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tinha começado e tal explicação pertencia ao domínio do inconfessável. Com que cara iriam dizer que tudo acontecera porque o Tino os havia apanhado em flagrante no curral?

A versão que apresentaram revelou-se de longe a mais simples e inatacável, mas tinha um importante senão: se Francisco viesse a ser apanhado, seria uma catástrofe. O irmão adoptivo de Amélia não estava inteirado da versão que ambos acordaram para relatar os acontecimentos, pelo que depressa a polícia notaria as contradições que inevitavelmente iriam emergir durante o interrogatório. Era por isso imperativo que Francisco nunca viesse a ser capturado. Mas como diabo poderiam eles ter a certeza de que tal jamais aconteceria?

O dia-a-dia dos dois amantes havia-se assim tornado um inferno, sempre com receio de que rompesse a notícia da detenção de Francisco. E agora o coronel Silvério, que era nem mais nem menos que o comandante do regimento, queria falar com ele! E não era só com ele: era também com o marido de Amélia! Pior augúrio não poderia haver. De certeza que havia novidades, de certeza que a polícia tinha...

"Meu alferes", disse uma voz.

O oficial despertou dos seus pensamentos e, como se regressasse de um país longínquo, libertado da letargia pelo estalar dos dedos de um qualquer hipnotizador, olhou para o recruta nu e viu-o hirto à sua frente, uma expressão intrigada desenhada nos olhos.

"O que é, rapaz? Tens frio?"

"Uh... não, meu alferes."

"Então? E vergonha de estares como vieste ao mundo?" Sorriu. "Não te preocupes." Pegou no formulário e acabou de o preencher. "Daqui a um bocado passas pelo dispensário com este papel que te vou dar e eles entregam-te roupa

interior, lâmina de barbear e pincel, dois fatos de cotim, botas e alpergatas." Ergueu a cabeça e apontou para o recruta com o dedo. "Mas primeiro vais ter de tomar banho, ouviste? Cheiras mal, tresandas a bosta de boi."

"Sim, meu alferes." Hesitou. "Mas eu queria mesmo era saber outra coisa, meu alferes."

"O que é?"

O recruta indicou com o queixo o telefone pousado sobre a secretária.

"Eles falam mesmo de lá, é? Ou isso é conversa para nos enganar?"

O movimento na praça diante dos Paços do Concelho era lento, apesar de ser o centro da cidade.

Alguns homens vestidos de preto ou castanho-escuro concentravam-se diante do Café Lima e do Café da Sociedade, locais que Amélia sabia serem-lhe interditos. Eram antros de álcool, tabaco e bilhar, zona exclusiva para homens. Passou por isso pelos cafés em passo lesto, sem sequer espreitar para o interior, como convinha a uma senhora da sua condição.

Entrou na Farmácia Oliveira e encomendou as aspirinas e o xarope Bromil que lhe tinham sido receitados por Luís. Desde a tragédia que fora a morte do Tino que Amélia não se sentia bem.

Sofria de insónias frequentes e, quando acabava por adormecer, era acossada por sucessivos pesadelos relacionados com o que acontecera. Umas vezes sonhava que o marido a apanhava com Luís no curral de Castelo de Paiva; outras vezes imaginava que era a ela que Francisco partia o pescoço. Mas os sonhos mais frequentes eram aqueles que envolviam a polícia a algemá-la ou o juiz aos gritos a condená-la por assassínio e adultério ou o Tino a reaparecer vivo e a clamar por justiça.

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