V
Quando soaram os primeiros estampidos do dia, secos e longínquos, a única reacção visível foi a dos pássaros. As andorinhas e os estorninhos ergueram-se em nuvens irrequietas; eram bandos que emergiam da copa das árvores e dos fios eléctricos e telefónicos e esvoaçavam em vagas desorientadas, ora nesta direcção, ora na contrária, como folhas perdidas ao sabor do vento.
Atraídos pelo barulho das detonações, o capitão Mário Branco, o alferes veterinário Luís Afonso e um pequeno grupo de oficiais do regimento de Viana do Castelo convergiram para as ameias de um dos fortes de Valença do Minho e espreitaram para o casario do outro lado do espelho azul e prateado do rio Minho. Na margem norte estendia-se a terra verde da Galiza, tão verde como o Norte de Portugal. Os pontos brancos com telhados de um vermelho cor de tijolo eram as casas de Tui, o derradeiro bastião da república naquela região de Espanha.
"Estão outra vez aos tiros", observou o capitão Branco.
"É sempre a mesma coisa", retorquiu Luís com um encolher de ombros. "Ouvem-se uns tiritos, mas acaba por não acontecer nada."
"Olhe que desta vez é diferente", argumentou o capitão. Apontou para a ponte. "Está a ver os comunistas na ponte? Parecem mais nervosos do que de costume..."
De facto, uma pequena multidão de homens armados formigava junto à entrada norte da ponte internacional, procurando refúgio por detrás de muros de tijolo que tinham sido erguidos nos últimos dias. Concentrava-se ali mais gente do que o habitual; um furriel português contabilizou, da margem sul do rio, cerca de quinhentos homens do lado galego da ponte, embora talvez esse número fosse exagerado. A multidão vagueava por trás dos muros, num frenesim agitado; viam-se homens a correr de um lado para o outro. A dado momento soaram mais alguns tiros, mas a calma depressa voltou.
Convencidos de que a animação havia acabado, os oficiais portugueses desceram da muralha do forte e percorreram as ruas empedradas de Valença do Minho. O passeio terminou diante de um pequeno restaurante do bairro velho, onde foram almoçar; o prato forte à mesa era, naturalmente, o que se passava do outro lado da fronteira e em particular o momento em que tudo se precipitaria.
"Acha que a coisa está para breve?", perguntou Luís, que das coisas militares nada percebia.
O capitão Branco pegou na garrafa e despejou mais vinho no copo.
"Isto ainda vai levar tempo", vaticinou, engolindo um trago. "Ah, maravilha! Bela pomada!"
Olhou para Luís e exibiu-lhe a garrafa. "Você não quer mais?"
"Fico-me com o que já tenho no copo, "obrigado."
"Faz mal!", exclamou. "Um copo de vinho dá de comer a um milhão de portugueses!"
"Dizem eles."
"E é verdade." O capitão ergueu o copo. "Beber vinho engrandece a economia nacional. Você não viu as minhas duas quintas? O que seria delas se ninguém gostasse da pingoleta?"
"Produziam batatas."
"Quais batatas! O vinho é que é bom! Além do mais, dizem que é um alimento de primeira ordem e que está cheio de vitaminas."
Luís meteu o garfo à boca e espreitou pela janela do restaurante.
"De vitaminas vamos nós precisar para aguentar esta chatice. Será que a guerra não acaba?"
"O homem, tenha calma!", sorriu o capitão Branco. "Ela ainda mal começou."
Uma vez concluída a refeição, voltaram para o forte e foram espreitar de novo a ponte internacional. A multidão armada permanecia entrincheirada na parte norte do tabuleiro, enquanto as ruas de Tui se apresentavam desertas, despidas de vida, entregues ao vento estival que nesse dia soprava de sul e transformava a povoação numa lúgubre e triste cidade fantasma.
Uma rajada de metralhadora rasgou o silêncio e lançou a confusão entre os homens armados que se concentravam junto à ponte. Uma nuvem de fumo ergueu-se perto de um muro de tijolo, seguida de um roncar cavado; era o som da explosão que chegava, ao retardador, ao lado português.
"Eh lá!", exclamou o capitão Branco. "Isto agora está a aquecer!"
"Recomeçaram", constatou Luís. "Pelos vistos vai ser mais rápido do que o meu capitão previa..."
"Tenha calma", disse o capitão. "Ainda é cedo para tirar conclusões. Mas é verdade que parece que estavam à espera que acabássemos de almoçar para se porem a dar bordoada a sério..."
O sargento Guedes riu-se.
"Se calhar também pararam a guerra para almoçar. Agora vem a sobremesa..."
O capitão Branco mirou o subalterno com ar agastado.
"Nosso sargento, dispensamos os seus comentários."
O diálogo depressa foi interrompido pelo agravar da situação no lado galego. Viram-se, e ouviram-se, novas explosões; uma granada sobrevoou o rio Minho e deflagrou no meio de Valença do Minho, erguendo um penacho de fumo negro por entre o casario da povoação portuguesa. Para o grupo de oficiais instalado junto às ameias do forte, esta detonação marcou o momento em que os combates deixaram de ser um inofensivo espectáculo que decorria do outro lado do rio e se tornaram uma preocupação séria.
Alguns militares abandonaram apressadamente o forte e precipitaram-se para junto da ponte, mas Luís ficou para trás a observar os acontecimentos daquele ponto privilegiado. O capitão Branco enviou uma ordenança para o local da explosão e o homem voltou pouco depois com a notícia de que a granada tinha feito dois feridos ligeiros, já enviados para o posto. Nada de muito grave.
As metralhadoras voltaram entretanto a costurar na margem espanhola, desta vez com crescente intensidade. A multidão de homens armados encolhia-se junto ao tabuleiro norte da ponte, por detrás dos muros de tijolo, e respondia ao fogo que convergia sobre ela; mas os seus tiros eram esporádicos, quase anárquicos, contrastando com o tiroteio nutrido que batia as suas posições. Viam-se alguns corpos caídos, como sacos abandonados no chão; eram já restos desamparados, pedaços de carne estendidos ao sol, inertes, sem vida.
Instalados na sua margem como se estivessem no balcão de um animatógrafo, os portugueses tudo observavam com pasmo. Viram um carro blindado emergir de uma ruela do lado galego, acompanhado por vultos esverdeados a pé, homens que curvados; pareciam corcundas minúsculos.
Eram as tropas nacionalistas que se acercavam da ponte, preparando-se para o golpe final.
O aparecimento desta força teve um profundo impacto junto da multidão que defendia a ponte.
Ouviu-se um clamor, o pânico libertado por dezenas de gargantas, e primeiro cinco, depois dez, depois vinte, depois quarenta, cada vez mais homens abandonaram os muros de tijolo e desataram a correr, em desespero; tornaram-se uma manada em fuga, atropelando-se pelo tabuleiro num alvoroço descontrolado. Convergiram para sul, em direcção a Valença do Minho, rumo a Portugal, em busca da salvação, como alguém que se está a afogar e no derradeiro momento emerge à superfície em busca desesperada de ar, numa arrebatada e violenta pulsão de vida.
Portugal era o ar.
A vida.
"Desarmem-nos!", ordenou o capitão Branco aos seus homens, apontando para a multidão que atravessava desordenadamente o tabuleiro da ponte.
Os soldados portugueses colocaram-se em posição de tiro, aguardando a chegada dos fugitivos.
Os primeiros milicianos galegos cruzaram a fronteira portuguesa e deram com uma barreira de soldados portugueses.
"Non díspar enV\ gritou um dos fugitivos no que parecia um português espanholado. "Somos irmáns! Somos galegos!'
"Alto lá!", ordenou o capitão Branco aos recém-chegados. "Larguem as armas!"
Os milicianos deixaram cair as espoletas, as pistolas, as facas, as foices e os ancinhos. Tornava-se ali evidente que o seu armamento era ridiculamente deficiente; não tinham quaisquer hipóteses diante de um exército organizado como aquele que terminava agora a ocupação de toda a cidade de Tui.
"Somos galegos", insistiu o mesmo homem, os olhos sombreados de olheiras e a barba por fazer havia vários dias. "Somos irmáns, non somos casteláns!"
Os fugitivos foram todos arrebanhados e o capitão deu ordem para que os levassem para o forte.
Tinham já sido improvisadas instalações para acolher refugiados; a ideia inicial era proteger civis e nacionalistas que tivessem necessidade de abrigo, mas afinal, e conforme previra em Penafiel o coronel Silvério, as instalações seriam usadas para albergar hóspedes diferentes, os milicianos leais à república.
Os tiros pararam no outro lado da margem. O exército revoltoso ocupava enfim toda a cidade.
Alguns homens puseram-se a arrastar os corpos dos milicianos mortos para junto de um candeeiro e, quase de seguida, apareceu um camião militar no local, para cuja carga os cadáveres foram atirados como sacos. Terminada a limpeza, o camião arrancou e desapareceu nas ruelas de Tui.
Os civis iam, entretanto, aparecendo, alguns com a bandeira de Espanha. Ao fim de algum tempo, quando os populares já eram tantos que perfaziam uma multidão, surgiram insígnias e braceletes da Falange. Os simpatizantes fascistas espanhóis vitoriavam o exército por entre crescentes aclamações em coro.
"Arriba Espana!", gritava a turba num coro que se escutava, forte, da margem sul do rio.
"Arriba!"
À noite, quando iam a caminho dos quartos que tinham ocupado para boleto em Almendralejo, Francisco e Juanito passaram diante da esquadra da Guardiã Civil. Um grupo de mulheres, todas vestidas de negro, aguardava à porta, algumas chorosas, a maior parte em silêncio.
"Quem são estas?", perguntou o português ao companheiro.
"São as mulheres dos rojos."
"Dos comunas? São mulheres dos comunas?"
"Sim. Eles estão presos lá dentro. Vão ser fuzilados."
"E elas?"
"Elas? Cofio, estão ali a ver se alguém tem pena delas e os liberta."
Francisco parou e consultou o relógio. Faltavam duas horas para ambos começarem o turno de cerco à igreja. Era tempo suficiente para o que lhe apetecia fazer.
"Juanito, vai andando, vai andando", disse, voltando as costas ao companheiro. "Eu já vou ter contigo."
Aproximou-se do grupo de mulheres e estudou-as com atenção. A maior parte tinha um ar gasto, três estavam grávidas, mas havia duas que lhe pareceram mais bonitas. Agarrou no braço de uma delas, uma morena alta e bem proporcionada, e puxou-a para si.
"Anda cá, espanholita."
"Larga-me, bruto!", protestou ela.
Um coro de revolta ergueu-se do grupo, mas Francisco mostrou-se indiferente. Saiu dali arrastando a morena aos gritos atrás dele. Duas mulheres mais idosas seguiram-no, berrando para que libertasse a morena, mas o português rodopiou e desferiu um soco brutal na mais próxima, que tombou inerte no chão. As restantes perceberam a mensagem e, apesar dos gritos de protesto e dos insultos, não se atreveram a segui-lo mais.
Francisco calcorreou as ruas sombrias de Almendralejo, sempre a arrastar a morena, que se debatia em desespero. Isso era--lhe, porém, indiferente; tinha de a possuir e possuí-la-ia. A última vez que tivera uma mulher havia sido duas semanas antes, no prostíbulo do quartel de Dar Riffien.
Descobrira o sexo no ano anterior, nos bordéis frequentados pelos legionários, mas até ali apenas pudera usufruir de marroquinas, berberes e uma negra do Sudão, todas elas experimentadas numa cantina do acampamento da Legião ou no barrio de pecadoras da povoação. Aquela espanhola iria ser a sua primeira europeia.
"Cala-te, espanholita", rugiu para trás, já cansado dos gritos. "Já te vou dar o que mereces."
A morena hesitou, momentaneamente assustada com o tom raivoso das palavras, mas logo recomeçou a lutar, tentando hbertar-se da mão forte do português.
"Cabrón! Hijo de una puta!", praguejou. "Larga-me!" Rodou a cabeça para os lados, em procura de auxílio.
voltou a gritar a plenos pulmões. "Socorro! Quem me ajuda? Socorro!"
Francisco não se sentia minimamente preocupado com a possibilidade de alguém a acudir. Ela era mulher de um comunista e ninguém, mas mesmo ninguém, lhe roubaria o prazer de a desfrutar.
Os berros, no entanto, acabaram por enervá-lo. Irritado, puxou-a com um esticão, de modo a posicionar-lhe a cabeça ao alcance da mão, e desferiu-lhe uma sonora estalada na face. A mulher calou-se, estonteada, e logo se afogou numa avalanche de soluços; parou de lutar e dei-xou-se arrastar pela rua escura, resignada ao seu destino.
Quando chegou ao quarto, o português acendeu uma vela e atirou a mulher para cima da cama.
As sombras oscilavam nas paredes, embaladas pela dança da chama amarelada. Arfando de desejo, o legionário tirou as calças. Ao vê-lo despir-se, a morena pareceu recuperar energia e recomeçou a gritar. Francisco segurou-a pelo pescoço, puxou-a para si e fixou-lhe os olhos.
"Ouve, minha grande puta", rosnou, ameaçador, o nariz quase colado ao dela, as palavras saindo-lhe entre os dentes. "Se voltas a fazer barulho, mato-te depois de te usar." Ergueu uma sobrancelha. "Entendes?" Deixou a ideia assentar. "Mas, se te portares bem e eu no fim ficar contente, então talvez vivas."
A mulher devolveu-lhe o olhar, assustada, e percebeu que ele não brincava. Calou-se. Francisco atirou-a de novo para a cama, arrancou-lhe as saias e, sem mais delongas, impaciente e ofegante de desejo, mergulhou nela com violência, como um animal esfaimado. Satisfez-se por três vezes no espaço de duas horas e só a largou quando chegou a altura de voltar ao posto.
A noite em torno da igreja decorreu calma, tal como o dia seguinte. Disparavam-se tiros, explodiam granadas, largavam-se rajadas e trocavam-se insultos. No essencial, porém, tudo se mantinha na mesma: os legionários a rodearem o santuário, os milicianos entrincheirados lá dentro.
O comando permanecia na expectativa de vencer os sitiados pela fome e pela sede, mas, com o tempo, começou a tornar-se óbvio que a espera poderia alongar-se.
Foi Juanito quem deu a notícia a Francisco. Era o final da manhã do dia 10 e o turno estava a chegar ao fim quando o espanhol, que havia abandonado o ninho de metralhadora para se ir refrescar, regressou para junto do companheiro com ar excitado.
"Vamonos, hombre!"
"Vamos onde?"
"Vamos a Mérida; caray."
"Vamos à merda?"
"A Mérida!"
O português esboçou um gesto na direcção da igreja diante deles.
"Então e os comunas? Ficam sozinhos?
"Que te interessa isso? Vamos embora, hombre!"
"Mas porquê?"
"É Castejón! Já está a bombardear Mérida!"
"E então?"
"Asensio não pode deixar Castejón passar-nos à frente! Se as banderas de Castejón avançam, nós também temos de avançar. As forças do Sul têm de se encontrar com as do Norte e Mérida fica no caminho."
Francisco ergueu-se do ninho de metralhadora e alongou o corpo, sentindo-o dorido por permanecer demasiado tempo na mesma posição.
"Esta terriola também fica no caminho e, que eu saiba, ainda não foi toda conquistada."
"Não te preocupes, hombre. A I Bandera vai deixar aqui uma companhia para tratar dos rojos."
Bateu com o indicador no relógio. "O resto do pessoal tem uma hora para se apresentar diante dos camiões."
"Uma hora?"
"Si. Asensio diz que estamos aqui a perder tempo." Fez um gesto com a mão. "Vamonos, Paço!"
"Voltas a chamar-me Paço e levas uma chapadona!"
Juanito correu, ganhando uma distância prudente em relação ao português.
"Paço! Paço!"
A IV Bandera seguiu pela estrada em camiões formados em coluna. O horizonte enchia-se de fios negros de fumo, pareciam vulcões a expelir fúria; eram incêndios que decorriam em pequenas povoações onde os milicianos resistiam ao avanço das tropas revoltosas.
De quando em vez, nas bermas, via-se um, três ou dez corpos estendidos, a maior parte de barriga para o ar, por vezes rodeados de moscas, em alguns casos com homens a abrirem buracos ao lado para os enterrar; tratava-se dos fuzilados dessa manhã ou da véspera. Os legionários não dispensaram mais do que um breve olhar de curiosidade a esses cadáveres; tudo o que lhes interessava era sair dali e procurar novas emoções, partir à aventura, desafiar a morte noutras paragens, arriscar a vida em qualquer novo ponto da frente.
Já perto de Alanje, o sargento Gomez começou a cantar La canción dei legionário e logo os homens fizeram coro.
Soy valiente y leal legionário, Soy soldado de brava legión, Pesa en mi alma doliente calvário Que en el fuego busca redención.
Mi divisa no conoce el miedo, Mi destino tan solo es sufrir, Mi Bandera luchar con denuedo, Hasta conseguir Vencer o morir.
Chegaram a Zarza e tentaram cruzar aí o Guadiana, mas a corrente mostrou-se demasiado forte, o que era surpreendente, considerando que estavam em Agosto e normalmente o caudal era menor no pico do Verão. Por outro lado, havia milicianos na outra margem, todos armados com escopetas.
Um exibia até uma metralhadora ligeira.
O comandante Vierna, que chefiava a IV Bandera, avaliou a situação. Faltavam-lhe os meios para construir uma ponte militar sobre o rio; além disso, iria certamente sofrer baixas inúteis, uma vez que a travessia exporia os legionários ao fogo inimigo. Após estudar o mapa, Vierna fez sinal aos seus homens de que regressassem aos camiões.
"Vamonos!", gritou. "A la carretera!"
A coluna deu meia volta e regressou a Almendralejo, onde apanhou a carretera general em direcção a uma ponte romana que, dizia-se, os milicianos não tinham ainda destruído.
De facto, assim era. Atravessaram a ponte e aproximaram-se de Mérida por oeste. Grossas colunas de fumo negro erguiam-se do casario longínquo, sinal de que o assalto à cidade já ia avançado.
"Joder!", praguejou Juanito. "Vais ver que não deixaram nada para nós."
Francisco avaliou a dimensão dos incêndios.
"Quem são os gajos que estão a atacar?"
"São os camaradas da I e da V Bandera", replicou o espanhol. "E acho que também o segundo tabor de Ceuta."
"Merda!"
Quando a IV Bandera entrou em Mérida, os combates já haviam terminado. Os legionários e as tropas marroquinas fuzilavam os sospechosos, mas, no momento em que saltaram do camião, em plena Plaza de Espana, Francisco e os seus companheiros tinham mais que fazer do que ajustar contas com os defensores da cidade; a verdade é que o seu regimento não sofrera baixas e a sorte dos derrotados era-lhes por isso indiferente. Não tinham a vingança a roer-lhes o estômago.
O português acompanhou os camaradas numa correria pelas ruas de Mérida, um tropel que só terminou perto do Arco de Trajano, à frente de uma ourivesaria cujas vitrinas foram de imediato despedaçadas pelas coronhas das Mauser. Com o caminho aberto, os homens entraram na joalharia em catadupa, como a corrente de um rio, e deitaram mão a tudo o que viam ao seu alcance, enchendo os bolsos de jóias, ouro e dinheiro. Para abrir o cofre usaram explosivos e, meia hora depois, quando saíram do local, já nada havia para brilhar nas prateleiras e gavetas da ourivesaria Oro de Amor.
O saque de Mérida prolongou-se por todo o dia, apenas interrompido pelos esporádicos bombardeamentos da aviação governamental. Os aviões emergiam de vez em quando das nuvens e lançavam umas bombas tímidas, mas não passava tudo de diversão; as barulhentas explosões não mataram ninguém, apenas serviram para aterrorizar os civis e moer a paciência dos legionários.
Na manhã seguinte, e na ressaca da orgia de pilhagens, Francisco e Juanito foram colocados de plantão junto à ponte
sobre o Guadiana. Montaram um posto com sacos de terra dispostos em U e ficaram com a missão de controlar os acessos à cidade.
Foi ao verificar o salvo-conduto de uma coluna de camiões proveniente de Sevilha com víveres e munições que souberam das novidades.
"Entonces la Columna Madrid?" , perguntou o motorista do primeiro camião, enquanto Francisco estudava os documentos que o homem lhe tinha apresentado. "Tudo bueno?"
"Hã?", resmungou, sem tirar os olhos do salvo-conduto. "Qual coluna Madrid?"
"Hombre! Pois não és da IV Bandera?"
"Sim, sou."
"Então não sabes que a IV Bandera foi integrada na Columna Madrid?"
"Eu não. Aqui nunca nos dizem nada, caraças."
"Pois é verdade. Franco nomeou Yagiie para comandar a coluna."
"Quem?"
"Yagúe."
"Não conheço. Joga no Benfica?"
O motorista rolou os olhos e fez um estalido com a língua.
"Ay, hombre! Vocês, os da Legião, não percebem nada de nada..."
Francisco devolveu os documentos e fez sinal para o camião prosseguir.
"Digam-me quem tenho de matar e eu mato. Agora essas conversas não são comigo."
"Pois fazes mal", devolveu o motorista, enquanto subia para o seu lugar. "O Yagúe mandou punir os legionários que andam nas pilhagens." Ligou o motor e sorriu. "Talvez te interesse saber isso, hem?"