II
O apetite só lhe veio ao pequeno-almoço do dia seguinte e, mesmo assim, com uma moderação que deixou dona Hortense rubra de tão escandalizada.
"Concho!", exclamou, levando as mãos gordas ao rosto corado. "aquase que me dá um fanico de o ver assim a modos que estrelicado! Um moço tão peleiroso como o menino precisa de gafar melhor, ouviu? Senão falta-lhe a genica e nunca chegará a deitor!"
"O dona Hortense, não vale a pena exagerar. Bebi o leite e comi o papo-seco, não foi?"
"É pouco."
Luís arrastou a cadeira para trás e ergueu-se.
"Chega-me perfeitamente", disse. "Agora tenho de ir para o liceu, já se fazem horas."
"O quê?", admirou-se ela, seguindo-o com os olhos contrariados. "Mas ainda falta uma hora para as aulas começarem. Para quê essa pressa toda, valha-me Deus?"
"Tenho muito que fazer."
"Ai tem, tem. E a primeira coisa que tem a fazer é comer. Lembre-se que o menino não gafou nada ontem à noite. Devia ao menos levar uma merendinha."
"Não é preciso."
Dona Hortense virou-se e dirigiu-se à cozinha.
"Desculpe, mas tem de ser", insistiu. "Onde é que já se viu ir assim para a escola? Vou ali pedir à Graciete que lhe bote na cestinha as sobras do cozido e um chouricinho de mel."
"Não quero."
Mas a dona da pensão já nem o ouvia e desapareceu para além da porta.
"Ó Graciete! Gracieeeete!"
"Senhora?", respondeu uma voz longínqua.
"Preparas aí uma merendinha para o menino Luís, ora preparas?"
"Sim, senhora."
Percebendo que a preparação da merenda se iria eternizar, Luís pegou apressadamente na mala, que deixara encostada à parede do corredor, e correu lá para fora.
"Até logo!"
"Espere!", gritou dona Hortense da cozinha, apercebendo-se de que ele saía. "Espere pela merendinha, valha-me Deus."
A voz dele desaparecia já na rua.
"Adeus!"
A dona da pensão veio à porta da hospedaria, a sua figura larga a encher a entrada, e ficou a vê-lo descer a rua.
"Aiche, onde é que já se viu isto?", protestou ela, abanando a cabeça com uma expressão reprovadora, os braços à ilharga em pose afirmativa. "Olhem-me o moço, credo!
Parece endiabrado!" Esticou o pescoço gordo e atirou em voz alta, na esperança de ainda ser ouvida: "Se a sua tia sabe, vai-lhe ler a panjelíngua! Ai vai, vai!"
Alheio à voz que se esganiçava lá para trás, Luís estugou o passo em direcção ao liceu.
Na verdade, não ia atrasado; tinha era pressa de chegar cedo. A excitação acelerava-lhe os movimentos, queria espreitá-la a entrar no edifício e adivinhar-lhe no rosto se pensara tanto nele como ele pensara nela.
Passou à frente de duas lojas e, abrandando, mirou-se no reflexo das vitrinas. Ia janota, o cabelo liso bem penteado para o lado, o corpo alto e elegante, o vestuário claro impecavelmente arranjado; não parecia o transmontano que era, mas um lisboeta que acompanhava a moda parisiense. Tivera o cuidado de vestir nessa manhã as suas melhores roupas e fez uma nota mental para, de tarde, dar um salto ao alfaiate e comprar calças e camisas ainda mais vistosas do que aquelas que trazia agora. Talvez até uma água-de-colónia.
Retomou a marcha e, como planeara, chegou cedo ao liceu. O movimento era ainda lento àquela hora matinal e Luís ficou cá fora a contemplar as chegadas. Os alunos vinham ainda a conta-gotas, a maior parte a pé, alguns de bicicleta, um ou outro era largado por um carro. Mas a manhã nascera fria e a exasperante inactividade da espera começou a deixá-lo gelado, pelo que, a contragosto, decidiu aguardar no interior. Não era decerto ao borralho, mas sempre se estava melhor.
Alguns colegas de turma vieram ter com ele para combinar um jogo de trincassuada no recreio, mas, de modos impacientes e olhar distraído, Luís não alimentou a conversa e eles acabaram por ir procurar parceiros para outro lado.
A medida que a hora do início das aulas se aproximava, o pingar de entradas foi-se intensificando até que se tornou corrente, era já um caudal de gente que afluía sem cessar pela
porta, numa crescente animação, a algazarra enchendo agora o pátio do liceu. Luís perscrutou com impaciência a multidão de rostos jovens e procurou Amélia a cada face, a cada corpo, a cada voz. Mas não a viu.
O primeiro toque soou e ele suspirou, decepcionado. Deu meia volta e percorreu apressado o corredor em direcção à sala. O dia começava com Matemática e nem pensar em chegar atrasado. O professor Marques não era para brincadeiras.
Seguiu a aula distraidamente, prestando à matéria a atenção mínima que a cautela requeria. Tomou os apontamentos que precisava de tomar, mas os olhos fugiam-lhe amiúde para a janela, como se na rua encontrasse a resposta para a raiz quadrada da equação seguinte. Da janela os olhos voavam para o relógio, do ponteiro dos minutos para o professor, da figura esguia do professor Marques para o caderno e de novo para a janela.
Uma deliciosa impaciência ruminava-lhe no peito; queria vê-la e não havia meio de a aula terminar, tinha a impressão de que nunca uma hora lhe parecera tão longa.
Foi só ao segundo intervalo, entre as aulas de Biologia e Desenho, que deu com Amélia.
Estava encostada a uma parede à conversa com duas amigas e ria-se com uma alegria desprendida. Luís sentiu um baque no peito ao vê-la assim tão contente. Como é que ela se consegue rir?, interrogou-se, perturbado. Então ando eu aqui de rastos, a morrer de impaciência por lhe pôr os olhos em cima, e ela a rir-se? Fitou-a com apreensão, preocupado com a possibilidade de ter interpretado mal as reacções dela na véspera, fazendo tábua rasa de tudo o que excitadamente concluíra ao longo de todas aquelas horas em que estivera fechado no quarto. Será que lhe sou indiferente? Serei eu apenas mais um?
Procurou-lhe os olhos, mas ela mantinha-se embrenhada na conversa com as amigas. Parecia divertida e ria-se e sorria com frequência. Do que se ri ela? Será de mim? Perscrutou-a com atenção, tanta que a perturbação se evaporou e a mente se deixou enlevar pelo brilho que dela emanava. Que sorriso tão bonito, pensou. Tão bonito, parece que cintila! Quando ela sorria, não era só a boca que sorria, eram os olhos, as bochechas, todo o rosto, o corpo inteiro. Abanou a cabeça, quase desesperado. Realmente, como posso eu atrever-me a desejar uma coisa assim tão bela?
Suspirou, o peito oprimido pela angústia.
Foi então que os olhos se cruzaram.
Amélia deixou um sorriso suspenso enquanto o seu olhar cor de mel pousava em Luís. A graça parecia soltar-se-lhe naquele olhar. Viu-o, acenou timidamente e voltou a atenção para as amigas, mas com o ar algo comprometido.
Algumas notaram o gesto e viraram para ele as atenções, para logo se multiplicarem em risinhos e em murmúrios excitados.
"Olha para ele, olha para ele!", cacarejou uma voz no meio do pequeno tumulto.
"Onde?"
"Ali, parva!"
Risinhos.
Apanhado de surpresa pelas vozes indiscretas que flutuavam no corredor, Luís percebeu que falavam dele. Sentiu-se um animal enjaulado no zoológico e lidou mal com o desconforto.
Embaraçado e irritado por se ter tornado objecto de tanto comentário mexeriqueiro entre as raparigas, voltou as costas e afastou-se com gestos alheados, como se a troca de olhares com Amélia tivesse sido acidental, coisa demasiado insignificante para justificar tão grande alarido.
III
Andou dias à procura de uma oportunidade, mas as coisas pareciam difíceis e a possibilidade de conseguir um momento a sós com Amélia escapava-se-lhe. Até que, na semana seguinte, quando já desesperava, a apanhou sozinha num intervalo das aulas, debruçada sobre um livro volumoso na biblioteca do liceu. A biblioteca estava quase deserta e, enchendo-se de coragem, o ritmo cardíaco acelerado e a garganta subitamente seca, Luís aproximou-se e sentou-se ao lado dela.
"Ora viva", saudou, surpreendido com o seu próprio atrevimento. "Por aqui?"
Ela olhou-o com uma expressão de admiração e corou ao reconhecê-lo.
"Olá", devolveu, baixando de imediato os olhos para o livro, o ar muito comprometido.
Ele inclinou o rosto para o volume que ela tinha aberto sobre a mesa de madeira.
"Então? A estudar?"
"Sim."
"Está a ler o quê?"
Ela ergueu os olhos e girou o rosto em redor da biblioteca, como se receasse ser vista por alguém.
"Por favor, as minhas amigas podem aparecer a qualquer momento."
"E então? Elas comem-nos?"
"Não, mas... mas podem aparecer."
"Que eu saiba, não estamos a fazer nada de mal, pois não?"
Amélia pareceu por momentos ter perdido as palavras, como se o que quisesse dizer fosse tão óbvio que nem precisasse de ser dito.
"Elas vão comentar", observou por fim.
"E depois? Não me diga que tem medo daquelas galinhas..."
Ela soltou um riso nervoso.
"Não é isso. Mas são minhas amigas... Vai haver falatório, já sabe como é."
Luís torceu a boca.
"Eu pensei que você também fosse minha amiga..."
Amélia calou-se, sem resposta, e fixou de novo a atenção no livro. Assim sentada, serena e inatingível, dava a impressão de ser o tipo de rapariga que apenas se vislumbra num palacete distante, o perfil recortado pela neblina, os cabelos incendiados por halos de luz crepuscular.
Luís sentiu que tinha de forçar uma decisão. O burburinho dos últimos dias entre as raparigas e o quase distanciamento de Amélia machucavam-lhe o orgulho e enchiam-no de ansiedade. Passava tardes inteiras a considerar se lhe era ou não indiferente e tinha de pôr fim a essa angústia permanente. Precisava a todo o custo de clarificar a situação e aquela era a oportunidade para o fazer. Tinha ou não hipóteses com ela? Valeria a pena suspirar sempre que a via? Sentia o coração aos pulos no peito e a respiração oprimida, receando a resposta à sua tormentosa dúvida, apavorado com a incerteza, mas mesmo assim não deixou de formular a pergunta.
"Quer que eu me vá embora?"
A rapariga ficou um instante calada, como se quisesse desaparecer nas páginas do livro que fitava mas não lia. Encolheu-se toda e sussurrou num fio de voz quase inaudível:
"Pode ficar."
Foi como se uma explosão de luz e cor enchessem a biblioteca. Luís sentiu um peso desprender-se de si e tornar-se leve como as páginas do livro aberto sobre a mesa. A rapariga mais bonita do liceu aceitava a sua companhia, deixava-o ficar ali com ela. O dia pareceu-lhe mais belo, a vida mais intensa, o ar mais puro.
Inebriado com a resposta, abriu o rosto num imenso sorriso e respirou fundo.
"Sabe quem é que você me faz lembrar?"
Amélia ergueu os olhos interrogativamente para ele.
"Quem?"
"A May McAvoy."
Ela franziu o sobrolho, como se nada daquilo fizesse sentido.
"A mãe e a maca da avó?"
Luís reprimiu um sorriso e arregalou os olhos, fingindo-se escandalizado.
"McAvoy. A May McAvoy."
"Não conheço."
"Não viu o Ben-Hur?"
"Claro que vi."
"A May McAvoy é a actriz principal."
Os olhos de Amélia iluminaram-se com a comparação.
"Ah, já sei. Aquela do..." Corou. "É... é bonita."
Luís riu-se.
"Bonita? É lindíssima!" Inclinou a cabeça, como se a avaliasse. "Acho que é esse seu ar meio melancólico, meio sonhador." Estreitou as pálpebras enquanto fazia a comparação mental. "Sim, você é a cara chapada da May McAvoy."
Amélia, que tal como ele se descontraía a olhos vistos, curvou os lábios rosados e simulou um ar amuado.
"Se quer que lhe diga, estou ofendida consigo."
"Porquê?"
"Esperava que me comparasse com a Garbo. Não são os homens que dizem que a Greta Garbo é a mais bela de todas?"
O rapaz abanou a cabeça, enfático.
"Nem pensar! Para mim, a May McAvoy é a mais bonita."
"A sério? Mais bonita do que a Greta Garbo ou a Gloria Swanson?"
"Ui, muito mais!"
"Ah, então está bem."
Fez-se silêncio. Luís endireitou-se, satisfeito com o piropo que acabara de lhe atirar e sobretudo com a reacção de Amélia. Ela parecia agora mais à vontade e calorosa, o que lhe dava maior confiança.
"E eu?", perguntou Luís.
"Você o quê?"
"Eu pareço-me com quem?"
Amélia fixou-lhe as linhas da face e fez um ar pensativo, como se considerasse a semelhança mais adequada. Passou os dedos pelos lábios e franziu os olhos, apreciando-lhe as linhas quadradas do rosto, a pele lisa de marfim, os cabelos castanho-claros a refulgir contra o hálito de luz, o olhar sonhador a emprestar um suave toque de poeta ao semblante másculo.
"Ah, já sei!"
"Quem?"
Voltou a franzir os olhos.
"Você parece-se com o... o... como é que ele se chama?"
"O Rudolfo Valentino?"
Ela soltou uma gargalhada.
"Não", disse. "O Carmona!"
"Quem?"
"Aquele que foi eleito no ano passado." Apontou para o quadro pregado na parede da biblioteca, exibindo a figura austera do presidente da República em farda militar, as medalhas a lampejarem-lhe ao peito como as penas vistosas de um pavão. "O Carmona!"
Luís observou a fotografia exposta no quadro, um homem de cabelo e bigode brancos, os malares salientes no rosto gasto e macilento, e esboçou um esgar incrédulo.
"Eu? O Carmona?"
Ela ria-se.
"Sim."
"A Amélia está a reinar comigo, não está?" Apontou para o quadro. "Onde é que eu me pareço com o Carmona?! Olhe para ele! É um velho jarreta!"
Mais risos.
"Então é o Carmona quando era novo."
"Ora bolas! O Carmona é feio!"
Amélia inclinou-se para ele, provocadora.
"Como sabe? Porventura aprecia a beleza dos homens?"
"Eu não", apressou-se Luís a dizer, preocupado em afirmar a sua masculinidade. "Mas...
enfim, parece-me que o Carmona nunca entraria numa fita americana... acho eu."
"Pois nunca se pode ter a certeza. Às vezes é preciso botar alguém para o papel de mau, não é?"
Desconcertado com a resposta, Luís baqueteou os dedos pela madeira da mesa.
"Hmm... não me diga que se interessa pela política."
"Um bocadinho. Escuto as conversas."
O rapaz observou-a com mais atenção, fascinado. Aquela moça tinha algo de especial, era um je ne sais quoi que a tornava diferente, como se uma aura própria a envolvesse. Os olhos lânguidos e o sorriso insinuante incendiavam-lhe o rosto e inflamavam-lhe o corpo.
"A sério?"
"Hmm-hmm."
Considerou aquela revelação.
"Nunca conheci uma rapariga que se interessasse pela política."
Ela observou-o pelo canto do olho, com ar atrevido, segurando-lhe a atenção.
"E eu nunca conheci um rapaz que se parecesse com o Carmona."
"Já vi que tem resposta para tudo."
A rapariga soltou uma gargalhada.
"É o que diz a minha mãe. Sou respondona."
Esforçando-se por não parecer hipnotizado por Amélia, Luís levantou de novo os olhos para o quadro, fitando a figura emproada do presidente da República.
"A sério que me pareço com ele?"
Amélia abanou a cabeça.
"O que acha?"
"Quer dizer, eu acho que não."
"Claro que não", concedeu. "Você parece-se consigo mesmo, não há ninguém que se lhe assemelhe."
"Nem mesmo o Rudolfo Valentino?"
Ela voltou a rir-se, uma deliciosa expressão trocista a bailar-lhe nos olhos.
"Pff... não exagere!"
Foi nessa altura que soou o toque a anunciar que era hora de irem para as aulas. O
burburinho recrudesceu lá fora e Amélia, quase num salto, agarrou no enorme volume que consultava, colocou-o na estante e escapuliu-se da biblioteca.
"Até logo!"
"Vemo-nos depois no recreio?"
Já no corredor, ela deitou-lhe um olhar traquina.
"Porque não?"
Passaram a encontrar-se todas as manhãs, antes do primeiro toque no liceu e nos intervalos das aulas. A princípio sentiam dificuldade em arranjar tema para conversa, tão acanhados ficavam um diante do outro, mas com o tempo foram ganhando à-vontade e as palavras começaram a fluir com naturalidade.
Passaram a tratar-se por tu e descobriram que várias pequenas coisas os uniam, entre elas a idade, uma vez que ambos tinham dezassete anos. Mas partilhavam também a orfandade. Luís perdera o pai aos cinco anos e a mãe no ano anterior; Amélia ficara sem o pai aos seis anos.
"Morreu com os gases", explicou ela num intervalo entre a aula de Aritmética e a de Português.
"Quais gases?"
"Os da guerra, claro. O papá era cabo no regimento 10, aqui de Bragança, e foi para França combater quando eu tinha quatro anos."
"Lembras-te dele?"
"Não, nem por isso. Ele é, na minha memória, um mero vulto." Torceu a boca e adoptou uma pose pensativa. "A única coisa de que me lembro é, aos seis anos, de o ouvir a tossir.
Tossia, tossia, tossia, aquilo fazia impressão. Parecia
que os pulmões lhe iam sair pela boca, coitado. Até que um dia a minha mãe veio ter comigo e disse-me que ele tinha ido para o céu."
"Ainda te lembras da cara dele?"
Ela baixou a cabeça.
"É horrível, não é? Só me lembro dele pelas fotografias que a minha mãe guarda no quarto."
"E como era?"
"Oh, bonito, claro."
Luís fez beicinho.
"Mais do que eu?"
Amélia riu-se.
"Bem... tenho de pensar nisso", devolveu, diplomática. "Sabes, a minha mãe diz que os antepassados do papá vieram de Itália. E, não sei se já te disseram, mas os italianos..."
"Ai sim? Pois o meu pai tinha galegos lá para trás."
"Não me digas! E ainda tens nome galego?"
"Bem... quer dizer, o meu nome completo é Luís António Afonso. O Afonso vem de Alonso, era de um trisavô mas foi aportuguesado..."
"Ora, batatas! Que eu saiba, o sangue italiano é mais chie do que o galego!"
"Pois sim", assentiu Luís, sem vontade de entrar numa competição peloo pedigree internacional dos antepassados. "Quando morreu o teu pai?"
"Após a guerra, meses depois de ter voltado para casa. Foi em 1920, já lá vão nove anos."
"Portanto, tu ficaste filha única."
"Claro que não."
Ele arregalou os olhos.
"Tens uma irmã?"
"Tenho, pois. É três anos mais nova do que eu."
"Ai é? Mas eu ainda não a vi."
"É porque não vive cá. Está em casa do padrinho, que enviuvou. Mas a minha mãe quer trazê-la no próximo ano para Bragança."
Luís assentiu com a cabeça.
"Hmm... sim senhora, muito me contas", disse. "E irmãos?"
"Não... quer dizer, sim."
Ele sorriu.
"Não, sim. Em que ficamos?"
"Tenho uma espécie de irmão."
"Mau, não entendo nada."
"Foi um ano depois de a minha irmã nascer", explicou Amélia. "O meu pai tinha partido para a França e a minha mãe andava muito desorientada. Nessa altura, o padre Nogueira veio ter com ela e disse que tinham abandonado um bebé lá na igreja. A minha mãe foi lá vê-lo e... e ficou com ele."
"E o que disse o teu pai quando voltou?"
"Não ficou lá muito contente..."
Luís soltou uma gargalhada.
"Aposto que não. Como se chama o miúdo?"
"A minha mãe chamou-lhe Francisco. O Chico tem onze anos, mas um corpo de homenzinho, havias de ver. Tem ar de brutamontes. A minha mãe chama-o sempre que é preciso carregar qualquer coisa."
"E a tua mãe? Depois da morte do teu pai, não voltou a casar?"
Amélia fez um ar indignado.
"A minha mãe? Casar?" Ergueu o dedo, como quem emite uma sentença. "Pois fica sabendo que, na minha família, só há mulheres de um único homem." O dedo estremeceu.
"De um único homem."