I
O sol jorrava por todas as janelas em cascatas de luz, tépidas e difusas, e os alunos inclinaram-se na sua direcção; pareciam flores em busca do calor meigo que lhes faltava, o rosto procurando a quentura acolhedora com as suas promessas de aconchego. O impiedoso Inverno transmontano aproximava-se, lento mas inexorável, e o calendário pregado à porta marcava 1929.
Luís Afonso passou a mão pelo cabelo, deixou a franja castanho-clara descair-lhe para o lado e espiou furtivamente a fila de janelas para lá do pátio do Liceu Central Emídio Garcia, em Bragança.
Lá estava ela, a beldade do outro dia. Na semana anterior, os olhos castanhos de Luís haviam-se cruzado pela primeira vez com aqueles mesmos olhos cor de mel, verdadeiros rebuçados dourados que espreitavam do outro lado, da ala feminina. Foi um momento breve, o tempo de uma abelha beijar uma pétala, o instante que demora um fugaz palpitar do coração; mas também eterno, eterno como o
incansável cintilar de uma estrela incrustada no firmamento negro ou o contínuo marulhar do mar sobre a areia fulgente da praia.
Eterno.
Aquele efémero momento foi eterno, porque foi com ele que tudo começou.
O olhar dos dois voltou a cruzar-se essa manhã, cada um na sua sala, ele no piso superior, ela no piso inferior, as duas alas separadas pelo pátio; ambos espreitavam pela janela como se o sonho estivesse para lá dela, como se o fluir da vida ali os aguardasse, mas desta vez a rapariga manteve-se um tudo-nada mais a fitá-lo, o olhar de jade prendendo-o no tempo, um instante sem fim, ela com aqueles olhos melífluos, não eram castanhos nem verdes, eram áureos e açucarados, carregados de promessas, olhos quentes e brilhantes. Como o mel.
O momento prolongou-se por três inextinguíveis segundos, tão longos como se o tempo tivesse parado, tão intensos que tudo desapareceu a não ser aquelas jóias hipnóticas, tão fortes que os corações ribombaram descontroladamente no peito; até que ela, com um súbito rubor a colorir-lhe a face delicada, acabou por virar a cara e escondê-la entre os cabelos ondulados com madeixas aloiradas. Um anjo, pensou Luís; era um anjo como nunca se vira por aquelas paragens.
"Então, senhor Afonso? Para onde está o senhor a olhar, pode-se saber?"
Luís estremeceu e voltou bruscamente o rosto, a realidade da aula impondo-se à fantasia da janela; encostado à sua carteira, as pontas dos dedos sujas com o pó branco de giz, o professor de Química observava-o, o bigode a tremelicar de irritação.
"Hã?"
"Aqui não há hã nem meio hã", repreendeu-o o professor. "Faz o obséquio de me dizer para onde estava o senhor a olhar?"
"Eu?"
"Sim, o senhor."
"Oh, nada de especial", devolveu Luís, esboçando um gesto vago com a mão esquerda na direcção do pátio. "Estava apenas a... a ver ali uma pardaleca a pardalar."
O professor observou as raparigas visíveis na fileira de janelas do outro lado e, coruja velha, tamborilou os dedos na madeira rude da carteira do aluno.
"Você é que me saiu um bom pardal."
O toque das onze 'da manhã assinalou o fim da aula e, instantes depois, no meio da enxurrada de alunas que abandonavam a sala em catadupa, a rapariga esgueirou-se pela porta e deslizou pelo corredor na direcção das escadas. Com o coração aos pulos pela temeridade do que planeava fazer, Luís abandonou o lugar onde se ocultara, um discreto pilar estrategicamente colocado diante da sala, apressou o passo atrás dela e apanhou-a já na escadaria; ao ultrapassá-la abriu os braços e, com espalhafato, deixou tombar os cadernos nos degraus, mesmo à frente da beldade dos olhos de mel.
"Perdão", desculpou-se, dobrando o corpo para apanhar os cadernos espalhados diante dela.
"Sou um desastrado." Voltou a cabeça e espreitou-a sobre o ombro, embora se mantivesse debruçado a recuperar o material escolar. "Não se assustou, pois não?"
A rapariga tinha estacado num degrau, pestanejando de surpresa com a confusão gerada a seus pés. Mal o moço a encarou, porém, recuperou do espanto e reconheceu-o; era o rapaz da janela.
Num relance estudou-o da cabeça aos pés, procurando o que a longínqua janela escondera. O rapaz era mais alto e bem constituído do que parecia à distância; tinha os sapatos impecavelmente engraxados, as roupas claras vinham limpas e bem passadas, o cabelo liso castanho-claro brilhava à luz do dia, os pelinhos de adolescente-que-se-faz-homem nasciam--lhe nos cantos da boca e os expressivos olhos castanhos brilhavam na face máscula e quadrada de varão atraente. Era a primeira vez que o encarava de perto e reconheceu nele um ar bem tratado; o rapaz vinha certamente de boas famílias.
Ao vê-lo assim, naquela embrulhada diante dela, depois de tantas e tão intensas trocas de olhares pelas janelas do liceu, a rapariga logo suspeitou que não houvera ali acidente nenhum, antes um estratagema para meter conversa, e não conseguiu ocultar o leve esboço de um sorriso, pormenor pequeno, mas significativo, que não escapou a Luís.
"Não me assusto com facilidade", observou ela por fim, contornando-o e fazendo tenção de prosseguir caminho, ciente de que uma rapariga de bem tinha de se dar ao respeito.
Luís recuperou os cadernos e apressou-se a acompanhá-la.
"Sabe, quando vejo uma moça bonita, assim como você, fico, sei lá, fico nervoso, não é?
E foi isso que... que me atrapalhou."
A rapariga olhou-o, divertida com a audácia do piropo.
"Não, você não é desastrado. É atrevido."
"Receio que esteja a confundir atrevimento com sinceridade." Estendeu a mão. "Sou o Luís e sou sincero."
Ela riu-se, ignorando a mão que lhe era oferecida.
"É atrevido e tem muita conversa, já vi."
"Não me diga que não me vai dizer o seu nome..."
"Para que quer o meu nome, pode-se saber?"
"Ora, para sermos amigos, claro."
"Ai quer ser meu amigo, ora é?"
Luís parou, dobrou o joelho e fez uma vénia.
"Seria uma honra."
"E para que preciso eu de um amigo?"
"Todas as damas têm o seu cavaleiro."
Encantada com aqueles modos, a rapariga estendeu-lhe enfim a mão e rendeu-se.
"Chamo-me Amélia."
Cumprimentaram-se e ele mirou-a com um sorriso.
"Amélia dos olhos garços?"
Amélia voltou as costas, embaraçada e deliciada com a audácia do moço, e apressou o passo com um doce e fresco menear das ancas, como se balouçasse o corpo ao ritmo de um sensual bolero. Correu assim para as amigas, que tudo observavam com invejosa curiosidade, soltando risinhos excitados e sussurrando com agitação. Uma vez com elas, Amélia voltou a cabeça, observou Luís parado na escadaria a admirá-la, os olhos inflamados por tanta graciosidade, e acenou timidamente com o braço.
"Adeus!"
E corou.
O resto do dia foi vivido por Luís com um misto de ansiedade e exaltação. Mal comeu ao almoço, a mente sempre absorvida a reconstituir o que sucedera na escadaria do liceu. Quando as aulas terminaram à tarde, seguiu direito para a pensão onde estava hospedado em Bragança e fechou-se no quarto.
Ah, Amélia! Que lindo nome! Tudo nela lhe parecia perfeito. Uma estranha e saborosa euforia apossou-se dele, desinquietado com a temeridade com que se aproximara da rapariga mais bonita do liceu, alvoraçado com a reacção que dela tivera. A luz do Sol sorria-lhe da janela e convidava-o a
abraçar o dia dourado. Reviu vezes sem conta as breves palavras que trocaram nos degraus e escalpelizou ao pormenor as expressões desenhadas naquele rosto fino. Procurou ler nas entrelinhas do que não fora dito, buscou emoções por detrás dos sorrisos que Amélia lhe exibira, encontrou conforto no adeus que ela lhe lançara na despedida. Ficara na escadaria a vê-la juntar-se às amigas; desejara ardentemente que ela se virasse, que ela não se mostrasse indiferente àquele encontro, que ela o olhasse uma derradeira vez.
E Amélia olhara.
Toc-toc-toc.
"Quem é?"
"Sou eu, menino Luís. A dona Hortense. Estamos todos à sua espera para a janta."
Luís rolou os olhos, impaciente com a inoportuna interrupção, a deleitosa cadeia de pensamentos e fantasias brutalmente quebrada pela voz esganiçada.
"Rai's t'a parta o diabo da mulher!", murmurou, contrariado, desencostando-se da almofada langorosa. "Que maçada, só pensa na engorda..."
Saltou a custo da cama e entreabriu sem entusiasmo a porta. Parada diante dele como um arbusto plantado no corredor estava a dona da pensão, uma senhora redonda de meia-idade, de cabelo encaracolado e faces rosadas, o aspecto bonacheirão de transmontana bem nutrida.
"Atão, menino?"
"Desculpe, dona Hortense, mas não tenho fome."
"O menino não vem à janta?", admirou-se ela, limpando as mãos ao avental sujo.
"Sabe o que é? Tenho muito que estudar."
"Arre diabo! Então esteve a abelhinha da Graciete a esmerar-se para fazer um belo cozidinho, daqueles cheios de chicha
valente, como o menino gosta, e agora não quer comer? Logo o menino, que sempre foi tão lambiteiro!"
"Pois é, mas preciso de estudar."
A dona da pensão inclinou a cabeça e tentou espreitar pela frincha da porta entreaberta.
"Mas que estudos são esses, valha-me Deus, que o botam no quarto e não o deixam comer?"
O rapaz encostou a porta o mais que podia, de modo a manter a frincha num fio.
"São os trabalhos que os professores mandam para casa."
Desconfiada, dona Hortense fitou-lhe os olhos com atenção e, de repente, abrindo o rosto com ar de quem acabou de descobrir a resposta para o enigma, colou-lhe a palma da mão sapuda à testa.
"Não me diga que está febroso..."
"Não, não, eu estou bem."
Constatando que a temperatura na testa era normal, a dona da pensão endireitou-se e indicou com a cabeça o andar inferior, onde se situava a sala de jantar.
"O menino é muito fisquinho, tem de comer."
"Eu sei, dona Hortense. Mas primeiro preciso de alimentar a alma."
"Ora, cenórias! Primeiro enche-se o bandulho e só depois é que vem a alma. Sem paparoca boa, a cabeça não pensa. Além disso, a sua tia mandou-me cebá-lo bem e não quero cá reclamações."
"Fique descansada."
A dona da pensão deu meia volta e desceu as escadas, os braços gordos agarrados ao corrimão.
"Quando lhe der a galgueira, já sabe: vai à cozinha, hem?"
Vendo-a desaparecer nos degraus inferiores, Luís fechou a porta do quarto e suspirou.
"Que estopada!"
Mas logo se recompôs. O quarto era animado pelo alegre chalrar dos periquitos que esvoaçavam para cá e para lá dentro de uma espaçosa gaiola, as irrequietas penas verdes e amarelas contempladas pelo olhar vidrado dos peixes que deslizavam em silêncio no pequeno aquário do canto. Habitualmente era com os seus animais que se distraía, mas desta vez havia um atractivo diferente. A fantasia esperava-o na cama, a noite seria longa e os sonhos ardentes.
Ah, Amélia!