CAPÍTULO 31
O dia estava morrendo agora, as sombras alongadas, o mar vermelho, e um vento suave soprando.
Blackthorne vinha subindo o caminho da aldeia, em direção à casa que Mariko lhe indicara e que dissera seria sua. Ela esperara escoltá-lo até lá, mas ele agradecera, recusara, e caminhara por entre os aldeões ajoelhados rumo ao promontório, para ficar sozinho e pensar.
Achara o esforço de pensar grande demais. Nada parecia se encaixar. Molhara a cabeça com água salgada para tentar aclarar as idéias, mas não ajudara. Finalmente desistira e retornara à toa pela praia, passara ao lado do molhe, cruzara a praça e atravessara a aldeia, até a casa onde devia viver agora e onde, lembrou-se ele, não havia uma residência antes. Lá em cima, dominando a ladeira oposta, havia outra moradia, maior, parte de sapé, parte de telhas, por trás de uma alta paliçada, com muitos guardas junto ao portão fortificado.
Samurais pavoneavam-se pela aldeia ou paravam em grupos, conversando. A maior parte já marchara atrás dos respectivos oficiais, seguindo em grupos disciplinados pelas veredas e por sobre a colina, rumo ao acampamento. Os samurais que Blackthorne encontrou, saudou-os distraidamente e foi correspondido. Não viu aldeões. Blackthorne parou do lado de fora do portão encaixado na cerca. Havia mais daqueles caracteres peculiares pintados no batente, e a porta era escavada em desenhos habilidosos, planejados para esconder e ao mesmo tempo revelar o jardim lá atrás.
Antes que pudesse abrir a porta, ela girou para dentro e um velho atemorizado curvou-se para ele.
- Konbanwa, Anjin-san. - A voz dele tremulava de modo
deplorável.
- Konbanwa. Ouça, meu velho, er... o namae ka?
- Namae watashi wa, Anjin-san? Ah, watashi Ueki-ya... Ueki-ya. - O velho estava quase cantando de alívio.
Blackthorne disse o nome várias vezes para ajudar a lembrar, e acrescentou "san". O velho sacudiu a cabeça violentamente:
- Iyé, gomen nasai! Iyé "san", Anjin-sama. Ueki-ya! Ueki-ya!
- Está bem, Ueki-ya. - Mas, pensou Blackthorne, por que não "san", como todos os demais?
Blackthorne dispensou-o com um gesto. O velho afastou-se coxeando, rápido.
- Terei que ser mais cuidadoso. Tenho que ajudá-los - disse em voz alta.
Uma criada apreensiva apareceu na varanda, atravessando uma shoji, e curvou-se profundamente.
- Konbanwa, Anjin-san.
- Konbanwa - respondeu ele, reconhecendo-a vagamente do navio. Também a afastou com um gesto.
Um roçar de seda. Fujiko surgiu de dentro da casa. Mariko veio com ela.
- Seu passeio foi agradável, Anjin-san?
- Sim, agradável, Mariko-san. - Mal a notou, assim como a Fujiko, a casa ou o jardim.
- Gostaria de tomar um pouco de chá? Ou saquê, talvez? Ou talvez um banho? A água está quente. - Mariko riu nervosa, perturbada pela expressão dos olhos dele. - A casa de banho não está completamente acabada, mas esperamos que seja adequada.
- Saquê, por favor. Sim, saquê primeiro, Mariko-san.
Mariko falou com Fujiko, que desapareceu mais uma vez dentro da casa. Uma criada trouxe silenciosamente três almofadas e se afastou. Mariko sentou-se graciosamente sobre uma delas.
- Sente-se, Anjin-san, deve estar cansado.
- Obrigado.
Sentou-se nos degraus da varanda e não tirou as sandálias.
Fujiko trouxe dois frascos de saquê e uma xícara de chá, conforme Mariko lhe dissera, e não os minúsculos cálices de porcelana que deviam ser usados.
- É melhor lhe dar muito saquê rapidamente - dissera Mariko. - O melhor seria deixá-lo logo bêbado, mas o Senhor Yabu precisa dele esta noite. Um banho e saquê talvez o reconfortem.
Blackthorne bebeu a xícara de vinho aquecido que lhe foi oferecida sem saboreá-lo. Depois uma segunda. E uma terceira. As duas haviam-no observado a subir a colina, através da fenda de shojis ligeiramente entreabertas.
- O que há com ele? - perguntara Fujiko, alarmada.
- Está angustiado com o que o Senhor Yabu disse, o compromisso da aldeia.
- Por que isso deveria incomodá-lo? Ele não está ameaçado. Não foi a vida dele que foi ameaçada.
- Os bárbaros são diferentes de nós, Fujiko-san. Por exemplo, o Anjin-san acredita que os aldeões são pessoas como outras pessoas, como samurais, alguns até melhores do que samurais.
Fujiko rira nervosamente.
- Que absurdo, neh? Como é que camponeses podem ser iguais a samurais?
Mariko não respondera. Simplesmente continuara a observar o Anjin-san.
- Coitado.
- Coitada da aldeia! - O curto lábio superior de Fujiko se contraiu desdenhosamente. - Um estúpido desperdício de camponeses e pescadores! Kasigi Yabu é um imbecil! Como é que um bárbaro pode aprender a nossa língua em meio ano? Quanto tempo levou o bárbaro Tsukku-san? Mais de vinte anos, neh? E ele não é o único bárbaro que jamais foi capaz de falar japonês, mesmo passavelmente?
- Não, não o único, embora seja o melhor que eu já conheci. Sim, é difícil para eles. Mas o Anjin-san é um homem inteligente e o Senhor Toranaga disse que, em meio ano, isolado dos bárbaros, comendo a nossa comida, vivendo como nós, tomando chá, tomando banho todos os dias, o Anjin-san logo será como um de nós.
O rosto de Fujiko enrijecera.
- Olhe para ele, Marikosan... tão feio. Tão monstruoso e estranho. Curioso pensar que apesar do muito que detesto os bárbaros, assim que ele atravessar o portão estou comprometida e ele se torna meu senhor e amo.
- Ele é corajoso, muito corajoso, Fujiko. Salvou a vida do Senhor Toranaga e é muito valioso para ele.
- Sim, eu sei, e isso deveria fazer com que eu desgostasse menos dele, mas sinto muito, não faz. Ainda assim, tentarei com todas as minhas forças transformá-lo num de nós. Rezo para que Buda me ajude.
Mariko quisera perguntar à sobrinha o motivo da súbita mudança. Por que estava tão preparada para servir o Anjin-san e obedecer ao Senhor Toranaga tão absolutamente, quando naquela manhã mesma se recusou a obedecer-lhe, jurou matar-se sem permissão ou matar o bárbaro no momento em que ele adormecesse? O que foi que o Senhor Toranaga disse para mudála, Fujiko?
Mas Mariko sabia que não devia perguntar, Toranaga não lhe confidenciara o motivo. Fujiko não lhe contaria. A garota fora bem educada pela mãe, irmã de Buntaro, que fora educada pelo pai, Hiromatsu.
Pergunto a mim mesma se o Senhor Hiromatsu escapará do Castelo de Osaka, pensou Mariko, que gostava muito do velho general, seu sogro. E Kiri-san e a Senhora Sazuko? Onde estará Buntaro, meu marido? Onde terá sido capturado? Ou será que teve tempo para morrer?
Mariko observou Fujiko servir a última dose de saquê. Essa xícara também foi consumida como as outras, sem expressão.
- Dozo. Saquê - disse Blackthorne. Mais saquê foi trazido. E terminado. - Dozo, saquê.
- Mariko-san - disse Fujiko -, o amo não devia beber mais, neh? Vai ficar bêbado. Por favor, perguntê-lhe se gostaria de tomar banho agora. Mandarei buscar Suwo.
Mariko perguntou.
- Desculpe, ele disse que tomará banho mais tarde.
Pacientemente Fujiko mandou servir mais saquê e Mariko acrescentou, dirigindo-se à criada:
- Traga um pouco de peixe grelhado.
O novo frasco foi esvaziado com a mesma determinação silenciosa. A comida não o tentou, mas ele pegou um pedaço, ante a graciosa persuasão de Mariko. Não comeu. Trouxeram mais vinho, e mais dois frascos foram consumidos.
- Por favor, peça desculpas ao Anjin-san - disse Fujiko.
- Sinto muito, mas não há mais saquê na casa dele. Diga-lhe que peço desculpas por essa falta. Mandei a criada buscar mais na aldeia.
- Ótimo. Ele já bebeu mais que o suficiente, embora não pareça ter sido afetado em absoluto. Por que não nos deixa agora, Fujiko? Seria um bom momento para fazer o oferecimento formal em seu nome.
Fujiko curvou-se para Blackthorne e saiu, contente com o costume que decretava que os assuntos importantes deviam sempre ser tratados por uma terceira pessoa, em particular. Assim a dignidade podia sempre ser preservada, por ambas as partes.
Mariko explicou a Blackthorne sobre o vinho.
- Quanto tempo vai levar para trazerem mais?
- Não muito. Talvez o senhor gostasse de tomar um banho agora. Providenciarei para que o saquê lhe seja enviado assim que chegar.
- Toranaga disse alguma coisa sobre o meu plano antes de partir? Sobre a marinha?
- Não. Sinto muito, ele não disse nada sobre isso. - Mariko estivera atenta aos sinais reveladores de embriaguez, mas para sua surpresa, nenhum aparecera, nem um leve rubor, ou palavras se enrolando. Com aquela quantidade de vinho, consumida tão depressa, qualquer japonês estaria bêbado. - O vinho não é do seu agrado, Anjin-san?
- Não, de fato. É fraco demais. Não me dá nada.
- Procura esquecimento?
- Não... uma solução.
- Qualquer coisa que possa ser feita para ajudá-lo será feita.
- Preciso de livros, papel e penas.
- Amanhã começarei a reuni-los para o senhor.
- Não, esta noite, Mariko-san. Preciso começar agora.
- O Senhor Toranaga disse que lhe mandaria um livro... como foi que o senhor chamou?... livros de gramática e livros de palavras dos santos padres.
- Quanto tempo isso vai levar?
- Não sei. Mas estou aqui por três dias. Talvez isso possa servir-lhe de auxílio. E Fujiko-san também está aqui para ajudar. - Ela sorriu, feliz por ele. - Estou honrada em lhe dizer que ela foi dada ao senhor como consorte e...
- O quê?
- O Senhor Toranaga perguntou a ela se seria sua consorte, ela disse que ficaria honrada e concordou. Ela...
- Mas eu não concordei.
- Por favor? Desculpe, não compreendo.
- Não a quero. Nem como consorte nem à minha volta. Acho-a feia.
Mariko olhou-o embasbacada.
- Mas o que isso tem a ver com consorte?
- Diga-lhe que vá embora.
- Mas, Anjin-san, não pode recusá-la! Isso seria um terrível insulto ao Senhor Toranaga, a ela, a todo mundo! Que mal ela lhe fez? Nenhum absolutamente! Usagi Fujiko é...
- Escute aqui! - As palavras de Blackthorne ricochetearam em torno da varanda e da casa. - Diga a ela que vá embora!
Mariko disse imediatamente:
- Sinto muito, Anjin-san. sim, o senhor tem razão de estar zangado. Mas...
- Não estou zangado - disse Blackthorne friamente. - Será que vocês... será que vocês não conseguem enfiar na cabeça que estou cansado de ser um fantoche? Não quero essa mulher por perto, quero o meu navio de volta, a minha tripulação, e isso é tudo! Não vou ficar aqui seis meses e detesto os seus costumes. É absolutamente terrível que um homem possa ameaçar arrasar uma aldeia inteira, só para que me ensinem japonês, e quanto a consortes, isso é pior do que escravidão, e é um maldito insulto arranjar isso sem me consultar antes!
Qual é o problema agora? estava se perguntando Mariko, desesperada. O que a feiúra tem a ver com consorte? E de qualquer modo Fujiko não é feia. Como é que ele pode ser tão incompreensivo? Então se lembrou da advertência de Toranaga:
- Mariko-san, você é pessoalmente responsável, primeiro por que Yabu-san não interfira na minha partida depois de eu lhe dar a minha espada, e, segundo, é totalmente responsável por que o Anjin-san se instale docilmente em Anjiro.
- Farei o melhor possível, senhor. Mas receio que o Anjin-san me desconcerte.
- Trate-o como a um gavião. É essa a chave. Eu amanso um gavião em dois dias. Você tem três.
Ela desviou os olhos de Blackthorne e pôs o cérebro a funcionar. Ele realmente parece um gavião quando está furioso, pensou ela. Tem o mesmo guincho, a mesma ferocidade irracional, e quando não está furioso, o mesmo olhar fixo, altivo, o mesmo egoísmo total, com uma malignidade explosiva nunca muito distante.
- Concordo. O senhor tem toda a razão. Agiram de modo terrível com o senhor, fazendo-lhe uma imposição, e tem toda a razão de estar zangado - disse ela, apaziguadora. - Sim, e certamente o Senhor Toranaga deveria ter-lhe perguntado, ainda que não compreenda os seus costumes. Mas nunca ocorreu a ele que o senhor faria objeções. Só tentou honrá-lo como faria com seu samurai favorito. Ele o fez hatamoto, o que é quase como um parente, Anjin-san. Há apenas cerca de mil hatamotos em todo o Kwanto. E quanto à Senhora Fujiko, ele só estava tentando aju¬dá-lo. A Senhora Usagi Fujiko seria considerada... entre nós, Anjin-san, isso seria considerado uma grande honra.
- Por quê?
- Porque a linhagem dela é antiga e ela é muito educada. Seu pai e seu avô são daimios. Claro que é uma samurai, e claro - acrescentou Mariko delicadamente - que o senhor a honraria aceitando-a. E ela precisa de fato de um lar e de uma nova vida.
- Por quê?
- Enviuvou recentemente. Tem apenas dezenove anos, Anjin-san, pobre garota, mas perdeu o marido e o filho, e está cheia de remorso. Ser sua consorte formal daria a ela uma nova vida.
- O que aconteceu ao marido e ao filho?
Mariko hesitou, importunada pela descortês objetividade de Blackthorne. Mas já conhecia o bastante sobre ele para compreender que isso era costume dele e não significava falta de educação.
- Foram condenados à morte, Anjin-san. Enquanto o senhor estiver aqui, necessitará de alguém que cuide da sua casa. A Senhora Fujiko será...
- Por que os condenaram à morte?
- O marido dela quase causou a morte do Senhor Toranaga. Por favor...
- Toranaga ordenou a morte deles?
- Sim. Mas agiu corretamente. Pergunte a ela, ela concordará, Anjin-san.
- Que idade tinha a criança?
- Alguns meses, Anjin-san.
- Toranaga condenou um recém-nascido à morte, por alguma coisa que o pai fez?
- Sim. É o nosso costume. Por favor, tenha paciência conosco. Em algumas coisas não somos livres. Nossos costumes são diferentes dos seus. Veja, por lei pertencemos ao nosso suserano. Por lei um pai é senhor da vida dos filhos, da esposa, das consortes e dos criados. Por lei a vida dele pertence ao seu suserano. É o nosso costume.
- Então um pai pode matar qualquer um na sua casa?
- Sim.
- Então vocês são uma nação de assassinos.
- Não.
- Mas o seu costume desculpa o assassínio. Pensei que a senhora fosse cristã.
- Eu sou, Anjin-san.
- E os dez mandamentos?
- Não consigo explicar, realmente. Mas sou cristã, samurai e japonesa, e não são coisas contrárias umas às outras. Para mim não são. Por favor, seja paciente comigo e conosco. Por favor.
- A senhora mataria seus filhos se Toranaga ordenasse?
- Sim. Tenho apenas um filho, mas sim, creio que o faria. Certamente seria meu dever fazer isso. Essa é a lei... se o meu marido concordasse.
- Espero que Deus possa perdoar-lhe. A todos vocês.
- Deus compreende, Anjin-san. Oh, ele compreenderá. Talvez ele lhe abra a mente, de modo que o senhor possa compreender. Sinto muito, não sei explicar muito bem, neh? Peço desculpas pela minha falha. - Ela o observou em meio ao silêncio, confusa.
- Também não o compreendo, Anjin-san. O senhor me desconcerta. Seus costumes me desconcertam. Talvez se fôssemos ambos pacientes, poderíamos ambos aprender. A Senhora Fujiko, por exemplo. Como consorte, cuidará da sua casa e dos seus criados. E das suas necessidades - qualquer uma das suas necessidades. O senhor precisa ter alguém que faça isso. Ela providenciará o andamento da casa, tudo. O senhor não precisa "travesseirar" com ela, se isso o preocupa... se não a considerar atraente. Não precisa nem ser polido com ela, embora ela mereça polidez. Ela o servirá, como o senhor quiser, do modo que quiser.
- Posso tratá-la do modo que quiser?
- Sim.
- Posso "travesseirar" com ela ou não?
- Naturalmente. Ela encontrará alguém que o agrade, para satisfazer as suas necessidades físicas, se o senhor quiser, ou não interferirá.
- Posso tratá-la como a uma criada? Uma escrava?
- Sim. Mas ela merece coisa melhor do que isso.
- Posso mandá-la embora? Ordenar-lhe que se vá?
- Se ela o ofender, sim.
- O que aconteceria a ela?
- Normalmente retornaria à casa dos pais em desgraça, os quais poderiam ou não aceitá-la de volta. Alguém como a Senhora Fujiko preferiria matar-se a suportar essa vergonha. Mas ela... o senhor deve saber que os verdadeiros samurais não têm autorização para se matar sem a permissão do seu senhor. Alguns o fazem, claro, mas falham no seu dever e não são dignos de ser considerados samurais. Eu não me mataria, fosse qual fosse a vergonha, não sem a permissão do Senhor Toranaga, ou do meu marido. O Senhor Toranaga proibiu-a de pôr fim à vida. Se o senhor a mandar embora, ela se tornará uma pária.
- Por quê? Por que a família não a aceitaria de volta?
Mariko suspirou.
- Desculpe, Anjin-san, mas se o senhor a mandar embora, sua desgraça será tamanha, que ninguém a aceitará.
- Por estar contaminada? Por ter estado perto de um bárbaro?
- Oh, não, Anjin-san, só porque ela terá falhado no seu dever para com o senhor - disse Mariko imediatamente. - Ela é sua consorte agora... o Senhor Toranaga ordenou e ela concordou. O senhor é o amo da casa agora.
- Sou?
- Oh, sim, acredite-me, Anjin-san, o senhor tem privilégios. E na condição de hatamoto está abençoado. E bem de vida. O senhor Toranaga concedeu-lhe um salário de vinte kokus por mês. Por essa quantia, um samurai normalmente teria que se pôr à disposição do seu senhor, e fornecer-lhe mais dois samurais, armados, alimentados e montados o ano todo, e naturalmente pagar pela família deles também. Mas o senhor não tem que fazer isso. Rogo-lhe, considere Fujiko como uma pessoa, Anjin-san. Imploro-lhe que tenha caridade cristã. Ela é uma boa mulher. Perdoe-lhe a feiúra. Ela será uma consorte digna.
- Ela não tem lar?
- Sim. Este é o seu lar. - Mariko se conteve. – Imploro-lhe que a aceite formalmente. Ela pode ajudá-lo enormemente, ensinar-lhe; se o senhor precisar aprender. Se preferir, pense nela como em nada - como nesta coluna de madeira, ou a tela shoji, ou como numa pedra do seu jardim - o que quiser, mas permita-lhe que fique. Se não a quiser como consorte, seja piedoso. Aceite-a e depois, como cabeça da casa, de acordo com a nossa lei, mate-a.
- É a única resposta que a senhora tem, não? Matar!
- Não, Anjin-san. Mas a vida e a morte são a mesma coisa. Quem sabe, talvez o senhor preste à Senhora Fujiko um serviço muito maior tirando-lhe a vida. É um direito seu, agora, diante de todas as leis. Um direito seu. Se preferir torná-la uma pária, isso também é direito seu.
- Portanto estou novamente em uma armadilha – disse Blackthorne. - De um modo ou de outro ela morre. Se eu não aprender a sua língua, uma aldeia inteira será massacrada. Para qualquer coisa que vocês desejem que eu faça, um inocente é sempre morto. Não há como escapar disso.
- Há uma solução muito fácil, Anjin-san. Morra. O senhor não tem que suportar o insuportável.
- Suicídio é loucura ... e pecado mortal. Pensei que a senhora fosse cristã.
- Eu disse que sou. Mas para o senhor, Anjin-san, há muitos meios de morrer honrosamente sem se suicidar. Zombou do meu marido por não querer morrer lutando, neh? Não é um costume nosso, mas aparentemente é um costume seu. Então, por que não faz isso? O senhor tem uma pistola. Mate o Senhor Yabu. O senhor o considera um monstro, neh? Tente pelo menos matá-lo o ainda hoje estará no paraíso ou no inferno.
Ele a olhou, detestando os seus modos serenos, vendo-lhe a amabilidade através do seu ódio.
- É sinal de fraqueza morrer assim, por nenhuma razão. Estupidez é uma palavra melhor.
- O senhor diz que é cristão. Portanto acredita no Jesus menino - em Deus - e no paraíso. A morte não deveria assustá-lo. E quanto a "nenhuma razão", depende do senhor julgar o valor ou o não-valor. O senhor pode ter motivos suficientes para morrer.
- Estou em seu poder. A senhora sabe disso. E eu também.
Mariko inclinou-se e tocou-o, compadecida.
- Anjin-san, esqueça a aldeia. Um milhão de coisas podem acontecer antes que os seis meses se passem. Um macaréu, um terremoto, ou o senhor recuperar o seu navio e partir, ou a morte de Yabu, ou a morte de todos nós, ou quem sabe? Deixe os problemas de Deus a Deus, o karma ao karma. Hoje o senhor está aqui e nada que faça mudará isso. Hoje está vivo, aqui, honrado, e abençoado pela boa fortuna. Olhe esse pôr-do-sol, é lindo, neh? Esse pôr-do-sol existe. O amanhã não existe. Só existe o agora. Por favor, olhe. É tão lindo e nunca mais vai acontecer de novo, nunca, não este pôrdo-sol, nunca, em toda a infinidade. Perca-se nele, faça-se um com a natureza e não se preocupe com karma, o seu, o meu, ou o da aldeia.
Ele se percebeu seduzido pela serenidade dela, e pelas palavras. Olhou para oeste. Grandes manchas de vermelho-púrpura e preto se espalhavam pelo céu. Apreciou o sol até que desaparecesse.
- Gostaria que a senhora pudesse ser consorte - disse ele.
- Pertenço ao Senhor Buntaro e até que ele morra não posso pensar nem dizer o que poderia ser pensado ou dito.
Karma, pensou Blackthorne.
Você aceita o karma? O meu? O dela? O deles?
A noite está linda.
Ela também, e pertence a outro.
Sim, ela é linda. E muito sábia. Deixe os problemas de Deus a Deus e karma ao karma. Você veio até aqui sem ser convidado. Está aqui. Está em poder deles.
Mas qual é a resposta?
A resposta virá, disse-se ele. Porque existe um Deus no paraíso, um Deus em algum lugar.
Ouviu o ruído de passos. Alguns archotes aproximavam-se colina acima. Vinte samurais, Omi à frente deles.
- Desculpe, Anjin-san, mas Omi-san ordena que o senhor lhe entregue as pistolas.
- Diga-lhe que vá para o inferno!
- Não posso, Anjin-san. Não me atrevo.
Blackthorne mantinha uma mão frouxamente sobre a coronha da pistola, de olhos em Omi. Deliberadamente permanecera nos degraus da varanda. Havia dez samurais no jardim, atrás de Omi, e os demais perto do palanquim à espera. Logo que Omi entrara sem ser convidado, Fujiko saíra do interior da casa e agora se erguia ali na varanda, pálida, atrás de Blackthorne.
- O Senhor Toranaga nunca se opôs e estive armado durante dias, perto dele e de Yabu-san.
- Sim, Anjin-san - disse Mariko, nervosamente -, mas por favor compreenda, o que Omi-san diz é verdade. É costume nosso não se ir à presença de um daimio com armas. Não há nada que te... nada com que se preocupar. Yabu-san é seu amigo. O senhor é hóspede dele aqui.
- Diga a Omi-san que não lhe darei as minhas armas. - Depois, permanecendo ela em silêncio, Blackthorne perdeu a calma e balançou a cabeça. - Iyé, Omi-san! Wakarimasu ka? Iyé!
O rosto de Omi se contraiu. Rispidamente, deu uma ordem.
Dois samurais avançaram. Blackthorne sacou as armas. Os samurais pararam. As duas pistolas apontavam diretamente para o rosto de Omi.
- Iyé! - disse Blackthorne. Depois, a Mariko: - Diga-lhe que os mande recuar ou eu aperto os gatilhos.
Ela fez isso. Ninguém se moveu. Lentamente Blackthorne se levantou, as pistolas sempre apontadas para o alvo. Omi estava absolutamente calmo, sem medo, os olhos seguindo os movimentos felinos de Blackthorne.
- Por favor, Anjin-san. Isso é muito perigoso. O senhor tem que ver o Senhor Yabu. Não pode ir com as pistolas. É um hatamoto, está protegido e também é um hóspede do Senhor Yabu.
- Diga a Omi-san que se ele ou qualquer um dos seus homens vier até dez passos de mim, estouro-lhe a cabeça.
- Omi-san disse polidamente: "Pela última vez, ordeno-lhe que entregue as armas. Agora".
- Iyé.
- Por que não deixá-las aqui, Anjin-san? Não há nada que temer. Ninguém tocará...
- Acha que eu sou algum imbecil?
- Então entregue-as a Fujiko-san!
- O que ela pode fazer? Ele as tirará dela, qualquer um as tirará, depois estou indefeso.
A voz de Mariko se aguçou.
- Por que não ouve, Anjin-san? Fujiko-san é sua consorte. Se o senhor lhe ordenar, ela protegerá as armas com a própria vida. É dever dela. Não vou lhe repetir isto nunca mais, mas Toda-noh-Usagi Fujiko é samurai.
Mariko traduziu isso. Omi ouviu sem expressão, depois respondeu brevemente, olhando para o cano das armas firmemente apontadas.
- Ele disse: "Eu, Kasigi Omi, lhe pediria que entregasse as pistolas e lhe pediria que viesse comigo porque Kasigi Yabu-sama ordena que o senhor se apresente a ele. Mas Kasigi Yabu-sama ordena-me que lhe ordene que entregue as armas. Sinto muito, Anjin-san, pela última vez ordeno-lhe que as entregue".
Blackthorne sentia o peito oprimido. Sabia que seria atacado e estava furioso com a própria estupidez. Mas chega um momento em que não se agüenta mais, daí se saca uma pistola ou uma faca, e então corre sangue devido a um orgulho estúpido. Na maioria das vezes estúpido. Se tenho que morrer, Omi morrerá primeiro, por Deus!
Sentia-se muito forte, embora um tanto tolo. Então o que Mariko dissera começou a ressoar-lhe nos ouvidos: "Fujiko é samurai, é sua consorte!" E o cérebro começou a funcionar.
- Um instante! Mariko-san, por favor diga a Fujiko-san exatamente isto: "Vou lhe entregar as minhas pistolas. Você deve guardá-las. Ninguém além de mim deve tocá-las".
Mariko fez o que ele lhe pediu e, pelas costas, ele ouviu Fujiko dizer:
- Hai.
- Wakarimasu ka, Fujiko-san? — perguntou ele.
- Wakarimasu, Anjin-san - respondeu ela, numa voz fina e nervosa.
- Mariko-san, por favor, diga a Omi-san que irei com ele agora. Sinto muito que tenha havido um mal-entendido. Sim, sinto muito que tenha havido um mal-entendido.
Blackthorne recuou e voltou-se. Fujiko aceitou as armas, a testa úmida de suor. Ele encarou Omi e rezou para estar certo.
- Vamos agora?
Omi falou a Fujiko e estendeu a mão. Ela meneou a cabeça.
Ele deu uma ordem curta. Os dois samurais começaram a avançar. Imediatamente ela empurrou uma pistola para dentro do sash, segurou a outra com as duas mãos, esticou o braço e mirou Omi.
O gatilho recuou ligeiramente e a alavanca da agulha moveu-se.
- Ugoku na! - disse ela. - Dozo!
Os samurais obedeceram. Pararam.
Omi falou rápida e furiosamente, ela ouviu e quando respondeu sua voz soou suave e polida, mas a pistola continuou mirando-lhe o rosto, parcialmente engatilhada agora, e concluiu:
- Iyé, gomen nasai, Omi-san! Não, sinto muito, Omi-san.
Blackthorne esperava.
Um samurai moveu-se uma fração. O gatilho recuou perigosamente, quase até a extremidade do arco. O braço permanecia firme.
- Ugoku na! - ordenou ela.
Ninguém duvidava de que ela puxaria o gatilho. Nem Blackthorne. Omi disse bruscamente alguma coisa a ela e aos seus homens. Eles recuaram. Ela baixou a pistola, mas conservou-a preparada.
- O que ele disse? - perguntou Blackthorne.
- Apenas que relataria o incidente a Yabu-san.
- Ótimo. Diga-lhe que farei o mesmo. - Blackthorne voltou-se para ela. - Domo, Fujiko-san. - Depois, lembrando-se do modo como Toranaga e Yabu conversavam com mulheres, grunhiu imperiosamente para Mariko. - Vamos, Mariko-san... ikamasho! - Começou a se dirigir para o portão.
- Anjin-san! - chamou Fujiko.
- Hai? - Blackthorne parou. Fujiko curvou-se e falou rapidamente com Mariko.
Os olhos de Mariko arregalaram-se, depois ela assentiu e respondeu, e falou com Omi, que assentiu também, visivelmente furioso, mas contendo-se.
- O que está acontecendo?
- Por favor, tenha paciência, Anjin-san.
Fujiko chamou e houve uma resposta do interior da casa. Uma criada surgiu na varanda. Nas mãos trazia duas espadas. Espadas de samurai.
Fujiko pegou-as reverentemente, ofereceu-as a Blackthorne com uma curvatura, falando suavemente.
- Sua consorte assinala - disse Mariko - que um hatamoto, naturalmente, é obrigado a usar as duas espadas dos samurais. Mais que isso, é seu dever fazer isso. Ela acredita que não seria correto que o senhor comparecesse à presença do Senhor Yabu sem espadas - que isso seria impolido. Pela nossa lei, é um dever portar as espadas. Ela pergunta se o senhor levaria em conta a possibilidade de usar estas, embora sejam indignas, até comprar as suas.
Blackthorne olhou para ela, depois para Fujiko, e novamente para Mariko.
- Isso significa que sou samurai? Que o Senhor Toranaga me fez samurai?
- Não sei, Anjin-san. Mas nunca houve um hatamoto que não fosse samurai. Nunca. - Mariko voltou-se e interrogou Omi.
Impaciente, este meneou a cabeça e respondeu.
- Omi-san também não sabe. Mas com certeza é privilégio especial de um hatamoto usar espadas o tempo todo, mesmo na presença do Senhor Toranaga. É dever dele porque é um guarda-costas absolutamente digno de confiança. Além disso, um hatamoto também tem o direito de audiência imediata com um senhor.
Blackthorne pegou a espada curta é enfiou-a no cinto, depois a outra, a comprida, a espada mortífera, exatamente conforme Omi a estava usando. Armado, sentiu-se melhor.
- Arigato goziemashita, Fujiko-san - disse calmamente.
Ela baixou os olhos e respondeu com suavidade. Mariko traduziu.
- Fujiko-san diz, com a sua permissão, já que o senhor deve aprender a nossa língua correta e rapidamente, ela humildemente chama a sua atenção para o fato de que, para um homem, "domo" é mais que suficiente. "Arigato", com ou sem "goziemashita", é uma polidez desnecessária, uma expressão que apenas as mulheres usam.
- Hai. Domo. Wakarimasu, Fujiko-san. – Blackthorne olhou para ela diretamente pela primeira vez. Viu-lhe a transpiração na testa e o brilho nas mãos. Os olhos estreitos, o rosto quadrado e os dentes pontudos. - Por favor, diga à minha consorte que neste caso não considero "arigato goziemashita" uma polidez desnecessária.
Yabu relanceou os olhos para as espadas novamente. Blackthorne estava sentado de pernas cruzadas sobre uma almofada à sua frente, no lugar de honra, com Mariko ao lado dele e Igurashi ao seu.
Encontravam-se na sala principal da fortaleza.
Omi acabou de falar. Yabu deu de ombros.
- Você lidou pessimamente com a situação, sobrinho. Claro que é dever da consorte proteger o Anjin-san e a propriedade dele. Claro que ele tem o direito de usar espadas agora. Sim, você agiu muito mal. Deixei claro que o Anjin-san é meu hóspede honrado aqui. Peça-lhe desculpas.
Imediatamente Omi se levantou, ajoelhou-se diante de Blackthorne e curvou-se.
- Peço desculpas pelo meu erro, Anjin-san. - Ouviu Mariko dizer que o bárbaro aceitava as desculpas. Curvou-se de novo, calmamente dirigiu-se para o seu lugar e sentou-se. Mas por dentro não estava calmo. Sentia-se agora totalmente consumido por uma idéia: matar Yabu.
Resolvera fazer o impensável: matar seu suserano e cabeça do seu clã.
Mas não porque fora obrigado a pedir desculpas publicamente ao bárbaro. Nisso Yabu tivera razão. Omi sabia que fora desnecessariamente inepto, pois embora Yabu tivesse estupidamente lhe ordenado que tomasse as pistolas naquela noite, sabia que devia ter dado um jeito de deixá-las na casa, para serem roubadas ou quebradas mais tarde.
E o Anjin-san agira com toda a correção ao dar as pistolas à consorte, disse ele a si mesmo, assim como ela fora correta ao fazer o que fizera. E ela com certeza teria puxado o gatilho. Não era segredo que Usagi Fujiko buscava a morte, nem por que a buscava. Omi sabia, também, que se não fosse pela decisão que tomara aquela manhã, de matar Yabu, teria avançado para a morte e depois seus homens teriam arrancado as pistolas a ela. Ele teria morrido nobremente, assim como ela, e homens e mulheres relatariam o trágico episódio durante gerações. Canções, poemas, e até uma peça no, todas muito inspiradas, trágicas, magníficas, sobre eles três: a fiel consorte e o fiel samurai que morreram pelo dever, por causa do inacreditável bárbaro que viera do mar oriental.
Não, a decisão de Omi não tinha nada que ver com aquele pedido de desculpas em público, embora a injustiça se juntasse ao ódio que agora o obcecava. A razão principal era que naquele dia Yabu insultara publicamente a mãe e a esposa de Omi diante de camponeses, mantendo-as à espera durante horas ao sol, como camponesas, e depois as dispensara sem agradecer-lhes, como camponesas.
- Não tem importância, meu filho - dissera a mãe. - É privilégio dele.
- Ele é o nosso suserano - dissera Midori, a esposa, as lágrimas de vergonha escorrendo-lhe pelas faces. - Por favor, desculpe-o.
- E ele não convidou nenhuma de vocês duas para saudá-lo, e aos oficiais, na fortaleza - continuara Omi. - Depois de toda a comida que vocês prepararam! Só a comida e o saquê custaram um koku!
- É nosso dever, meu filho. É nosso dever fazer qualquer coisa que o Senhor Yabu deseje.
- E a ordem relativa ao Pai?
- Ainda não é uma ordem. É um rumor.
- A mensagem que o Pai enviou diz que ele ouviu dizer que Yabu vai mandá-lo raspar a cabeça e tornar-se sacerdote, ou rasgar o ventre. A esposa de Yabu está se vangloriando disso!
- Isso foi sussurrado a seu pai por um espião. Não se pode confiar sempre nos espiões. Sinto muito, meu filho, mas seu pai nem sempre é sábio.
- O que acontece à senhora, Mãe, se isso não for um rumor?
- Qualquer coisa que aconteça é karma. Você deve aceitar o karma.
- Não, estes insultos são insuportáveis.
- Por favor, meu filho, aceite-os.
- Dei a Yabu a chave para o navio, a chave para o Anjin-san e os novos bárbaros, e o modo de escapar à armadilha de Toranaga. Meu auxílio trouxe-lhe imenso prestígio. Com o presente simbólico da espada, ele agora é o primeiro depois de Toranaga nos exércitos do leste. E o que recebemos em troca? Insultos imundos.
- Aceite o seu karma.
- Você deve, marido, imploro-lhe, ouvir a senhora sua mãe.
- Não posso viver com essa vergonha. Tomarei vingança e depois me matarei, e essas humilhações serão apagadas.
- Pela última vez, meu filho, aceite o seu karma, rogo-lhe.
- Meu karma é destruir Yabu.
A velha dama suspirara.
- Muito bem. Você é um homem. Tem o direito de decidir. O que tem que ser, será. Mas a morte de Yabu em si mesma não é nada. Devemos planejar. O filho dele também deve ser eliminado, assim como Igurashi. Particularmente Igurashi. Depois o seu pai comandará o clã, como direito dele.
- Como fazemos isso, Mãe?
- Vamos planejar, você e eu. E seja paciente, neh? Depois devemos consultar o seu pai. Midori, até você pode dar conselhos, mas tente não ser inepta, neh?
- E o Senhor Toranaga? Deu a espada a Yabu.
- Acho que o Senhor Toranaga só quer Izu forte e um Estado vassalo. Não como aliado. Ele não deseja aliados mais do que o táicurn desejava. Yabu pensa que é aliado. Eu penso que Toranaga detesta aliados. Nosso clã prosperará se formos vassalos de Toranaga. Ou vassalos de Ishido! A quem escolheremos, hein? E como matá-los?
Orni lembrava-se da onda de alegria que o invadira no momento em que se tomara a decisão final.
Sentiu-a de novo agora. Mas seu rosto não demonstrou absolutamente nada enquanto chá e vinho eram servidos por criadas cuidadosamente selecionadas, trazidas de Mishima para Yabu. Ele observou Yabu, o Anjin-san, Mariko e Igurashi. Estavam todos à espera de que Yabu começasse.
A sala era ampla e arejada, grande o suficiente para que trinta oficiais jantassem, tomassem vinho e conversassem. Havia muitas outras salas e cozinhas para os guarda-costas e criados, e um jardim ladeando toda a construção, embora fosse tudo provisório. Fora construído do melhor modo possível, considerando o tempo de que dispunham, e era tudo facilmente defendível. O fato de o custo ser coberto pelo feudo aumentado de Omi não o incomodava em absoluto. Fora dever dele.
Olhou para a shoji aberta. Muitas sentinelas no adro. Um estábulo. A fortaleza era protegida por um fosso. A paliçada era construída de bambus gigantes, amarrados compactamente. Grandes pilares centrais suportavam o telhado de telhas. As paredes eram leves telas shojis corrediças, algumas vazadas como janelas, a maioria coberta de papel oleado, conforme o hábito. O soalho,de pranchas de madeira, estava fixado em estacaria erguida sobre terra batida, coberto com tatamis.
Por ordem de Yabu, Omi investigara quatro aldeias à procura de material para construir aquela e a outra casa, e Igurashi trouxera tatamis de qualidade, futons e coisas impossíveis de obter na aldeia.
Omi estava orgulhoso com o seu trabalho e com o acampamento para três mil samurais que fora aprontado no platô sobre a colina que guardava as estradas que levavam à aldeia e à praia. Agora a aldeia estava fechada e segura por terra. Por mar haveria sempre alarma em profusão para que um suserano pudesse escapar.
Mas não tenho suserano. A quem servirei agora? perguntava-se Omi. A Ikawa Jikkyu? Ou a Toranaga diretamente? Toranaga me daria o que quero em troca? Ou a Ishido? Ishido é tão difícil de atingir, neh? Mas tenho muito para contar a ele agora...
Naquela tarde Yabu convocara Igurashi, Omi e os quatro capitães, e pusera em andamento seu plano clandestino de treinamento para os quinhentos samurais atiradores. Igurashi devia ser o comandante. Omi lideraria uma das centenas. Combinaram como introduzir os homens de Toranaga nas unidades quando eles chegassem, e como esses forasteiros deveriam ser neutralizados se se comprovassem traiçoeiros.
Omi sugerira que outro quadro altamente secreto de mais três unidades, de cem samurais cada uma, fosse treinado no outro lado da península, como substitutos, como uma reserva, e como uma precaução contra uma manobra traiçoeira de Toranaga.
- Quem comandará os homens de Toranaga? Quem ele enviará como segundo em comando? - perguntara Igurashi.
- Não faz diferença - respondera Yabu. - Designarei os cinco oficiais assistentes dele, a quem será dada a responsabilidade de lhe rasgar a garganta, caso seja necessário. O código para matá-lo e a todos os forasteiros será "Ameixeira". Amanhã, Igurashi-san, você escolherá os homens. Aprovarei pessoalmente cada um deles e nenhum deve saber, ainda, toda a minha estratégia para o Regimento de Mosquetes.
Agora, enquanto olhava Yabu, Omi saboreava o recém-descoberto êxtase da vingança. Matar Yabu seria fácil, mas sua morte devia ser coordenada. Só então seu pai, ou seu irmão mais velho, seria capaz de assumir o controle do clã, e de Izu.
Yabu chegou ao ponto.
- Mariko-san, por favor, diga ao Anjin-san que quero que ele, amanhã, começe a ensinar os meus homens a atirar como bárbaros, e quero aprender tudo que há para saber sobre o modo como os bárbaros guerreiam.
- Mas, desculpe, as armas não chegarão antes de seis dias, Yabu-san - lembrou-lhe Mariko.
- Tenho quantidade suficiente entre meus homens para começar - replicou Yabu. - Quero que comece amanhã.
Mariko falou a Blackthorne.
- O que ele quer saber sobre a guerra? - perguntou este.
- Disse que tudo.
- O quê, em particular?
Mariko perguntou a Yabu.
- Yabu-san perguntou se o senhor já tomou parte em combates terrestres.
- Sim. Na Neerlândia. Um na França.
- Yabu-san disse que isso é excelente. Ele quer conhecer a estratégia européia. Quer saber como as batalhas são travadas nas suas terras. Em detalhes.
Blackthorne pensou um instante. Depois disse:
- Diga a Yabu-san que posso treinar qualquer quantidade de homens para ele e sei exatamente o que ele quer saber. - Ele aprendera muito com Frei Domingo sobre o modo como os japoneses guerreavam. O frade era um perito e tinha um interesse vital por eles. - Afinal, señor - dissera o velho -, esse conhecimento é essencial, não é, saber como os pagãos guerreiam? Todo padre tem que proteger o seu rebanho. E os nossos gloriosos conquistadores não são a abençoada ponta de lança da Madre Igreja? E não estive com eles na frente de combate no Novo Mundo e nas Filipinas, e não os estudo há mais de vinte anos? Conheço a guerra, señor, conheço a guerra. Foi o meu dever, a vontade de Deus, conhecer a guerra. Talvez Deus o tenha enviado a mim para que eu o ensine, no caso de eu morrer. Ouça, o meu rebanho aqui nesta cela foram os meus professores sobre a arte bélica japonesa, señor. Portanto agora sei como os exércitos deles lutam e como vencelos. Como poderiam vencer-nos. Lembre-se, señor, de que lhe revelo um segredo pela sua alma: nunca junte a ferocidade japonesa às armas modernas e aos métodos modernos. Ou, em terra, eles nos destruirão.
Blackthorne encomendou-se a Deus. E começou.
- Diga ao Senhor Yabu que posso auxiliá-lo muitíssimo. E ao Senhor Toranaga. Posso tornar os seus exércitos imbatíveis.
- O Senhor Yabu diz que se a sua informação se comprovar útil, Anjin-san, ele aumentará o salário que o Senhor Toranaga lhe concedeu de duzentos e quarenta kokus para quinhentos kokus após um mês.
- Agradeça-lhe. Mas diga que, se faço tudo isso por ele, solicito um favor em troca: quero que ele revogue a sentença que pesa sobre a aldeia, e quero meu navio e minha tripulação de volta em cinco meses.
- Anjin-san - disse Mariko -, não pode negociar com ele, como um mercador.
- Por favor, peça-lhe. Como um humilde favor. De um hóspede de honra e agradecido futuro vassalo.
Yabu franziu o cenho e respondeu longamente.
- Yabu-san diz que a aldeia não tem importância. Os aldeões precisam de um fogo sob o traseiro para que façam qualquer coisa. O senhor não deve se preocupar com eles. Quanto ao navio, trata-se de um assunto do Senhor Toranaga. Ele tem certeza de que o senhor o recuperará muito em breve. Pediu-me que fizesse a sua solicitação ao Senhor Toranaga assim que eu chegar a Yedo. Farei isso, Anjin-san.
- Por favor, peça desculpas ao Senhor Yabu, mas preciso pedir a ele que revogue a sentença. Esta noite.
- Ele já disse que não, Anjin-san. Não seria bem-educado.
- Sim, compreendo. Mas por favor, peça-lhe de novo. É muito importante para mim... uma súplica.
- Ele diz que o senhor deve ter paciência. Não se preocupe com aldeões.
Blackthorne assentiu. Depois decidiu-se.
- Obrigado. Compreendo. Sim. Por favor agradeça ao Senhor Yabu, mas diga-lhe que não posso viver com essa vergonha.
Mariko empalideceu.
- O quê?
- Não posso viver com a vergonha de ter a aldeia na minha consciência. Estou desonrado. Não posso suportar isso. É contra a minha crença cristã. Terei que cometer suicídio imediatamente.
- Suicídio?
- Sim. Foi isso o que resolvi fazer.
Yabu interrompeu.
- Nan ja, Mariko-san?
Hesitante ela traduziu o que Blackthorne dissera. Yabu interrogou-a e ela respondeu. Depois Yabu disse:
- Não fosse pela sua reação, isto seria uma piada, Mariko-san. Por que está tão preocupada? Por que acha que ele fala a sério?
- Não sei, senhor. Ele parece... Não sei. . . - A voz dela foi sumindo aos poucos.
- Omi-san?
- O suicídio é contra todas as crenças cristãs, senhor. Eles nunca se suicidam como nós. Como um samurai faria.
- Mariko-san, você é cristã. Isso é verdade?
- Sim, senhor. Suicídio é pecado mortal, contra a palavra de Deus.
- Igurashi-san? O que pensa?
- É um blefe. Ele não é cristão. Lembra-se do primeiro dia? Lembra-se do que ele fez ao padre? E o que permitiu que Omi-san lhe fizesse para salvar o rapaz?
Yabu sorriu, recordando aquele dia e a noite que o seguira.
- Sim. Concordo. Ele não é cristão, Mariko-san.
- Desculpe, mas não entendo, senhor. O que houve com o padre?
Yabu contou-lhe o que acontecera no primeiro dia, entre Blackthorne e o padre.
- Ele profanou uma cruz? - disse ela, visivelmente chocada.
- E atirou os pedaços ao pó - acrescentou Igurashi. - É um blefe, senhor. Se essa história com a aldeia o desonra, como é que pode ficar aqui quando Omi o desonrou tanto, urinando-lhe em cima?
- O quê? Desculpe, senhor - disse Mariko -, mas não compreendo de novo.
Yabu disse a Omi:
- Explique a ela.
Omi obedeceu. Ela ficou enojada com o que ouviu, mas não demonstrou.
- Depois, o Anjin-san ficou completamente amedrontado, Mariko-san - concluiu Omi. - Sem armas ele ficará sempre amedrontado.
Yabu tomou um gole de saquê.
- Diga isto a ele, Marikosan: suicídio não é um costume bárbaro. É contra o Deus cristão dele. Portanto como é que ele pode se suicidar?
Mariko traduziu. Yabu observou atentamente quando Blackthorne respondeu.
- O Anjin-san pede desculpas com grande humildade, mas diz que, seja costume ou não, Deus ou não, essa vergonha da aldeia é grande demais para suportar. Diz que... que está no Japão, é hatamoto e tem o direito de viver de acordo com as nossas leis. - As mãos dela tremiam. - Foi isso o que ele disse, Yabu-san. O direito de viver conforme os nossos costumes... a nossa lei.
- Bárbaros não têm direitos.
- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela. - Isso lhe dá o direito, neh?
Uma brisa tocou as shojis, chocalhando-as.
- Como poderia ele cometer suicídio? Hein? Pergunte-lhe.
Blackthorne sacou a espada afiada, a ponta aguda como agulha, e pousou-a suavemente sobre o tatami, a ponta voltada para ele.
- É um blefe! - disse Igurashi. - Quem já ouviu falar de um bárbaro que agisse como pessoa civilizada?
Yabu franziu o cenho, o coração diminuindo a velocidade.
- Ele é um bravo homem, Igurashi-san. Não há dúvida sobre isso. E estranho. Mas isto? - Yabu queria assistir ao ato, testemunhar a fibra do bárbaro, ver como ele se encaminharia para a morte, experimentar com ele o êxtase da ida. Com um esforço, deteve a maré ascendente do seu próprio prazer. - O que aconselha, Omi-san? - perguntou guturalmente.
- O senhor disse à aldeia: "Se o Anjin-san não aprender satisfatoriamente". Aconselho-o a fazer uma leve concessão. Diga-lhe que tudo o que tiver aprendido dentro de cinco meses será "satisfatório", mas em troca ele deve jurar pelo seu Deus não revelar isso à aldeia.
- Mas ele não é cristão. Como esse juramento o comprometerá?
- Acredito que ele seja um tipo de cristão, senhor. É contra os Hábitos Negros e é isso o que importa. Acredito que um juramento pelo seu próprio Deus será um compromisso. E também deve jurar, em nome desse Deus, que se empenhará em aprender e se colocará totalmente ao seu serviço. Como é inteligente, aprenderá muitíssimo em cinco meses. Assim a sua honra ficará poupada e a dele - exista ou não - também. O senhor não perde nada, ganha tudo. É muito importante que o senhor lhe ganhe a dedicação por livre vontade dele.
- Acredita que ele se matará?
- Sim.
- Mariko-san?
- Não sei, Yabu-san. Desculpe, não posso aconselhá-lo. Algumas horas atrás eu teria dito que não, ele não se suicidará. Agora não sei. Ele... desde que Omi-san foi buscá-lo, ele ficou... diferente.
- Igurashi-san?
- Se o senhor ceder agora e isso for um blefe, ele usará o mesmo truque o tempo todo. Ele é astucioso como um kami raposa, todos vimos quão astucioso, neh? O senhor terá que dizer não um dia. Aconselho-o a dizer agora. É um blefe.
Omi inclinou-se para a frente e meneou a cabeça.
- Senhor, por favor, desculpe-me, mas devo repetir que se disser "não" arrisca-se a uma grande perda. Se for um blefe - e pode muito bem ser -, então, como homem orgulhoso que é, ele ficará cheio de ódio com a humilhação posterior e não o ajudará até o limite de suas forças, coisa de que o senhor necessita. Ele pediu uma coisa na qualidade de hatamoto, o que tem o direito de fazer, diz que quer viver de acordo com os nossos hábitos, de livre vontade. Isso não é um enorme passo à frente, senhor? É maravilhoso para o senhor, e para ele. Aconselho cautela. Use-o para proveito seu.
- É o que pretendo - disse Yabu, com a voz abafada.
- Sim, ele é valioso - disse Igurashi -, e sim, quero o conhecimento dele. Mas ele tem que ser controlado. Você disse isso muitas vezes, Omi-san. Ele é bárbaro. É tudo o que é. Oh, sei que é hatamoto agora, e que pode usar as duas espadas a partir de hoje. Mas isso não o torna samurai. Ele não é samurai e nunca será.
Mariko sabia que, de todos eles, era ela quem devia ser capaz de ler com mais clareza o Anjin-san. Mas não conseguia. Num momento o compreendia, no momento seguinte ele se tornava incompreensível de novo. Num momento gostava dele, no momento seguinte odiava-o. Por quê?
Os olhos de Blackthorne fitavam o vazio. Mas agora havia gotas de suor na sua testa. Será que isso é medo? pensou Yabu. Medo de que eu pague para ver o blefe? Estará blefando?
- Mariko-san?
- Sim, senhor?
- Diga-lhe... - Repentinamente a boca de Yabu ficou seca, o peito doía. - Diga ao Anjin-san que a sentença permanece.
- Senhor, por favor, desculpe-me, mas recomendo-lhe aceitar o conselho de Omi-san.
Yabu não olhou para ela, apenas para Blackthorne. A veia na sua testa latejava.
- O Anjin-san diz que está decidido. Que seja. Vejamos se ele é bárbaro, ou hatamoto.
A voz de Mariko soou quase imperceptível.
- Anjin-san, Yabu-san diz que a sentença permanece. Sinto muito.
Blackthorne ouviu as palavras, mas elas não o perturbaram. Sentia-se mais forte e mais em paz do que jamais se sentira, com uma maior consciência da vida do que jamais tivera.
- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela - Isso lhe dá o direito, neh?
Enquanto esperara, não os ouvira nem os olhara. O comprmisso fora feito. O resto ele deixara a Deus. Estivera fechado na própria cabeça, ouvindo as mesmas palavras vezes sem conta, a mesmas que lhe haviam dado a pista para a vida ali, as palavras que com certeza tinham sido enviadas por Deus, por intermédio de Mariko: "Há uma solução fácil. Morra. Para sobreviver aqui o senhor deve viver de acordo com os nossos costumes".
- ... a sentença permanece.
Então, agora, devo morrer.
Eu devia estar com medo. Mas não estou.
Por quê?
Não sei. Só sei que uma vez tendo realmente decidido que o único modo de viver aqui como homem é fazendo isso de acordo com os costumes deles, arriscando-me a morrer, morrendo - talvez morrendo -, repentinamente o medo da morte se foi. "A vida e a morte são a mesma coisa... Deixe o karma ao."
Não estou com medo de morrer.
Além da shoji, uma chuva suave começara a cair. Ele baixou os olhos para a faca.
Tive uma boa vida, pensou ele.
Seus olhos voltaram-se para Yabu.
- Wakarimasu - disse claramente, e embora soubesse que seus lábios tinham formado a palavra, foi como se outra pessoa tivesse falado.
Ninguém se moveu.
Ele viu sua mão direita pegar a faca. Depois a mão esquerda também agarrou o cabo, a lâmina pronta e apontando para o coração. Agora havia apenas o som da sua vida, crescendo e crescendo, elevando-se cada vez mais forte até que ele não conseguia mais ouvir. Sua alma ansiava pelo silêncio eterno.
O grito desencadeou-lhe os reflexos. Suas mãos impeliram a faca inexoravelmente rumo ao alvo.
Omi estivera pronto para detê-lo, mas não estava preparado para a rapidez e a ferocidade do ímpeto de Blackthorne, e quando a mão esquerda de Omi agarrou a lâmina, e a direita o cabo, a dor o aferroou e o sangue esguichou da mão esquerda. Lutou com todas as forças. Estava perdendo. Igurashi veio ajudar. Juntos detiveram o golpe. A faca foi tomada. Um delgado gotejar de sangue escorria da pele sobre o coração de Blackthorne, onde a ponta da faca entrara.
Mariko e Yabu não tinham se movido.
- Diga-lhe, diga-lhe que qualquer coisa que aprenda será suficiente - disse Yabu. - Ordene-lhe, Mariko-san, não, peça-lhe, peça que Anjin-san que jure, conforme disse Omi. Tudo conforme Omi-san disse.
Blackthorne voltou da morte lentamente. Fitou-os e à faca de uma imensa distância, sem compreender. Depois a torrente de vida voltou aos borbotões, mas ele não conseguiu apreender, acreditando-se morto e não vivo.
- Anjin-san? Anjin-san?
Viu os lábios dela movendo-se e ouviu-lhe as palavras, mas todos os seus sentidos estavam concentrados na chuva e na brisa.
- Sim? - Sua própria voz estava ainda muito distante, mas ele sentia o cheiro da chuva e ouvia os pingos e sentia o gosto de al no ar. Estou vivo, disse-se ele maravilhado. Estou vivo e isso é chuva de verdade lá fora, o vento é de verdade e vem do norte. Há um braseiro real com brasas reais, e se eu pegar o cálice, encontrarei líquido real nele e o líquido terá sabor. Não estou morto. Estou vivo!
Os outros permaneciam sentados em silêncio, esperando pacientemente, amáveis com ele para honrar-lhe a bravura. Nenhum homem no Japão tinha jamais visto o que eles viram. Cada um se perguntava em silêncio: o que o Anjin-san vai fazer agora? Será capaz de se erguer por si mesmo e caminhar, ou seu próprio espírito o deixará? Como agiria eu, se fosse ele? Silenciosamente uma criada trouxe uma bandagem e enfaixou a mão de Omi onde a lâmina cortara profundamente, estancando o fluxo de sangue. Estava tudo muito silencioso. De vez em quando Mariko dizia o seu nome baixinho enquanto eles sorviam chá ou vinho, mas muito frugalmente, saboreando a espera, o que tinham presenciado e a lembrança.
Para Blackthorne aquela não-vida parecia durar para sempre. Então seus olhos viram. Seus ouvidos ouviram.
- Anjin-san?
- Hai? - respondeu ele, através do maior cansaço que jamais conhecera.
Mariko repetiu o que Omi dissera, como se viesse de Yabu. Teve que dizê-lo várias vezes, antes de ter certeza de que ele compreendera claramente.
Blackthorne reuniu o remanescente de suas forças, sentindo a vitória doce.
- Minha palavra é suficiente, assim como a dele o é. Ainda assim, jurarei por Deus, como ele quer. Sim. Como Yabu-san jurará pelo deus dele, para cumprir a parte dele no acordo.
- O Senhor Yabu diz que sim, que jura pelo Senhor Buda.
Então Blackthorne jurou, conforme Yabu desejava que ele jurasse. Aceitou um pouco de chá. Nunca tivera um gosto tão bom. A xícara pareceu-lhe muito pesada e ele não conseguiu segurá-la muito tempo.
- A chuva é agradável, não é? - disse ele, observando os pingos de chuva que surgiam e sumiam, atônito com a inusitada limpidez da sua visão.
- Sim - disse ela brandamente, sabendo que os sentidos dele se encontravam num plano nunca alcançado por ninguém que não tivesse livremente ido ao encontro da morte e, por obra de um karma desconhecido, miraculosamente regressado à vida. - Por que não descansar agora, Anjin-san? O Senhor Yabu lhe agradece e diz que conversará mais com o senhor amanhã. Deve descansar agora.
- Sim. Obrigado. Isso seria ótimo.
- Acha que pode se levantar?
- Sim. Acho que sim.
- Yabu-san pergunta se o senhor gostaria de um palanquim.
Blackthorne pensou sobre isso. Finalmente decidiu que um samurai caminharia - tentaria caminhar.
- Não, obrigado - disse ele, apesar do muito que teria gostado de se reclinar, de ser carregado, de fechar os olhos e dormir imediatamente. Ao mesmo tempo sabia que teria medo de dormir ainda, caso aquele fosse o sonho de pós-morte e a faca não estivesse lá, sobre o futon, mas ainda enterrada no seu verdadeiro eu, e aquilo fosse o inferno, ou o começo do inferno.
Lentamente pegou a faca e estudou-a, comprazendo-se com a percepção real. Depois colocou-a na bainha, tudo levando muito tempo.
- Desculpe por ser tão lento - murmurou ele.
- Não precisa se desculpar, Anjin-san. Esta noite o senhor renasceu. Esta é outra vida, uma nova vida - disse Mariko orgulhosamente, sentindo muita honra por ele. - O regresso é concedido a poucos. Não se desculpe. Sabemos que requer grande coragem. Muitos homens não têm força suficiente, depois, sequer para se levantar. Posso ajudá-lo?
- Não. Não, obrigado.
- Não é desonra ser ajudado. Eu ficaria honrada em ser autorizada a ajudá-lo.
- Obrigado. Mas eu ... eu quero tentar. Primeiro.
Mas ele não conseguiu se levantar imediatamente. Teve que usar as mãos para se pôr de joelhos e fazer uma pausa para reunir mais força. Tomou impulso, pôs-se de pé e quase caiu. Cambaleou, mas não caiu.
Yabu curvou-se. E Mariko, Omi e Igurashi.
Blackthorne caminhou como um bêbado os primeiros dez passos. Agarrou-se a um pilar e apoiou-se um instante. Depois recomeçou. Vacilava, mas estava andando, sozinho. Como um homem. Mantinha uma mão sobre a espada comprida à cintura e a cabeça erguida.
Yabu respirou e bebeu avidamente do saquê. Quando conseguiu falar, disse a Mariko:
- Por favor, siga-o. Veja que ele chegue em casa em segurança.
- Sim, senhor.
Quando ela saiu, Yabu voltou-se para Igurashi:
- Seu imbecil, monte de esterco!
Imediatamente Igurashi baixou a cabeça até tocar a esteira, em penitência.
- Blefe, você disse, neh? Sua estupidez quase me custou um tesouro inestimável.
- Sim, senhor, tem razão. Rogo-lhe que me permita pôr fim à vida imediatamente.
- Isso seria bom demais para você! Vá viver nos estábulos até que eu mande chamá-lo! Durma com os estúpidos cavalos. Você é um imbecil com cabeça de cavalo!
- Sim, senhor. Peço desculpas, senhor.
- Saia! Omi-san comandará os atiradores agora. Saia!
As velas tremulavam e crepitavam. Uma das criadas derramou uma minúscula gota de saquê sobre a pequena mesa laqueada diante de Yabu e ele a cobriu de imprecações. Os outros pediram desculpas imediatamente. Ele se permitiu ser aplacado, e aceitou mais vinho.
- Blefe? Blefe, ele disse. Imbecil! Por que tenho imbecis à minha volta?
Omi não disse nada, rebentando de riso por dentro.
- Mas você não é imbecil, Omi-san. Seu conselho é valioso. A partir de hoje seu feudo fica dobrado. Seis mil kokus. Para o próximo ano. Tome trinta ris em torno de Anjiro como feudo seu.
Omi curvou-se até o futon. Yabu merece morrer, pensou com desprezo, é tão fácil de manipular.
Não mereço nada, senhor. Só estava cumprindo o meu dever.
- Sim. Mas um suserano recompensa a lealdade e o dever.
- Yabu estava usando a espada Yoshitomo aquela noite. Dava-lhe grande prazer tocá-la. - Suzu - chamou ele uma das criadas -, mande Zukimoto aqui!
- Dentro de quanto tempo a guerra começará? - perguntou Omi.
- Começará este ano. Você talvez tenha seis meses, talvez não. Por quê?
- Talvez a Senhora Mariko devesse ficar mais que três dias. A fim de proteger o senhor.
- Hein? Por quê?
- Ela é a boca do Anjin-san. Em meio mês, com ela aqui, ele pode treinar vinte homens, os quais podem treinar uma centena, que pode treinar o resto. Depois, se ele viver ou morrer não terá importância.
- Por que ele morreria?
- O senhor vai duvidar do Anjin-san novamente, no próximo desafio ou no seguinte. O resultado pode ser diferente da próxima vez, quem é que sabe? O senhor pode desejar que ele morra. - Ambos sabiam, assim como Mariko e Igurashi, que para Yabu o fato de jurar por qualquer deus não tinha significado algum e, naturalmente, que ele não tinha intenção alguma de manter qualquer promessa. - O senhor pode querer pressioná-lo. Uma vez que disponha da informação, para que servirá a carcaça?
- Para nada.
- O senhor precisa aprender a estratégia de guerra bárbara, mas deve fazê-lo rapidamente. O Senhor Toranaga pode mandar buscá-lo, portanto o senhor precisa ter a mulher o mais que puder. Meio mês seria suficiente para espremer-lhe da cabeça tudo o que ele sabe, agora que o senhor tem a sua completa dedicação. O senhor terá que experimentar, que adaptar os métodos dele aos nossos meios. Sim, levaria no mínimo meio mês. Neh?
- E Toranaga-san?
- Ele concordará, se a coisa lhe for apresentada corretamente, senhor. Tem que concordar. As armas são dele assim como suas. E a presença dela aqui é útil de outros modos.
- Sim - disse Yabu com satisfação, pois o pensamento de retê-la como refém também lhe entrara na cabeça no navio, quando planejara oferecer Toranaga como sacrifício a Ishido. – Toda Mariko deve ser protegida, certamente. Seria muito mal que ela tombasse em mãos malignas.
- Sim. E talvez ela pudesse ser o meio de controlar Hiromatsu, Buntaro, e todo o clã, até Toranaga.
- Redija você a mensagem sobre ela.
De supetão, Omi disse:
- Minha mãe recebeu notícias de Yedo hoje, senhor. Pediu-me que lhe dissesse que a Senhora Genjiko presenteou Toranaga com o primeiro neto.
Imediatamente Yabu se pôs atento. O neto de Toranaga!
Toranaga poderia ser controlado através da criança? O neto assegura a dinastia de Toranaga, neh? Como posso ficar com o recém-nascido como refém?
- E Ochiba, a Senhora Ochiba? - perguntou ele.
- Partiu de Yedo com todo o seu séquito. Há três dias. Nesta altura encontra-se a salvo em território de Ishido.
Yabu pensou em Ochiba e na irmã, Genjiko. Tão diferentes! Ochiba, vital, bela, astuciosa, incansável, a mulher mais desejável do império e mãe do herdeiro. Genjiko, a irmã mais nova, calma, meditativa, lisa e franca, com uma crueldade que se tornara lendária, herdada da mãe, uma das irmãs de Goroda. As duas irmãs se amavam, mas Ochiba odiava Toranaga e a sua estirpe, assim como Genjiko detestava o taicum e Yaemon, filho dele. Será que foi realmente o taicum quem gerou o filho de Ochiba? perguntou-se Yabu novamente, como todos os daimios o faziam secretamente há anos. O que eu não daria para conhecer a resposta a isso! O que eu não daria para possuir aquela mulher!
- Agora que a Senhora Ochiba não é mais refém em Yedo... isso poderia ser bom e mau - disse Yabu, apalpando terreno. - Neh?
- Bem, apenas bom. Agora Ishido e Toranaga têm que começar muito em breve. - Omi deliberadamente omitiu o "sama" dos dois nomes. - A Senhora Mariko devia ficar, pela sua proteção.
- Providencie. Redija a mensagem a enviar a Toranaga.
Suzu, a criada, bateu discretamente e abriu a porta. Zukimoto entrou na sala.
- Senhor?
- Onde estão todos os presentes que mandei vir de Mishima para Omi-san?
- Estão todos no depósito, senhor. Aqui está a lista. Os dois cavalos podem ser escolhidos nos estábulos. Deseja que eu faça isso agora?
- Não. Omi-san escolherá amanhã. - Yabu deu uma olhada na lista cuidadosamente escrita: "Vinte quimonos (segunda qualidade); duas espadas; uma armadura (consertada, mas em bom estado); dois cavalos; armas para cem samurais; uma espada, elmo, peitoral, arco, vinte setas e uma lança para cada homem (da melhor qualidade). Valor total: quatrocentos e vinte e seis kokus. Também a pedra chamada A Pedra da Espera - valor: inestimável".
- Ah, sim - disse ele, num melhor estado de humor, lembrando-se daquela noite. - A pedra que encontrei em Kyushu. Você ia mudar o nome para O Bárbaro à Espera, não ia?
- Sim, senhor, se lhe agradar - disse Omi. - Mas o senhor me honraria amanhã, decidindo onde colocá-la no jardim? Não creio que haja um lugar suficientemente bom.
- Amanhã decidirei. Sim. - Yabu deixou a mente devanear sobre a pedra e sobre aqueles dias distantes com seu venerado amo, o taicum, e depois sobre a Noite dos Gritos. A melancolia infiltrou-se nele. A vida é tão curta, triste e cruel, pensou. Olhou para Suzu. A criada sorriu, hesitante, o seu rosto oval, delgado, e muito delicada como as outras duas. As três tinham sido trazidas de palanquim da casa dele em Mishima. Naquela noite estavam todas descalças, usando quimonos da melhor seda, a pele muito branca. É curioso que os meninos possam ser tão graciosos, pensou ele, em muitos sentidos mais sensuais e femininos do que as garotas. Depois notou Zukimoto. - O que está esperando? Hein? Saia!
- Sim, senhor. O senhor me pediu que o lembrasse das taxas, senhor. - Zukimoto ergueu a sua massa transpirante e saiu às pressas da sala.
- Omi-san, você dobrará todos os impostos imediatamente - disse Yabu.
- Sim, senhor.
- Camponeses imundos! Não trabalham o suficiente. São preguiçosos, todos eles! Mantenho as estradas a salvo de bandidos, os mares seguros, dou-lhes bom governo, e o que eles fazem? Passam os dias tomando chá e saquê, e comendo arroz. Já é tempo que os meus camponeses assumam as suas responsabilidades!
- Sim, senhor - disse Omi.
Depois Yabu se voltou para o outro assunto que lhe dominava a mente.
- O Anjin-san surpreendeu-me esta noite. A você não?
- Oh, sim, senhor. Mais do que ao senhor. Mas o senhor foi sábio em fazê-lo se comprometer.
- Está dizendo que Igurashi tinha razão?
- Simplesmente admirei a sua sabedoria, senhor. O senhor teria que lhe dizer não em algum momento. Acho que foi muito sábio em dizê-lo agora, esta noite.
- Pensei que ele ia se matar. Sim. Fico contente por você ter estado preparado. Contei com que você estivesse preparado. O Anjin-san é um homem extraordinário, para um bárbaro, neh? Pena que seja bárbaro e tão ingênuo.
- Sim.
Yabu bocejou. Aceitou saquê de Suzu.
- Meio mês, você diz? Mariko-san deve ficar no mínimo esse prazo, Omi-san. Depois decidirei a respeito dela, e a respeito dele. Ele terá que aprender outra lição muito em breve. - Ele riu, mostrando os dentes estragados. - Se o Anjin-san nos ensinar, devemos ensiná-lo, neh? Devemos ensinar-lhe como cometer seppuku corretamente. Seria uma coisa e tanto de se presenciar, neh? Providencie! Sim, concordo que os dias do bárbaro estão contados.