XI

A porta abriu-se e o homem magro e baixo, com o cabelo negro brilhante puxado para trás, entrou no gabinete de enfermaria veterinária a segurar uma pasta castanha já muito gasta. Apanhado de surpresa, Luís levantou os olhos e encarou o recém-chegado; conhecia-o de algum sítio, apercebeu-se, mas não sabia de onde.

"Então?", disse o desconhecido, ignorando a mão que o alferes veterinário lhe estendeu para o cumprimentar. "Sempre nos voltamos a encontrar, hem?"

"Desculpe?"

O homem sorriu com malícia.

"Já vi que não me reconheceu."

"O seu rosto é-me familiar", admitiu Luís, esforçando-se por integrar aquela cara num contexto.

"Mas, para falar com franqueza, não o estou a situar. O senhor é de Trás-os-Montes?"

"Não."

"Então devo conhecê-lo de Lisboa. Andou em Veterinária?"

O desconhecido sentou-se e cruzou a perna, fitando o alferes com uma expressão enigmática.

"Chamo-me Aniceto Silva. O nome diz-lhe alguma coisa?"


Luís varreu de novo a mente, dessa feita para tentar situar o nome.

"Não."

"O coronel Silvério não lhe explicou quem eu sou?"

"O nosso comandante disse-me há bocadinho que um inspector da PVDE veio cá a Penafiel e queria falar comigo. É tudo o que sei."

"Pois eu de si sei muita coisa." Abriu a pasta e tirou uns papéis. "Sei, por exemplo, que alimenta ideias perigosas sobre o modo como o nosso país deve ser governado. Sei que..."

"Não alimento nenhuma ideia perigosa", apressou-se Luís a esclarecer. "Só acho é que..."

"Cale-se!", cortou o homem da PVDE num tom ameaçador. "Eu sei muito bem quais as ideias do cavalheiro!"

Os modos bruscos e agressivos do homem apanharam Luís desprevenido, mas o alferes logo se recompôs e respondeu no mesmo tom.

"Não lhe admito que me mande calar!"

"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", berrou Aniceto Silva, de repente muito exaltado. "Ou não admite que anda por aí a criticar o regime? Ou não admite que ajudou os comunistas num comício-relâmpago que eles efectuaram na Escola de Veterinária? Ou não admite que fez amizade com os comunistas espanhóis no campo de refugiados de Valença? Ou não admite que se opôs à entrega desses comunistas ao exército espanhol?"

Confrontado com o tom colérico e o nível de pormenor da informação que o inspector disparava naquelas perguntas,

Luís hesitou. Aquele rosto, aquela fúria, aquele modo de dizer o cavalheiro num tom insultuoso eram-lhe vagamente familiares. De repente, como se um holofote se tivesse acendido na treva da sua memória, encaixou o rosto no seu arquivo mental e identificou enfim o homem.

"Você é o tipo do Parque Mayer!", exclamou, quase surpreendido.

Aniceto Silva interrompeu o acesso de fúria e deixou um sorriso desenhar-se nos seus lábios finos.

"Vejo que já me reconheceu."

"Você é o homem que... que..."

Calou-se antes de completar a frase. O inspector da PVDE era o homem com quem quase andara à bulha por causa de uma reprimenda dentro de um café.

"Sou o homem que defende a ordem no nosso país", completou Aniceto Silva. "E o cavalheiro é o sujeito que quer pôr tudo em causa. Incluindo o regime."

Encolhido no seu lugar, Luís percebeu que se encontrava numa situação inesperadamente delicada. Para dizer a verdade, era uma situação perigosa. Pelos vistos o inspector da PVDE estava informado sobre o que ele pensava do regime e até sabia que, nos seus tempos de estudante, tinha ajudado um comunista a fugir à polícia. Como diabo podia o homem ter conhecimento disso?

Mas o pior já nem era isso. O pior é que descobrira que o agente da Polícia de Vigilância do Estado que o interrogava era o mesmo homem com quem quase chegara a vias de facto no Parque Mayer. E tudo porquê? Por causa de uns miseráveis beijos que dera em público a uma namorada tão insignificante que até o nome já se lhe apagara da memória! E agora? O que mais saberia o inspector sobre a sua vida? De certeza que estava a par da morte do Tino!


Luís caiu em si, horrorizado. Era evidente que a PVDE tinha uma ficha sobre ele. E, se dispunha de tal ficha, nela teria necessariamente de constar o facto de que o alferes Luís Afonso se encontrava na quinta de Castelo de Paiva no dia em que o caseiro aparecera morto! O homem à sua frente trabalhava para a PVDE e os inspectores dessa polícia eram tudo menos parvos. Se quisessem fazer a associação entre as coisas, fá-la-iam sem dificuldades. Teria de ter muito cuidado...

"Oiça, eu não quero pôr nada em causa", disse Luís no tom mais razoável que conseguiu adoptar. "Eu quero é seguir a minha vidinha sem problemas."

"Isso é o que todos dizem quando se sentem apertados", exclamou o inspector com desdém. "Tenho pena que não tenha pensado nisso quando ajudou aquele marxista a fugir à autoridade ou quando se pôs a proteger em Valença os comunistas espanhóis."

"Foi uma questão humanitária."

"Ah, sim?" Consultou um papel. "E a morte do senhor Constantino Latino? Também foi uma questão humanitária?"

Ai, ai, ai.

"Isso... enfim... é um outro assunto e não tive nada a ver com isso. O Tino apareceu morto e nós avisámos de imediato a GNR."

"Pois, é o que diz o relatório." Ergueu o sobrolho, sibilino. "Mas será que foi isso o que aconteceu mesmo?"

"Claro que foi." Luís respondeu depressa e com a maior convicção e confiança que foi capaz de reunir. "Porquê? Tem alguma indicação em contrário?"

O inspector estudou-o por um momento, como se tentasse ler-lhe o semblante. O alferes veterinário esforçou-se por permanecer opaco e Aniceto Silva acabou por baixar os olhos para os papéis que havia extraído da sua velha pasta.

"Bem, vamos ao que interessa", disse, isolando uma folha. "O seu comportamento em Valença deixou muito a desejar e decidiu-se que seria melhor devolvê-lo à vida civil." Estendeu-lhe o papel.

"Tem aqui a guia a desmobilizá-lo do serviço militar obrigatório, com efeitos a partir do dia 1 do próximo mês."

Luís pegou no documento.

"Vou deixar a tropa? Mas ainda me faltam uns meses..."

"Já não faltam." Folheou mais uns papéis. "Põe-se agora o problema de decidir o que vai o senhor fazer depois de desmobilizado."

"Vou exercer veterinária, naturalmente. São essas as minhas qualificações."

"E onde planeia fazê-lo?"

"Aqui em Penafiel claro. É aqui que vivo."

O inspector abanou a cabeça.

"Não", disse. "O senhor é oriundo de Trás-os-Montes, não é? Então é para lá que vai."

"Peço desculpa? Quem é o senhor para decidir para onde vou ou não vou trabalhar?"

"Creio já me ter identificado suficientemente. Vamos mandá-lo para Trás-os-Montes."

"Vocês não podem fazer isso."

"Podemos e faremos."


"Mas com que direito? Eu vou para onde muito bem entender, vocês não têm nada a ver com isso."

"Ai sim? E vai para onde quiser fazer o quê?"

"Vou exercer a minha profissão."

"E quem o empregará?"

"Bem... o Estado. Há falta de veterinários no nosso país, que eu saiba."

Com os dedos a dançarem por entre as folhas que tinha nas mãos, o inspector da PVDE exibiu um sorriso manhoso.

"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", disse. "No ano passado saiu uma lei que prevê a aposentação ou demissão dos funcionários públicos ou militares que se oponham à Constituição ou que não cooperem na realização dos superiores interesses do Estado. E sabe a quem cabe determinar se esses empregados ou militares são ou não opositores?" Colou o polegar ao peito. "A nós, a PVDE. Ora o senhor acaba de ser desmobilizado à luz dessa lei. E, em bom rigor, tendo em conta o seu historial n em sequer devia ser contratado pelo Estado para ir trabalhar para Trás-os-Montes! A sua sorte é que há mesmo falta de veterinários. Uma vez que nenhum dos seus actos ou palavras é de gravidade transcendente, foi decidido dar-lhe uma segunda oportunidade num lugar onde decerto não causará incómodo." Estendeu-lhe mais uns documentos. "Assine aqui."

Luís pegou nos papéis e estudou-os.

"O que é isto?"

"É a minuta de admissão à função pública."

Contrariado e relutante, o alferes veterinário começou a ler o texto mas deteve-se a meio.

"Que raio de coisa é esta?"

O inspector inclinou-se para a frente e espreitou o trecho indicado.

"É o juramento a repudiar o comunismo e as ideias subversivas."

"Eu tenho de jurar que não sou comunista?"

"O cavalheiro é comunista?"

"Claro que não."

"Então assine."

Leu mais um pouco.

"Também tenho de jurar que aceito a Constituição?"

"Não aceita?"

Luís hesitou. Na verdade, não aceitava. A Constituição aprovada três anos antes rejeitava a democracia multipartidária, proibia os sindicatos livres e autorizava a prisão sem culpa formada.

Como poderia ele subscrever tal documento?

"Oiça, eu não conheço bem a Constituição", disse, procurando arranjar maneira de não assinar sem denunciar a sua opinião. "Como posso jurar que aceito uma coisa que desconheço?"

"É muito simples, eu vou explicar-lhe", devolveu o inspector, um brilho de gozo a cintilar-lhe nos olhos. "A Constituição prevê que quem manda no país é o governo. Não existem partidos em Portugal, uma vez que eles só servem para dividir a nação e provocar instabilidade. O governo manda e os cidadãos obedecem, como é dever de uns e obrigação de outros. Ninguém se mete em política e a vida corre às mil maravilhas. Como vê, não há nada aqui de complicado."

"Pois, mas isto é legal?"

"A lei que obriga a prestar juramento para entrar na função pública vai sair no próximo mês.

Estará em vigor quando o cavalheiro começar a exercer funções."

Nova hesitação. Como poderia libertar-se daquele colete—de forças?

"Ouça, eu não gosto de aceitar coisas que não conheço em profundidade. O que acontece se eu não assinar?"

"Não terá emprego no Estado."

"O que significa que só poderei trabalhar para o privado."

"Qual privado?", riu-se Aniceto Silva. " O cavalheiro acha que alguém o irá contratar se for considerado um opositor à ordem estabelecida?"

Não era na verdade uma pergunta, mas uma afirmação. Sentindo-se encurralado, Luís respirou fundo. Não dispunha de alternativas e suspeitava que, se continuasse a hesitar, confirmaria as suspeitas que sobre ele já se levantavam e poderia perder definitivamente aquela oportunidade. O que seria dele sem emprego?

"Onde é que assino?", rendeu-se.

O inspector da PVDE indicou um espaço ao fundo da folha. Luís pegou numa caneta e rabiscou o seu nome no local. Aniceto Silva recolheu a folha e guardou-a na pasta, juntamente com todos os documentos que exibira antes.

"O cavalheiro teve sorte em haver falta de veterinários", disse ao levantar-se para sair.

"Muita sorte."

"Não há sorte nisto. Só azar em ter nascido na merda deste país."

O inspector abriu a porta para sair do gabinete, mas parou a meio e voltou a cabeça para trás. Fitou Luís com tanta intensidade que os olhos até faiscaram e, sem pestanejar, bateu com o indicador nas próprias têmporas.

"Juizinho."


XII

Depois da mais cruel e sangrenta faena que a Plaza de Toros de Badajoz alguma vez vira, Francisco e Juanito foram destacados para as operações de limpeza. Os dois legionários ajudaram a amontoar nos camiões os corpos dos fuzilados e seguiram com eles pelas ruas amedrontadas da cidade, o céu avermelhado pela ferrugem luminosa do final da tarde.

Um longo muro branco a abraçar um mar de tabuletas esperava-os ao virar de uma esquina.

"£/ camposanto'"', disse Juanito.

"O quê?"

"O cemitério."


Os camiões imobilizaram-se junto ao portão e os legionários saltaram da carga e começaram de imediato a retirar os cadáveres dos milicianos, amontoando-os atrás dos veículos.

"Joder!", praguejou Juanito, bufando com o esforço. "Da próxima vez mais vale fuzilá-los já no cemitério, caray. Sempre se poupa esta trabalheira, «o?"

O sargento Gomez, que tinha ido inspeccionar o cemitério, aproximou-se dos homens.

"Atirem-nos para ali!", ordenou, apontando para uma estrutura montada lá ao fundo.

Os legionários formaram pares e despejaram os corpos para macas cujo pano desenhava sombras acastanhadas de sangue coagulado. Francisco não precisou de par e carregou a sua maca como quem carrega um saco de batatas, dirigindo-se com a carga para o local que lhe havia sido indicado.

Num degrau cavado na terra, de modo a aproveitar uma diferença de nível, deparou-se com a estrutura de traves de madeira, todas elas dispostas transversalmente como linhas de caminhos-de-ferro. A estrutura tinha uns quarenta metros de extensão e Francisco atirou sobre ela o cadáver que trouxera do camião. Depois voltou para trás e foi buscar mais. Quando o seu camião ficou limpo, ajudou a descarregar os cadáveres que vinham nos outros.

A operação de trasfega durou uma hora e, quando terminou, o sargento Gomez pôs-se diante da pilha a contabilizar os corpos. Era um mar de cabeças e braços e pernas, alguns dispostos nas mais bizarras posições, um pé junto a uma cabeça, uma mão esticada no ar. Pareciam bonecos partidos que alguém empilhara ao acaso.

"Trezentos e doze", disse o sargento depois de terminar a contagem. "Vão buscar a gasolina."

Os legionários pegaram nos bidões e regaram os corpos com combustível. Com o seu habitual zelo, Francisco meteu-se por entre a pilha para espalhar gasolina sobre os cadáveres que se encontravam no meio da estrutura. A operação foi relativamente rápida e minutos depois já os legionários haviam esvaziado todos os bidões e abandonado a estrutura de madeira.

O sargento Gomez acendeu um fósforo e atirou-o para o monte de corpos. Percorreu uns metros em torno da estrutura e atirou outro fósforo num ponto diferente. Francisco tinha um cigarro nos lábios e, percebendo que eram necessárias várias ignições, lançou-o também. As chamas irromperam aqui e ali, violáceas e nervosas, a madeira a crepitar ininterruptamente, e num instante o fogo alastrou a toda a estrutura, incendiando a monumental pira.

Chegara o crepúsculo. O firmamento rasgava-se de escarlate, como se reflectisse o sangue da terra, e uma enorme coluna de fumo negro ergueu-se da pira estralejante; pareciam almas a recortar o brilho moribundo do horizonte na sua ascensão à eternidade. A fogueira estalava com fúria e o amontoado de carne em brasa começou a exalar um enjoativo cheiro a churrasco doce, um fedor a morte tão intenso que os agoniados legionários tiveram de se afastar e cobrir o nariz com os lenços.

Se havia inferno na terra, ele ardia no cemitério de Badajoz.

Era já noite escura quando os camiões fizeram em coluna a viagem de regresso ao centro da cidade, os faróis a perscrutarem os cantos sombrios das fachadas desfeitas, o rumor dos motores a rasgar o silêncio de medo. Não se via vivalma em parte alguma. Embalado pelo rumor monótono dos motores, Francisco sentiu os olhos pesarem-lhe de sono e por duas vezes deixou tombar a cabeça.

Despertou no instante em que os motores se calaram e os veículos se imobilizaram.

"Vamonos, Paço!", disse Juanito, puxando-o pelo braço.

Saltaram do camião e o português percebeu que estavam de volta à Plaza de Toros. Olhou em redor e quase estranhou

aquele lugar, tão diferente era o ambiente. A agitação que ali se vivera durante o dia dera lugar a um sossego sinistro. Os camiões destruídos das milícias populares permaneciam abandonados no local, como estátuas esventradas. Viam-se bandeiras brancas na maior parte das janelas e as ruas quase desertas pertenciam já às forças paramilitares da Falange, a quem fora entregue o policiamento da cidade.

Vergados pelo cansaço de dois dias de combate sem interrupção e por uma tarde sangrenta na arena e no cemitério, Francisco e Juanito caminharam em silêncio e aos tropeções por entre as artérias sujas e os escombros de paredes desabadas, dirigindo-se ao boleto que lhes fora destinado perto da Comandancia.

A luz ténue dos candeeiros desenhava sombras fugidias pelos passeios, banhando as ruas de desgraçada solidão, e as pedras prolongavam com um tilintar metálico e sinistro o som cadenciado dos passos a calcorrearem a noite. Aqui e ali viam-se ainda bombas por explodir, silhuetas tenebrosas que tiveram o cuidado de contornar. Por vezes cruzavam-se com uma ou outra mulher vestida de negro, a dor travada pelo medo, ou com grupos de falangistas ou de requetés que cantavam canções patrióticas. Contudo, em grande parte do trajecto não encontraram vivalma; era como se Badajoz se tivesse transformado numa cidade-fantasma.

De repente, já perto da Comandancia, Francisco sentiu as pernas falharem-lhe e tombou pesadamente no chão.

"O que é esta merda?", interrogou-se, meio atordoado.

Uma dor aguda irrompeu-lhe na anca, como se uma faca tivesse penetrado fundo na carne, e ouviu uma detonação. Com um gemido, desceu o olhar e viu, surpreendido, a farda empapar-se de vermelho. Como se a acção decorresse muito lentamente, observou Juanito erguer a Mauser e disparar para

os telhados. Percebeu então que fora atingido pelo tiro desesperado de um qualquer derradeiro resistente que se posicionara nas redondezas.

Deitado no solo, antes de perder os sentidos, ergueu a cabeça e, juntando as forças que ainda não se tinham esvaído, abraçou o destino com o grito arrebatado dos legionários.

"Viva a morte!"

XIII

Ding-dong.


O toque na campainha arrancou um protesto baixo de Amélia. A dona da casa ultimava nessa altura os preparativos para o almoço e não gostava de visitas àquela hora; eram normalmente oportunistas que se lhe introduziam na sala de jantar sob os mais variados pretextos, fazendo-se convidados para o repasto. Desceu as escadas a resmungar, calculando ser um qualquer camarada de armas do marido, mas, quando abriu a porta, não pôde evitar uma expressão de surpresa ao identificar o visitante.

"Luís! O que estás aqui a fazer?"

"Preciso de falar contigo."

Ele trazia no olhar uma opacidade fatigada que a inquietou. Amélia espreitou para a rua, procurando certificar-se de que não estavam a ser observados, e fez-lhe sinal de que entrasse.

"O Mário deve estar quase a chegar", avisou, fechando a porta. "O que se passa?"

"Fui desmobilizado. No dia um vou deixar a tropa."

"Já no dia um? Mas não é um pouco cedo de mais?"

"Foi uma decisão da pevide." Pevide era a alcunha que a PVDE tinha nas ruas. "Mandaram um inspector falar comigo por causa do que aconteceu em Valença. Se calhar também vão criar problemas ao teu marido."

"Já criaram", revelou ela. "Ele vai passar à reserva."

"O quê?"

Amélia encolheu os ombros.

"Não é grave, fica descansado. Ganha o salário na mesma e ainda temos o dinheiro gerado pelas duas quintas. A única diferença é que não tem de estar todos os dias no quartel, o que até é uma vantagem porque o regimento vai sair de Penafiel."

"A sério?"

"Ainda é um segredo, mas Infantaria 6 segue para o Porto já em Outubro. Se o Mário ficasse no regimento, teríamos de nos mudar também para lá. De modo que até ficámos a ganhar."

"Portanto, está tudo bem."

"Sim. E verdade que lhe tiraram igualmente a organização do núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa, mas isso..." Encolheu de novo os ombros, como se essa decisão não tivesse importância nenhuma. "Mas nunca pensei que também se fossem meter contigo. Acho até um pouco estranho.

Tu não passas de um subordinado, não é verdade? Por que razão te foram punir?"

"Digamos que eu tinha antecedentes dos meus tempos de estudante em Lisboa e... enfim, tive uma vez um incidente desagradável com o inspector que cá veio. O tipo pelos vistos tomou-me de ponta."

Amélia passeou os olhos pelo uniforme, como se quisesse gravar na memória a imagem do seu amante fardado.

"O que vais fazer agora?"

"Aquilo que sei fazer e sempre quis fazer. Vou ser veterinário."

"Já falaste com o presidente da Câmara? Se quiseres, o Mário dá-lhe uma palavrinha. Ele é um..."


"Não vou ficar em Penafiel", anunciou Luís a frio.

Amélia calou-se por um momento, os olhos muito abertos a absorver o impacto da notícia inesperada.

"Não queres ficar cá?", perguntou, quase a medo.

"Mandaram-me embora."

"Quem é que te mandou embora?"

"A pevide."

"Não estou a perceber. Eles podem mandar-te embora de Penafiel?"

"Pelos vistos a pevide tem o poder de expurgar a função pública de elementos que sejam considerados subversivos. Com o que se passou em Valença, e tendo em conta também o meu passado de estudante em Lisboa, digamos que me aproximo perigosamente dessa definição. A pevide deixa-me trabalhar para o Estado na condição de eu aceitar ser desterrado lá para trás do Sol posto."

"E onde é isso?"

"Trás-os-Montes."

"A Joana também vai?"

"Claro."

"Ela já sabe?"

"Não. Primeiro vim falar contigo."

As consequências destas decisões começaram enfim a ser apreendidas por Amélia na sua plenitude. Os seus olhos humedeceram e bailaram de brilho; o lábio inferior começou a tremer-lhe, mas conseguiu manter a compostura.

"Quando partes?"


"Logo que receba a ordem oficial. Deve ser daqui a duas semanas."

Ela baixou os olhos.

"Talvez seja melhor assim."

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que talvez seja melhor assim."

Luís encostou a palma da mão à face de Amélia e fê-la deslizar suavemente pelo rosto perfeito.

Sentiu-lhe a pele quente e sedosa e suspirou, angustiado com a separação que sabia ser inevitável.

Como podiam as coisas ter corrido assim tão mal?

"Virei cá tantas vezes quantas puder", murmurou. "Não suporto estar longe de ti."

Amélia abanou a cabeça com tristeza.

"Não venhas."

"Porquê? Não me queres cá?"

Ela limpou uma lágrima que lhe nascia no canto do olho.

"Ainda não contei a ninguém, mas tenho uma coisa para te dizer. Uma coisa muito... enfim, muito aborrecida."

"O quê?"

"Tenho medo de te dizer", gemeu, a voz trémula de quem receia dar um passo irreversível. "Sei que vais odiar-me."

Luís encostou-se a ela e abraçou-a, tentando confortá-la.

"Ó meu amor, nunca te odiarei", disse, muito terno. "Aconteça o que acontecer, sou teu e tu és minha. Não há nada que possa alterar isso."

"Juras?"

"Pela minha vida."

Com a cabeça encostada ao ombro do amante, Amélia respirou fundo. Se não dissesse naquele momento, percebeu, jamais conseguiria dizê-lo. E seria pior quando mais tarde Luís viesse a saber da notícia pela boca de outros. Tinha de ser agora.

Agora.

"Estou grávida."

A revelação deixou Luís estarrecido. Deu de imediato um passo atrás e ficou especado a olhá-la.

Se tivesse acabado de levar um soco no fígado não teria ficado mais chocado do que se encontrava nesse momento.

"Grávida? Grávida como?"

Empalidecendo, Amélia espreitou-o com um sorriso quebrado, envenenado pelo pavor e pela insegurança. Tentava ler-lhe o rosto e receava o pior.

"Estou grávida, Luís."

"De certeza?"

"Fui ontem a uma consulta e o doutor Reis confirmou-me."

A pergunta seguinte era sensível, quase informulável, mas Luís não podia viver na dúvida e tinha mesmo de a fazer.

"De... de quem?"

Amélia olhou-o, subitamente zangada.

"Que achas tu?"

Ele abriu a boca, sem perceber se o coração se lhe apertava de esperança ou de horror.

"Meu?"

"Do Mário."

Chocado, Luís já não sabia o que era pior, se Amélia ter um filho seu se do marido.

"Do... dele?"

"Sim", disse Amélia, evitando olhá-lo nos olhos.

"Tens a certeza?"

"Nós só fizemos duas vezes em Castelo de Paiva. Estive a fazer as contas e a minha gravidez bate certo com... com o Mário."

"Tu fizeste com o Mário?"

A amante ruboresceu, algures entre a vergonha e a indignação.

"Sim, fiz com o Mário", exclamou, fitando-o enfim e quase erguendo a voz. "O Mário é meu marido. Fiz com o Mário, como podia recusar-lho?" Colou-lhe o indicador ao peito. "E tu? Não fazes com a Joana?"


Luís ficou sem palavras. Era verdade que ela estava casada com o capitão e era verdade que ele fazia amor com a sua mulher. Tudo isso era inegável, mas mesmo assim custava-lhe enfrentar a realidade. A mulher que amava fazia amor com outro homem! Se calhar fizera ainda na noite anterior... Caramba, como lhe doía! Imaginou-a com o capitão, ambos a gemerem e a suspirarem, a cama a bater na parede ao ritmo das investidas, e estremeceu. Era evidente que ela já tinha feito amor com o marido, no fim de contas era casada e gerara filhos, mas sempre supusera que, desde que a amara em Castelo de Paiva, ela se lhe tinha tornado fiel. Tratava-se de uma suposição absurda, claro, infantil mesmo, uma vez que ele próprio não se tornara fiel a Amélia.

"Tens razão sobre a minha ida para Trás-os-Montes", disse num sussurro decepcionado. "Talvez seja melhor assim."

Abriu a porta e saiu sem olhar para trás.

Parte Quatro

1939

E nunca vem aquilo que há-

de vir


Загрузка...