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"E uma omeleta? Vai uma omeletinha, vai?"
"Não tenho fome."
"Não tenho fome, não tenho fome", repetiu ela com uma careta, balouçando a cabeça e caricaturando-lhe o tom e a voz. "Mas afinal o que tem o menino?"
Saturado com a insistência, Luís levantou-se da mesa.
"Se me dá licença, preciso de ir estudar."
"Outra vez?", admirou-se ela. "Mas o menino não faz outra coisa que não seja estudar! É sempre a estudar, a estudar, a estudar... Credo, até me faz espécie!"
"O que quer? Ando numa época de muitos pontos..."
"O menino é muito zagucho, não há dúvida, essa cabeça até esmilha de tão esperta que é! Mas oiça o que eu lhe digo: só consegue estudar bem se comer melhor! Ouviu?" Ergueu o dedo, toda sentenciosa. "E como o lambiteiro do padre Álvaro costuma dizer sempre que cá vem encher a pança: mentis sanas em... uh... corpus sanus... ou lá o que é!"
Se não se sentisse tão abatido, Luís ter-se-ia rido.
"Isso", limitou-se a dizer, dirigindo-se às escadas. "Agora vou tratar da mentis."
Dona Hortense levantou-se também da mesa e foi atrás dele.
"Mas como é possível o menino andar tão penisqueiro, valha-me Deus? Por que razão não come nada?" Gesticulou. "Desde que aqui está que sempre teve tanta sapeira, sempre foi um lambaças de primeira! Quando há feijoadinha boa, oh, põe-se logo à husma! E agora... agora deu-lhe para isto?"
Abanou a cabeça e bateu com a palma da mão na testa, em desespero. "Bem m'eu finto do que está a acontecer! Até parece que é por finca-ratunha!"
"Não é por finca-ratunha nenhuma", insistiu ele, sem parar de subir os degraus. "Não tenho fome e há muito trabalho pela frente. É só isso."
Dona Hortense ficou em baixo a vê-lo desaparecer no topo das escadas.
"Rai's t'a parta o diabo do catraio!", praguejou quando o ouviu fechar a porta do quarto. "Ora querem lá ver isto?" Abanou a cabeça e regressou contrariada para a mesa. "Chiça! Até mete ranço!"
A sexta-feira chegou e Luís passou pela Casa Rodrigues logo que saiu a caminho das aulas, mas, considerando que nem oito da manhã ainda eram, foi sem surpresa que verificou que a loja se encontrava encerrada. Um papelinho pregado na porta indicava que o estabelecimento só abriria às dez da manhã, o que aliás acontecia com todo o comércio de Bragança.
Desejou ardentemente que houvesse um furo a partir das dez horas, mas, como se fosse de propósito para o contrariar, nenhum professor faltou. Parecia uma conspiração. Acompanhou as aulas com mal disfarçada impaciência. Não se cansava de consultar o relógio. Espreitou tanto os ponteiros que até o habitualmente distraído e extravagante professor de Latim notou.
"Ex abrupto", exclamou o professor de modo teatral, os olhos fixos em Luís, "ele olha para o relógio!"
"Perdão?", atrapalhou-se o aluno, regressando à sala e percebendo-se interpelado.
"Ah, voltou entra muros? Magnífico! Está finalmente hic et nunc! É que vejo-o tão preocupado com as horas... Serei eu que o maço, senhor Afonso?"
"Não, não", apressou-se Luís a esclarecer. "Sou eu que... que tenho um compromisso."
"In continenti?
"Não, não é imediatamente. É mais logo."
"Ah! Post meridiem."
"Isso."
"Esteja ad libitum. Se precisar de sair, nihil obstat. Mas, nota bene, enquanto estiver aqui na aula quero-o concentrado quantum satis no que aqui se passa. É essa a vexata quaestio. Entendeu?"
"Sim, senhor."
O professor emitiu um longo suspiro pedante e girou o dedo no ar, a boca curvada à maneira de Mussolini, imaginando-se talvez um senador a discursar no fórum de Roma.
"Dura lex sed lex!"
As aulas terminaram ao meio-dia e, em vez de ir direito para a pensão, onde, como era habitual àquela hora, o esperava o almoço, Luís previsivelmente seguiu para a Casa Rodrigues. Caminhou tão depressa que quase corria e em poucos minutos se pôs na loja.
Logo que o viu entrar de rompante, a senhora do balcão apontou para o grande relógio de pêndulo que se encontrava encostado à parede.
"Só à tarde. A patroa está agora a almoçar."
Os olhos de Luís acenderam-se, esperançados.
"Ah sim?", exclamou, arfando por causa da caminhada apressada. "Ela já cá está?"
"Já pois. Passou por aqui ainda há bocadinho."
"E onde foi almoçar?"
"Onde haveria de ser? A casa, pois então!"
Saiu da loja sem agradecer e sem se despedir, tão concentrado estava na sua busca. Correu pela rua com a mão a segurar o chapéu na cabeça, incapaz de reprimir a ansiedade; tinha de saber o que se passava e enquanto não soubesse não descansaria.
Parou diante da casa de Amélia e espreitou as janelas do primeiro andar. As cortinas tinham sido abertas para deixar entrar o sol; não havia dúvidas, estava alguém em casa. Com o coração aos pulos, não sabia se pelo esforço da corrida ou se pelo anseio por ter chegado o momento da verdade, bateu à porta e aguardou. Apercebeu-se de que arquejava e fez um esforço para recuperar o fôlego e controlar a respiração.
A porta abriu-se e viu dona Beatriz de avental e uma colher de pau na mão. Era evidente que estava a cozinhar.
"Boa tarde, minha senhora", cumprimentou, tirando o chapéu. "Desculpe incomodá-la. A Amélia está?"
A mulher permaneceu um instante a observá-lo, como se ponderasse o que haveria de dizer.
"Quem é o senhor?"
"Eu?", admirou-se o rapaz, uma expressão de perplexidade a atravessar-lhe o rosto. "Eu sou o Luís, o amigo da Amélia. Não se lembra? Vim cá noutro dia falar consigo."
"Quem o senhor é já eu sei muito bem", atalhou ela, a voz seca. "A minha pergunta é: quem é o senhor... para me vir aqui a casa à hora do almoço?"
Quase sem querer, os olhos de Luís pousaram na colher de pau.
"Ai, desculpe! Eu não... não..."
"Porventura veio aqui a esta hora para se fazer convidado?"
"Eu não, claro que não!"
"Cheirou-lhe a comida e ei-lo!"
"Desculpe!", empertigou-se o rapaz. "Não é disso que se trata. Apenas quero saber da Amelinha."
"Ai sim?", exclamou ela num tom irónico. "Pois o senhor tinha o dia inteiro para saber da bijou, mas, vejam só, escolheu justamente a hora do almoço para aqui vir!"
Luís engoliu em seco. Que mulher difícil!
"Oiça, minha senhora", disse no tom mais razoável de que foi capaz. "Estou aqui unicamente para saber da Amélia. Prefere que eu venha mais daqui a um bocado?"
"Claro que prefiro!", vociferou ela, como se tal pergunta não fizesse sentido tão óbvia era a resposta. "Isto são horas de aparecer em casa de alguém?"
"Então eu passo mais logo", decidiu, ignorando a pergunta provocatória de dona Beatriz. "Seis da tarde. Pode ser?"
"Olhe que eu hoje tenho muito trabalho pela frente..."
"Mas eu só quero saber onde está a Amelinha."
Dona Beatriz ponderou por momentos a situação.
"Pois bem, venha às três", concedeu por fim.
"Mas eu tenho aulas à tarde..."
"Às três", sentenciou numa pose majestosa e em tom magnânimo, como um juiz indulgente com o criminoso. "Eu conceder-lhe-ei cinco minutinhos."
XVI
Ainda hesitou entre ir almoçar à pensão e ficar-se por ali. Já nem era a questão das aulas à tarde, que dava por perdidas naquele dia; tratava-se de dona Hortense. Sabia que a proprietária da pensão tinha a refeição à sua espera e sentir-se-ia desconsiderada se ele nem ao menos a informasse de que não ia lá comer, mas, por outro lado, percebia que todo o cuidado era pouco com dona Beatriz. E se ela aproveitasse a pausa do almoço para voltar a abalar? Como resolveria o mistério do desaparecimento de Amélia? Poderia abandonar a entrada da casa?
A desconfiança acabou por prevalecer e Luís optou por dar um salto à mercearia para comprar uma regueifa e um queijo e regressar logo a seguir. Sentou-se a depenicar a regueifa debaixo de uma árvore plantada do outro lado da rua enquanto vigiava a porta de casa de Amélia, não fosse a mãe escapar-se-lhe por entre os dedos.
Às três em ponto voltou a atravessar a rua e foi de novo bater à porta de casa. Desta vez quem atendeu foi Francisco, que o encarou com a habitual expressão carrancuda.
"A senhora está à sua espera", grunhiu, deixando-o entrar.
Luís seguiu o rapaz pelo corredor até à sala e deu com dona Beatriz sentada à mesa do almoço, rodeada de papéis que manejava com destreza. Ao aperceber-se da sua presença, a dona da casa fez com a mão sinal de que se aproximasse e com a cabeça indicou a Francisco que os deixasse a sós.
Quando Luís se plantou diante dela, pousou os papéis e o lápis que tinha em mãos, tirou os óculos redondos e fitou-o longamente, uma expressão altiva a incendiar-lhe os olhos.
"Então?", disse. "Já almoçou?"
"Já sim."
"O que comeu?"
Luís sentiu-se surpreendido com a pergunta. Para que diabo quereria ela saber o que almoçara?
"Uma regueifa com queijo."
"Mais nada?"
"Sim, foi só isso."
A mulher sorriu e voltou a encavalitar os óculos sobre o nariz, desviando a atenção para os papéis pousados à sua frente.
"Bem me queria parecer!", murmurou num ranger de dentes. "Bem me queria parecer!"
Remexeu os papéis, simulando que procurava qualquer coisa. "Quer é vir aqui comer por conta, é o que é", ruminou, como se falasse sozinha mas sabendo perfeitamente que ele a escutava. "Pensam que nasci ontem, mas topo-os à distância!"
Ao escutar o inesperado solilóquio, Luís sentiu-se a ferver de irritação. Aquela mulher tinha o condão de distorcer tudo
o que dizia ou fazia; não percebia se era feitio ou provocação, mas o hábito começava a mexer-lhe com os nervos.
"Perdão?", interpelou-a, uma ponta de desafio no tom. "Como disse?"
"São cá coisas minhas", retorquiu ela, sem levantar os olhos dos papéis. Arrumou uns recibos ao canto da mesa. "Vamos mas é ao que interessa. O senhor veio cá porque quer saber da bijou, não é verdade?"
"É, sim senhora."
Voltou a fitá-lo, sempre emproada.
"Pois a bijou já cá não mora. Não vale a pena preocupar-se mais com ela, está em boas mãos."
"Pois, mas eu gostaria de saber onde se encontra a Amélia."
"O que lhe interessa isso? A bijou foi-se embora e não voltará mais. Ponto final. Portanto, esqueça-a."
Luís respirou fundo e considerou a melhor maneira de expor o que tinha a dizer.
"Minha senhora, veja se compreende isto", disse, esfor-çando-se por permanecer calmo. "Faz amanhã uma semana que me despedi da Amelinha no liceu e ela disse até segunda. Como vê, tudo normal. Só que na segunda-feira não apareceu. Nem água vai, nem água vem, não disse nada. Fui depois informado de que a casa estava fechada e a Amélia já não iria mais ao liceu porque tinha ido viver para outro lado. Ora ela não me tinha dado qualquer indicação de que ia mudar de liceu, de casa, de terra ou do que quer que fosse. Para além disso, não me deixou nenhuma mensagem, nenhum recado, nada." Encolheu os ombros e abriu os braços, num gesto de pasmo que lhe reforçava o sentimento de impotência. "Como deve calcular, acho tudo isto um pouco estranho e gostaria muito de saber o que se passa."
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"O que se passa é que ela foi viver para outro sítio. É isso o que se passa."
"Mas posso ao menos falar com ela?"
"Não, não pode."
"Porquê?"
"Porque ela não está cá."
"Então diga-me onde está e eu vou lá falar com ela."
Dona Beatriz soltou uma gargalhada.
"Isso queria você!" Deixou o riso morrer e apontou-lhe o dedo, quase acusadora. "Não percebe que, se ela se foi embora, foi justamente por sua causa?"
Luís abriu a boca, atónito.
"Por minha causa?"
"Claro! Para que lhe ia eu dizer onde está a bijou? Para você ir lá fazer-lhe a cabeça e recomeçar tudo de novo? Era o que mais faltava! Eu quero que a minha bijou..."
"Espere!", cortou ele, elevando pela primeira vez o tom de voz. "Está a dizer-me que ela se foi embora por minha causa?"
Dona Beatriz soergueu a sobrancelha, as linhas do rosto assumindo o aspecto de quem não admite ser questionado.
"Pois claro que sim!", confirmou. "Ainda não tinha percebido? A minha bijou não é fruta para a sua boca."
"Que quer dizer com isso?"
"Quero dizer que a bijou não se vai casar com um pelintra como você! Quero dizer que..."
"Eu não sou nenhum pelintra!"
"Mas também não é homem para a minha filha! Onde é que já se viu a bijou estar destinada a um... um... um que vai passar a vida a tratar de porcos e burros e pulgas?"
A incredulidade estampou-se-lhe no rosto.
"Está a referir-se ao meu desejo de seguir veterinária?"
"Estou a referir-me a tudo! Estou a referir-me aos porcos que você quer tratar, estou a referir-me às suas terrinhas lá para trás do Sol posto, estou a referir-me aos seus modos e à sua irritante mania de aparecer em casa das pessoas à hora do almoço como um rafeiro que pedincha comida!" A voz ganhou-lhe força; dona Beatriz galvanizava-se. "A minha filha há-de ter o melhor! Ouviu? O
melhor! E um... um coiso... um veterinário ou lá o que é, um provinciano sem maneiras, um larpão que só pensa no almoço, isso, meu caro senhor, não é o melhor!"
Luís abanou a cabeça e sorriu sem vontade. Os argumentos pareciam-lhe tão absurdos que nem sabia por onde começar para os desmontar.
"Ai não? Então o que é o melhor?"
"O melhor é aquilo a que a bijou está destinada."
"E a que está ela destinada? A um médico? A um advogado? A quem?"
"A quem lhe proporcionar um futuro em segurança." Fez um gesto na direcção do cesto de malhas que tinha pousado junto à lareira. "Ela sabe corte e costura, graças a Deus, mas precisa de um homem que lhe assegure o futuro. Neste mundo, a mulher é o que o homem for. Quanto mais prestigiada for a profissão do marido, mais promissor será o futuro da bijou."
O rapaz encolheu os ombros, resignado.
"Muito bem, não há problema", disse. "Vou inscrever-me em Medicina, não seja lá por isso..."
Dona Beatriz pegou no lápis e começou a brincar com ele entre os dedos.
"é tarde de mais", sentenciou.
"Não, não é. Vou terminar agora o liceu e, em vez de me inscrever em Veterinária, inscrevo-me em Medicina. É muito
simples até, não há dificuldade nenhuma. Aliás, se formos a ver bem, a veterinária é um ramo da medicina, pelo que a mudança não custa nada..."
"O senhor inscrever-se-á no que quiser e muito bem entender, mas a bijou não lhe está destinada."
"Mas porquê? Como pode a senhora dizer isso?"
A mulher cravou os olhos nele, fria e calculista.
"Porque a bijou já casou."
Convencido de que tinha ouvido mal, Luís sacudiu a cabeça.
"Como?"
"Foi no domingo passado, no Porto."
O rapaz ficou um longo instante a fitá-la, incapaz de processar a informação, tal a enormidade que lhe era atirada à cara.
"Que está a senhora a dizer?"
"Estou a dizer-lhe que a bijou não será sua porque já não é sua. No sábado passado fomos ao Porto e ela casou com um oficial. Foi uma cerimónia muito bonita logo na manhã de domingo e ela tem agora vida montada lá para aqueles lados. O oficial herdou terras, é um homem muito abonado e fará dela uma rapariga feliz."
Um baque quase lhe parou o coração, agora que começava a digerir a notícia.
"A Amélia casou?"
Dona Beatriz continuava a falar, aparentemente alheia ao efeito que as suas palavras estavam a produzir no visitante.
"Claro que é uma solução vantajosa para todos. Primeiro para ela, é evidente. Tornou-se proprietária de duas belas quintas, ficou muito bem na vida. Mas também este casamento foi conveniente para a família, não o nego. O nosso património ficou agora alargado."
Olhou para cima e benzeu-se. "O meu Raul, se fosse vivo, ficaria muito contente. Ele também
era do exército, sabe? Tinha o sonho de casar bem as filhas e eu... eu consegui!"
"Mas... mas a Amélia casou por vontade própria?"
A pergunta trouxe-a à terra.
"O que quer dizer com isso de vontade própria?", perguntou, quase empertigada. "Onde é que uma criança com aquela idade tem vontade própria? Onde é que uma menina acabada de sair da escola é capaz de discernir o que é bom e o que é mau para ela? O óleo de fígado de bacalhau será porventura saboroso? Alguém o toma por prazer? E, no entanto, haverá quem duvide dos seus benefícios para a saúde?"
Luís sentiu a raiva apossar-se dele. A face enrubesceu-se--lhe, uma sombra cobriu-lhe os olhos e as têmporas começaram a latejar. Com que direito decidia aquela mulher a sua vida e a vida da filha?
"A senhora está a dizer-me que a Amélia casou à força?"
"A Amélia é uma rapariga que foi ensinada a ser obediente", disse dona Beatriz quase a soletrar as palavras, como se as pesasse com grande cuidado. "Como menina educada que é, está perfeitamente consciente de que o óleo de fígado de bacalhau sabe pavorosamente, mas faz muito bem à saúde! Será uma excelente esposa, boa mãe e uma grande dona de casa." Suspirou. "Claro que a Amélia ainda não vê bem as coisas desta maneira, não é verdade? Agora é jovem e tem muitas ilusões, acha que a vida é um conto de fadas... enfim! Felizmente cá estou eu para zelar pela sua felicidade e para..."
De cabeça já perdida e sem conseguir conter-se mais, Luís agarrou-a pelos colarinhos e puxou-a com força para ele, tão alto que ela ficou a espernear no ar.
"Grande puta!", berrou-lhe diante do nariz, os perdigotos a saltarem para a cara da senhora.
"Cabra de merda!"
"Chico!"
Sacudiu-a de um lado para o outro, como um saco de batatas, e, apesar de estar cego de raiva, lutou contra a vontade quase irresistível de a esmurrar.
"Bicha-cadela! Calatre ordinário! Desanco-te toda, juco de trampa! Como te atreveste, grandessíssimo calhau? Como..."
"Chiiiiiiiiico!"
"... te atreveste a meter-te na nossa vida? Quem és tu para pôr e dispor de mim e da Amélia?
Quem és tu..."
Uma força poderosa sugou-o para trás, obrigando-o a largar dona Beatriz. Sentindo a sala girar em seu redor, vislumbrou por uma fracção de segundo o rosto animalesco de Francisco antes do brutal impacto no estômago que o estendeu no chão, o corpo dobrado sobre si mesmo, uma dor cavada no estômago a roubar-lhe a respiração e luzinhas a cintilarem-lhe nos olhos, como pirilampos a esvoaçarem na noite.
Perdeu toda a noção do tempo, mergulhado na escuridão da dor que lhe moía o corpo. Teve apenas a vaga impressão de que o arrastavam, mas quase não se importou. Estava já para lá de tudo isso. Largaram-no sobre uma superfície dura e fria, cuja textura demorou a entender. Sentiu as costas molhadas e gemeu.
A mente ainda entorpecida, fez um esforço para raciocinar e percebeu enfim que se encontrava pousado no chão, abandonado, o corpo meio mergulhado em água gelada. Depois pensou no que se tinha passado e espantou-se por não se lembrar de quase nada. Apenas que Francisco o havia apanhado por trás e dera cabo dele. A lembrança do sucedido deixou-o atónito; era extraordinário como um rapaz de apenas doze anos tinha tamanha força.
Abriu devagar os olhos e deparou-se com o céu acinzentado da tarde, um manto de cobre recortado pelo ondular atijolado dos telhados. Não fazia ideia do sítio onde se encontrava.
Ergueu a cabeça a custo e olhou em redor. Rostos espantados observavam-no com um misto de medo e curiosidade, como se estivessem indecisos, tentando entender quem poderia ele ser. Tratar-se-ia de um bêbado? Era um maltrapilho? Seria perigoso?
Percebeu então que estava deitado na rua, para onde fora jogado como se não passasse de um saco de lixo.
Parte Dois
1934
E se um sonho
de esperança te surgir
I As bailarinas, roliças e cintilantes, saltitavam no palco de um lado para o outro, acompanhando a batida frenética da orquestra naquele espectáculo feérico de música, luz, cor e movimento; em uníssono, sem parecerem sequer ofegantes, mantendo até o sorriso reluzente à maneira do show biz, cantavam em coro, as pernas movidas em maravilhosa sincronia pelo ritmo infernal da dança.
São mulheres nuas, saxofones a gritar; São girls, são pernas De bailarinas, bem ritmadas, a marcar; São projectores que nos inundam de luz, Um mundo irreal que nos seduz.
"Fantástico!", gritou um rapaz de cabelos negros ao ouvido de Luís. "Já viste?"
Sem tirar os olhos do palco, Luís assentiu.
"Até parece uma fita americana."
"Olha-me para estes jogos de pés!", exclamou o amigo, entusiasmado. "O Fred Astaire e a Ginger Rogers não fariam melhor!"
"Ó Fernando, também não vale a pena exagerares..."
O ar vibrava, a multidão exultava e os saltos das bailarinas ressoavam no soalho do palco com batidas surdas. As palmas irrompiam amiúde pela sala e os olhos dos homens seguiam com mal disfarçada gula as formas arredondadas das bailarinas. Não eram tão altas nem tão elegantes como as das fitas americanas; porém, debaixo dos focos de luz e apertadas naqueles vestidos resplandecentes que lhes deixavam as coxas à mostra, pareciam do melhor que por aquelas paragens tinha passado.
As bailarinas enchiam a sala, mas Luís não as seguia a todas. Tinha a atenção presa numa em particular, a terceira a contar da esquerda, aquela que ostentava uma vistosa cabeleira loira platinada, à Jean Harlow. Não tinha a certeza de que fosse a mais bonita.
Vendo bem, não era de certeza; a alta do meio e a primeira da direita, a das mamas grandes, pareciam-lhe mais jeitosas, verdadeiras mulheraças, mas a sua loira chegava bem para fazer um figuraço junto dos colegas da faculdade.
"Bravo!", ululou Fernando quando o número acabou. "Bra-vooo!"
As palmas ribombavam pelo recinto em revoadas enquanto as girls abandonavam o palco.
"Já viste?", perguntou Luís, girando uma olhada pela sala. "Isto está apinhado!"
"Porque pensas que tive de comprar os bilhetes com uma semana de antecedência? Tem estado assim desde a estreia..."
Uma nova actriz pisou o palco e o público reagiu de imediato com uma monumental ovação.
"Quem gosta da Betty Boop?", perguntou ela com uma expressão maliciosa.
A sala encheu-se de gritos e assobios; pela reacção tornava-se evidente que a actriz era a sua favorita. A recém-chegada tinha cabelo negro liso, a franja cortada numa linha sobre os olhos, à condessa de Noailles, e a cara bolachuda e marota, feições distintivas mesmo à distância. Não havia no país quem não a reconhecesse, dos palcos ou dos filmes.
"A Beatriz Costa é o máximo!", observou Fernando, esfuziante.
Luís acompanhava a ovação, batendo palmas entusiásticas.
"Sem dúvida", concordou. "Não precisa de dizer uma graça para ser engraçada."
"Acho-lhe piada ao-corte do cabelo."
"Parece a Louise Brooks, já viste?"
"Tens razão", anuiu Fernando, fazendo mentalmente a comparação. Inclinou a cabeça em direcção a Luís. "A esta é que gostavas de ferrar o dente, hem?"
"A quem? À Beatriz Costa?"
"Não, à Greta Garbo. Claro que à Beatriz Costa, meu palerma!"
Luís abanou a cabeça.
"Nem pensar. É engraçadinha, mas é mais do género bibelot. Não lhe fazia nada, a não ser pedir-lhe que me fizesse rir."
"Pois, pois. Está-se mesmo a ver..."
Derramando talento no palco, a actriz da franja interpretava as suas deixas com convicção.
"Viva o Santo António milagreiro!", exclamou. "E ele... o homem dos meus sonhos!"
Um burburinho divertido percorreu a sala. O duplo sentido daquele nome era inconfundível; todos tinham entendido o trocadilho e prepararam-se para o que aí vinha.
"Isto é propaganda barata ao Salazar", observou Luís com acidez.
"E merecida!", atalhou Fernando, ignorando o desagrado do amigo. "O Toninho é o nosso Santo António milagreiro!"
"Ora!" Fez uma expressão irónica. "Se ele fosse tão modesto quanto apregoa, de certeza que não aprovaria."
"Pois, se calhar não..."
"Não sejas parvo!", exclamou o transmontano. "Se a censura e o Ferro deixaram passar, é porque ele gosta, não te parece?"
"Sei lá. Se calhar é um excesso de zelo do António Ferro. Não te esqueças de que o Toninho não acompanha o teatro ligeiro do Parque Mayer nem se interessa por estas coisas mais mundanas. Provavelmente nem sequer sabe que a peça existe."
Luís riu-se sem vontade.
"Achas mesmo? Então esta peça chama-se Santo António e ele não havia de saber?"
"Está bem, o Toninho lê no jornal que está o Santo António no Parque Mayer. E
depois?"
"E depois?", admirou-se Luís. "Olha lá, a que Santo António pensas tu que o título se refere?"
Fernando hesitou, reflectindo na resposta à pergunta. Realmente, como acreditar que tal título não fosse entendido pelo Presidente do Ministério, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal, quando o via todas as manhãs espetado na página de espectáculos dos jornais? No mínimo faria algumas perguntas. Além do mais, toda a gente sabia que o simples enunciar do nome António nas telas do cinema ou nos palcos de teatro tinha um duplo sentido inequívoco. Como poderia Salazar ignorar tal coisa?
"Seja", concedeu. "Admitamos que ele sabe."
Luís riu-se.
"Ele sabe? Provavelmente foi ele que aprovou a ideia!"
"Ena, onde é que isso já vai!"
"Achas? Tu reparaste quando é que o Santo António estreou?"
"No mês passado."
"Mais exactamente a 27 de Maio, meu caro. A data diz-te alguma coisa?"
O rosto do amigo iluminou-se.
"A véspera dos oito anos da revolução."
"Achas que foi coincidência?"
O amigo encolheu os ombros.
"Pois sim, admitamos que se tratou de uma operação montada para assinalar o aniversário da revolução nacional. E depois? Qual é o mál?"
"Se gostares de propaganda política camuflada, nenhum. Só estou a dizer é que estas tiradas não se coadunam com o ar pretensamente austero do Salazar."
"Está na moda, Luís. Não vês o que se passa na Alemanha e na Itália? É tudo assim, à grande!"
"Pois, mas o Salazar anda para aí a apregoar virtudes diferentes. A modéstia, a humildade... essas coisas."
"O Toninho acompanha os tempos", observou Fernando. "Além do mais, ser modesto não significa ser tolo."
"Chiu", lançou uma espectadora na fila de trás, empertigada. "Deixem ouvir!"
No palco começou uma nova canção, que Betty Boop, aliás Beatriz Costa, apresentara com o título de o homem dos meus sonhos.
O que o escudo nos reforça, Sem um grito, sem um berro, O
que não tem quem o torça,
Pois tem tanta, tanta força, Que dobrou o próprio Ferro.
A sala ia desabando com a cascalhada de gargalhadas.
As luzes, a cor, os cenários, os vestidos deslumbrantes, a decoração, as melodias, os chistes, os movimentos graciosos, o coro de risos, os aplausos, o entusiasmo, a alegria, os assobios, tudo desapareceu como num truque de ilusionismo no instante em que os espectadores começaram a abandonar a sala do Avenida, mas os efeitos da emoção perduravam ainda, e não era caso para menos.
Não havia em Lisboa peça mais divertida que o Santo António, pelo que não admira que à saída, quando os espectadores jorravam já sobre o átrio da casa de espectáculos, os comentários se cruzassem como confetti em dia de festa. "A Beatriz Costa estava o máximo!", opinava um. "Viste o número em que ela fez de Branca Pitosga?", perguntava uma rapariga. "Giríssimo!" Uma terceira voz defendeu que "a Irene Izidro também estava muito bem", enquanto alguém à direita dizia que o melhor "foi o Vasco Santana a fazer de Zé Ralaço". Só a recordação desse número suscitou sorrisos, o que levou alguém a defender não haver dúvidas de que "o Vasco encontra-se em forma", ideia que mereceu a aprovação geral: "Grande artista!"
Ainda no átrio, Luís e Fernando separaram-se da multidão que saía do edifício para desembocar no passeio da Avenida da Liberdade e esgueiraram-se por uma porta lateral reservada aos artistas, mergulhando assim no labirinto de um novo e fascinante mundo: os bastidores do Teatro Avenida.
A harmonia deu então lugar a um caos atordoante. Para decepção dos dois visitantes, tudo o que se ocultava na parte
de trás da cena era confuso, desarranjado, feio até; davam-se gritos, ouviam-se ordens, os rostos desfaziam-se em suor, a maquilhagem desbotava, as raparigas moviam-se sem propósito aparente, os estafetas corriam de um lado para o outro, os homens davam voltas ou conversavam, as portas abriam-se e fechavam-se com estrondo.
"Onde é?", perguntou Fernando, que seguia o amigo.
"Ali à frente."
Cruzaram-se no caminho com a actriz da franja à condessa de Noailles e Luís teve vontade de lhe falar. No entanto, conteve-se; pensou que toda a gente teria decerto o mesmo desejo quando com ela se cruzava, dava a impressão de que a actriz lhe era familiar, mas sabia que isso não passava de ilusão. Além disso, ficou desconcertado com a expressão que ela trazia no rosto; já não era a cara divertida que apenas alguns instantes antes vira brilhar em palco, mas um semblante inesperadamente opaco, os olhos cansados e o corpo molenga, era quase uma da manhã e tinha acabado o segundo espectáculo da noite.
"Viste?", lançou Fernando num sopro, olhando para trás, mas não querendo que a actriz o escutasse. "Era a Beatriz Costa!"
"Eu sei", devolveu Luís num tom blasé, como se cruzar-se com as grandes estrelas fosse nele hábito antigo.
"Caramba! É baixinha!"
"E roliça."
Fernando observou o rabo que desaparecia ao fundo do corredor e riu-se nervosamente.
"A ti não te escapa nada."
O barulho recrudesceu e, ao dobrar da esquina, deram com uma sala cheia de bailarinas e uma nuvem cinzenta a pairar-lhes por cima. Fernando travou o amigo e ficou a observalas, os olhos arregalados de tão escandalizados.
"Elas estão a fumar!"
Luís encolheu os ombros, mantendo um ar indiferente, como se tudo aquilo fosse normal.
"E então?!"
"Mas... são mulheres!"
"São artistas", corrigiu-o.
"Está bem, são artistas. Mas não deixam de ser mulheres." Hesitou. "Ou deixam?"
"As artistas são diferentes. Não te esqueças de que este é o grupo das girls do Avenida.
Elas estão na vanguarda."
"Qual vanguarda? Agora uma mulher fingir-se de homem é vanguarda?"
"Pelos vistos é."
"Porra!", exclamou Fernando, abanando a cabeça. "Só falta vê-las a mijarem de pé!"
Os dois amigos retomaram a marcha e aproximaram-se do molhe de bailarinas. Quando viram os estranhos a caminhar na sua direcção, as raparigas calaram-se e olharam-nos com suspeição.
"Dá licença?", disse Luís a nenhuma em particular, tentando enfiar-se no meio do grupo para chegar à porta.
Contudo, elas mantiveram a fileira cerrada, bloqueando--lhe ostensivamente a passagem.
"O malandro, onde pensas que vais?", disparou uma delas, de cigarro entre os dedos e expressão altiva.
"Vou ali falar com uma amiga."
"Isso é o que dizem todos!"
As bailarinas riram-se.
"A sério", insistiu Luís, enrubescendo. "E a Margarida."
A do cigarro fez um sinal a uma das parceiras, que acto contínuo deu um passo atrás e meteu a cabeça pela porta.
"Ó Guida!"
Ouviu-se uma voz lá de dentro.
"O que é?"
"Estão aqui dois marialvas à tua procura!"
Uma cabeça loira-quase-branca apareceu de imediato à porta e abriu-se num sorriso quando reconheceu o homem que a olhava para lá da barreira de bailarinas.
"Luís!", exclamou com entusiasmo. Deitou-se sobre os ombros das colegas, esticou o pescoço e beijou-o nos lábios. "Entra!"
O rapaz olhou para o molhe de raparigas que lhe obstruía a passagem.
"Dão licença?"
"Olha lá, ó Guida", disse a do cigarro, sem se mexer. "Nós somos avançadas, mas não exageremos! Onde é que já se viu os homens entrarem assim nos camarins das raparigas?"
"O Paula, não sejas implicativa! Isto não são camarins nenhuns, como tu bem sabes. Que eu saiba, estamos a desmaquilhar-nos, não estamos a despir-nos."
"São camarins de maquillage e são de senhoras, é a mesma coisa! Os homens aqui não podem entrar, muito menos quando vêm com propósitos amorosos."
"Olha-me esta!", soltou Margarida, pondo as mãos nas ancas. "Se o meu namorado me quer visitar na maquillage, quem és tu para dizer que ele não pode entrar?"
"Não nos camarins onde estão todas as outras!" A do cigarro voltou as costas e soltou uma baforada de fumo, num gesto négligé, à grande diva. "Agora se arranjares um camarim só teu e o quiseres lá meter, é contigo..."
"Chiça, Guida!", zombou uma outra bailarina, os olhos a saltitarem entre Fernando e Luís.
"Aguentas com dois ao mesmo tempo?"
Risada no grupo.
"Sua ordinária!", devolveu Margarida, ofendida. "Sua... sua..."
Vendo a discussão subir inesperadamente de tom, Luís achou melhor intervir.
"Calma, calma!", pediu, erguendo as mãos num gesto pacificador. "Nós não vamos entrar, fiquem descansadas." Fixou Margarida, que tinha o cabelo loiro num desalinho.
"Olha, Guida, esperamos-te lá fora no café, está bem?"
"Qual deles?"
"O Lisboa."
Antes que ela dissesse mais alguma coisa, deram os dois meia volta e regressaram pelo mesmo caminho, agora com Luís atrás. Quando se sentiu suficientemente à distância, Fernando virou a cabeça e riu-se para o amigo.
"Que galinhas."