IX
A vida em Valença do Minho tornou-se uma rotina para Luís e o capitão Branco. Os dois oficiais alugaram quartos na Praça de São Teotónio, junto à Casa do Eirado, e saíam todas as madrugadas para gerir o campo de refugiados ou fiscalizar a passagem das colunas de "ajuda às populações"
para a Galiza. Em fins-de-semana alternados davam um salto a Penafiel para se juntarem à família.
Uma vez ia o capitão e na vez seguinte seguia o alferes veterinário, mas no domingo à noite já estavam de volta aos seus deveres na fronteira luso-galega.
Foi no dia a seguir a um dos regressos de Luís de Penafiel que as coisas começaram a correr mal.
O alferes encontrava-se junto ao acesso à ponte, encostado a um muro a aguardar a chegada de mais uma coluna, quando, logo pela manhã, um carro militar espanhol entrou no tabuleiro, vindo de Tui, e se imobilizou ao seu lado. As portas abriram-se e do interior da viatura saiu um coronel espanhol, um homem aloirado e muito penteadinho.
"Arriba Espanar, saudou, esticando o braço na saudação à romana.
Luís fez continência militar, mas sem muito entusiasmo.
"Bom dia."
"Soy el coronel Manuel Iriarte", apresentou-se o recém-chegado. "Quiero hablar con el capitán Blanco. ."
"O capitão Branco, quer o senhor dizer. Com certeza. Os seus documentos?" O oficial espanhol apresentou os papéis e Luís, constatando que se encontrava tudo em ordem, devolveu-os e fez-lhe um sinal com a cabeça. "Venha comigo."
O alferes deu ordens ao sargento Guedes de que assumisse o comando do acesso à ponte e pôs-se a caminho. Os dois homens calcorrearam o piso empedrado de Valença do Minho, trocando palavras de circunstância sobre o calor que apertava nesses dias, e subiram até ao forte.
Luís apresentou o capitão Branco ao coronel espanhol, o qual, após as amabilidades habituais, revelou ao que vinha.
"Tenho ordens para vir buscar os milicianos rojos que aqui se esconderam", anunciou Iriarte.
"Ai sim?", admirou-se Branco. "Não sabia de nada."
O coronel tirou documentos de uma pasta e entregou-os ao oficial português.
"Pois está aqui tudo."
Tratava-se de uma guia assinada pelo general Machado, do comando do Porto, autorizando a entrega dos refugiados. O capitão pegou no telefone e ligou para o Porto, para confirmar a ordem de entrega. A ligação foi difícil, como era habitual nas chamadas para sítios tão longínquos, mas do outro lado da linha acabaram por lhe indicar que, sim senhor, tinham recebido os papéis correspondentes de Lisboa, pelo que a guia do coronel Iriarte era genuína.
O capitão Branco pediu a Luís que os acompanhasse até ao campo de refugiados e seguiram os três em direcção ao local. Iriarte trazia já na cabeça um plano para a entrega dos milicianos.
"Era bom que vocês os pusessem a meio da ponte", disse. "Os meus homens estão em Tui e vão lá buscá-los. Vale?"
O capitão mirou Luís.
"Você faz isso, alferes?"
"Sim, sem problemas. Só preciso de uns cinco camiões. Será que o meu capitão mos pode arranjar?"
"Claro. Vou dizer ao alferes Monteiro que trate do transporte." Voltou-se para Iriarte.
"Quando quer proceder à transferência, coronel? Amanhã?"
"Manana?", surpreendeu-se o espanhol. "No." Abanou a cabeça com ênfase. "Hoy.
Ahora."
O capitão riu-se.
"Agora? Ena! Isso é que é pressa, homem!"
"Si. Tenemos prisa en ganar la guerra."
Chegaram ao campo de refugiados e o capitão Branco deu ordens para que os galegos formassem no pátio. O aparecimento de um oficial espanhol com os dois portugueses provocou um burburinho surdo entre os milicianos, que não tiravam os olhos do coronel Iriarte.
Luís detectou os esgares de medo no rosto dos refugiados e procurou José Alexandre. O
seu amigo galego tinha desenhada na face a mesma apreensão que adivinhava nos olhos dos seus companheiros e o alferes aproximou-se dele, empenhado em tranquilizá-lo.
"Então, Zé? Nervoso, hã?"
José Alexandre apontou Iriarte com a cabeça.
"Que está a facer aquel carajo aqui?"
"É um oficial do exército espanhol. Veio buscar-vos."
"Veu buscamos? Para nos levar onde?"
"Para a Galiza, homem. Têm lá um campo de detenção à vossa espera."
O galego riu-se sem gosto.
"Un centro de detención, é? Uma cova, quere dicir."
"Uma cova?"
"Si, alférez. Vannos fusilar."
"Disparate, não vão nada!"
"Vannos fusilar, iso é o que lie digo."
O receio do galego era genuíno, percebeu Luís. Preocupado, foi chamar o capitão Branco e explicou-lhe o que o refugiado lhe dissera. O capitão foi ter com José Alexandre.
"Então o que se passa?"
"Ese cabrón quere levamos para nos fusilar."
Mário Branco abanou a cabeça, uma expressão condescendente no rosto.
"O exército espanhol é católico", anunciou-lhe, com ar pedagógico. "Isso dos fuzilamentos é coisa vossa, dos comunistas e anarquistas de quem você tanto gosta. Vocês é que andam para aí a matar padres e freiras. Um exército católico e honrado não tem esses comportamentos de fací-
nora..."
"Quere burlarse de min, non?"
"Quero burlar quem?", admirou-se o capitão. "Não, claro que não."
José Alexandre voltou a indicar Iriarte com a cabeça.
"Foi o cabrón quen falou de que nos ían levar para un centro de detención, non?"
"Sim... quer dizer, não", gaguejou o capitão, atrapalhado. "Na verdade, não falámos sobre isso."
"Entón como o sabe?"
"Bem... presumo que vocês vão para um campo de detenção, não é? Para onde é que haviam de ir?"
Foi a vez do galego suspirar.
"Ai, capitán, capitán!", desabafou, abanando a cabeça. "Entón non sabe o senor que os nacionalistas andan a fusilar a todos os milicianos que apanan por diante?"
O capitão Branco esboçou uma expressão céptica.
"Ena! Onde isso já vai..."
"Estou a falar verdade, capitán. Preguntelle ao cabrón para onde nos van levar. Pregunte, pregunte."
Com a dúvida a palpitar-lhe no coração, o capitão fez sinal a Luís, combinou com ele o modo de obter a informação e voltaram ambos para junto de Iriarte, que observava os milicianos a formarem no" pátio. Deixaram passar um minuto. Obedecendo a um sinal do capitão, Luís simulou que lhe tinha acabado de ocorrer uma ideia e formulou então a pergunta.
"Vai levar muito tempo a julgar esta malta toda, hem?"
"Juzgar a quiénf Estos capullos?"
"Sim. Afinal de contas, é muita gente..."
O coronel espanhol riu-se.
"Não vai haver julgamento nenhum!"
"Ai não? Então? O que lhes vão fazer?"
Iriarte mirou os milicianos e mostrou um esgar de desdém.
"Que los fusilen!"
Era mesmo verdade.
"Vão fuzilá-los?"
"Claro! O que queriam que lhes fizéssemos, hã? íamos alimentá-los na prisão, não? Caviar e champanhe, venga!" Voltou a rir-se. "Daqui a bocado até queriam que os levássemos às putas, para os manter satisfeitos!" Abanou a cabeça. Não. Temos de acabar com toda esta bazofia roja, exterminá-los hasta el último!"
Os dois oficiais portugueses trocaram olhares; primeiro o espanto, depois a irritação a enrubescer-lhes as faces. O capitão deu um passo atrás e o alferes veterinário imitou-o, distanciando-se ambos do espanhol.
"Coronel Iriarte", disse Mário Branco, a voz muito firme. "Não lhe vamos entregar estes homens."
O oficial espanhol observou-o com ar surpreendido.
"Como? Qué pasa?"
"O que se passa é que não lhe vamos entregar estes homens", repetiu o capitão. Branco mirou Luís de relance. "Alferes, mande destroçar os refugiados."
Era tudo o que Luís queria ouvir. O alferes veterinário voltou-se para os galegos e deu-lhes ordem de que regressassem às tendas; iam ficar em Portugal. Onde antes se vislumbravam rostos carregados de apreensão mortal, surgiram prudentes sorrisos de alívio. Luís procurou José Alexandre com os olhos e piscou-lhe o olho, num sinal de que estava tudo bem; o galego respondeu-lhe com uma vénia com a cabeça.
Cá atrás, Iriarte quase que se engalfinhava com o capitão Branco.
"No es posible!", gritou o espanhol, rubro de fúria, acenando com um documento na mão. "O
general Machado autorizou a entrega destes rojos!" Pôs o papel à frente do nariz do português.
"Veja!"
O capitão Branco ignorou o documento.
"O general Machado desconhecia certamente o destino que os senhores reservavam aos refugiados", devolveu, com ar impassível.
"Vocês não têm de conhecer ou desconhecer destino nenhum! Têm é de nos entregar os rojos, mais nada!"
O capitão fixou os olhos no oficial espanhol.
"Caro coronel, o senhor não está em Espanha, entendeu? O senhor encontra-se em Portugal."
Elevou o tom de voz. "E, que eu saiba, em Portugal ainda mandam os portugueses! Se não está contente, vá queixar-se ao papa!"
"Mas o general Machado autorizou a transferência dos rojos, caray!", insistiu Iriarte, acenando ainda com o documento que tinha nas mãos. "Você só tem de mos entregar!"
O capitão Branco apontou o indicador ao espanhol.
"Coronel Iriarte", vociferou. "Portugal foi dos primeiros países do mundo a abolirem a pena de morte! Está fora de questão um oficial português entregar alguém para ser executado. Que vocês se portem como animais é lá convosco, mas neste país actuamos de maneira diferente. Que fique claro que a honra do exército português não será manchada por mim, entendeu? Nem por mim, nem por nenhum oficial que aqui esteja!"
"Aqui debe de haber algún error", argumentou Iriarte, baixando a voz e tentando parecer razoável. "Que eu saiba, não são vocês que vão fuzilar os rojos." Pousou a mão no peito. "Somos nosotros."
"Não interessa. Se os entregarmos sabendo que vão ser executados, tornamo-nos cúmplices e autores morais dos fuzilamentos."
"Cono! Mire, hombre, escucbe lo que le ..."
"Meu capitão", interrompeu Luís com a voz o mais firme possível, hirto, assumindo uma postura formal. "Dá licença que eu escolte o nosso convidado até à ponte internacional?"
"Licença concedida", apressou-se a responder Mário Branco, satisfeito com a intervenção do subordinado.
O coronel espanhol calou-se e mirou os dois oficiais portugueses; percebeu nesse instante que estava a ser expulso. Num assomo de orgulho, voltou as costas e pôs-se a caminhnhar com vigor em direcção à estrada. Atrás dele, os galegos soltaram urros de chacota enquanto Luís apressava o passo para o ultrapassar e acompanhar até à ponte. Fizeram o caminho em silêncio e nem um olhar trocaram no momento da despedida.
No dia seguinte, à hora de almoço, José Alexandre ergueu-se da mesa, os talheres ainda nas mãos, e aproximou-se do capitão Branco.
"Foi unha cousa boa, a que vostedes fixeron otite."
"Não fizemos nada de especial."
O galego sorriu e baixou a cabeça, como se estivesse a apreciar a batata que tinha espetada no garfo; depois levantou os olhos e, com uma expressão intensa, voltou a encarar o oficial.
"Sabe o que acostumamos dicir en Galicia?"
"O quê?"
"Que un galego é un português que se rendeu."
"Ah, sim? E um português, o que é?"
Um brilho cintilou no olhar do refugiado.
"£ un galego que non se rende."
Bonk. Bonk.
O barulho de alguém a esmurrar a porta com vigor arrancou Luís do sono. O alferes veterinário ouviu dona Palmira, a proprietária da pequena casa da Praça de São Teotónio onde alugara o quarto, sair para o corredor; resmungava impropérios em voz baixa e fazia estalidos de irritação com a língua, e assim prosseguiu a matutar para si mesma enquanto descia vagarosamente as escadas.
O som da fechadura a rodar e da porta de entrada a abrir-se percorreu a casa, e, do quarto, Luís escutou dona Palmira à conversa com alguém; era uma voz masculina e parecia excitada, mas, sufocadas pela distância e pelas portas, as palavras tornavam-se abafadas, imperceptíveis. Os passos da proprietária voltaram às escadas, aproximaram-se e só pararam ao fundo do corredor.
Toe. Toe. Toe.
"Senhor capitão?"
Ela batia à porta do quarto do capitão Branco.
"Sim?"
A resposta era do capitão Branco, a voz com o timbre enrouquecido de quem acabava de despertar. Luís sentou-se na cama, estremunhado, e ficou a ouvir a conversa.
"É para si."
"Quem é?"
"Um soldado. Está lá em baixo, à porta, e diz que precisa de falar consigo."
"Diga-lhe que já vou."
Dona Palmira recolheu-se de volta ao seu quarto sem transmitir a mensagem. O hóspede que o fizesse; moça de recados é que ela não era. Já bastava terem-na acordado àquela hora de doidos.
Fechado no seu quarto, Luís consultou o relógio. Os ponteiros assinalavam três da manhã. Tinha de ser coisa grave, considerou, porque não se acordava um oficial àquela hora. Vestiu um roupão, calçou os chinelos e saiu para o corredor, ficando a aguardar que o capitão aparecesse.
A porta do quarto do capitão abriu-se e Mário Branco surgiu também de roupão.
"O quê? Também o acordaram a si?"
"Despertei com o barulho", explicou Luís. "Será que se Passa alguma coisa?"
Desceram ambos as escadas ao encontro do visitante nocturno. Como dona Palmira tinha anunciado na sua voz ensonada
nada, era de facto um soldado, um rapaz novo e ossudo, que fez continência mal viu os superiores hierárquicos.
"O que se passa?", perguntou Mário Branco, ainda a apertar o cinto do roupão.
"O sargento Guedes mandou chamar o meu capitão, meu capitão."
"Porquê? O que aconteceu?"
"A PVDE apareceu no campo de refugiados, meu capitão."
O capitão Mário Branco franziu o sobrolho, subitamente muito desperto, e trocou um olhar com Luís. A PVDE, ou Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, era a polícia política do regime, encarregada da prevenção e da repressão de crimes políticos, e especialmente temida porque actuava fora da alçada do poder judicial. Ambos sabiam que a sua lista de poderes era extensa. Era a PVDE que prendia e incriminava os suspeitos de actividades políticas interditas, submetendo-os sem fiscalização ou apelo a qualquer tratamento que considerasse necessário para a defesa do regime. Era verdade que a sua acção decorria, em geral, de forma relativamente discreta. Até então Luís apenas notara a sua presença nos jornais, em particular nas notícias e artigos censurados, mas já por mais de uma vez suspeitara que as suas cartas haviam sido violadas. Para o caso, no entanto, o mais importante era que os poderes da PVDE incluíam a vigilância das fronteiras e de todos os estrangeiros que entravam no país. O seu aparecimento no campo de refugiados, perceberam os dois oficiais instantaneamente, não augurava por isso nada de bom.
Os dois oficiais voltaram ao quarto e fardaram-se apressadamente. Saíram da casa e acompanharam o soldado pelas ruas de Valença do Minho, noite escura, em direcção ao acampamento onde haviam sido concentrados os milicianos galegos.
Ao chegarem ao local perceberam que havia algo errado. A sentinela tinha desaparecido e o portão estava escancarado. Dirigiram-se à casa da guarda, onde as luzes permaneciam acesas, e entraram de rompante. O sargento Guedes e três soldados descansavam nas cadeiras, com ar prostrado. Ao verem os dois oficiais deram um salto e puseram-se em sentido.
"O que se passa, sargento?", quis saber Branco. "Onde estão os refugiados?"
"Foram-se embora, meu capitão."
"Foram-se embora, como?"
O sargento evitou o olhar do superior hierárquico; mostrava-se visivelmente atrapalhado.
"Apareceu aqui a PVDE com uns oficiais espanhóis, meu capitão. Trouxeram uns camiões e levaram os refugiados."
"Mas quem é que autorizou isso?"
"Bem... a PVDE, acho eu."
"Mau! Afinal quem é que lhe dá ordens, hã? A sua hierarquia ou a PVDE?"
"Meu capitão, eles eram para aí uns quinze e vinham armados até aos dentes. Nós só éramos quatro, não podíamos fazer nada. Mandei ali o Rui chamá-lo, mas já foi tarde."
"Quando é que os camiões saíram daqui?"
"Foi há uns dez minutos, meu capitão." Apontou para norte. "Seguiram naquela direcção."
Luís e o capitão Branco ainda convergiram para a ponte internacional, já sem muitas esperanças de inverter o que fora feito; as sentinelas da ponte confirmaram-lhe a passagem dos camiões e a entrega dos refugiados no tabuleiro havia apenas cinco minutos. Olhando para a margem norte do rio, a noite
parecia adormecida em Tui, embalada pelo soprar suave da brisa que vinha dos lados do mar.
Apenas o estampido longínquo de várias descargas de espingardas, meia hora depois, revelou que a escuridão profunda ocultava algo mais sombrio e sinistro do que a própria treva.
O fuzilamento de José Alexandre.