XI
O tapete de nuvens destilava um vapor de cinza, esganando a luz com a sua sombra ameaçadora.
Dona Beatriz espreitou o céu de chumbo e percebeu que a obscuridade que se avizinhava era prenúncio certo de chuva. Fez sinal a Amélia e a Francisco de que não a largassem e apressou o passo em direcção à Igreja de São Vicente, no Largo do Principal.
Durante a missa dominical, a viúva considerou cuidadosamente a situação. Desde a morte do marido que assumira a educação de Amélia em Bragança, enquanto a filha mais nova fora para casa do padrinho, lá no Douro. O casamento das moças constituía o culminar natural desse processo, pelo que teria de ser encarado com muita cautela; cada pretendente seria sujeito a um exame cuidadoso, uma vez que lhe parecia fundamental que os candidatos tivessem uma situação e um estatuto à altura das ambições que alimentava para as suas meninas.
No final da missa cruzaram o painel de azulejos à saída da igreja e foram recebidos na rua por uma chuva miudinha;
eram por certo os céus a abençoar a decisão que a viúva havia tomado durante a homilia.
Ou ela não se chamasse Maria Beatriz Rodrigues de Campos, a sua bijou não se casaria com o primeiro bandalho que lhe aparecesse pela frente.
A chuva intensificou-se pelo caminho, desfazendo-se numa cortina de veludo tracejante.
As bátegas furiosas fustigavam os telhados e das bordas das telhas abatiam-se fios de água; pareciam lâminas de prata, com um gorgulhar molhado que se derramava em torrente pelas pedras da calçada. Os três aconchegaram-se uns aos outros e enfrentaram assim a intempérie, fundindo-se na bruma líquida como fantasmas a derreterem-se em luz.
Ao chegarem a casa deram com uma sombra esguia, um vulto plantado à porta como uma sentinela, abrigado por um guarda-chuva negro. Dona Beatriz espreitou Amélia de relance e a expressão nervosa e ansiosa da filha confirmou-lhe que era aquele o sujeito que a trazia pelo beiço.
Sem sequer se dignar olhá-lo, entrou em casa e pôs-se à vontade. Tirou o casaco molhado, enroscou-se num xaile macio e foi instalar-se à lareira, que estalava numa fúria mal contida.
"Mamã, o Luís está aqui", disse-lhe Amélia, que ficara à entrada, dividida entre o aconchego do lar e a companhia do namorado.
Dona Beatriz pegou nuns rolos de lã, indicou a Francisco que permanecesse ao seu lado e pôs-se a tricotar uma camisola vermelha que tinha começado havia dois dias.
"Mamã?"
A viúva manteve o olhar baixo, fixo nos nós da camisola que tricotava com destreza.
"Ele que entre", disse enfim, depois de uma longa e pesada pausa.
Amélia fez um sinal para a rua e Luís entrou. Encostou o guarda-chuva molhado à porta, tirou o chapéu da cabeça e aproximou-se, acompanhado de Amélia.
"Bom dia, minha senhora", disse ele num tom apropriadamente submisso, o chapéu seguro pelos dedos nervosos.
Dona Beatriz nem levantou os olhos para o ver.
"Bom dia?", admirou-se, sempre concentrada na camisola que crescia na ponta das agulhas.
"Porquê bom dia? Que eu saiba já passa do meio-dia. Será que o cavalheiro é porventura um daqueles ébrios que se bota nas tabernas até de madrugada e depois acorda a meio da tarde e ainda pensa que é manhã cedo?"
Luís arregalou os olhos e engoliu em seco. A entrevista começava inesperadamente mal.
"Bem... sim", gaguejou, desorientado. "Quer dizer... não, enfim... não frequento tabernas nem acordo tarde, minha senhora. Sou... sou até muito madrugador. Só que, como ainda não almocei, estou com a impressão que é de manhã, está a ver?"
"Não estou a ver, não." Fez um estalido com a língua. "Por que razão não almoçou? Não tem meios para se alimentar?"
"Sim. Claro que tenho, claro."
"E, no entanto, ao mencionar o almoço assim tão a despropósito dá a impressão de que quer vir aqui comer à nossa conta..."
"Não, não é nada isso", negou, abanando enfaticamente a cabeça. A viúva estava a dificultar as coisas e, apesar do frio, Luís sentiu um rubor a encher-lhe o rosto e gotas de suor a brotarem-lhe do alto da testa. "Só falei no almoço para dizer que na minha cabeça a tarde apenas começa depois do almoço, mais nada. Não estava de modo nenhum a insinuar o que quer que fosse."
Fez-se um silêncio penoso; apenas se escutava o som abafado da viúva a tricotar a camisola de lã, os estalidos da lenha a pipoquear na lareira e o harmonioso concerto das bátegas que tombavam ao de leve nas telhas, lá em cima, como se obedecessem a uma melodia desordenada.
Luís observou pela primeira vez Francisco, que permanecia ao lado de dona Beatriz como um acólito, e ficou espantado com o seu aspecto; tinha o cabelo cortado curto e a testa abria-se em grandes arcadas supraciliares, por baixo das quais brilhavam dois olhinhos negros e inexpressivos. Mas o mais impressionante era o seu corpanzil baixo e atarracado, com costas largas e membros desenvolvidos, os braços da largura de pernas; parecia impossível que aquele rapaz compacto tivesse apenas doze anos acabados de fazer.
"Com que então o senhor anda a conversar com a Amélia", rosnou dona Beatriz, quebrando o falso sossego que se instalara na sala. "Alimenta, creio eu, propósitos em relação à minha bijou."
Luís não conhecia o petit nom, mas presumiu, e bem, que bijou seria alcunha familiar de Amélia.
"Sim, minha senhora."
"Como calcula, a minha bijou não sai com a primeira andorinha que lhe aparece à frente, não é?"
"Claro que não, minha senhora."
"Se bem entendi o que me disse a bijou, o senhor dispõe de meios..."
"Sim, sim. Os meus pais faleceram e herdei as terras."
Esta informação chamou a atenção da viúva. Dona Beatriz ergueu um olho e mirou Luís pela primeira vez.
"Herdou terras, ora é?"
"Sim, minha senhora. O meu pai finou-se quando eu era pequeno e a minha mãe faleceu no ano passado, de maneira que fiquei com as propriedades."
"E que propriedades são essas, pode-se saber?"
"São as terras que eram do meu pai, lá nos Cerejais."
"Cerejais, ora é? Onde é isso?"
"É um lugarejo junto a Alfândega da Fé, minha senhora."
Dona Beatriz parou totalmente de tricotar. Queria ter o cérebro livre para avaliar adequadamente o rapaz.
"Explique-me lá isso um pouco melhor. Sendo órfão e tendo terras perto de Alfândega, como faz o senhor para se sustentar e pagar os estudos aqui em Bragança?"
"As minhas terras produzem muita coisa, minha senhora. Azeitonas, cerejas e amêndoas.
Pegamos nas azeitonas e fazemos muito azeite, que depois vendemos às mercearias de Alfândega."
"Não entendo. Se o senhor é órfão de pai e mãe e está aqui em Bragança a estudar no liceu, como faz para controlar a produção nessas terras?"
"É a minha tia, minha senhora. A irmã do meu pai está a administrar as propriedades enquanto eu termino os meus estudos."
"Hmm", murmurou a viúva, pensativa. "E são coisa grande, essas terras?"
Luís balançou a cabeça, hesitante; grande e pequeno pareciam-lhe conceitos relativos.
"É maior que um quintal", disse. "Mas também não se pode dizer que seja uma grande propriedade."
"Estou a ver", observou dona Beatriz. Ajeitou o rolo de lã e recomeçou a tricotar. "Vai terminar o liceu, ora é?"
"Sim, senhora."
"E depois? Gostaria de seguir a carreira militar?"
O rapaz observou-a, espantado com a inesperada e despropositada sugestão.
"Eu? Militar?" Abanou a cabeça. "Não, não estou a pensar em tal."
"E porquê?", interrogou-o ela, subitamente empertigada. "Tem alguma coisa contra os militares?"
Luís percebeu que se tratava, por algum motivo que não descortinava, de um ponto sensível.
"Claro que não."
Dona Beatriz voltou ao tricot.
"O meu marido era militar, que Deus o tenha. Tinha um grande futuro pela frente, mas teve azar em apanhar os gases, coitado." Ergueu a parte da camisola que já fizera e contemplou-a, avaliando o trabalho. "É uma excelente carreira, sem dúvida. Tem distinção e pode-se chegar longe. São os militares que mandam na porcaria deste país. Olhe o senhor presidente da República. Não é ele militar?"
"É verdade, minha senhora", assentiu, preparando-se para contornar a questão. "A carreira militar tem grande prestígio, sem dúvida. Mas, sabe, o problema é que é uma vida que não me atrai muito."
A mãe de Amélia fez um estalido com o canto da língua,
mostrando o seu desagrado.
"Então o que tenciona fazer?"
"Bem, quero seguir um curso superior."
Dona Beatriz sorriu de leve. Ora ali estava algo que afinal poderia revelar-se interessante.
"Um doutor, portanto."
"Isso."
"Espero que seja Medicina ou Direito", sentenciou a mulher, transmitindo uma nova mensagem clara quanto às suas expectativas. Ergueu os olhos da camisola de lã e fitou-o. "Sabe, são os únicos cursos que interessam a uma pessoa distinta."
Luís hesitou.
,
"Ainda... ainda não sei, minha senhora. Não está nada
decidido."
"Mas tem alguma coisa em mente?"
"Eu... enfim, tenho."
"O quê?"
"Estava a pensar em... em Veterinária."
Dona Beatriz abriu o rosto numa expressão quase escandalizada.
"Veterinária? Valha-me Deus! Mas por que diabo quer você meter-se em Veterinária?"
"Sabe, gosto muito de animais..."
"Todos gostamos de animais", cortou a senhora com acidez. Olhou para Francisco, que permanecia especado ao lado dela. "Até tu, não é, Chico?"
"Sim, minha senhora."
"Gostas de animais, não gostas?"
"Adoro animais, minha senhora." Passou a língua pelos lábios. "O coelho de ontem estava muito bom."
A viúva riu-se e fitou Luís.
"Aqui o Chico tem graça", observou. "Não pense que ele está a brincar. É incapaz de dizer uma piada, não tem sentido de humor nenhum, mas é nisso que o rapaz tem graça." Pigarreou. "Pois, também eu gostei imenso do coelho de ontem, mas a verdade é que isso não me deu nenhum impulso de ser veterinária."
Luís vacilou, sem saber muito bem como lidar com o inesperado e estranho argumento.
"Bem, eu... enfim... ainda tenho de pensar no assunto", tergiversou, gaguejando. "Depois...
depois decido."
"Pois então decida. E decida depressa e bem."
XII
A conversa deixou dona Beatriz Campos hesitante. O rapaz não era o que sonhara para a filha. Embora lhe adivinhasse firmeza por detrás da postura aparentemente submissa, a verdade é que Luís se lhe afigurava uma aposta algo arriscada. Que história era aquela de querer ser veterinário? Para que precisava a filha de um homem que passasse o dia a tratar de pulgas? E, o que era mais importante, onde já se vira alguém querer seguir um curso superior sem ter claro na sua mente que tiraria Medicina ou Direito? Seria ele porventura tonto? Por outro lado, não lhe parecia ser oriundo de famílias abastadas. Era um facto que não se tratava de um pé-descalço qualquer, sempre tinha umas terrazitas lá para o cu de Judas; pela descrição não lhe parecia grande quinta, é certo, mas... enfim, sempre era melhor que nada, não era?
Ou se calhar não era.
Apesar das dúvidas de dona Beatriz, Luís continuou a acompanhar a namorada nos passeios matinais até ao liceu.
Depois do episódio com o reitor, tinham-se acabado as piadinhas das colegas; o casalinho era já conhecido e dizia-se que aquilo iria certamente acabar "em casório".
"A minha mãe foi ontem ao liceu e armou um escabeche que só visto", observou Amélia na semana seguinte, seguiam os dois pela rua fora a caminho do liceu.
"Não me digas!", exclamou Luís. "Ela falou com quem?"
"Com o badigo!"
"A tua mãe foi falar com o gordo?"
"Foi falar, não. Foi gritar."
"Tu estavas lá?"
Amélia abanou a cabeça.
"Fiquei à porta, mas ouvi tudo. A minha mãe disse-lhe das boas."
"Ai é?"
"Disse-lhe que eu não era filha dele e que não me podia bater assim sem mais nem menos. E
perguntou-lhe a que propósito me chamou lefraim."
"E o tipo?"
"Oh, foi respondendo como pôde. Havias de o ter escutado. A princípio veio com ares muito autoritários, com a mania de que é bom, a dizer que ainda me ia instalar um procedimento disciplinar, que eu podia ser expulsa da escola, que isto e que aquilo. Enfim, essa conversa."
"E a tua mãe?"
"A minha mãe ouviu-o com muita calma e, quando ele se calou, começou o espectáculo. Gritou tanto que toda a gente parou e ficou a ouvir no corredor. Parecia que estavam a escutar uma novela na telefonia. O melhor foi quando a minha mãe disse que ia apresentar queixa ao inspector. Ficou tudo de boca aberta."
"Ah! E o badigo?"
"Amochou."
Riram-se os dois.
"Ela apresentou mesmo queixa?"
A rapariga encolheu os ombros.
"Sei lá."
"Mas devia", atalhou Luís. "O badigo pode abrir-te um procedimento disciplinar, mas não te pode bater, já não és nenhuma criança. A inspecção devia ser avisada."
"Bem, a minha mãe vai amanhã de viagem. Se calhar quer tratar do assunto pessoalmente em Lisboa."
"Ah, ela disse-te isso?"
"Claro que não. A minha mãe nunca me conta os seus planos."
"Porquê?"
Amélia suspirou.
"Tu não conheces mesmo a minha mãe."
O episódio com o reitor teve o condão de envolver Amélia num ambiente de solidariedade no liceu. O reitor não era uma figura que despertasse simpatia entre funcionários, alunos e pais. Tinham-lhe respeito, como era normal em relação a figuras de autoridade, mas era um respeito nascido apenas da posição hierárquica que ocupava, não do exemplo que dava ou da consideração que inspirava. Até Maria das Dores, a morena de língua afiada com quem Amélia se desentendera, se tornou mais dócil.
Acabaram-se assim os gracejos e os dois voltaram a encontrar-se com mais assiduidade nos intervalos das aulas. O passeio até ao liceu continuou a ser o momento alto do dia, a única altura em que conseguiam estar a sós, apesar de se encontrarem na rua. Mas passavam amiúde as manhãs juntos,
nos corredores do liceu, sem esconderem o sentimento que os unia, embora evitando gestos que os comprometessem. Nisso Amélia era cuidadosa. Beijos, só os do encontro e os da despedida; os outros eram adivinhados entre a ternura derramada pelas palavras enamoradas e pelos olhares que trocavam.
"A minha mãe anda estranha", observou Amélia uma manhã, três semanas depois de ela ter falado com o reitor.
Aproximavam-se já do liceu, após um passeio particularmente silencioso da parte dela.
"Estranha como?"
A rapariga contraiu a boca.
"Não sei, anda menos faladora. Parece preocupada."
"Estará doente?"
Ela lançou-lhe um olhar perturbado.
"Sabes que já pensei nisso? Achas que ela pode mesmo estar doente e não me querer dizer nada?"
Luís passou a mão pelo queixo.
"É difícil de dizer. Quando é que ela começou a parecer-te preocupada?"
"Foi depois de voltar de viagem. Lembras-te que ela foi falar com o reitor e se ausentou logo a seguir?"
"Sim."
"Esteve uns dias fora e quando voltou passou a andar mais calada."
"E onde foi ela?"
"Sei lá."
"Terá ido a Lisboa?"
"Não sei. Na altura pensei que tivesse ido apresentar queixa ao ministério e passasse pelo Douro para ver a minha irmã, mas, se assim fosse, ter-me-ia dito alguma coisa, teria dado novidades dela, não é?"
"E não disse nada?"
"Nem uma palavra. Tem é andado mais calada, como se cismasse com alguma coisa."
Parou e fitou-o com ansiedade. "Achas que está doente e não nos quer dizer nada? Achas que ela foi a um médico?"
"Caramba, onde já vai isso, rapariga! Não há-de ser nada, fica descansada."
"Mas tu próprio me perguntaste se ela estaria doente..."
"Sim, mas se fosse alguma coisa de grave já saberias. Se calhar ela foi mesmo a Lisboa queixar-se do badigo. Não te esqueças de que a tua mãe se ausentou logo depois de ter dito ao gordo que ia apresentar queixa dele à inspecção."
Chegaram à porta do liceu.
"Sim, tens razão." Reflectiu um instante. "Mas, se é só isso, por que razão anda tão calada? Que eu saiba, uma queixa à inspecção não é coisa que leve uma pessoa a mudar de comportamento."
Luís considerou este argumento.
"Pois, tens razão." Coçou a cabeça. "Olha lá, porque não lhe perguntas?"
"Já perguntei."
"E ela?"
"Diz que não é nada e que eu ando a imaginar coisas. A seguir torna-se mais faladora, mas eu bem vejo que é para disfarçar." Abanou a cabeça. "Não, passa-se mesmo alguma coisa."
"Não há-de ser nada de especial", insistiu ele, tentando desdramatizar.
Amélia fitou o namorado com intensidade.
"Eu conheço a minha mãe, Luís. Se há coisa que eu sei é que ela está a tramar qualquer coisa."
"Mas o quê?"
A rapariga estreitou os olhos.
"Não sei", disse. "Mas de certeza que não é coisa boa."
XIII
O Sol baixo do alvorecer pestanejava sem cessar, ora agora clareava, ora agora vinha a sombra, num permanente esconde--esconde entre o astro encandeante e as nuvens brancas. Os ardilosos farrapos de algodão deslizavam baixos, tapando e destapando a luz da manhã com divertida astúcia, o que emprestava ao dia uma tonalidade de humores incertos, num momento era alegria, logo depois tudo se toldava.
Ancorado na esquina da rua, Luís deixara já de notar este passatempo que o distraíra apenas alguns minutos antes; tinha agora uma outra prioridade. Consultou o relógio pela enésima vez e esfregou rapidamente as mãos para se aquecer.
"Sete e cinquenta e ainda não apareceu", murmurou agastado, o vapor da respiração a formar uma breve nuvem diante do rosto. "Chiça, já são vinte minutos de atraso!"
Bateu com os pés no empedrado da rua e, saltitando num sapateado curto, deu voltinhas ao passeio, num esforço para obrigar os pés a gerarem calor e a aquecerem assim o corpo.
Fazia frio e, como chegara um pouco adiantado, já ali estava havia uma boa meia hora. Espreitou de novo os ponteiros do relógio e fez um esforço para conter a impaciência.
"Que chatice!"
Nunca Amélia se atrasara tanto para o encontro matinal na esquina da rua. Uma vez tivera de esperar quinze minutos e lembrava-se de outras ocasiões em que fora forçado a aguardar dez minutos, mas vinte minutos, e sobretudo vinte minutos com aquela temperatura glacial, era coisa nunca vista! Um misto de enervamento e inquietação começou a apossar-se dele enquanto imaginava a causa daquele inusitado atraso. Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa? Estaria doente?
Estreitou melhor o colarinho do casaco. Realmente, com aquele frio era fácil uma pessoa cair de cama com gripe. Teria sido isso o que acontecera? Essa possibilidade deixava-o inquieto. E se o atraso resultava de mera distracção? E se ela estava atrasada porque decidira pentear-se um pouco melhor ou limpar uma nodoazinha insignificante que lhe aparecera na bata? Ajeitou de novo o colarinho do casaco e sentiu os dentes tiritarem de frio. Não, isso já seria uma desconsideração. Não era possível que ela o tivesse deixado plantado na rua, em plena manhã gelada, por um motivo tão frívolo; decerto não o deixara a enregelar apenas por querer apresentar-se um pouquinho mais bem arranjada. Ou deixaria? Essa hipótese enervava-o.
Meia hora de atraso.
Luís contemplou o relógio, indeciso, e examinou o fundo da rua, procurando a fachada da casa.
Deveria ir lá e perguntar por ela? Talvez fosse má ideia; a mãe não iria gostar e a verdade é que a própria Amélia lhe recomendara inúmeras vezes que evitasse ir lá bater à porta. Dona Beatriz era pessoa susceptível e parecia alimentar algumas reservas inexplicáveis em relação a ele, pelo que a prudência lhe parecia aconselhável. Além do mais, havia uma questão de orgulho: se fosse lá, estaria a dar um sinal de fraqueza, mostrar-se-ia dependente dela, totalmente incapaz de passar sem a sua companhia. Embora no fundo tal fosse verdade, não queria deixar essa impressão.
Quarenta minutos.
Era de mais. Quarenta minutos de atraso afigurava-se-lhe realmente um exagero, Amélia passava já das marcas! O que raio teria acontecido? Se não ia à escola, porque não mandara alguém a avisá-lo? Vendo bem, ele estava a meros dois passos de casa dela. Custar-lhe-ia assim tanto enviar-lhe um recado a dizer que não esperasse mais, que se veriam à tarde? Mas o facto é que não recebera recado nenhum e teria de tomar uma decisão. Deveria esperar um pouco mais ou estaria já na hora de partir? Abanou a cabeça. Não. Não podia continuar ali eternamente à espera da donzela.
Havia limites para tudo.
Encheu os pulmões e respirou fundo.
"Paciência!"
Voltou as costas à rua de onde Amélia habitualmente emergia e começou a caminhar, primeiro devagar e espreitando de quando em vez para trás, na tenaz esperança de a ver aparecer no derradeiro instante, como acontecia nas fitas americanas; mas depois, quando a esquina do habitual encontro se perdeu para trás dele, o passo lento tornou-se rápido, transformou-se em corrida, ia agora empenhado em chegar a tempo ao liceu antes ainda do segundo toque.
Passou os intervalos a tentar vislumbrá-la. Fazendo-se distraído, procurou a turma de Amélia e deambulou por entre as colegas, mas dela nem um vestígio. A busca acabou quando as aulas terminaram à tarde, altura em que definitivamente percebeu que Amélia não tinha ido ao liceu. Resignado, concluiu que devia estar doente.
A inquietação, contudo, não o largou. Ficou toda a tarde a matutar no assunto. Depois do lanche na pensão de dona Hortense, fechou-se mo quarto a estudar para um exercício marcado para o dia seguinte, mas o desassossego em relação a Amélia enchia-lhe a mente e nada conseguiu adiantar. Tinha de saber. Deitado na cama, voltou a admitir a hipótese de ir a casa da namorada, mas reconsiderou, e pelos mesmos motivos: dona Beatri* não iria gostar de o ver a bater-lhe a porta.
Contudo, tornava-se evidente que teria de estabelecer qualquer tipo de contacto,; não aguentava a incerteza. Além disso, o seu silêncio poderia, parecer indiferença. É certo que Amélia também permanecera silenciosa e era ela que se encontrava em falta, mas, que diabo, se estava doente também não se lhe poderia exigir muito!! E, se assim era, quem sabe de que tipo de debilidade padeceria a essa hora? Este raciocínio deixou-o ainda mais inquieto.. Sim, que debilidade seria essa? O que teria ela afinal? Seria coisa grave?
Num
impulso,"
saiiu
da
pensão
e
foi
à
praça;
conhecia
uma
lojinha
de
esquina
que
lhe
resolveria
o
problema.
fingiu-se
ao
local
e
entrou
no
estabelecimento.
Sobre
a
porta
da
entrada
anunciava-se a Flornsta Alegre e lá dentro flutuavam fragrâncias deliciosas.
„
"Queria enviar um ramo de flores a uma pessoa", pediu a senhora que se encomtrava ao balcão.
A senhora, presumivelmente a dona da loja, fez um gesto em redor, exibindo a riqueza exuberante de pétalas coloridas que os rodeava.
"Tem em mente alguma coisa?"
Luís avaliou a panóplia de flores e coçou o queixo, indeciso.
"Não sei... queria uma coisa bonita."
"É para alguma ocasião especial?"
"É para uma pessoa que está doente."
"Ah!", exclamou ela, iluminando os olhos. Girou o rosto pela loja, como se procurasse alguma coisa, até que fixou a sua atenção num vaso. "Nesse caso sugiro salva."
Extraiu do vaso um ramo cheio de verde, com as pétalas dobradas como sinos, e exibiu-o ao freguês. Luís avaliou o ramo, um traço de cepticismo a curvar-lhe a boca.
"Salva? Porquê? Não me parece lá muito bonita..."
A florista acariciou o ramo.
"A salva significa 'saúde. Era uma planta medicinal no mundo antigo e servia para salvar as pessoas. Daí que os romanos lhe chamassem salvia, do latim salvare, ou salvar." Sorriu. "Salva, de salvar."
"Estou a ver", disse Luís. "Mas receio que a pessoa em causa não saiba nada disso."
A mulher sorriu.
"Razão pela qual lhe expliquei o significado desta planta. O senhor poderá agora dar esta explicação à pessoa que está doente e ela entenderá o seu gesto."
Era bem visto.
"Tem razão", assentiu ele. "Bote então aí um raminho."
"Quer levar ao natural ou tudo embrulhadinho?"
"Na verdade, não o quero levar. Vocês não fazem entrega ao domicílio?"
"Isso não fazemos." Fez um sinal na direcção da porta da rua. "Mas a mercearia aqui ao lado tem um rapaz que faz entregas. Se o senhor for lá, pode ser que a coisa se arranje."
Luís pagou e saiu com a planta nas mãos, o ramo enfeitado por um lacinho branco e corde-rosa que a florista atara aos pés. Foi à mercearia do lado, perguntou pelo rapaz, combinou o serviço e disse-lhe que pagaria logo que o ramo fosse entregue, ele que desse um salto à pensão da dona Hortense no caminho de regresso.
Voltou à pensão sorridente e satisfeito com a solução que havia encontrado. A salva era perfeita para a ocasião. Graças a ela não tinha de ir bater à porta de Amélia, mas ainda assim daria uma indicação, por sinal muito elegante, de que estava inquieto e pensava na sua amada. E teria notícias dela.
Era de mestre!
Sentindo-se já tranquilizado e com a paz de espírito recuperada, Luís fechou-se no quarto da pensão e pôs-se enfim a estudar para o exercício de Geografia que estava marcado para o dia seguinte. Embora tivesse a matéria adiantada pelo trabalho dos dias anteriores, faltava-lhe ainda fixar os nomes dos rios de todo o país, matéria que havia decorado na primária mas já tinha esquecido. Leu a lista e nomeou-os de rajada, entoando uma ladainha à maneira da tabuada, só que, em vez de quatro-vezes--cinco-vinte, dizia Alviela-Sabor-Lima-Mondego...
Toc-toc-toc.
A batida interrompeu-o quando ia chegar ao Sado.
"Quem é?"
"Sou eu, menino."
Luís rolou os olhos, exasperado. Era a dona da pensão. Ergueu-se da cama e, com gestos contrariados, foi abrir a porta.
"O que é, dona Hortense?"
"Aiche, Jesus!", exclamou ela, notando a expressão contrafeita de Luís. "O menino hoje está de gângaras!"
"É que estou a estudar, dona Hortense. Tenho muito que fazer." Suspirou, como se fosse dono de infinita paciência. "Diga lá, o que se passa?"
"Assucede que está um mocinho lá em baixo para si."
"Ah, sim!", lembrou-se, o mau humor varrido de um momento para o outro. "É para eu pagar.
Diga-lhe que já vou."
Calçou os sapatos, pegou numa moeda de meio tostão que tinha sobre a mesa-de-cabeceira e desceu as escadas saltando os degraus de dois em dois. Viu o rapaz da mercearia à espera diante da porta de entrada, mas constatou que ele trazia o ramo enlaçado de salva nas mãos, o que Luís estranhou.
"Então?", questionou, ia ainda nos últimos degraus. "O que se passa? Não fez a entrega?"
"Eu fiz, senhor deitor."
Luís imobilizou-se diante do rapaz, as mãos à ilharga, uma expressão interrogativa no olhar.
"Então o que está a planta aí a fazer?"
"Não estava lá ninguém, senhor deitor."
"Como assim?"
"Eu botei-me à porta e bati, mas ninguém atendeu."
"É porque saíram, se calhar foram ao médico." Fez sinal com a cabeça na direcção do ramo.
"Você devia ter deixado a planta com uma vizinha, sempre poupava o trabalho de lá voltar."
"Eu tentei, senhor deitor. Fui bater à porta da vizinha e pedi-lhe que fizesse o favor de entregar a planta à menina Amélia. Mas ela disse que já não era ali."
"O que não era ali?"
"A casa da menina Amélia."
"Você está a gozar comigo? Claro que é ali!"
"Não foi o que me disse a vizinha, senhor deitor. Ela disse que a casa foi fechada e as senhoras mudaram-se."
"Para onde?"
"Não sei, senhor deitor. Mas foram para outra terra."
Luís arregalou os olhos, estupefacto.
"O quê?"
"A menina Amélia já não mora em Bragança."
XIV
As janelas da fachada da casa apresentavam-se efectivamente corridas e lá de dentro não vinham quaisquer sinais de vida. Tremendo de ansiedade e a respiração oprimida pela aflição, Luís foi bater à porta, primeiro com delicadeza, depois com desorientada insistência. Mas, tal como o rapaz da mercearia havia avisado, ninguém abriu.
A mente agitava-se-lhe num turbilhão enquanto ele aguardava no intervalo das batidas. Vivia um sentimento de irrealidade, pensava que aquilo não lhe estava a acontecer, não podia estar a acontecer, haveria decerto uma qualquer explicação. Mas o facto é que a casa estava mesmo fechada e Amélia não se encontrava ali.
"Talvez tenham ido ao médico", murmurou para si mesmo. "Ou então foram passear, sei lá."
Deu alguns passos para o lado e foi bater à porta da vizinha. Tinha de haver uma razão lógica para aquilo, só podia haver um engano, de certeza que o rapaz da mercearia percebera tudo mal.
Uma mulher larga de aspecto desgrenhado, com um avental azul e uma vassoura na mão, espreitou por entre as cortinas da janela do rés-do-chão com ar interrogativo.
"Desculpe, sou um amigo da sua vizinha, a menina Amélia", apresentou-se, tirando o chapéu.
"Vim aqui saber dela mas a casa parece fechada. Faz o obséquio de me dizer se ela se ausentou?"
A mulher abriu a janela.
"A dona Beatriz e a menina Amélia já aqui não moram."
"Não moram como? Abandonaram a casa assim sem mais nem menos?"
"Foi uma espantação!", exclamou a vizinha. "Até nós aqui em casa estamos fartinhos de comentar o assucedido. Ant'onte, no sábado, a dona Beatriz apareceu-nos aqui à pela uma da tarde a despedir-se. Vinha toda afergulhada e disse que tinha fechado a casa e qu'ia morar p'ra outra terra."
"Qual terra?"
"Ah, isso ela não m'explicou."
"Não lhe perguntou?"
"Aperguntar, até qu'aperguntei. Mas ela não disse nada e eu botei-me no meu lugar. Não m'ia pôr a alanzoar."
"Então como é que eu posso chegar à fala com a menina Amélia?"
"Ah, isso eu cá não sei."
"Não há ninguém que saiba para onde elas foram?"
"Eu não aconheço."
"Alguém de família, alguém de quem fossem amigos, sei lá..."
"Não aconheço ninguém."
Luís mordeu o lábio. Estava a ser difícil arrancar alguma informação que lhe permitisse localizar a namorada.
"A dona Beatriz não lhe explicou por que razão teve de se mudar assim tão... tão à pressa?"
"Disse que eram assuntos de família."
"Que assuntos?"
"Ah, isso eu não aperguntei. São lá coisas entre elas, não é?" Inclinou a cabeça para fora da janela, em tom conspirador. "Mas lá que achámos estranho, lá isso achámos. Ainda onte à noute eu disse ao meu André: ó menino, há gato em tod'esta história!" Olhou em redor, como se temesse ser escutada, e baixou a voz. "Assuntos de família, é?" Fez um esgar sabido. "A certa!" Voltou a olhar em redor, para se certificar de que não havia ouvidos indiscretos nas redondezas. "Eu cá não sou belfurinheira, toda a vizinhança sabe que nunca fui de alcarrotar nem dessas coisas, Deus me livre!
Mas ninguém me tira qu'esta história dos assuntos de família é tudo boldreguices! Boldreguices, digo-lhe eu! Cá p'ra mim, sabe qual é a verdadeira razão p'ra se terem posto a andar? Sabe qual é?
Sabe?"
"Não."
Abriu muito os olhos negros, como se fosse revelar um grande segredo.
"Conques."
"O quê?"
"É tudo questão de conques, home!" Remexeu o indicador e o polegar. "Cunfres. Carcanhol.
Dinheiro."
"Que dinheiro?", espantou-se ele.
"Chiu", soprou ela, fazendo com as mãos sinal para falar mais baixo. Voltou mais uma vez a cabeça para a direita e para a esquerda, de modo a assegurar-se de que ninguém ouvira, e fixou Luís com uma expressão conspiradora. "Deve haver umas falcatruas pelo meio, é o que é!"
"Está a falar de quê?"
"Da loja, home! Da loja! A dona Beatriz não tem uma loja?"
"Ah, pois tem!", lembrou-se Luís. "A Casa Rodrigues!"
"Pois é. Cá p'ra mim, é tudo um problema de conques, está a ver?"
"Como sabe isso?"
A vizinha estreitou os olhos e fez um ar de entendida, como se soubesse mais do que dizia.
"Eu cá m'entendo!"
Luís olhou para ela, avaliando-a. Era claramente uma linguaruda virada para a maledicência, só mesmo uma alcarroteira é que garante não ser belfurinheira. Metade do que dissera, se não mesmo tudo, não passava com toda a probabilidade de produto da sua fértil imaginação intriguista. O facto, concluiu, é que a vizinha não deveria verdadeiramente saber por que razão dona Beatriz tinha vendido a casa. Se queria mesmo obter essa informação, teria de procurar noutro lado.
"Então e a menina Amélia?" Isto era algo que a vizinha, se as vira de facto partir, deveria pelo menos saber com segurança. "Como lhe pareceu ela?"
"Chorosa, tadinha!"
"A senhora viu-a mesmo?"
"Hom'essa, atão não vi? Co'estes meus olhinhos qua terra há-de comer!"
"E então?"
A vizinha fez um ar compadecido e passou os dedos gordos pelo bigode que lhe nascia sobre os cantos da boca.
"Dava dó, tadinha! Via-se mesmo que não queria ir. Mas já sabe como é a dona Beatriz, não sabe? Deve-lhe ter dado umas orelhadas, depois arrastou-a p'r'ó carro e ala!, foram-se embora!"
"Ah, foram de carro?"
"Foram, pois atão. Veio aí uma máquina preta buscá-las e lá foram elas e o macaquinho."
"Qual macaquinho?"
"O tosco, o Chico." Abanou a cabeça e suspirou, em comiseração. "Tadinha da menina Amelinha!"
Tornara-se claro que a vizinha tinha mais boatos fantasiosos para espalhar do que informações credíveis para oferecer, mas a conversa serviu para lembrar a Luís que havia um sítio onde o paradeiro de Amélia não poderia ser desconhecido. Consultou o relógio e praguejou, frustrado. Já era tarde, a loja devia estar fechada a essa hora e só lá poderia ir no dia seguinte.
Regressou cabisbaixo à pensão e foi imediatamente fechar-se no quarto. Para pasmo e consternação de dona Hortense, anunciou que não queria jantar nessa noite.
"Tenho ponto amanhã", foi tudo o que a dona da pensão arrancou dele depois de muita insistência.
Apenas engoliu uma pêra na manhã seguinte, quando saiu para as aulas. Ainda passou pelo habitual ponto de encontro com Amélia e esperou algumas dezenas de minutos, rezando para que a namorada aparecesse como de costume e assim desfizesse o pesadelo em que parecia ter mergulhado nos dois últimos dias.
Mas Amélia não apareceu.
Decidiu, por isso, faltar às primeiras aulas do dia. Em vez de seguir para o liceu, dirigiu-se ao Largo do Principal em busca do local onde sabia que o paradeiro de Amélia teria forçosamente de ser conhecido.
A Casa Rodrigues era um estabelecimento respeitável situado em pleno centro de Bragança.
Parou do outro lado da rua e contemplou a fachada do estabelecimento. A vitrina exibia tecidos variados, todos enrolados como grandes cigarros e encostados uns aos outros, à excepção de uma espécie de lençol escarlate que decorava um dos cantos.
Respirou fundo e, pela primeira vez, entrou na loja. O interior revelou-se escuro e poeirento, como o de uma caverna; no ar denso flutuava um ligeiro aroma a naftalina e a cânfora, e uma mulher de meia-idade arrumava tecidos por detrás do balcão, o cabelo grisalho apanhado num carrapito arredondado.
"Bom dia", cumprimentou Luís, aproximando-se do balcão. "A dona Beatriz está?"
A mulher parou as arrumações e olhou-o, desconfiada; não era comum ver um homem entrar na loja.
"A patroa não se encontra. Posso ajudá-lo?"
"Precisava de saber onde está a dona Beatriz. Tenho um assunto de muita urgência e delicadeza para tratar com ela. Porventura sabe onde a poderei localizar?"
A empregada franziu o sobrolho, sem saber o que pensar daqueles modos tão finos.
"A patroa foi de viagem."
"Terá a amabilidade de me dizer para onde?"
"Ah, isso eu cá não sei."
"Sabe por gentileza informar-me de quando ela volta?"
A mulher encolheu os ombros.
"Também não sei."
Luís cerrou as sobrancelhas, admirado com tanta ignorância, e decidiu abandonar as finuras de linguagem que não o estavam a levar a lado nenhum.
"Não sabe como? Esta loja não é dela?"
"É pois, mas eu não sei da vida da patroa."
O rapaz suspirou.
"Oiça, eu tenho muita urgência em falar com a dona Beatriz. O que posso fazer para chegar a ela?"
A senhora tirou um livro de uma gaveta e pousou-o sobre o balcão; era uma agenda com 1930 debruado a ouro na capa negra. A empregada abriu a agenda e folheou-a com rapidez.
"Ora bem, a patroa disse que vem cá tratar da contabilidade", observou, imobilizando os dedos numa página. "Isso está marcado para... para sexta-feira."
"Qual sexta-feira? Esta?"
"Sim", confirmou a empregada, fechando a agenda e fitan-do-o. "Daqui a três dias. Só se quiser vir cá nessa altura."
Apareceu no liceu com olheiras profundas a ensombrarem-lhe os olhos mortiços. Arrastou-se para a sala e foi a custo que completou o exercício de Geografia marcado para o final da manhã.
Saiu da sala sem saber se a prova lhe tinha corrido bem ou mal. Nem isso lhe interessava; a mente voara-lhe para bem longe dali.
Com o ponto já fora do caminho, consultou a cábula que havia guardado num caderno com o horário escolar de Amélia e dirigiu-se à sala onde ela supostamente se encontraria.
"A Amélia?", perguntou logo que viu uma colega da namorada. "Que é feito dela?"
A rapariga encarou-o, surpreendida primeiro e embaraçada a seguir.
"Então não sabes? Ela não te disse?"
"Disse o quê?"
A colega de Amélia contraiu o rosto, estranhando tanta ignorância da parte de quem tudo deveria saber.
"Vocês zangaram-se ou quê?"
"Claro que não nos zangámos. Porque perguntas isso?"
"Então como é que não sabes dela?"
Luís suspirou. Era uma boa pergunta, tão boa que ele próprio já a fizera inúmeras vezes.
"Não faço a mínima ideia", disse. "Despedimo-nos no sábado e estava tudo normal. Só que ontem já não a vi e não tenho notícias dela. Parece que se sumiu!"
A rapariga deu-lhe o benefício da dúvida.
"Ai sumiu, sumiu!", exclamou. "E de que maneira!"
"Então?"
"A Amélia mudou de escola."
"Foi para onde?"
"Sei lá!"
"Mas como sabes que ela mudou de escola? A Amélia veio cá? Foi ela que te disse?"
"Bem... não. Essa história começou a correr por aí e toda a gente percebeu que era verdade quando a professora de Português disse ontem de manhã que a Amélia já cá não andava e mandou ocupar a carteira dela." Esboçou uma expressão pensativa. "A bem dizer, a última vez que a vi também foi no sábado."
"Então ela desapareceu assim, de um dia para o outro, sem dizer nada a ninguém?"
A colega de Amélia ficou especada a olhar para ele, como se nunca lhe tivesse ocorrido pôr as coisas daquela maneira.
"Pois, foi isso mesmo o que aconteceu", acabou por concordar. "A Amélia desapareceu!"