seda do quimono. Estou ardendo de vergonha por ele, um bom homem, a quem nunca devia ter sido feito aquilo.

Estou desonrada?

Não, claro que não, só estou envergonhada diante dele. E envergonhada diante de Omi-san por estar envergonhada.

Então, nos ermos da sua mente, ouviu Mama-san dizendo de novo: — Criança, criança, deixe ao homem as coisas de homens. O riso é o nosso lenitivo contra eles, e contra o mundo, os deuses e até a velhice.

— Kiku-san?

— Sim, Anjin-san?

— Agora eu vou.

— Sim. Vamos juntos — disse ela.

Ele pegou-lhe suavemente o rosto nas mãos ásperas e beijou-a. — Obrigado. Não palavras suficientes para agradecer.

— Sou eu quem deve agradecer. Por favor, permita-me agradecer-lhe, Anjin-san. Vamos agora.

Deixou que Ako lhe desse os últimos retoques no cabelo, que ela deixou pendendo frouxamente, amarrou o sash do quimono limpo, e saiu com ele.

Kiku caminhava ao seu lado, conforme era privilégio seu, e não alguns passos atrás, como uma esposa, consorte, filha ou criada era obrigada a fazer. Ele pôs a mão no ombro dela momentaneamente e isso foi desagradável para ela, pois não se encontravam na privacidade de um quarto. Então teve um súbito e horrível pressentimento de que ele ia beijá-la em público — o que Mariko mencionara como costume bárbaro —, ao portão. Oh, Buda, não deixe acontecer, pensou, quase desmaiando de susto.

As espadas dele estavam na sala de recepção. Por costume, todas as armas eram deixadas sob guarda, fora dos quartos de prazer, para evitar discussões letais entre clientes, e também para impedir qualquer dama de pôr fim à vida. Nem todas as damas do Mundo do Salgueiro eram felizes ou afortunadas.

Blackthorne pôs as espadas no sash. Kiku curvou-se e fê-lo passar à varanda, onde ele calçou as sandálias, Gyoko e outros reunidos para se despedir dele, um hóspede honrado. Além do portão estava a praça da aldeia e o mar. Muitos samurais estavam lá, andando em círculos, a esmo, Buntaro entre eles. Kiku não podia ver Omi, embora tivesse certeza de que ele estava observando de algum lugar.

O Anjin-san parecia imensamente alto, ela muito pequena ao seu lado. Agora estavam atravessando o pátio. Ambos viram Omi ao mesmo tempo. Estava em pé perto do portão.

Blackthorne parou. — Bom dia, Omi-san — disse como um amigo, e curvou-se como um amigo, sem saber que Omi e Kiku eram mais que amigos. Como poderia saber? pensou ela. Ninguém lhe disse, por que deveriam dizer-lhe? E o que importa isso, de qualquer modo?

— Bom dia, Anjin-san. — A voz de Omi estava amistosa também, mas ele o viu curvar-se apenas com a polidez suficiente. Depois os seus olhos de azeviche voltaram-se para ela de novo, que se curvou, com um sorriso perfeito. — Bom dia, Omi-san. Esta casa está honrada.

— Obrigado, Kiku-san. Obrigado.

Ela sentiu-lhe o olhar perscrutador, mas fingiu não notar, mantendo os olhos afetadamente baixos. Gyoko e as criadas e cortesãs que estavam livres observavam da varanda.

— Eu vou fortaleza, Omi-san — disse Blackthorne. — Está tudo bem?

— Sim. O Senhor Toranaga mandou chamá-lo. Ir agora. Esperar vê-lo em breve.

— Sim.

Kiku levantou os olhos num relance. Omi ainda a fitava. Ela sorriu o seu melhor sorriso e olhou para o Anjin-san. Este observava Omi intensamente; então, sentindo os olhos dela, voltou-se e correspondeu ao sorriso. A ela o sorriso pareceu constrangido. — Sinto muito, Kiku-san, Omi-san, devo ir agora. — Ele se curvou para Omi. Foi correspondido. Atravessou o portão. Ela o seguiu, quase sem respirar. O movimento parou na praça. No silêncio, ela o viu se voltar e por um terrível momento sentiu que ele ia abraçá-la. Mas para seu enorme alívio, ele não fez isso, e apenas permaneceu ali, esperando como uma pessoa civilizada esperaria.

Ela se curvou com toda a ternura que pôde reunir, o olhar de Omi cravado nela.

— Obrigada, Anjin-san — disse, e sorriu para ele apenas. Um suspiro atravessou a praça. — Obrigada. — Depois acrescentou o tradicional: — Por favor, visite-nos de novo. Contarei os momentos até que nos vejamos de novo.

Ele se curvou com a medida exata de negligência, e partiu a passos largos arrogantemente, como qualquer samurai de qualidade o faria. Depois, porque ele a tratara muito corretamente, e para pagar a Omi pela frieza desnecessária na mesura, ao invés de voltar para dentro de casa imediatamente, permaneceu onde estava, olhando o Anjin-san, para honrá-lo ainda mais. Esperou até que ele estivesse na última esquina. Viu-o olhar para trás. Acenar. Ela se curvou bem profundamente, agora encantada com a atenção na praça, fingindo não notá-la. E apenas quando ele realmente desapareceu foi que caminhou de volta. Com orgulho e grande elegância. E até que o portão se fechasse, todos os homens a olharam, nutrindo-se daquela beleza, invejosos do Anjin-san, que devia ser muito homem para que ela esperasse daquele modo.

— Você está muito bonita — disse Omi.

— Gostaria que isso fosse verdade — disse ela com um sorriso contido. — Aceitaria um pouco de chá, Omi-sama? Ou comida?

— Com você, sim.

Gyoko juntou-se a eles untuosamente. — Por favor, desculpe-me os maus modos, Omi-sama. Coma conosco, por favor. Já tomou a sua primeira refeição?

— Não... ainda não, mas não estou com fome. — Omi olhou Kiku de relance. — Você ainda não comeu?

Gyoko interrompeu expansivamente: — Permita-nos trazer-lhe alguma coisa que não seria inadequado demais, Omi-sama. Kiku-san, quando se tiver trocado junte-se a nós, neh?

— Naturalmente. Por favor, desculpe-me, Omi-sama, por aparecer assim. Sinto muito. — A garota saiu correndo, fingindo uma felicidade que não sentia, Ako a reboque.

Omi disse abruptamente: — Eu gostaria de estar com ela esta noite, para comer e me entreter.

— Naturalmente, Omi-sama — replicou Gyoko com uma profunda mesura, sabendo que ela não estaria livre. — O senhor honra a minha casa e nos concede muita honra. Kiku-san é muito afortunada de que o senhor a distinga com o seu favor.

— Três mil kokus? — Toranaga estava escandalizado.

— Sim, senhor — disse Mariko. Estavam na varanda particular da fortaleza. A chuva já começara de novo, mas não abrandara o calor do dia. Ela se sentia desatenta, muito cansada, e ansiando pelo frescor do outono. — Sinto muito, mas não consegui negociar de modo que a mulher reduzisse mais o preço. Conversei quase até o amanhecer. Sinto muito, senhor, mas ordenou-me que concluísse um acordo na noite passada.

— Mas três mil, Mariko-san! Isso é usura! — Na realidade Toranaga estava contente por ter outro problema que lhe desviasse a mente da preocupação que o atormentava. O padre cristão Tsukku-san viajando com Zataki, o regente pretensioso, não pressagiava nada além de complicação. Ele examinara cada via de escapada, cada estrada de retirada e ataque que cada homem poderia imaginar, e a resposta fora sempre a mesma: se Ishido se mover rapidamente, estou perdido. Tenho que arranjar tempo. Mas como?

Se eu fosse Ishido, começaria agora, antes que as chuvas cessassem.

Colocaria os homens em posição, exatamente como o táicum e eu fizemos para destruir os Beppu. O mesmo plano vencerá sempre — é tão simples! Ishido não pode ser tão estúpido para não ver que o único meio real de defender o Kwanto é possuir Osaka, e todas as terras entre Yedo e Osaka. Enquanto Osaka for inamistosa, o Kwanto estará em perigo. O táicum sabia disso, por que outro motivo me deu o Kwanto? Sem Kiyama, Onoshi e os padres bárbaros...

Com um esforço, Toranaga colocou o amanhã dentro do seu compartimento e se concentrou totalmente naquela impossível quantia em dinheiro. — Três mil kokus está fora de questão!

— Concordo, senhor. O senhor está certo. A culpa é inteiramente minha. Achei que até quinhentos seria excessivo, mas a mulher Gyoko não desceu mais o preço. Há uma concessão, porém.

— Qual?

— Gyoko implorou a honra de reduzir o preço para dois mil e quinhentos kokus se o senhor lhe conceder a honra de concordar em vê-Ia em particular por um bastão de tempo.

— Uma Mama-san desistiria de quinhentos kokus só para falar comigo?

— Sim, senhor.

— Por quê? — perguntou ele, desconfiado.

— Ela me contou a razão, senhor, mas humildemente suplicou pela autorização de poder explicar-lhe pessoalmente. Acredito que a proposta dela lhe seria interessante, senhor. E quinhentos kokus... seria uma economia. Estou horrorizada por não ter conseguido fazer um acordo melhor, ainda que Kiku-san seja de primeira classe e mereça absolutamente esse status. Sei que lhe falhei.

— Concordo — disse Toranaga acidamente. — Mesmo mil seria demais. Isto é Izu, não Kyoto!

— Tem toda a razão, senhor. Eu disse à mulher que o preço era tão ridículo, que possivelmente nem eu mesma conseguiria concordar com ele, embora o senhor me tivesse dado ordens diretas de concluir o negócio à noite passada. Espero que o senhor perdoe a minha desobediência, mas eu disse que primeiro consultaria a Senhora Kasigi, a mãe de Omi-san, que é a dama mais velha aqui, antes que o acordo fosse confirmado.

Toranaga iluminou-se, suas outras preocupações esquecidas. — Ah, então está arranjado, mas não está?

— Sim, senhor. Não foi nada decidido até que eu possa me consultar com a Senhora Kasigi. Eu disse que daria uma resposta ao meio-dia de hoje. Por favor, perdoe a minha desobediência.

— Você devia ter concluído o negócio, conforme ordenei! — Toranaga estava secretamente encantado com que Mariko tivesse inteligentemente dado a ele a oportunidade de concordar ou discordar sem qualquer perda de dignidade. Teria sido impensável que ele, pessoalmente, relutasse por uma mera questão de dinheiro. Mas oh ko, três mil kokus... — Você diz que o contrato da garota vale o suficiente, em arroz, para alimentar mil famílias durante três anos?

— Vale cada grão de arroz, para o homem certo. Toranaga olhou-a, perspicaz. — Oh? Conte-me sobre ela e sobre o que aconteceu.

Ela lhe contou tudo — exceto seu sentimento pelo Anjin-san e a profundidade do dele por ela. Ou sobre a oferta que Kiku lhe fizera.

— Bom. Sim, muito bom. Isso foi inteligente. Sim — disse Toranaga. — Ele deve ter-lhe agradado muitíssimo, para que ela ficasse ao portão como ficou, na primeira vez. — A maior parte de Anjiro estivera à espera daquele momento, para ver como os dois agiriam, o bárbaro e a Senhora Salgueiro de primeira classe.

— Sim.

— Os três kokus investidos valeram bem a pena para ele. Sua fama agora correrá à sua frente.

— Sim — concordou Mariko, muito orgulhosa com o sucesso de Blackthorne. — Ela é uma dama excepcional, senhor.

Toranaga estava intrigado com a confiança de Mariko no seu acordo. Mas quinhentos kokus pelo contrato teria sido mais justo. Quinhentos kokus era mais do que a maioria das Mama-sans conseguia ganhar a vida inteira, portanto, para que uma delas sequer considerasse a possibilidade de desistir de quinhentos... — Vale cada grão, você diz? Mal posso acreditar nisso.

— Para o homem certo, senhor. Acredito que sim. Mas não saberia julgar quem seria o homem certo.

Houve uma batida na shoji.

— Sim?

— O Anjin-san está ao portão principal, senhor. — Traga-o aqui.

— Sim, senhor.

Toranaga abanou-se. Estivera observando Mariko dissimuladamente e vira a luz momentânea no seu rosto. Deliberadamente não a prevenira de que mandara chamá-lo.

O que fazer? Tudo o que foi planejado ainda se aplica. Mas agora preciso de Buntaro, do Anjin-san e de Omi-san mais do que nunca. E de Mariko, muitíssimo.

— Bom dia, Toranaga-sarna.

Ele retribuiu a mesura de Blackthorne e notou-lhe o súbito calor quando o homem viu Mariko. Houve saudações e réplicas formais, depois ele disse: — Mariko-san, diga-lhe que vai partir comigo ao amanhecer. Você também. Você continuará até Osaka.

Um calafrio percorreu-a. — Sim, senhor.

— Eu vou Osaka, Toranaga-sama? — perguntou Blackthorne.

— Não, Anjin-san. Mariko-san, diga-lhe que vou à nascente Shuzenji por um dia ou dois. Vocês dois me acompanharão até lá. Você continuará para Osaka. Ele viajará com você até a fronteira, depois seguirá para Yedo sozinho.

Observou-os atentamente enquanto Blackthorne falava com ela, rápida e urgentemente.

— Desculpe-me, Toranaga-sama, mas o Anjin-san humildemente pergunta se poderia me tomar emprestada por mais alguns dias. Ele diz, por favor, desculpe-me, que a minha presença com ele aceleraria grandemente o assunto do seu navio. Depois, se lhe aprouvesse, ele tomaria imediatamente um dos seus navios costeiros e me levaria a Osaka, seguindo sozinho para Nagasaki. Ele sugere que isso poderia poupar tempo.

— Ainda não decidi nada sobre o navio. Ou sobre uma tripulação. Ele pode não precisar ir a Nagasaki. Deixe isso bem claro. Não, nada está decidido. Mas considerarei a solicitação a seu respeito. Você terá a minha decisão amanhã. Pode ir agora... Oh, sim, por último, Mariko-san, diga-lhe que quero a genealogia dele. Ele pode escrever e você traduzirá, ratificando-lhe a correção.

— Sim, senhor. O senhor deseja isso imediatamente?

— Não. Quando ele chegar a Yedo haverá tempo suficiente.

Mariko explicou a Blackthorne.

— Por que ele quer isso? — perguntou ele.

Mariko encarou-o. — Naturalmente todos os samurais têm que ter seus nascimentos e mortes registrados, Anjin-san, assim como seus feudos e concessões de terras. De que outro modo um suserano pode manter tudo avaliado? Não acontece o mesmo no seu país? Aqui, por lei, todos os nossos cidadãos constam de registros oficiais, até os etas: nascimentos, mortes, casamentos. Cada vila, aldeia ou rua de cidade tem o seu pergaminho oficial. De que outro modo se pode ter certeza de onde e a quem se pertence?

— Nós não escrevemos isso. Nem sempre. E não oficialmente. Todo mundo é registrado? Todo mundo?

— Oh, sim, até os etas, Anjin-san. É importante, neh? Assim ninguém finge ser o que não é, malfeitores podem ser apanhados com mais facilidade, e homens e mulheres ou parentes não podem trapacear em casamentos, neh?

Blackthorne pôs isso de lado para consideração posterior e jogou outra carta no jogo que iniciara com Toranaga, o que, esperava ele, levaria à morte do Navio Negro.

Mariko ouviu atentamente, interrogou-o um momento, depois voltou-se para Toranaga. — Senhor, o Anjin-san lhe agradece pelo seu favor e os seus muitos presentes. Pergunta se o senhor o honraria escolhendo os duzentos vassalos para ele. Diz que a sua orientação nisso valeria qualquer coisa.

— Vale mil kokus? — perguntou Toranaga imediatamente. Viu a surpresa dela e a do Anjin-san. Estou contente de que você ainda seja transparente, Anjin-san, apesar de toda a sua aparência de civilização, pensou ele. Se eu fosse um jogador, apostaria que não era essa a sua idéia — pedir a minha orientação.

— Hai — ouviu Blackthorne dizer com firmeza.

— Bom — retrucou ele, incisivo. — Já que o Anjin-san é tão generoso, aceitarei o seu oferecimento. Mil kokus. Isso ajudará outros samurais necessitados. Diga-lhe que os seus homens o estarão esperando em Yedo. Vejo-o ao amanhecer, amanhã, Anjin-san.

— Sim. Obrigado, Toranaga-sama.

— Mariko-san, consulte-se com a Senhora Kasigi imediatamente. Já que você aprovou a quantia, imagino que ela concordará com o seu arranjo, por mais hediondo que pareça, embora eu suponha que ela precisará de tempo até o amanhecer para dar a uma soma tão ridícula sua consideração plena. Mande algum criado ordenar à mulher Gyoko que esteja aqui ao crepúsculo. Ela pode trazer a cortesã consigo. Kiku-san pode cantar enquanto conversamos, neh?

Dispensou-os, encantado com o fato de ter poupado mil e quinhentos kokus. As pessoas são tão extravagantes, pensou benevolamente.

— Isso me deixará o suficiente para conseguir uma tripulação? — perguntou Blackthorne.

— Oh, sim, Anjin-san. Mas ele ainda não concordou com que o senhor vá a Nagasaki — disse Mariko. — Quinhentos kokus seria mais que suficiente para viver durante um ano, e os outros quinhentos lhe darão cerca de cento e oitenta kobans em ouro, para contratar marujos. É uma grande quantia de dinheiro.

Fujiko ergueu-se penosamente e falou com Mariko.

— Sua consorte diz que o senhor não devia se preocupar, Anjin-san. Ela pode lhe dar cartas de crédito a certos prestamistas, que lhe adiantarão tudo de que o senhor necessitar. Ela arranjará tudo.

— Sim, mas não tenho que pagar a todos os meus assistentes? Como pago por uma casa, Fujiko-san, minha criadagem?

Mariko estava chocada. — Por favor, desculpe, mas isso naturalmente não é preocupação sua. A sua consorte lhe disse que se encarregará de tudo. Ela...

Fujiko interrompeu e as duas mulheres conversaram um instante.

— Ah so desu, Fujiko-san! — Mariko voltou-se para Blackthorne. — Ela diz que o senhor não deve perder tempo pensando nisso. Roga-lhe, por favor, que gaste o seu tempo preocupando-se apenas com os problemas do Senhor Toranaga. Ela tem dinheiro seu, que pode sacar, caso seja necessário.

Blackthorne pestanejou. — Ela me emprestará o seu próprio dinheiro?

— Oh, não, Anjin-san, claro que o dará ao senhor, se necessitar, Anjin-san. Não se esqueça de que os seus problemas são só por este ano — explicou Mariko. — No próximo ano o senhor estará rico. Quanto aos seus assistentes, por um ano eles receberão dois kokus cada um. Não se esqueça de que Toranaga-sama está dando ao senhor todas as armas e cavalos deles, e que dois kokus são suficientes para alimentá-los, aos seus cavalos e famílias. E não se esqueça, também, de que deu ao Senhor Toranaga metade da sua renda de um ano para garantir que eles seriam escolhidos por ele pessoalmente. Isso é uma honra tremenda, Anjin-san.

— Acha?

— Certamente. Fujiko-san concorda inteiramente. O senhor foi muito astuto ao pensar nisso.

— Obrigado. — Blackthorne permitiu que um pouco do seu prazer se mostrasse. Você está recuperando os miolos, e está começando a pensar como eles, disse a si mesmo alegremente. Sim, foi inteligente cooptar Toranaga. Agora você terá os melhores homens possíveis, e sozinho nunca teria conseguido isso. O que são mil kokus contra o Navio Negro? Portanto, mais uma das coisas que Mariko disse é verdade: que uma das fraquezas de Toranaga é ser sovina. Claro, não o disse tão diretamente, disse apenas que Toranaga fez toda a sua inacreditável riqueza aumentar mais do que a de qualquer daimio do reino. Esse indício, junto com as suas próprias observações — que a roupa de Toranaga era tão simples quanto a sua comida, e o seu estilo de vida pouco diferente do de um samurai comum —, havia-lhe dado outra chave para desvendar Toranaga.

Graças a Deus por Mariko e por Frei Domingo!

A memória de Blackthorne levou-o de volta à cela e ele pensou em como estivera próximo da morte, então, e em como estava próximo da morte agora, mesmo com todas as suas honrarias. O que Toranaga dá, pode tomar de volta. Você acha que ele é seu amigo, mas se ele assassinaria uma esposa e mataria um filho favorito, como você pode dar valor à amizade dele ou à sua vida? Não dou, disse Blackthorne a si mesmo, renovando o seu compromisso. Isso é karma. Não posso fazer nada em relação ao karma, e vivi próximo da morte a vida toda, portanto não há nada de novo. Rendo-me ao karma em toda a sua beleza. Aceito o karma em toda a sua majestade. Confio em que o karma me fará atravessar os próximos seis meses. Depois, por esta altura no próximo ano, estarei atravessando de vento em popa o passo de Magalhães, a caminho de Londres, fora do alcance dele...

Fujiko estava falando. Ele a observou. As bandagens ainda estavam manchadas. Ela estava penosamente deitada sobre os futons, uma criada a abaná-la.

— Ela arranjará tudo para o senhor até o amanhecer, Anjin-san — disse Mariko. — Sua consorte sugere que o senhor leve dois cavalos e um cavalo de bagagem. Um criado homem e uma criada...

— Um criado homem será suficiente.

— Sinto muito, mas a criada deve ir para servi-lo. E, naturalmente, um cozinheiro e um ajudante de cozinheiro.

— Não haverá cozinhas que nós... eu possa usar?

— Oh, sim. Mas o senhor ainda tem que ter os seus próprios cozinheiros, Anjin-san. O senhor é um hatamoto.

Ele sabia que não havia sentido em argumentar. — Deixarei tudo por sua conta.

— Oh, isso é sábio de sua parte, Anjin-san, muito sábio.

Agora devo ir fazer as malas, por favor, desculpe-me. — Mariko partiu alegremente. Não haviam conversado muito, só o suficiente, em latim, para que ambos soubessem que, embora a noite mágica nunca tivesse ocorrido e, como a outra noite, não devesse nunca ser discutida, ambas viveriam na imaginação deles para sempre.

— Fiquei tão orgulhosa quando soube que ela permaneceu ao portão por tanto tempo! A sua dignidade é imensa agora, Anjin-san.

— Por um instante quase esqueci o que a senhora me tinha dito. Involuntariamente cheguei à distância de um fio de cabelo de beijá-la em público.

— Oh ko, Anjin-san, isso teria sido terrível!

— Oh ko, a senhora tem razão! Não fosse pela senhora, eu estaria desonrado... um verme contorcendo-se no pó.

— Em vez disso, é famoso e a sua proeza indubitável. O senhor apreciou algum daqueles objetos curiosos?

— Ah, linda senhora, na minha terra temos um antigo costume: um homem não discute os hábitos íntimos de uma dama com outra.

— Temos o mesmo costume. Mas perguntei se foi apreciado, não usado. Sim, temos o mesmo costume. Estou contente de que a noite tenha sido a seu gosto. — O sorriso dela era acolhedor. — Ser japonês no Japão é sábio, neh?

— Não posso lhe agradecer o suficiente por me haver ensinado, por me haver orientado, por me ter aberto os olhos — disse ele. — Por... — Ele ia dizer "me amar", mas acrescentou: — por ser.

— Não fiz nada. O senhor é o senhor mesmo.

— Agradeço-lhe, por tudo... e pelo seu presente.

— Estou contente de que o seu prazer tenha sido grande.

— Estou triste de que o seu prazer tenha sido nenhum. Estou muito contente de que a senhora também tenha recebido ordem de ir à nascente. Mas por que Osaka?

— Oh, não recebi ordem de ir para Osaka. O Senhor Toranaga me autorizou a ir. Temos propriedades e assuntos de família que devem ser tratados. Além disso, meu filho se encontra lá agora. Depois, também, posso levar mensagens particulares para Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko.

— Não é perigoso? Lembre-se das suas palavras: a guerra se aproxima e Ishido é o inimigo. O Senhor Toranaga não disse o mesmo?

— Sim. Mas ainda não há guerra, Anjin-san. E samurais não combatem contra mulheres, a menos que as mulheres os ataquem.

— Mas a senhora? E a ponte em Osaka, do outro lado do fosso? A senhora não me seguiu para enganar Ishido? Ele me teria matado. E lembre-se da sua espada na luta no navio.

— Ah, aquilo foi só para proteger a vida do meu suserano, e a minha vida, quando esteve ameaçada. Era meu dever, Anjin-san, nada mais que isso. Não há risco para mim. Fui dama de companhia da Senhora Yodoko, a viúva do táicum, até da Senhora Ochiba, mãe do herdeiro. Tenho a honra de ser amiga delas. Estou absolutamente segura. E por isso que Toranaga-sama me autoriza a ir. Mas para o senhor em Osaka não há segurança, por causa da fuga do Senhor Toranaga, e do que foi feito ao Senhor Ishido. Portanto o senhor não deve nunca aportar lá. Nagasaki lhe será segura.

— Então ele concordou com a minha ida?

— Não. Ainda não. Mas quando o fizer, será seguro. Ele tem poder em Nagasaki.

Ele queria perguntar "maior do que o dos jesuítas?", mas apenas disse: — Rezo para que o Senhor Toranaga ordene que a senhora vá de navio para Osaka. — Viu-a tremer ligeiramente. — O que a perturba?

— Nada, exceto... exceto que o mar não me agrada. — Ele ordenará assim mesmo?

— Não sei. Mas... — ela se transformou de novo na arreliadora travessa e disse em português: — mas, pela sua saúde, devíamos levar Kiku-san conosco, neh? Esta noite o senhor vai de novo à Câmara Rubro-Escarlate dela?

Ele riu com ela. — Seria ótimo, embora... — Parou, lembrando-se com súbita clareza do olhar de Omi. — Sabe, Mariko-san, quando eu estava ao portão, tenho certeza de que vi Omi-san olhando para ela de um modo muito especial, como um amante olharia. Um amante ciumento. Eu não sabia que eles eram amantes.

— Consta-me que ele é um dos clientes dela, um cliente favorecido, sim. Mas por que isso o preocuparia?

— Porque foi um olhar muito particular. Muito especial.

— Ele não tem direito especial sobre ela, Anjin-san. Ela é uma cortesã de primeira classe. E livre para aceitar ou rejeitar quem lhe apraza.

— Se estivéssemos na Europa e eu "travesseirasse" com a garota dele... compreende, Mariko-san?

— Acho que sim, Anjin-san, mas por que isso o preocuparia? Não está na Europa, Anjin-san, ele não tem nenhum direito formal sobre ela. Se ela quer aceitá-lo e a ele, ou mesmo rejeitar o senhor ou a ele, o que isso tem a ver com qualquer coisa?

— Eu diria que ele é amante dela, no nosso sentido da palavra. Isso tem tudo a ver, neh?

— Mas o que tem isso a ver com a profissão dela, ou com "travesseiro"?

Ele acabou por agradecer-lhe de novo e deixou a questão parar nesse ponto. Mas sua cabeça e seu coração diziam-lhe que estivesse alerta. Não é tão simples quanto você pensa, Mariko-san, mesmo aqui. Omi acredita que Kiku é mais que especial, mesmo que ela não sinta o mesmo. Gostaria de ter sabido que ele era amante dela. Prefiro ter Omi como amigo a tê-lo como inimigo. Mariko poderia estar certa de novo? Que "travesseiro" não tem nada a ver com amor, para eles?

Deus me ajude, estou muito confuso. Agora, um oriental; na maior parte, um ocidental. Tenho que agir como eles e pensar como eles para continuar vivo. E muito daquilo em que eles acreditam é tão melhor do que o nosso modo de pensar, que é tentador querer tornar-me um deles totalmente, e ainda assim... o lar é lá, do outro lado do mar, onde nasceram meus ancestrais, onde vive a minha família, Felicity, Tudor e Elizabeth. Neh?

— Anjin-san?

— Sim, Fujiko-san?

— Por favor, não se preocupe com dinheiro. Não posso suportar vê-lo preocupado. Sinto tanto não poder ir a Yedo com o senhor.

— Logo ver em Yedo, neh?

— Sim. O médico diz que estou me curando depressa e a mãe de Omi concorda.

— Quando médico aqui?

— Ao pôr-do-sol. Sinto muito não poder ir amanhã. Por favor, desculpe-me.

Ele se perguntou de novo sobre o seu dever para com a consorte. Depois devolveu esse pensamento ao seu compartimento quando um outro se precipitou para a frente. Examinou essa idéia e achou-a excelente. E urgente. — Eu vou agora, volto logo. Você descansa ... compreende? Com o senhor?

— Sim. Por favor, desculpe-me por não me levantar, e por... sinto muito.

Ele a deixou e foi para o seu quarto. Pegou uma pistola do esconderijo, examinou a escorva, e enfiou-a por sob o quimono. Depois caminhou sozinho até a casa de Omi. Omi não estava. Midori deu-lhe as boas-vindas e ofereceu-lhe chá, que ele polidamente recusou. Midori estava com seu bebê de dois anos nos braços. Disse que sentia muito, mas Omi voltaria logo. O Anjin-san gostaria de esperar? Ela parecia pouco à vontade, embora polida e atenciosa. Novamente ele recusou e agradeceu, dizendo que voltaria mais tarde, depois desceu para a sua casa.

Aldeãos já haviam limpado o chão, preparando para reconstruir tudo. Nada fora poupado ao incêndio, exceto utensílios de cozinha. Fujiko não lhe contaria o custo da reconstrução. Era muito barato, dissera. Por favor, não se preocupe.

— Karma, Anjin-sama — disse um dos aldeãos.

— Sim.

— O que se poderia fazer? Não se preocupe, sua casa logo estará pronta... melhor do que antes.

Blackthorne viu Omi subindo a colina, tenso e rígido. Foi ao seu encontro. Quando Omi o viu, pareceu perder parte da fúria. — Ah, Anjin-san — disse cordialmente. — Ouvi dizer que vai partir com Toranaga-sama ao amanhecer. Muito bom, podemos cavalgar juntos.

Apesar da aparente amistosidade de Omi, Blackthorne manteve-se em guarda.

— Ouça, Omi-san, agora eu vou lá. — Apontou na direção do altiplano. — Por favor, o senhor vai comigo, sim? — Não há treinamento hoje.

— Compreender. Por favor, ir comigo, sim?

Omi viu que a mão de Blackthorne estava no punho da espada mortífera, ao modo característico, preparando-a. Depois seus olhos agudos notaram o volume sob o sash e ele entendeu imediatamente, pela forma parcialmente delineada, que era uma pistola escondida. — Um homem que tem autorização de usar as duas espadas deveria ser capaz de utilizá-las, não apenas usá-las, neh? — disse, a voz fraca.

— Por favor? Não compreendo.

Omi repetiu, mais simplesmente.

— Ah, compreendo. Sim. Melhor.

— Sim. O Senhor Yabu disse — agora que o senhor é totalmente samurai — que devia começar a aprender mais do que consideramos correto. Como agir como assistente num seppuku, por exemplo — e mesmo como se preparar para o seu próprio seppuku, conforme somos todos obrigados a aprender. Sim, Anjin-san, o senhor devia aprender a usar as espadas. É muito necessário para um samurai saber como usar e honrar sua espada, neh?

Blackthorne não compreendeu metade das palavras. Mas sabia o que Omi estava dizendo. Pelo menos, corrigiu-se ele, apreensivo, sei o que ele está dizendo na superfície.

— Sim. Verdade. Importante — disse ele. — Por favor, um dia o senhor ensinar... desculpe, o senhor ensina, talvez? Por favor? Eu honrado.

— Sim, gostaria de ensinar-lhe, Anjin-san.

Os pêlos de Blackthorne se eriçaram ante a ameaça implícita na voz de Omi. Atenção, censurou-se ele. Não comece a imaginar coisas. — Obrigado. Agora caminhar lá, por favor? Pouco tempo. O senhor vai com? Sim?

— Muito bem, Anjin-san. Mas iremos a cavalo. Volto num instante. — Omi afastou-se colina acima, entrando no seu próprio pátio.

Blackthorne ordenou a um criado que selasse o seu cavalo e montou desajeitadamente pelo lado direito, conforme o costume no Japão e na China. Não penso que haveria muito futuro em deixá-lo me ensinar esgrima, disse a si mesmo, a mão direita apalpando a pistola escondida, o agradável calor da arma tranqüilizando-o. Sua confiança esvaneceu-se quando Omi reapareceu. Com ele vinham quatro samurais montados.

Juntos tomaram a estrada destruída a meio galope, em direção ao altiplano. Passaram por muitas companhias de samurais em equipamento de marcha completo, armados, comandados pelos seus oficiais, galhardetes de lança esvoaçando. Quando alcançaram o cume, viram que todo o Regimento de Mosquetes estava fora do acampamento, em ordem de marcha, cada homem em pé ao lado do seu cavalo armado, um comboio de bagagem na retaguarda, Yabu, Naga e os oficiais na vanguarda. A chuva começou a cair pesadamente.

— Todas as tropas vão? — perguntou Blackthorne, perturbado, e puxou as rédeas do seu cavalo.

— Sim.

— Vão nascente com Toranaga-sama, Omi-san?

— Não sei.

O sentido de sobrevivência de Blackthorne preveniu-o para não fazer mais perguntas. Mas uma tinha que ser feita. — E Buntaro-sama? — perguntou com indiferença. — Ele conosco amanhã, Omi-san?

— Não. Ele já foi. Esta manhã ele estava na praça quando você saiu da casa de chá. Não o viu, perto da casa de chá?

Blackthorne não conseguiu ler nada de aparente no rosto de Omi.

— Não. Não ver, sinto muito. Ele ir nascente também?

— Acho que sim. Não tenho certeza. — A chuva gotejava do chapéu cônico de Omi, amarrado sob o queixo. Seus olhos estavam quase escondidos. — Agora por que quis que eu viesse aqui com você?

— Mostrar lugar, como eu digo. — Antes que Omi pudesse dizer qualquer coisa mais, Blackthorne esporeou o cavalo. Com o seu acurado sentido marítimo, tomou posições precisas de memória e se dirigiu rapidamente para o ponto exato sobre a fenda. Desmontou e chamou Omi com um gesto. — Por favor.

— O que é, hein? — A voz de Omi estava afiada.

— Por favor, aqui, Omi-san. Sozinho.

Omi afastou os guardas com um aceno e avançou até estar sobranceiro a Blackthorne. — Nan desu ka? — perguntou, sua mão aparentemente apertando a espada.

— Este lugar Toranaga-sama... — Blackthorne não conseguia pensar nas palavras, então explicou parcialmente com as mãos. — Compreende?

— Aqui você o arrancou da terra, neh? E daí?

Blackthorne olhou para ele, depois deliberadamente para a espada dele, depois encarou-o de novo, sem dizer mais nada. Enxugou a chuva do rosto.

— Nan desu ka? — repetiu Omi, mais irritado.

Blackthorne ainda não respondeu. Omi olhou para a fenda e novamente para o rosto de Blackthorne. Então seus olhos se iluminaram. — Ah so desu! Wakarimasu! — Omi pensou um momento, depois chamou um dos guardas. — Traga Mura aqui imediatamente. Com vinte homens e pás!

O samurai se afastou a galope. Omi mandou os outros de volta à aldeia, depois desmontou e parou ao lado de Blackthorne. — Sim, Anjin-san, foi uma excelente idéia. Uma boa idéia.

— Idéia? Que idéia? — perguntou Blackthorne com inocência. — Só mostrar lugar... pensar o senhor querer conhecer lugar, neh? Sinto muito... não compreendo.

— Toranaga-sama perdeu as espadas aqui — disse Omi.

— As espadas são muito valiosas. Ele ficará feliz em recuperá-las. Muito feliz, neh?

— Ah so! Não minha idéia, Omi-san — disse Blackthorne. — Omi-san idéia.

— Claro. Obrigado, Anjin-san. O senhor é um bom amigo e sua mente é rápida. Eu devia ter pensado nisso sozinho. Sim, o senhor é um bom amigo e todos nós precisaremos de amigos nos próximos meses. A guerra está conosco agora, queiramos ou não.

— Por favor? Sinto muito. Não compreendo, falar depressa demais. Por favor, desculpe.

— Contente de sermos amigos... o senhor e eu. Compreende?

— Hai. O senhor diz guerra? Guerra agora?

— Logo. O que podemos fazer? Nada. Não se preocupe. Toranaga-sama dominará Ishido e os traidores. Essa é a verdade, compreende? Não se preocupe, neh?

— Compreender. Eu vou agora, minha casa. Está bem?

— Sim. Vejo-o ao amanhecer. Novamente obrigado.

Blackthorne assentiu. Mas não foi embora. — Ela é bonita, neh?

O quê?

— Kiku-san. — As pernas de Blackthorne estavam ligeiramente separadas e ele estava pronto para saltar para trás e sacar a pistola, apontar e atirar. Lembrava-se com clareza absoluta da inacreditável rapidez com que Omi decapitara o primeiro aldeão, muito tempo atrás, e se preparou do melhor modo que pôde. Raciocinou que sua única segurança estava em precipitar o assunto de Kiku. Omi nunca o faria. Omi consideraria impensável essa falta de educação. E, muito envergonhado com a própria fraqueza, Omi trancaria esse ciúme muito não-japonês num compartimento secreto. Como era estranho e vergonhoso, esse ciúme apodreceria até que, quando menos se esperasse, Omi explodisse cega e ferozmente.

— Kiku-san? — disse Omi.

— Hai. — Blackthorne podia ver que Omi estava petrificado. Ainda assim, ficou contente de ter escolhido o momento e o lugar. — Ela é bonita, neh?

— Bonita?

— Hai.

A chuva aumentou. As pesadas gotas respingavam na lama. Os cavalos arrepiavam desconfortavelmente. Os dois homens estavam encharcados, mas a chuva era quente.

— Sim — disse Omi. — Kiku-san é muito bonita — e pronunciou uma torrente de palavras que Blackthorne não assimilou.

— Não palavras suficientes agora, Omi-san... não suficientes para falar claro agora — disse Blackthorne. — Mais tarde, sim. Não agora. Compreende?

Omi não pareceu ter ouvido. Depois disse: — Há muito tempo, Anjin-san, muito tempo para falar sobre ela, e sobre o senhor, eu e karma. Mas concordo, este não é o momento, neh?

— Acho compreender. Sim. Ontem não saber Omi-san e Kiku-san bons amigos — disse ele, forçando o ataque.

— Ela não é minha propriedade.

— Não saber o senhor e ela muito amigos. Agora...

— Agora vá embora. O assunto está encerrado. A mulher não é nada. Nada. Obstinado, Blackthorne continuou onde estava. — Próxima vez eu...

-— Esta conversa está encerrada! Não ouviu? Acabada! — lyé! Iyé, por Deus!

A mão de Omi foi para a sua espada. Blackthorne saltou dois passos para trás sem perceber. Mas Omi não sacou a arma e Blackthorne não puxou a espada. Os dois homens se prepararam, embora nenhum dos dois quisesse começar.

— O que quer dizer, Anjin-san?

— Próxima vez, primeiro eu pergunto ... sobre Kiku-san. Se Omi-san dizer sim... sim. Se não... não! Compreende? Amigo para amigo, neh?

Omi relaxou ligeiramente a mão sobre a espada. — Repito: ela não é minha propriedade. Obrigado por me ter mostrado este lugar, Anjin-san. Adeus.

— Amigo?

— Claro. — Omi dirigiu-se para o cavalo de Blackthorne e segurou as rédeas. Blackthorne saltou para a sela.

Olhou para Omi. Se pudesse sair ileso, sabia que teria estourado a cabeça do samurai agora. Seria o rumo mais seguro. — Adeus, Omi-san, e obrigado.

— Adeus, Anjin-san. — Omi observou Blackthorne se afastando e não voltou as costas até que ele estivesse sobre a elevação. Marcou o lugar exato na fenda com algumas pedras e depois, perturbado, acocorou-se para esperar, esquecido do dilúvio.

Logo chegaram Mura e os camponeses, salpicados de lama.

— Toranaga-sama caiu no abismo exatamente neste ponto,

Mura. As suas espadas estão enterradas aqui. Traga-as a mim ao crepúsculo.

— Sim, Omi-sarna.

— Se você tivesse miolos, se estivesse interessado em mim, seu suserano, já teria feito isso.

— Por favor, desculpe a minha estupidez.

Omi foi embora. Os homens o observaram brevemente, depois se espalharam num círculo em torno das pedras, e começaram a cavar.

Mura baixou a voz. — Uo, você irá com o comboio de bagagem.

Sim, Mura-san. Mas como?

— Vou oferecê-lo ao Anjin-san. Ele não vai notar diferença alguma.

— Mas a consorte dele, oh ko, vai — sussurrou Uo.

Ela não vai com ele. Ouvi dizer que as queimaduras são graves. Ela irá de navio para Yedo mais tarde. Você sabe o que fazer?

— Procurar o santo padre em particular, responder a todas as perguntas.

— Sim. — Mura descontraiu-se e começou a conversar normalmente. — Você pode ir com o Anjin-san, Uo, ele pagará bem. Faça-se útil, mas não demais, ou ele o levará até Yedo.

Uo riu. — Ei, ouvi dizer que Yedo é tão rica que todo mundo mija em potes de prata, até os etas. E as mulheres têm a pele como espuma do mar, sem pêlos púbicos.

— É verdade, Mura-san? — perguntou outro aldeão. — Elas não têm pelinhos?

— Yedo era só uma fedorenta aldeiazinha de pesca, nada de tão bom quanto Anjiro, quando estive lá a primeira vez — contou-lhes Mura, sem parar de cavar. — Isso foi com Toranaga-sama, quando estávamos todos dando caça aos Beppu. Cortamos mais de três mil cabeças. Quanto aos pêlos, todas as garotas que conheci os tinham, menos uma da Coréia, mas ela disse que os arrancara, um a um.

— O que algumas mulheres não fariam para nos atrair, hein? — disse alguém.

— Sim. Mas eu gostaria de ver isso — disse Ninjin desdentadamente. — Sim, gostaria de ver um Portão de Jade sem um bosque.

— Eu apostaria um barco carregado de peixe contra um balde de merda como dói arrancar todos aqueles pêlos. — Uo assobiou.

— Quando eu for um kami, vou morar no Pavilhão do Paraíso de Kiku-san! Dizem que ela nasceu perfumada e sem pêlos!

Em meio à risada, Uo perguntou: — Fez alguma diferença, Mura-san, atacar o Portão de Jade sem o bosque?

— Foi o mais próximo que eu já consegui chegar. Iiiiih! Cheguei mais perto e mais fundo do que nunca, e isso é importante, neh? Por isso sei que é sempre melhor que a garota tire o bosque, embora algumas sejam supersticiosas com relação a isso e outras se queixem da coceira. Fica mais perto para a gente, e muito mais para ela... e chegar perto faz toda a diferença, neh? — Eles riram e se abraçaram sobre a escavação. O buraco crescia sob a chuva.

— Aposto como o Anjin-san chegou mais perto a noite passada, para que ela ficasse ao portão daquele jeito! Iüih, o que eu não daria para ter sido ele. — Uo enxugou o suor da testa. Como todos os demais, usava apenas uma tanga e um chapéu cônico de bambu, e estava descalço.

— Iiiiih! Eu estava lá, Uo, na praça, e vi tudo. Vi o sorriso dela e o senti descer até a minha Fruta e os meus artelhos.

— Sim — disse outro. — Tenho que admitir que só o sorriso dela me deixou duro como um remo.

— Mas não tão grande quanto o do Anjin-san, hein, Murasan? — casquinou Uo. — Vamos, conte-nos a história de novo.

Alegremente Mura aquiesceu e contou sobre a primeira noite e a casa de banho. A história melhorara à medida que fora sendo repetida, mas nenhum deles se importava.

— Oh, ser tão imenso! — Uo fez de conta que carregava uma gigantesca ereção à sua frente, e riu tanto que escorregou na lama.

— Quem teria imaginado que o bárbaro estrangeiro sairia do buraco para o paraíso? — Mura curvou-se sobre a sua pá um instante, recobrando fôlego. — Eu nunca teria acreditado... como uma lenda antiga. Karma, neh?

— Talvez ele tenha sido um de nós, numa vida anterior, e tenha voltado com a mesma mente mas uma pele diferente.

Ninjin assentiu. — Isso é possível. Deve ser... porque, pelo que disse o santo padre, eu pensei que ele estaria ardendo na fornalha do Diabo há muito tempo. O padre não disse que rogaria uma praga especial nele? Eu o ouvi invocar a vingança do grande kami Jesus sobre o Anjin-san e, oh ko, até eu fiquei muito assustado. — Persignou-se e os outros mal notaram isso. — Mas Jesus Cristo, Nossa Senhora, Deus punem seus inimigos muito estranhamente, se é que vocês querem saber a minha opinião.

— Bem — disse Uo —, eu não sou cristão, como vocês bem sabem, mas, sinto muito, parece-me que o Anjin-san é um bom homem, por favor, desculpem-me, e melhor do que o padre cristão, que fedia, praguejava e assustava todo mundo. E ele tem sido bom conosco, neh? Trata bem a sua gente... alguns dizem que ele é amigo do Senhor Toranaga, deve ser com todas as honrarias, neh? E não se esqueçam de que Kiku-san o honrou com o seu Rego de Ouro.

— É de ouro, sim. Ouvi dizer que a noite lhe custou cinco kobans!

— Quinze kokus por uma noite? — exclamou Ninjin. — Iiiiiih, que sorte o Anjin-san tem! Tem um kami ótimo para um inimigo de Deus Pai, Filho, e Nossa Senhora.

— Ele pagou um koban, três kokus — disse Mura. — Mas se vocês acham que isso é muito... — Parou e olhou em torno com ar de conspiração, para se certificar de que não havia ouvidos clandestinos, embora soubesse, é claro, que com aquela chuva não haveria nenhum -— e mesmo que houvesse, que importava?

Todos pararam e se aproximaram. — Sim, Mura-san?

— Simplesmente ouvi dizer que ela vai ser consorte do Senhor Toranaga. Ele comprou o contrato dela esta manhã. Três mil kokus.

Era uma cifra assustadora, mais do que a aldeia inteira ganhava com peixe e arroz em vinte anos. O respeito por Kiku aumentou, se é que isso era possível. E pelo Anjin-san, que fora portanto o último homem na terra a desfrutar dela como cortesã de primeira classe.

— Iiiiih! — resmungou Uo, falando com dificuldade. — Tanto dinheiro... não sei se quero vomitar, mijar ou peidar.

— Não faça nenhuma das três coisas — disse Mura laconicamente. — Cave. Vamos encontrar as espadas.

Obedeceram, cada um perdido nos próprios pensamentos. Inexoravelmente o buraco se aprofundava.

Logo Ninjin, ardendo de preocupação, não conseguiu mais se conter e parou de cavar. — Mura-san, por favor, desculpe-me, mas o que decidiu sobre as novas taxas? — perguntou. Os outros pararam.

Mura continuou cavando no seu ritmo metódico, esfalfante. — O que há para decidir? Yabu-sama diz paguem, nós pagamos, neh?

— Mas Toranaga-sama reduziu os nossos impostos para quatro partes sobre dez e ele é o nosso suserano agora.

— Verdade. Mas o Senhor Yabu recebeu Izu de volta, e Suruga e Totomi junto, e se tornou governador de novo, portanto quem é o nosso suserano?

— Toranaga-sama. Certamente, Mura-san, Tora...

— Você vai se queixar para ele, Ninjin? Hein? Acorde, Yabu-sama é governador como sempre foi. Nada mudou. E se ele sobe os impostos, pagamos mais impostos. Está acabado!

— Mas isso vai levar todos os nossos estoques de inverno. Tudo. — A voz de Ninjin era um lamento enraivecido, mas todos eles sabiam da verdade do que ele dissera. — Mesmo com o arroz que roubamos...

— O arroz que poupamos! — sibilou Uo, corrigindo-o.

— Mesmo com isso, não haverá o suficiente para durar todo o inverno. Teremos que vender um bote ou dois.

— Não venderemos bote algum — disse Mura. Espetou a pá na lama e enxugou o suor de sobre os olhos, reamarrou o cordão do chapéu com mais firmeza. Depois começou a cavar de novo. — Trabalhe, Ninjin. Isso lhe desviará a mente do amanhã.

— Como agüentamos o inverno, Mura-san?

— Ainda temos que atravessar o verão.

— Sim — concordou Ninjin amargamente. — Pagamos mais de dois anos de impostos adiantados e ainda não é suficiente. — Karma, Ninjin — disse Uo.

— A guerra se aproxima. Talvez tenhamos um novo senhor que seja mais justo, neh? — disse outro. — Não pode ser pior... ninguém poderia ser pior.

— Não apostem nisso — disse Mura a todos. — Vocês estão vivos ... mas podem estar totalmente mortos rapidamente e então não haverá mais Regos de Ouro, com ou sem bosque. — Sua pá atingiu a rocha e ele parou. — Dê-me uma mão, Uo, amigo velho.

Juntos tiraram a rocha à força da lama. Um cochichou ansiosamente: — Mura-san, e se o santo padre perguntar sobre as armas?

— Conte-lhe. E diga-lhe que estamos prontos... que Anjiro está pronta.


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