XX

Havia já algum tempo que a ideia louca lhe germinara no espírito. Andava a ruminá-la com mais insistência nos últimos dias, à medida que as opções se iam fechando e deixava de ver saídas para a situação em que se encontrava, mas fora o encontro com Amélia que o pusera no limiar da decisão final.

Desde que fora preso que Luís passava quase todo o tempo a alternar entre estados de depressão e ansiedade, apenas intervalados pelos momentos de descompressão trazidos pelas breves conversas com as vozes que lhe chegavam do mundo exterior. Nenhuma visita, no entanto, teve um impacto tão devastador como a última de Amélia. Estar com ela fora infinitamente bom; quedar-se agora longe dela afigurava-se--lhe absolutamente insuportável. O seu era um amor sem esperança.

Precisava agora de considerar as consequências de tudo o que fora dito nessa conversa.

A tentação de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer era enorme. Enorme. De uma

assentada, e graças a um maravilhoso passe de mágica, ver-se--ia livre do pesadelo horrendo em que a sua vida subitamente se transformara. Como não desejar isso? Mas o facto é que a magia não passava de puro ilusionismo e Luís não podia aceitar que tanta gente pagasse o preço que seria inevitavelmente cobrado pela sua ilibação. Amélia pagaria com dureza, o marido também, Joana igualmente, para não falar naquele filho que acabara de descobrir.

Pegou na fotografia que Amélia lhe havia oferecido e contemplou o sorriso infantil que o espreitava do outro lado.

"O meu menino", murmurou.

Uma e outra vez a mente voltou às consequências de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer, e sempre, sem falhar, chegou à mesma conclusão. Se Amélia contasse toda a verdade, desgraçar-se-ia a ela e a todos. Incluindo ao seu filho, dali em diante um bastardo que acabaria por ser educado longe da mãe e usado como arma para a punir por uma paixão que jamais deveria ser crime. O pequerrucho tornar-se-ia o bode expiatório do adultério da mãe e não havia nada que ele, Luís, e Amélia pudessem fazer para o proteger.

E como seria a vida dela nessas condições? Expulsa pelo marido, longe dos filhos, rejeitada pela irmã, apontada perante todos como mulher adúltera, Amélia embarcaria numa viagem de perdição. Se a vida, tal como ela se apresentava nesse instante, já era dolorosa, então tornar-se-ia intolerável.

Isso ele não podia aceitar.

Não tinha dúvidas, porém, de que Amélia avançaria mesmo com o seu supremo sacrifício. Era agora evidente que ela não admitiria a continuação do processo judicial nos moldes em que o caso decorria e ia fazer o que estava ao seu alcance para o travar. Mas o preço era demasiado alto, repetiu Luís a si mesmo, determinado a poupar Amélia a todo o custo. Para

o arrancar da cadeia, ela entregava-se a si e ao filho e a toda a família à ruína.

Isso ele não podia mesmo aceitar.


Se Amélia estava disposta a avançar para o supremo sacrifício, então ele não tinha o direito de mostrar menos coragem. O sacrifício teria de ser seu, só seu; essa era a única saída realista para toda aquela confusão.

Sentado na penumbra da cela, o olhar perdido no labirinto da mente, reviu vezes sem conta os argumentos que o impeliam ao sacrifício; o assunto tornara-se uma obsessão, um diálogo interior que não conhecia fim. A sua vida chegara a um beco. Joana não era capaz de lhe dar filhos, mas tinha um menino de Amélia que não podia perfilhar. Como se isso não bastasse, a liberdade fora-lhe roubada e havia sido enxovalhado com a humilhante detenção por homicídio. Ele, que sempre cuidara da sua honra e sempre defendera o que considerava justo, via-se atirado para um calabouço como um reles criminoso. Aos olhos do mundo não passava de um cobarde assassino.

Depois havia Amélia. A amante podia resgatá-lo, é certo, mas ao fazê-lo desgraçar-se-ia a ela e a todos em seu redor. E desgraçá-lo-ia também a ele, que só se salvaria graças à desgraça alheia. E tudo por causa da porcaria de país em que vivia, da mentalidade tacanha que se instalara, do consenso medroso que caracterizava aquele tempo.

Se a vida é isto, para quê viver?

Tornou-se claro que se haviam esgotado as soluções. Desde que tinha sido detido que se interrogava sem cessar sobre a sua situação. O que fazer? Como enfrentar aquilo? Como sair dali? A detenção e a humilhação revelavam-se insuportáveis. Mas o pior era não ver saídas aceitáveis. Não havia escapatória, era como se tivesse dado de caras com uma parede

intransponível. Portugal era aquilo e daquilo não sairia. A desesperança instalou-se-lhe no coração.

Havia analisado todas as opções e sempre rejeitara a derradeira, mas uma a uma tivera de as descartar a todas e encontrava-se agora a encarar a última, a mais final de todas, aquela que tudo resolveria de vez. Não aguento mais, pensou. Não há nada que eu possa fazer e ninguém me pode ajudar. Impõe-se um fim a esta situação, preciso de fugir de toda a confusão, há que acabar com tanto sofrimento. Isto é intolerável. Intolerável. Tenho de escapar desta cela que me tolhe, preciso de me libertar deste julgamento que me envergonha, não consigo viver num país onde não se pode respirar.

Paz.

Foi nesse instante, ali sentado no ambiente estático da cela, os pés assentes sobre as silhuetas geométricas que a claridade da janelinha gradeada recortava no chão, os olhos perdidos na chuvada de poeira que dardejava como um punhado de pirilampos diante do hálito de luz exalado pela janelinha, que a longa cadeia de raciocínio chegou ao termo e ele tomou a decisão final. Alguém teria de se sacrificar e não podia ser Amélia.

Quero paz.

Com o processo de decisão concluído, optou por tentar não pensar mais, não lhe fosse faltar a coragem quando dela mais precisasse. O pensamento paralisa a acção, sabia. Precisava de agir sem pensar e quanto mais cedo começasse melhor.

Aproveitando a claridade do dia, tirou o lençol da cama e começou a rasgá-lo em farrapos longos, simulando que tossia sempre que fazia força e dilacerava o tecido, de modo a disfarçar o barulhento crrrrrrr do pano a ser rompido. Ao fim

de uma hora tinha já uma longa faixa branca aos farrapos em vez do lençol rectangular.

Enrolou a faixa e escondeu-a por baixo do cobertor imundo.

Afadigara-se com o lençol e conseguira evitar pensar, mas nesse momento tinha as mãos livres e receava regressar ao fervilhar obsessivo da mente. Pegou numa folha e pôs-se a rabiscar uma mensagem para Amélia. Escreveria a Amélia, decidiu, e fá-lo-ia enquanto tivesse luz. Escrevinhou Meu amor, depois pensou que o marido poderia ver a carta e rasgou o papel, recomeçando na folha seguinte com um mais sereno Querida Amélia. Ia na segunda linha quando a porta de acesso aos calabouços se abriu e ouviu passos a aproximarem-se.

"O Afonso", chamou uma voz.

Era o guarda.

"Sim?"

"Tens aqui mais uma visita", anunciou. O homem aproximou-se da porta e tirou a chave do molho que guardava no cinto. "Olha lá, tens de dizer a esta malta que assim não pode ser, ouviste? Eu não sou nenhum moço de recados nem isto é um hotel."

"Quem é?"

"É o gajo de ontem. O... o coiso."

"Quem? O doutor Garcia?"

O carcereiro inseriu a chave na fechadura.

"Sim, é esse gajo."

O advogado, identificou. Mas que lhe quereria ele? Seria possível que Amélia já tivesse falado com o doutor Garcia? Não, isso ela não tinha feito. Prometera que permaneceria calada até ao dia seguinte e cumpriria. Provavelmente o advogado queria era convencê-lo a deixar que Amélia se sentasse no banco das testemunhas. A tentação era grande e um fogacho de esperança reacendeu-se no espírito de Luís, mas logo tratou de o apagar com firmeza. Do que ele precisava nesse momento não era de esperança, mas de coragem.

Salvar-se seria condenar Amélia e toda a família, e isso ele não podia permitir. Não se salvaria à custa do sacrifício dos outros.

"Diga-lhe que hoje estou indisposto."

O guarda acabara de abrir a porta da cela e imobilizou-se, desconcertado.

"Mau! Não queres falar com ele?"

"Não. Peça-lhe que volte amanhã."

O carcereiro fez um estalido irritado com o canto da língua.

"Ai, ai!", protestou, arqueando as sobrancelhas e voltando a fechar a porta da cela. "Já me estás a dar muito trabalho, ó Afonso! Pensas que eu estou aqui ao dispor ou quê?"

"Tenha paciência, mas o doutor Garcia que volte amanhã." Luís hesitou, considerando outras hipóteses. Gostaria de ver toda a gente, mas receava que a prova fosse dura de mais e lhe retirasse forças para levar adiante a sua decisão. "E diga o mesmo a qualquer outra pessoa que apareça para me ver."

"Incluindo à tua senhora?"

"Sobretudo a ela."

Regressou à carta e releu o pouco que havia redigido. Não seria estranho descobrirem uma carta endereçada a Amélia? Claro que isso suscitaria interrogações, por mais inócuo que o texto se viesse a revelar. Rasgou a folha em milhentas tiras, para a tornar ilegível.

Não, não podia dirigir a carta a Amélia. Mas como faria então?

Tentou várias ideias até que lhe ocorreu uma solução.

Havia uma maneira de escrever a Amélia sem que ninguém o percebesse. Trilhando esse caminho, redigiu uma carta que rasgou de novo, e depois outra e outra ainda, escreveu até a luz do dia minguar e encontrar enfim a fórmula certa para explicar a sua fuga.

Releu a mensagem e deixou correr um suspiro. Era subtil e certeira; só os mais perspicazes a entenderiam. Sabia agora que, se estava preso e a esperança se fechara sobre ele, isso não se devia verdadeiramente às circunstâncias que rodearam a morte do Tino nem às mentiras ditas por Francisco nem à necessidade de impedir a desgraça de Amélia nem sequer ao ressabiamento vingativo do inspector da PVDE. Tudo isso não eram mais do que manifestações do mesmo problema. A causa verdadeira, a mais profunda de todas, estava no país em que vivia. E era isso que Amélia teria de entender na sua mensagem.

Quando fechou o envelope já a claridade tombava moribunda e a cela descaía para a meia-luz. Consciente de que não poderia deixar para trás nenhuma pista que denunciasse Amélia, pegou na fotografia do filho e, após prender naquele sorriso infantil um derradeiro olhar, rasgou-a também em mil tiras. Juntou os pedacinhos rasgados do cliché aos de todas as tentativas abortadas da carta que escreveu, empoleirou-se no banco e, estendendo as mãos por entre as grades da janelinha, lançou-os ao vento. Ficou a ver as tirinhas brancas a esvoaçarem com doçura, como flocos de neve a salpicarem o ar, adejando devagar sobre o jardim da Praça da República.

Respirou fundo, o sofrimento a queimar-lhe a alma. Dei-xou-se estar à janelinha e espreitou o crepúsculo que o céu avermelhado anunciava. Despediu-se do Sol sonolento e viu a noite assentar devagar. Começou por ser penumbra mas depressa se tornou sombra pontuada a pó brilhante, um manto

escuro que foi manchando gradualmente o céu e o afogou de negro cravado a diamantes.

Deslizou melancolicamente para a cama e ali ficou a languescer na escuridão. Nunca se sentira tão em baixo como nesse instante. Evitava raciocinar e buscava a lassidão do esquecimento, mas afogava-se em dor; não pensava noutra coisa que não fosse o poço sem fim em que a sua vida se convertera. Não havia nada que pudesse fazer, não havia ninguém que o fosse ajudar, não havia refúgio onde pudesse encontrar esperança. Passara dias e horas e minutos na cadeia à procura de soluções e apenas o silêncio lhe respondera; era como se não houvesse respostas. Por mais que se esforçasse, não encontrava paz no pensamento de que Amélia se sacrificaria para o salvar. Isso não seria salvação, concluiu; seria maldição eterna.

Luís jurou a si mesmo que não podia deixar que os acontecimentos seguissem o seu curso natural até à perdição. Não podia deixar que as mãos invisíveis da autoridade corrompida o arrastassem para o seu fim, pondo e dispondo da sua vida. Precisava de controlar o destino, tomá-lo em mãos e impô-lo. Tinha feito tudo o que estava ao seu alcance, havia vasculhado as diferentes alternativas, explorara todos os caminhos possíveis e a verdade, a terrível e amarga verdade, é que ainda se afundava. Esgotara as opções. Ou melhor, não as esgotara todas. Restava-lhe ainda uma derradeira, a mais desesperada, aquela que enfim o libertaria.

A final.

A sombra foi quebrada pelo aparecimento do guarda, que, como de costume àquela hora, trazia consigo um candeeiro de incandescência petromax, a única iluminação nocturna existente nos calabouços. O candeeiro emitia uma luz azulada no

meio do corredor, pestanejando ao ritmo da dança dos insectos que o orbitavam, e aos reclusos chegava já apenas uma leve claridade intermitente, bastante para discernirem os contornos das coisas, mas insuficiente para enxergarem os pormenores.

Esperou pelo jantar, que não tardou a surgir num tacho trazido pela mão do carcereiro.

"Hora do banquete", anunciou o homem.

Era uma sopa aguada, feita de legumes e decerto alguns insectos invisíveis à meia-luz, e duas fatias de broa. Olhou para a sopa com desprendimento e percebeu que não conseguiria comer; não sentia fome e pousou-a no chão. Tinha a mente ocupada com a tarefa sobre-humana que o esperava. Enquanto martelava a solução para tudo aquilo, libertou os olhos e deixou-os passearem como vagabundos, deambulando pelas sombras fantasmagóricas que o clarão azulado tingia nas paredes desbotadas da cela.

Quando a hora da refeição terminou e o guarda veio aos calabouços e apagou o petromax, a obscuridade absoluta reinstalou-se na cela. Luís ficou um instante sentado na cama, os olhos fitos na treva, a respiração leve e controlada; parecia uma estátua indiferente ao deslizar inexorável do tempo. A vida é um sonho, pensou. A morte é o despertar. Passamos um universo inteiro a flutuar no vácuo da não existência; a vida não passa de um fugaz tremeluzir da chama do petromax na vasta noite da eternidade. A vida é a anomalia, a morte é o regresso ao estado original; a vida é um sopro e a morte é o ar.

Agora, decidiu, gritando a palavra em silêncio.

Agora.

Ergueu-se com um movimento trágico, assaltado pela vertigem de quem está diante do abismo e receia perder a coragem. Tacteando às escuras, levantou o cobertor e pegou na longa

faixa esfarrapada em que transformara o lençol. Não quis pensar no que estava a fazer, mas começou a sentir o coração a saltar-lhe no peito e as mãos a tremerem e as pernas a fraquejarem e os pulmões a arquejarem e os nervos a cederem.

"Não vou conseguir", sussurrou, ofegante. Mas logo pensou em Amélia a expor-se ao mundo e no seu filho apartado da mãe e sentiu voltar-lhe a coragem do desespero. "Tem de ser, Luís. Tem de ser."

Sempre às apalpadelas, encostou o banco à parede, pôs-se em cima dele e chegou com as mãos ao ferro frio das grades. Uma luz ténue brilhava lá fora. Esticando o nariz, concedeu-se um instante de trégua para saborear o ar e aspirar a brisa de liberdade que soprava por entre as árvores e lhe acariciava o rosto. Foram só alguns segundos, porque depressa retomou os movimentos.

Com as mãos a tremerem quase descontroladamente, passou duas vezes a faixa do lençol pelas grades, de modo a garantir a sua robustez, e formou um laço que fechou com dois nós. Puxou a faixa com força, testando a sua resistência. Aguentava. O coração era já um batuque dentro do peito, a respiração acelerada tornara-se ofegante e sentia dificuldade em controlar os movimentos das mãos. Antes que a coragem se esvaísse, pôs o laço ao pescoço, apertou o nó e, com tudo já a postos, deixou-se assim ficar um longo instante.

Faltava-lhe apenas uma última coisa. Teria de fazer um jeito com os pés e derrubar o banco.

Mas, agora que ali se encontrava, já depois de ter tudo preparado e a postos para o passo final, não se achava capaz de completar o acto. É ridículo isto que eu estou a fazer, pensou. Ridículo! Não vou resolver nada.

O pensamento acalmou-o um pouco e ajudou-o a regularizar a respiração. Ansiava pela libertação da fuga final, mas ao

mesmo tempo esperava a salvação. Era uma estranha ambivalência aquela que nesse instante o dividia. Sentia que não havia outro caminho, mas simultaneamente ansiava por uma intervenção redentora. Pôs as mãos no laço e preparou-se para o retirar, consciente de que já não seria capaz de voltar a pô-lo ao pescoço. Mas, no último instante, como se uma sombra negra lhe tivesse de súbito toldado o espírito, imaginou Amélia a desfiar toda a história diante de um polícia e anteviu a infame cadeia de acontecimentos que esse simples relato iria desencadear. Primeiro a verdade, depois a vergonha, por fim a desgraça.

Num assomo final de desvario, como um espírito rebelde que se revolta contra o destino marcado, fez força com os pés, sentiu o banco balouçar e desequilibrar-se e, com o abandono louco e cego de quem se lança sobre um precipício, no momento em que o apoio lhe falhou sob os pés sentiu toda a existência derramar-se-lhe num derradeiro sopro de vida.

"Amélia."

Epílogo

O corpo inerte do doutor Luís Afonso foi encontrado na madrugada seguinte quando o guarda fez a primeira ronda da manhã pelos calabouços da cadeia municipal de Penafiel. Vendo uma sombra pendurada na grade da janela, sacou atabalhoadamente a chave que guardava no molho, irrompeu pela cela e sentiu o pulso do recluso suspenso.

Nada.

Olhou em redor e viu um envelope sujo deitado sobre o lençol. Pegou nele e franziu o sobrolho ao verificar que não tinha destinatário. O sobrescrito estava em branco, embora fosse evidente que continha uma carta no interior. Sem tocar em mais nada, saiu da cela e foi telefonar ao director da cadeia, que lhe deu ordens para chamar o médico.

Meia hora mais tarde, uma pequena multidão formigava na cela. O médico desceu o corpo e, com a ajuda do guarda, estendeu-o sobre a cama, cobrindo-o com um lençol. Uma vez confirmado o óbito, o director mandou chamar o padre, que

chegou ao local em quinze minutos. De cruz na mão, o pároco benzeu o morto e, preocupado em saber quem deveria consolar, voltou-se para o director da cadeia.

"A família?"

"Ah, pois!", exclamou o director, fazendo um estalido com os dedos. "É preciso avisar a família!"

"O defunto era casado?"

"Sim", assentiu o responsável pela cadeia municipal, exibindo o envelope encontrado aos pés do recluso. "Deixou uma carta. Vamos entregá-la à mulher."

O padre pegou no envelope e estudou-o com um ar interrogativo.

"Mas isto está em branco", constatou. "Como sabe que é para a mulher?"

"Bem... na verdade não sei. O que sugere que façamos?"

Os dedos do pároco deslizaram para o canto do sobrescrito e um brilho coscuvilheiro cintilou-lhe nos olhos.

"Vamos abrir."

Sem deixar correr tempo que permitisse reconsiderar a sugestão, o padre rasgou o sobrescrito e extraiu do interior uma pequena folha dobrada em quatro. Desdobrou-a e, as sobrancelhas contraindo-se numa expressão perplexa, leu duas vezes as quatro linhas ali rabiscadas.

"Pobre diabo!", exclamou enfim. "Ficou tresloucado."

Incapaz de conter a curiosidade, o director da cadeia esticou o pescoço sobre o ombro do sacerdote e espreitou a mensagem que o recluso havia deixado.

"O que é isto?", admirou-se. "Um poema?"

"Sim, veja lá."

"Dorme, Mãe Pátria}", interrogou-se, lendo o início da primeira linha. "Que história é esta?"

"Leia tudo."

O director passou duas vezes os olhos pelo verso, tentando apreender o seu significado, e terminou a leitura com as sobrancelhas cerradas em desaprovação.

"Isto é antipatriota", concluiu, quase indignado. "Já viu isto, senhor padre? O gajo está a falar mal do país... como se o país tivesse alguma coisa a ver com as trapalhadas em que se meteu! Ele há com cada uma..."

O pároco abanou a cabeça e assumiu uma condescendente expressão de benevolência.

"O desgraçado já não devia dizer coisa com coisa, coitado", murmurou, a indulgência a jorrar-lhe pelos lábios. "Que o Senhor tenha piedade da sua alma e na Sua infinita misericórdia o acolha no Seu Reino."

Franzindo o sobrolho, o director apontou para o nome por baixo do poema.

"E isto aqui?"

"É o nome dele."

"Não, não", disse o director, abanando enfaticamente a cabeça. "Ele não se chamava Fernando Pessoa. Chamava--se Luís Afonso. Porque raio pôs outro nome debaixo do verso?"

O padre voltou-se para o corpo estendido na cama da cela e, o olhar a transbordar de piedade beata, benzeu-o uma última vez.

"Ensandeceu, pobrezito."

O funeral foi realizado dois dias mais tarde, em Vinhais. Toda a manhã no velório havia sido triste, com um temporal a entornar-se sobre a vila, as ruas abaladas pelo ocasional descarregar do trovão; dizia uma velhinha que era o céu a bradar pelo doutor Afonso e por tudo o que lhe tinham feito. Choveu durante todo o dia, mas, quando o féretro abandonou o hospital, a carga de água suspendeu a sua fúria, afastando-se com deferência para além do Montezinho, e um fio púrpura começou a salpicar as nuvens de sangue dócil.

Três dezenas de pessoas compareceram ao funeral, a maior parte vindas de Alfândega da Fé e de Penafiel. Foi uma cerimónia curta, mas digna, tão digna que nenhum animal pôde prestar homenagem ao homem que os amava; a ordem do responsável clínico foi de tal modo firme que nem o inconsolável cão do defunto foi autorizado a entrar no hospital ou a acompanhar o cortejo fúnebre.

Como se percebesse tudo o que se passava, Nilo desapareceu nesse dia e nunca mais foi visto. Joana devolveu Relâmpago ao exército e vendeu a casa de Vinhais para ir viver outra vez com o padrinho em Penafiel. Uma vez que o principal suspeito estava morto, o processo do homicídio do Tino foi arquivado e esquecido. A vida retomou o curso normal, embalada na doce rotina que se reinstalou com pacata bonomia.

Apenas Amélia nada esqueceu. Viveu o luto em silêncio, a dor a incendiar-lhe a alma, o segredo a secar-lhe os olhos. A pretexto de visitar as terras da família em Trás-os-Montes, aproveitou todas as oportunidades de que dispôs para dar um salto a Vinhais, e sempre que lá ia fazia questão de depositar uma rosa na campa de Luís.

Foi assim, numa dessas visitas, que teve conhecimento do estranho rumor que circulava entre os coveiros da vila. A roda de uma sepultura acabada de cobrir, as pás ainda sujas de terra húmida e as silhuetas recortadas contra o Sol poente, os homens revelaram-lhe que desde há algum tempo não se podia vir ao cemitério durante a noite. Diziam eles que era por causa dos monstros que por lá agora apareciam.


Porém, olhando os parceiros de esguelha, logo um dos coveiros corrigiu os restantes:

"Não são monstros, não senhor, que eu o vi muito bem, sou do Montezinho e topo-os à distância, pois então! É um lobo, ouviram? É um lobo que por cá aparece! E vai sempre para ali, camano! Bota-se à pela noitinha sobre a sepultura do deitor!"

Um lobo, vejam só!, exclamaram os outros com admiração. Anda um lobo a rondar o cemitério de Vinhais à noite!

Um lobo.

Percebendo a história como mais ninguém ali a podia entender, Amélia teve de voltar as costas para ocultar as lágrimas que de repente lhe marejaram os olhos, tão inesperadas como a água de uma onda traiçoeira a galgar a praia. Corria pelo cemitério um vento quente e seco, semeando remoinhos de pó por entre as campas; eram peões difusos a rolar com repentina fúria, como se o tempo se desfizesse da poeira dos dias que se finaram.

Desculpando-se com a súbita ventania que ali se levantara, Amélia afastou-se do grupo e foi derramar a saudade diante da lápide de Luís. Feria-a a memória daquele que por ela morrera, doíalhe a impotência que sentia perante o destino, afogava a revolta em fúria mal contida. Mas agora tudo isso superou porque sabia enfim que o seu homem não estava só, que ela não era a única que não o esquecera, que havia outro para quem Luís era mais do que uma simples memória.

Não havia lobo nenhum.

Era Nilo que zelava pelo dono.


Dorme, mãe Pátria, nula e postergada E, se um sonho de esperança te surgir, Não creias nele, porque tudo é nada, E nunca vem aquilo que há-de vir.

FERNANDO PESSOA


Agradecimentos

Este romance foi possível graças ao generoso contributo de um punhado de pessoas a quem me sinto na obrigação de deixar o meu grato reconhecimento. O coronel Fernando Freire, da Academia Militar, pelas informações relacionadas com o recrutamento e a missão dos alferes veterinários e com o regimento de Penafiel; a minha prima Adelaide Galhardo, da Biblioteca de Penafiel, pela documentação sobre a cidade; os arquivistas da Torre do Tombo, pelo auxílio com os arquivos da PVDE; a minha amiga Montse Besada e a tradutora da TV Galicia, Luz Mendez, pela prestável ajuda no galego e no castelhano; Patrícia Escalona, da minha editora espanhola, Roca Editorial, pela revisão final do castelhano; a minha mãe, Maria Manuela, e a minha tia, Rosalina Rodrigues dos Santos, pelas histórias de família que serviram de ponto de partida para a aventura que saltou da minha imaginação; o meu editor, Guilherme Valente, e toda a equipa da Gradiva, por todo o profissionalismo e empenho na produção desta obra; e, sempre acima de tudo, a Florbela.


Загрузка...