VI
Nilo foi um sucesso, primeiro lá em casa, depois por Vinhais inteira. Nunca ninguém havia visto tal fenómeno por aquelas paragens, cão assim tão vivaço nem no seminário de Nossa Senhora da Anunciação. Como bom veterinário e amante de animais, Luís afeiçoou-se ao rafeiro e fez dele um companheiro inseparável, levando-o nos passeios com Relâmpago pelo Parque de Montezinho.
Joana também lhe achava piada, mas começou a sentir-se incomodada com tanto bicho em casa e nos primeiros tempos não viu qualquer vantagem em adicionar o cão à família.
A verdade é que os animais animavam a casa numa terra onde a vida não era fácil. Situada no topo norte de Portugal, Vinhais estava sujeita ao vento frio e cortante que descia do nordeste, um clima tão rude que o casal teve de voltar a conviver com frieiras nos dedos e as articulações das mãos da cor da ginja madura. A vila tinha pouco mais de dois mil habitantes, que viviam da produção da castanha
e dos frutos secos, mas também da manteiga de Travanca e da indústria da seda e da lã, nas mãos de velhas famílias judias convertidas, como as da falecida sogra de Luís. Havia uma escola, um posto da GNR, uma estação telégrafo--postal, umas igrejas, o seminário e um hospital civil. Claro, existiam ainda umas mercearias, onde toda a gente fazia as compras.
Toda a gente, que é como quem diz. Joana era mulher mimada, habituada à abundância que o juiz Brandão lhe proporcionara em Penafiel e aos frequentes passeios ao Porto para mirar as elegantes vitrinas da Cedofeita e da Rua de Santa Catarina. Não era fácil para ela viver em tal lugarejo, para mais porque estava convicta de que a mulher de um médico veterinário tão distinto como o doutor Luís Afonso não era mulher, era senhora. Humilhava-a por isso ter de se misturar com o povo descalço e malcheiroso na mercearia do senhor Manuel; achava-se melhor do que aquela gentinha e com direito a dispensar o incómodo de tais visitas.
As deslocações à mercearia eram habitualmente uma função de Filomena, a moça que contratara para a ajudar na lida da casa. Mas nesse Verão Filomena recebeu uma carta a informá-la de que a mãe se encontrava às portas da morte na sua velha casa, numa aldeola perto de Bragança, pelo que teve de se ausentar por um mês.
"Preciso de uma nova empregada", explicou Joana ao jantar do segundo dia sem Filomena.
"Então e a Filomena?"
"A Filomena não está cá. Ainda hoje tive de ser eu a ir à mercearia e cozinhar e limpar a casa.
Não estou para isto, é de mais."
"Sim, mas o que se faz com a Filomena?"
"Ora! Despede-se e arranja-se outra!"
"Ah, não! Isso não. Então a moça ausenta-se porque tem a mãe doente e ainda por cima botamo-la na rua? Isso é desumano, não se faz, nem eu aceito."
"Mas... e eu?"
"Arranja-te, Joana. Eu passo o dia a trabalhar e tu estás em casa sem fazer nada. Bem podes aguentar-te um mesinho sem a moça, ou não?"
A mulher olhou em redor, como se avaliasse o trabalho.
"A mim, o que me custa verdadeiramente é ter de ir ao senhor Manei", acabou por confessar. "A mercearia está cheia de campónios, é muito aborrecido."
"Paciência. É só um mês."
O marido agarrou-se à sopa, mas Joana ficou a matutar no assunto. Precisava mesmo de resolver o problema! Ainda nessa manhã estivera na mercearia e não esquecia o fedor avinagrado a povo que os fregueses exalavam pelos sovacos; muitos não deviam tomar banho desde o Verão do ano anterior! Mas como poderia fazer para adquirir os produtos sem ter de se rebaixar a misturar-se com aqueles rústicos para os ir lá buscar?
O cão aproximou-se da mesa e ganiu, interrompendo-lhe o raciocínio. O dono arrancou uma costeleta de porco que estava na mesa e entregou-a ao animal, que a abocanhou e a foi comer para o seu canto na cozinha. Joana seguiu o rafeiro com o olhar, absorta em novos pensamentos, uma ideia a geminar-lhe no espírito.
"Olha lá, o Nilo é inteligente, não é?"
"Até esmilha!"
"Será mais esperto do que a Filomena?"
Luís riu-se.
"Não me admirava nada", gracejou.
Joana agarrou na colher e começou também ela a comer a sopa, muito satisfeita consigo mesma.
Tinha encontrado a solução.
O senhor Manuel deu de caras na manhã seguinte com um rafeiro castanho parado junto ao balcão da mercearia; o animal trazia um cesto de vime na boca e o olhar expectante.
"Xó!", gritou, gesticulando com as mãos. "Fora daqui! Susquedono! Vai-te embora! Andor!"
Mas o cão não obedeceu. Permaneceu quieto, os olhos castanhos muito abertos, numa piedosa expressão de súplica. Esticou repetidas vezes o pescoço, emitindo o que parecia uma ténue lamúria, como se lhe quisesse dar a ver o cesto. A teimosia intrigou o senhor Manuel, que vislumbrou uma mancha branca no interior do cabaz. Focou melhor os olhos e percebeu que se tratava de uma folha de papel. Pôs a mão dentro do cesto e tirou o papel; era um bilhete de dona Joana a encomendar arroz, tomate, cebolas, alho e um frango, cuja conta saldaria no final do mês, como era hábito.
"Aiche!", exclamou o merceeiro, mirando o cão com pasmo. "Hom'essa! Pode lá ser! Que espantação!" Virou a cabeça para dentro da loja. "O Ermelinda! Anda cá, mulher! Anda cá ver isto, c'um canudo!"
A mulher, uma baleia rosada com um ténue bigode sobre os lábios, aproximou-se enquanto limpava as mãos molhadas ao avental sujo.
"O que é, Manei?"
O merceeiro acenou com o bilhete e apontou para Nilo.
"Ora vê-me tu isto, Ermelinda! A senhora do doutor, camano... a senhora do doutor mandou-me uma besta às compras!"
Ermelinda cerrou as sobrancelhas, intrigada.
"Ó home, 'tás emborrachado ou quê?"
"É como eu te digo, Ermelinda. Mandaram-me um... um lobo às compras, c'um caneco!" Voltou a acenar com o bilhete. "Concho! O para isto! Ora vês? Vês?"
A mulher analisou o bilhete, mirou o cão, pegou no cesto e foi enchê-lo com os produtos solicitados.
"És mesmo um ovo goro, Manei!", disse, voltando-lhe as costas. "Põe-te guicho, home! O que te interessa a ti que mandem um bicho ou uma sopeira, hã? Desde que o doutor pa-gue..."
Nilo voltou nesse dia a casa com o cesto repleto de produtos para o almoço, todos eles criteriosamente seleccionados pela mulher do merceeiro, que achara graça ao cão. A ideia foi tão bem sucedida que daí em diante, mesmo após o regresso de Filomena ao trabalho, passou a ser ele o encarregado das compras da casa do veterinário, fenómeno muito comentado pela vila de Vinhais, todos admirando tamanha "espantação".
VII
O tenente Gutierrez mandou chamar os homens da 27.a companhia. Esperou que eles se aproximassem e ergueu os dois braços, como se pedisse silêncio.
"Hombres de la Legión!", gritou. "Os rojos renderam-se. A vitória é nossa!" Cerrou os punhos.
"'Arriba EspahaaaaaaaV
Um clamor rouco encheu o posto dianteiro e alguns homens atiraram os bonés ao ar. Francisco pegou na sua velha Hotchkiss e largou uma rajada para as nuvens, no que foi imitado pelos legionários. Todos se puseram aos tiros para cima, usando as Mauser checas apreendidas ao inimigo para festejar o triunfo.
Os legionários foram destacados para protecção de vários pontos de Madrid. Depois da campanha da Catalunha, a VII Bandera voltara para o sector da capital, mas, como se esperava a queda da cidade a todo o momento, os legionários ficaram aquartelados num bairro de Mostoles, nos arredores de Madrid, sem autorização para se ausentarem. Francisco sentia saudades de Rosa, mas não havia maneira de abandonar
o posto ou comunicar com ela, pelo que teve de ter paciência e resignar-se. Mais tarde ou mais cedo, a oportunidade surgiria.
Não admira, por isso, que fosse ele um dos mais eufóricos com a notícia da rendição. Para o português o importante não era que o anúncio da rendição de Madrid significava o fim da guerra, mas a possibilidade que se lhe abria de ir ver a sua espanhola. Com os republicanos a entregarem-se, sem dúvida receberia em breve a tão ansiada autorização.
No meio da euforia desencadeada pela notícia dada pelo tenente Gutierrez, o sargento Gomez aproximou-se dos homens e berrou a peito cheio.
"Hombres de la Legión... formar!"
Os legionários ouviram a ordem e de imediato puseram-se em sentido, alinhados segundo a ordem previamente estabelecida no regimento, cada companhia no seu lugar.
"Madrid já celebra esta grande vitória! Mas, para nós, o trabalho não acabou. Os patriotas madrilenos estão a começar a festejar o triunfo e a bandera recebeu ordens para garantir a segurança da população." Consultou o relógio. "Quero toda a gente nos camiões em dez minutos, pronta para partir."
A coluna de legionários arrancou em nove minutos num ambiente de grande excitação. Os homens iam eufóricos e puseram-se a cantar em coro El novio de la muerte, a grande canção que Lola Montes imortalizara na telefonia.
Nadie in el Tercio sabia Quién era aquel legionário, Tan
audaz y temerário Que en La Legión se alisto.
Nadie sabia su historia,
Mas La Legión suponía
Que un grande dolor le mordia
Como un lobo en el corazón."
Foi com os homens a cantarem a plenos pulmões que os camiões de transporte da bandera atravessaram as ruas desertas de Carabanchel e se aproximaram de Madrid, soluçando pelas estradas escavacadas. Quando chegaram diante do rio, porém, todos se calaram ao deparar-se com a grande cidade. As tropas marroquinas controlavam a ponte de Toledo e mandaram-nos parar para verificar a guia de marcha. Depois a coluna recomeçou a andar e entrou em Madrid.
"Para onde vamos?", quis saber Francisco.
"O sargento disse que o nosso trabalho será manter a segurança na Puerta dei Sol."
"O que é isso?"
"Uma praça. E lá que está o Ministério do Interior."
As ruas de Madrid permaneciam desertas, quase como em Barcelona, mas quando os camiões dobraram uma esquina tudo mudou e os legionários depararam-se com a loucura.
Uma imensidão humana enchia a praça; era como se a folia nocturna de Barcelona se repetisse, mas à luz do dia. Os legionários deveriam estar de serviço, mas depressa foram engolidos pelos festejos. Davam-se arribas a Espanha e a Franco, os sinos tocavam a repique e os foguetes estrelejavam no céu, mas eram as melodias que mais faziam vibrar a multidão; entoava-se o la-la-la do hino nacional e cantava-se a Cara ai Sol da Falange, depois o Oriamendi da Comunión Tradicionalista, mas Francisco só juntou a sua voz à da massa humana que enchia a Puerta dei Sol quando escutou as estrofes familiares de La canción dei legionário.
Legionário, legionário
Que te entregas ai luchar Y que ai azar dejas tu suerte Pues tu vida es un azar.
Legionário, legionário
De bravura sin igual,
Si en la guerra bailas la muerte
Tendrás siempre por sudário
Legionário
La Bandera Nacional.
Terminada a canção, milhares de mãos estenderam-se em direcção à torre do relógio do ministério, o austero edifício de tijolo vermelho que dominava a praça da Puerta dei Sol, e um urro a uma só voz perpassou pela multidão.
"Arriba Espanar
Na manhã seguinte, e após uma noite intensa de festejos que se estenderam à Gran Via, à Plaza de la Cibeles e ao Paseo dei Prado, Francisco recebeu por fim a tão aguardada autorização para abandonar o posto e ir descansar. Apanhou o metro para oeste e, na última estação, arranjou boleia num carro de falangistas que seguia para o aeródromo de Getafe. Chegado à povoação, seguiu a pé para a casinha onde antes se havia alojado, o lugar onde Rosa o esperava após meses de ausência.
A casa lá estava, com umas roupas estendidas à janela, a secar. Cruzou o pátio lamacento, por onde deambulavam umas galinhas e uns pintos, e entrou no pequeno edifício. Tremendo de antecipação, agarrou na maçaneta e abriu a porta do quarto.
"Rosa", chamou.
Um gemido estremunhado foi a resposta. Estreitou os olhos para se habituar à escuridão e distinguiu o vulto roliço da sua Rosa, remexendo-se nos lençóis brancos. Olhou melhor e percebeu que o vulto era maior do que inicialmente notara; havia um segundo corpo naquela cama.
Um segundo corpo.
"Francisco", murmurou ela, surpreendida. "Que fazes aqui?"
Francisco sentiu-se paralisado, sem saber o que pensar, o que fazer, o que dizer. A humilhação enrubesceu-lhe as faces e apeteceu-lhe fugir, ir para longe dali, esconder-se num buraco perdido.
Quase se voltou para se ir embora, mas alguma coisa tomou conta dele, uma sombra negra toldou-lhe a alma e abateu-se-lhe sobre os olhos, exactamente como naquele fatídico dia, três anos antes, em Castelo de Paiva, quando partira o pescoço ao Tino.
Tal como então, a fúria cega tomou conta da sua vontade e, sem se controlar, avançou sobre Rosa, agarrou-a pela cabeça e torceu-lhe o pescoço até lhe quebrar a coluna. Sentiu o homem que com ela dormia erguer-se num salto, assustado, e percebeu que não podia deixá-lo fugir. Soltando a mulher, agarrou-o pelo pescoço e também o matou com as mãos.
Deixou os dois corpos estendidos sobre a cama, contorcidos como acrobatas inertes, bonecos quebrados numa fúria de criança. Recuperou a compostura e espreitou para fora do quarto; não viu ninguém. Voltou a cabeça para trás e, antes de fechar a porta, lançou um derradeiro olhar sobre a única mulher que verdadeiramente amara.
"Puta!", exclamou, como se cuspisse.
VIII
Os dedos anafados do juiz, o meritíssimo doutor Alberto Machado, acariciaram a carta, ao de leve, como se ele antecipasse o gozo que lhe daria o momento em que a ia lançar à mesa. Afagou o bigode farfalhudo e analisou os parceiros. O delegado de saúde e futuro director do Hospital de Bragança, doutor Fernando Leite, tinha acabado de jogar e o mesmo fizera o doutor Joaquim Garcia, jovem advogado da terra, bom rapaz mas talvez com ideias demasiado avançadas para o seu gosto. Apenas o veterinário, o circunspecto doutor Luís Afonso, parecia indeciso, analisando com cuidado as opções do seu baralho.
O veterinário levantou uma carta, preparando-se para a lançar sobre a mesa, mas um ganir súbito atrás dele fê-lo suspender o gesto.
"O que é, Nilo?"
O cão ganiu de novo, descontente por ver o dono extrair aquela carta em particular.
"Achas que esta não? Mas olha que é boa..."
Nilo ganiu mais uma vez, como se o pressionasse a devolver a carta ao baralho.
As tardes de sábado na sala de chá da Pensão Alves eram passadas em amena cavaqueira. Os quatro homens distintos da terra juntavam-se ali periodicamente, todos ao borralho, sentados à mesa de jogo com as cartas na mão e um copo de porto a jeito. Na maior parte das vezes optavam pelo brídege, mas desta feita estavam na bisca.
Nilo plantara-se por detrás dos jogadores e espreitava-lhes o jogo; seguia depois para junto do dono e gania quando Luís pegava numa carta que lhe parecia errada. O cão tornara-se um conselheiro precioso do veterinário, mas começava já a suscitar legítimas suspeitas junto dos restantes jogadores.
"Mas afinal quem é que joga aqui?", impacientou-se o juiz. "É você ou é a besta?"
"Sou eu, sou eu", apressou-se a esclarecer Luís.
"Então jogue, homem. Não faça caso do bicho, isto é jogo de gente."
O veterinário hesitou só um instante mais. Nilo já havia espreitado as cartas dos seus parceiros com atenção, o pescoço esticado e as orelhas empinadas, compreendendo o jogo como qualquer outro jogador; e o facto é que se mostrava apreensivo com a possibilidade de o dono jogar a carta que destacara do baralho. Se Nilo gania, era porque a carta que ele tinha na mão não seria a mais aconselhável. Mas o juiz tinha razão, caramba! O jogador era ele, Luís, não era o cão! Além do mais, que imagem daria se recuasse? Ainda iam pensar que quem mandava lá em casa era o animal!
Para não falar no facto de que iriam confirmar que havia ali marosca. Decidindo-se, lançou a carta para a mesa.
"Manilha, hã?", riu-se o juiz. Tirou enfim a carta que os seus dedos saboreavam havia algum tempo e largou-a com aparato sobre as restantes. "Pois eu ataco de trunfo!"
Nilo quase uivou de angústia; percebeu que o seu dono acabara de perder.
"Pronto, Nilo, pronto", murmurou Luís, afagando o pescoço do rafeiro. "É só um jogo, não faz mal."
"Esse cachorro é estranho", observou o juiz enquanto açambarcava as cartas na mesa, espreitando o cão por cima dos óculos redondos. "Põe-se à husma ao meu jogo, como quem me quer escabichar as cartas, e depois rosna quando acha que você vai botar a carta errada e mete-se a gaitar sempre que você perde." Torceu a boca e abanou a cabeça. "Não me parece lá muito católico."
"O Nilo é vivaço", concordou o veterinário.
O advogado, que também mirava o cão, afagou o bigode.
"Você acha que ele era menino para ir lá a casa cuidar-me também das pequenas?"
"Não exageremos", disse Luís. "Mas ele pode ir buscar a ama, se quiser. É só ensinar-lhe onde ela mora e o Nilo vai lá chamá-la."
"Ah, bom!", riu-se o juiz. "Estava a ver que o cachorro também era capaz de dar o leite às pequerruchas aqui do Garcia."
O meritíssimo doutor Machado recolheu as cartas e entre-gou-as a Fernando, a quem cabia a vez de baralhar.
"Se calhar dava para governante", alvitrou o doutor Garcia, homem de uma magreza quase cadavérica, piscando os olhos num tique nervoso. "Sempre fazia melhor figura do que alguns animais que para lá temos em Lisboa." O advogado ergueu o sobrolho e fitou o dono do cão. "Não acha, doutor Afonso?"
O veterinário riu-se.
"Não me puxe pela língua."
"Ó Garcia, não diga disparates", atalhou o doutor Machado, sempre atento às provocações do advogado. "Se não fossem os nossos governantes, onde estaríamos nós?"
"Estaríamos felizes."
O juiz rolou os olhos, como se se enchesse de paciência.
"As suas modernices cegam-no, homem", exclamou. "O regime está a fazer um verdadeiro milagre com este país. Um verdadeiro milagre!"
"Qual milagre?", zombou o doutor Garcia. "O das rosas?"
"O da ordem e do progresso."
"Como na bandeira brasileira?"
"Goze, goze. Mas tente comparar o que o país é agora com o que era há uns dez anos. Não há comparação! Onde antes só se via confusão, agora impera a paz. E, sobretudo, percebe-se que as coisas avançam, percebe? Há um rumo, as finanças estão sólidas, a moeda é forte, constroem-se estradas, temos a campanha do trigo a absorver o desemprego e a combater a nossa dependência alimentar em relação ao estrangeiro... é uma maravilha! Onde é que alguma vez se viu isto neste país?"
"Isso é só para os ricos."
"Lá está você sempre a falar mal", entoou, condescendente. "Então as estradas são só para os ricos? A ordem é só para os ricos? O progresso é só para os ricos? Olhe, a assistência de saúde é melhor, as pessoas vivem mais tempo, há mais emprego, há mais escolas primárias, fomentou-se a harmonia social..."
"Portanto, vivemos no paraíso", ironizou o doutor Garcia.
"No paraíso, não direi. Mas vivemos melhor do que vivíamos antigamente, isso você não pode negar."
"E o pessoal que o regime manda para o degredo lá em Cabo Verde? Também vive melhor agora?"
O doutor Machado encolheu os ombros.
"Ora, comunistas!", disse com uma ponta de desprezo no tom. "O regime devolveu ao país o orgulho, a ordem e a esperança. Ao pé disso, o que vale um punhado de bota-abaixo que só sabem dizer mal de tudo e de todos?"
"O senhor doutor juiz desvaloriza os atropelos que se sucedem em nome dessa ordem, mas faz mal", insistiu o causídico, procurando puxar a conversa para um terreno que lhe era mais favorável.
"Tem porventura visto as leis que andam para aí a sair?"
"A que leis se está o senhor a referir?", perguntou o juiz, que encarava a legislação quase como propriedade sua.
"Olhe, o novo Código do Processo Civil, por exemplo. O senhor doutor juiz já viu as bestialidades ali contidas?"
"Os textos da lei não contêm bestialidades", sentenciou o doutor Machado.
"Pois este contém. Descobri que agora tenho poder de depósito sobre a minha mulher." Fez um gesto para todos os ocupantes da mesa. "E vocês também. Acham isto normal?"
"É a ordem natural das coisas", disse o juiz.
Luís e Fernando trocaram um olhar. Nos tempos da faculdade eram eles quem se digladiava naquelas conversas políticas, mas agora, sendo ambos os novatos daquele grupo, preferiam permanecer calados, uma vez que se sentiam pouco à vontade para exprimir as suas opiniões políticas em público. Porém, neste ponto da conversa, o veterinário não se conteve.
"Desculpem, mas não estou a perceber", disse, interrompendo o duelo entre juiz e advogado. "O
que é isso de poder de depósito?"
"É uma coisa que existia no tempo da Maria Cachucha e que foi abolida em 1910", explicou o doutor Garcia. "Se a sua mulher por algum motivo sair de casa, você pode fazê-
la regressar de forma compulsiva mandando que ela seja depositada em casa, como se fosse um saco de batatas. Ou seja, aquelas grandessíssimas luminárias que agora mandam em nós decidiram tornar legal o uso da força por parte do marido."
"Acho bem", riu-se o juiz. "Qual é o mal de a mulher levar umas lapadas uma vez por outra, quando é preciso? Ela tem de respeitar o marido, que diabo! E olhe que algumas até estranham se não levam." Assumiu uma expressão pensativa, mergulhando nas reminiscências de magistrado. "Eu uma vez tive o caso de uma mulher que se queixou de que o marido era amaricado porque tinha a mão leve..."
"O senhor doutor juiz, francamente!", protestou o advogado. "O senhor até parece do povo."
"E qual é o mal? O povo é sábio", decretou, o tom peremptório de quem está habituado a emitir acórdãos. "O lugar da mulher é em casa, a criar os filhos e a obedecer ao marido. É
esta a ordem natural das coisas."
"Tudo tem um limite", insistiu o doutor Garcia. "Não estamos na idade das trevas, por amor de Deus! Ou estamos?"
"Estamos num país onde reina a lei e a ordem. E isso é muito melhor do que a bandalheira de antigamente, se quer que lhe diga."
"Não me venha outra vez com essa conversa."
"Desculpe, mas é a verdade. O que nos trouxeram as modernices de que o senhor tanto gosta? O caos, como muito bem sabe! Não tenha dúvidas: para termos ordem é necessário respeitarmos os valores tradicionais. Ora há alguma coisa mais tradicional do que a família? A família é a base da
sociedade e aí todos têm o seu lugar. O homem sustenta e chefia a família, a mulher fica em casa a tratar da lida doméstica e das crianças. Se não for assim, a família desagrega-se, a sociedade desmorona-se e regressamos à confusão do antigamente."
"Isso é a sua opinião. Nem vou discutir o que o senhor acabou de dizer porque temos maneiras diferentes de ver as coisas. Mas eu continuo na minha: a lei que nos rege está a ir longe de mais. E nem sequer falo de política! Limito-me ao direito comum."
"Dê-me exemplos."
"Já lhe dei o exemplo do poder de depósito que acabei de descobrir no novo Código do Processo Civil."
"Só isso?"
"Quer mais? Então veja os poderes dos maridos sobre as mulheres."
O juiz tirou os óculos redondos, colou a lente à boca e expirou, humedecendo-os, e começou a limpá-los com um pano branco.
"Eu cá conheço é a Constituição, que deu às mulheres o direito de voto e o direito de serem eleitas, coisa que as grandes figuraças da república, esses democratas de pacotilha, foram incapazes de lhes dar."
"Caramba!", exclamou o advogado num tom irónico. "O senhor doutor juiz tornou-se agora defensor dos direitos das mulheres?"
"Sempre fui um defensor dos direitos das mulheres, em especial do direito que elas têm de se dedicar à família e contribuir para a harmonia do lar." Terminada a limpeza das lentes, o doutor Machado voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Mas falei-lhe no envolvimento das mulheres nas eleições só para lhe lembrar alguns factos que o senhor, com a
sua habitual verborreia reviralhista, tem tendência a esquecer." Ergueu o dedo, sentencioso. "Quem lhes deu o voto foi o Estado Novo!"
"A ditadura só deu o voto às mulheres porque sabe que elas tendem a ter um voto conservador."
"Mas deu."
"Ora! Deu-lhes um bombom e logo a seguir espetou-lhes com o óleo de fígado de bacalhau. O
artigo sobre os poderes dos maridos é, a este propósito, esclarecedor."
"Vejo-o muito preocupado com esse artigo, mas sinceramente não percebo qual o problema..."
"Claro que percebe! É o artigo que diz que uma mulher não pode exercer comércio nem sair do país sem autorização do marido. E há o outro que prevê que um homem pode anular um casamento se descobrir que a mulher não casou virgem..."
"O homem, isso é velho!", exclamou o juiz com um trejeito condescendente. "E então?"
"O senhor doutor juiz acha normal?"
O doutor Machado encolheu os ombros.
"Não acho mal."
"Mas como pode o senhor doutor juiz dizer uma coisa dessas? Isto é uma coisa de... de trogloditas! Além disso, o artigo é uma aberração jurídica."
"Não vejo porquê."
"Porque não prevê a reciprocidade. Se uma mulher descobrir que um homem não casou virgem, não pode anular o casamento. Mas, na situação inversa, ele pode. Acha que isto faz algum sentido?"
"Se o homem casasse virgem é que a mulher teria razões para anular o casamento", gracejou o juiz. "Era sacrafineiro, certamente."
O médico, que permanecia silencioso, acabou de baralhar as cartas e entregou-as a Luís, a quem cabia dá-las. O veterinário fervia por se pôr ao lado do advogado, mas foi-se calando enquanto pôde. Até que foi vencido pela curiosidade.
"É possível haver sentenças diferentes para crimes, conforme o seu autor seja homem ou mulher?", perguntou Luís, metendo-se de novo na conversa.
"Claro que sim", devolveu o advogado. "O próprio Código Penal o prevê."
"A sério?"
"Artigo 461", recitou o doutor Garcia, como se estivesse na barra do tribunal. "O marido pode violar a correspondência da esposa. Mas ela não pode violar a correspondência do marido."
"Muito útil", observou o juiz, pegando nas cartas que Luís já lhe atirara para a frente.
"Tem-me feito um jeitaço lá em casa."
O advogado ignorou o comentário.
"E não é tudo", acrescentou. "O mesmo artigo 461 prevê pena branda para o marido que assassine a mulher caso a apanhe em situação de flagrante adultério. Mas já o contrário não acontece. Se a mulher apanhar o marido em flagrante adultério e o matar, a pena será pesada."
"A cada um o seu lugar", insistiu o juiz, já a olhar para as cartas ordenadas nas suas mãos, os trunfos à esquerda, os outros naipes à direita. "A mulher é a fada do lar e é assim que se deve comportar." Mantinha a cara voltada para baixo e os óculos redondos na ponta do nariz. Ergueu os olhos castanhos na direcção de Luís, espreitando-o por cima dos óculos. "Não concorda comigo, doutor Afonso?"
Luís terminara de dar as cartas e estudava o seu jogo.
"Acho que o doutor Garcia tem razão", disse, deslizando a mão para voltar a afagar o pêlo de Nilo. "No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura."
Fez-se um súbito silêncio e o médico, que optara por não se meter na conversa e permanecera calado, aproveitou para afinar a voz.
"Meus senhores", disse Fernando. "Vamos jogar?"
A primeira carta foi atirada à mesa e depressa se seguiram outras. A meio da partida, o veterinário notou, sem prestar muita atenção, que um dos seus adversários havia regressado ao seu velho hábito de anotar num papel as cartas que já tinham saído, de modo a melhor controlar os trunfos que ainda restavam em jogo. O que Luís não percebeu, porque dali não conseguia ver, é que aquelas anotações não diziam, na verdade, respeito à partida.
Eram um registo do que se dissera naquela conversa.