II

A rapariga de cabelo castanho curto e formas redondas entrou no Café Lisboa e estacou por um momento à porta enquanto varria a sala com o olhar. Voaram de imediato piropos e gracejos. "Olha a girl!", disse uma voz; "Belo naco!", adiantou outra; "Vem aqui ao papá", acrescentou uma terceira. Habituada já aos barulhentos ajuntamentos masculinos, cena comum depois dos espectáculos, quando os excitados machos se apinhavam nas tascas e cafés do parque para ver as girls saírem dos teatros, a corista ignorou as atenções com que os homens nesse instante ruidosamente a presenteavam e, depois de localizar Luís a uma mesa do canto, dirigiu-se-lhe com passo decidido, embora sempre meneando o corpo, consciente do efeito que produzia.

"Olá, querido!", lançou a desconhecida.

Os dois amigos petiscavam tremoços regados a imperial e Fernando estranhou a familiaridade com que a insinuante recém-chegada se dirigiu ao seu parceiro de mesa.

"Então, minha flor?", cumprimentou-a Luís.

A rapariga inclinou-se sobre ele, sentou-se-lhe ao colo, enlaçou-o com um braço e beijou-o nos lábios. Fernando observou a cena boquiaberto, os olhos arregalados, o copo da cerveja parado a caminho da boca. Não queria acreditar no que via; era já a segunda girl que se agarrava ao amigo no espaço de apenas meia hora. A segunda. Achou tudo aquilo inesperado e permaneceu um longo instante imóvel de pasmo, sem saber o que pensar.

Quando Luís descolou do beijo, fez um gesto na direcção do amigo, que por esta altura se remexia desconfortavelmente e olhava em todas as direcções excepto na dos seus dois companheiros de mesa.

"Apresento-te o Fernando."


Ela endireitou-se, afogueada, e lançou-lhe um sorriso rápido.

"Olá."

O rapaz levantou-se e estendeu-lhe a mão.

"Muito prazer."

A morena apenas lhe dedicou uma fugaz atenção. Girou o pescoço pelo café e fixou a atenção numa portinha lá ao fundo. Acto contínuo, deu um salto e largou o colo de Luís.

"Vou ali à casinha", anunciou, partindo em direcção ao quarto de banho. "Já venho."

Os dois amigos observaram-na a deslizar entre a multidão do café, o rabo a bambolear de um lado para o outro, incorrigivelmente provocadora, o corpo curvilíneo como uma viola. Parecia uma starlette a desfilar na passerelle. Dessa vez não se ouviram piropos, todos tinham visto que o homem dela também se encontrava no café e havia que respeitá-

lo; o que não os impediu, todavia, de a espreitar de esguelha com mal disfarçada avidez.

Só quando a corista se fechou no quarto de banho é que Fernando voltou a cara para o amigo.

"Nunca vi nenhum gajo como tu", exclamou. "É impressionante! Absolutamente incrível!"

Luís observou-o com orgulho dissimulado, fingindo-se desentendido.

"Que queres dizer com isso?"

"Que quero dizer?!" Fez um gesto em direcção ao quarto de banho das senhoras. "Olha lá, quem é aquela?"

"É a minha nova namorada."

"A tua nova...", interrompeu-se, incapaz de pronunciar a palavra. Abanou a cabeça. "Isto contado, ninguém acredita."

"O quê?"

Fernando engoliu um trago de imperial.

"Quando te conheci na faculdade arranjaste logo uma namorada." Suprimiu um arroto.

"Era a Luísa, não era?"

"Não, a Lulu foi a segunda. A primeira foi a São."

"Ah, pois. Despachaste primeiro a Conceição, depois a Luísa, depois a Deolinda. Ainda te vi com a Teresa..."

"A seguir à Deolinda foi a Belinha."

Fernando riu-se.

"Olha, essa escapou-me."

"Conheci-a num concurso da rainha da beleza das Sociedades de Recreio."

"Ah, bom." Desenhou pontinhos no ar. "Pronto, foi a Deolinda, depois essa Nelinha do concurso de beleza..."

"Belinha."

"... depois a Teresa... e hoje convidaste-me aqui ao Parque Mayer para conhecer a tua nova namorada."

Fez-se um curto silêncio. Fernando aguardava que o amigo apresentasse uma justificação para aquilo a que assistira


instantes antes. Mas Luís pareceu não perceber a dúvida e encolheu interrogadoramente os ombros.

"E depois?"

"E depois?" Fernando voltou a abanar a cabeça, incrédulo. "E depois?" Apontou de novo para o quarto de banho das senhoras. "E depois apareceu mais esta."

"Sim, e então? E a minha nova namorada."

"Olha lá, quantas namoradas tens tu?"

"Bem... uma."

Fernando pousou os ombros na mesinha redonda e incli-nou-se na direcção do amigo.

"Ai é? E a girl loiraça que eu vi há bocado aos pulos no Santo António e que te espetou um grande chocho nos camarins? Não me vais dizer que era tua prima..."

"É essa a minha namorada."

Fernando respirou fundo, sem compreender.

"Mau! Qual é afinal a tua nova namorada? A girl loira ou... ou esta que apareceu agora aqui?"

Foi a vez de Luís soltar uma gargalhada.

"Esta é a loira!", exclamou.

"Qual loira? Esta tem o cabelo castanho, que eu bem vi!"

"E a mesma, palerma. Tu achas que os cabelos da girl que viste há pouco são mesmo loiros? Aquilo era uma peruca, meu grande camelo! A gaja que entrou agora aqui é a girl, mas sem a peruca! Percebeste? É a Guida."

O amigo abriu a boca, entendendo tudo.

"Ah! Esta é a loira!"

"Claro."

"Desculpa, não tinha percebido." Riu-se e recostou-se na cadeira, já descontraído.

"Caramba, fico mais aliviado!"

"Pensavas que eu andava com duas girls ao mesmo tempo?"

"Pois... vejo-te há bocado com uma loira e agora com uma morena, o que querias que eu pensasse?" Trincou uns tremoços. "Além do mais, se queres que te diga fico mais descansado por descobrir que a loira afinal não é loira."

"Porquê?"

"Ora, porquê? Quando a apontaste no palco e disseste que ela era a tua nova namorada, pensei: mas onde é que este gajo arranja tipas deste calibre? Porra, o cabrão anda com a Mae West! Até fiquei complexado, caraças!"

O café enchera-se de homens acabados de sair dos espectáculos do Parque Mayer e fervilhava de animação. O ambiente era barulhento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos clientes, a maior parte de pé, com um cigarro e um copo na mão, à espera de um lugar numa mesa.

Os dois amigos ainda se estavam a rir no seu canto quando Margarida reapareceu vinda do quarto de banho e atravessou a multidão. Sempre desinibida, voltou a sentar-se ao colo de Luís; parecia uma menina traquina, daquelas que nunca param quietas.


"Aqui o Fernando pensou que eu tinha duas namoradas", anunciou-lhe Luís, provocando o amigo.

"Quais duas namoradas?", espantou-se a rapariga, interrompendo as carícias para lhe lançar um olhar desconfiado. "Há outra?"

"Pois há." Pôs-lhe o dedo na ponta do nariz. "És tu."

"Mas quem é a outra?"

"És tu, já disse." Apontou para Fernando. "Ele viu-te loira há bocado, viu-te morena agora e achou que eram moças diferentes. Até perguntou se podia ficar com a loira..."

"Não perguntei nada", corrigiu o amigo.

Margarida olhou para Fernando e simulou um ar ofendido.

"Oh! Não gostas de mim?"

"Bem...", atrapalhou-se ele, desconcertado com a pergunta. "Quer dizer..."

A rapariga endireitou a cabeça e fitou o namorado.

"Ou és aqui como o Luís, que esconde um segredo?"

"Qual segredo? Não digas disparates..."

"Ai escondes, escondes", cantarolou ela. Virou de novo a cara para Fernando.

"Conheces o segredo dele?"

"Eu não."

"Chama-se Amélia."

"Cala-te!", cortou Luís com abrupta rispidez. "Cala-te!"

Fez-se um silêncio embaraçado entre os três. Mas a animação prosseguia em redor, ignorando a súbita tensão naquela mesa do canto, e isso de algum modo contribuiu para desanuviar o ambiente.

"Amélia!", cantarolou Margarida, como se o estivesse a testar. "Amélia!"

"Oh, vá lá", disse Luís, já mais macio, corrigindo a aspereza com que instantes antes a mandara calar. "Não venhas outra vez com essa conversa."

Vendo o amigo inopinadamente embaraçado, e passada que parecia a sua súbita irritação, Fernando deixou-se arrastar pela curiosidade e não deixou cair o assunto.

"Amélia?", perguntou, dirigindo-se a Margarida. "Quem é essa Amélia?"

"Isso queria eu saber", devolveu ela. "Nunca ouviste falar nela?"

"Nunca."

"Deve ser uma antiga namorada."

"Bem, eu conheci outras namoradas dele, mas confesso que jamais ouvi falar nessa."

Margarida apertou a bochecha do namorado.

"Aqui o Luizinho não me conta nada." Fez beicinho. "É mau!" Inclinou-se para trás, na direcção de Fernando, e sussurrou muito alto: "Essa Amélia é segredo!"

"Não há segredo nenhum", repetiu Luís com ar de enfado.

"Então porque não me contas?"

"Porque não há nada para contar." Fez um gesto na direcção dos outros dois. "Calem-se lá com isso."

Mas Fernando não fazia tenções de mudar de tema e insistiu com Margarida.

"Como é que você soube dessa Amélia?"

A rapariga corou.

"Foi num momento... bem, uma altura em que estávamos os dois a sós. Aqui o Luís, em vez de me chamar Guida, no auge do... enfim, chamou-me Amélia." Fez uma expressão ofendida.

"Amélia, veja lá! É de uma pessoa ficar sentida, não é?" Voltou a fitar o namorado. "Mas afinal quem é essa Amélia?"

"Porra!", exaltou-se de novo Luís, batendo ruidosamente com o copo da cerveja na mesa.

"Vocês calam-se com isso ou não?"

"Pronto, pronto", murmurou Margarida, afagando-lhe o cabelo castanho-claro. "O menino não gosta de falar disto, pois não?"

Abraçou-o e beijou-o no rosto e nos lábios. Luís permaneceu um instante hirto, parecia uma estátua de bronze; mas logo o metal começou a derreter, o calor que a rapariga derramava sobre ele fazia gradualmente o seu efeito.

Sentindo-se a mais naquela cena melosa, Fernando pousou o copo de cerveja, deitou umas moedas sobre a mesa e levantou-se.

"Bem, vou-me embora."

Envolvidos um no outro, os dois namorados nem o ouviram. Ficaram sós na mesa, entregues aos lábios do outro, expostos aos olhares do café.

"Mas que deboche vem a ser este?"

Luís e Margarida descolaram-se e ergueram os olhos, surpreendidos com o tom agreste da interrupção. Um homem baixo e magro, de cabelo negro brilhante puxado para trás, observava-os com severidade.

"Perdão?", perguntou Luís, ajeitando os cabelos que lhe tinham descaído para a testa.

"Estamos num lugar público, por amor de Deus", rosnou o desconhecido. "Haja maneiras!"

"Como?"

"Isto aqui não é a bandalheira de outros tempos, ouviu? Onde pensa o cavalheiro que está? Aqui há respeito! Aqui há ordem!" Ergueu o dedo, parecia que pregava no púlpito. "E

para haver respeito e ordem é preciso primeiro haver decoro e decência!"

Seria um padre?, interrogou-se Luís. Mas ali, no Parque Mayer? O que faria um padre naquele antro de pecado?

"Quem é o senhor?"

"Chamo-me Aniceto Silva, mas decerto que o meu nome não lhe diz nada", apresentou-se o homem, muito dono de si. "O que interessa é que sou um bom português, homem honrado e cumpridor, amante da ordem pública. E o que o cavalheiro e esta... esta menina estão a fazer, aqui à vista de toda a gente, é altamente reprovável." De novo o dedo no ar, para sublinhar a apreciação. "Altamente reprovável!"


"Mas o que tem o senhor a ver com isso?"

"Tenho o mesmo que tem qualquer pessoa que se vê confrontada com atentados à moral e aos bons costumes. As pessoas têm de saber comportar-se em público, que diabo! E

quando não sabem alguém tem de lhes chamar a atenção."

Luís sentiu a irritação crescer dentro de si. Aquela conversa humilhava-o diante da namorada. Quem era aquele tipo para se lhe dirigir naquele tom? Com quem pensava ele que estava a falar? Não havia dúvidas, precisava de o pôr na ordem.

"Desculpe, mas o que eu faço é um problema meu e só meu", disse, empertigando-se.

"Ninguém tem nada a ver com isso e não lhe admito homilias, percebeu?"

"O cavalheiro admitirá o que tiver de ouvir pelo seu comportamento à vista de todos", devolveu Aniceto Silva sem vacilar. Parecia um mestre-escola. "O que o cavalheiro faz no recato do seu lar é lá consigo e com a sua... a sua senhora. Mas aqui, perante toda a gente, mesmo que seja no Parque Mayer, o que o cavalheiro faz é um problema de toda a gente, percebeu? De toda a gente."

"Eu sou livre de me comportar como muito bem entender e o senhor não tem nada a ver com isso."

O homem soltou um riso trocista.

"Não me venha falar do que é ou não livre de fazer. O que sabe o cavalheiro sobre o que é ser livre? Será livre de andar nu na rua? Será livre de se envolver em cenas... em cenas destas? A sua liberdade tem o limite do respeito, da moral e do interesse comum, percebeu?"

"Mas que descaramento!", ripostou Luís. "O senhor viu--me a prejudicar alguém?"

Alguns dos fregueses começaram a aperceber-se da altercação e olhavam com crescente interesse na direcção da mesa.

"Prejudica a raça!"

"Qual raça?"

O homem fez um gesto que englobou toda a gente no café.

"A nossa, claro! Somos uma raça admirável, meu caro cavalheiro. Parecemos pequenos e insignificantes, não parecemos? Ninguém dá nada por nós, aqui perdidos neste recanto da Europa. Mas a verdade é que descobrimos dois terços do mundo e erguemos um império que nem os Alemães alguma vez sonharam ter. Um império que chegou aos cinco continentes! É obra, que diabo!" O tom tornou-se sarcástico. "Acha que foi com liberdade que fizemos tudo isso? Acha?" Abanou a cabeça com violência e levantou a voz, galvanizado. "Não foi!" Ergueu o punho fechado e fez força. "Foi com disciplina. Sem ela, nada seríamos, percebeu? Somos um povo grande, mas é uma grandeza que nasce da ordem que nos impomos a nós contra a nossa própria natureza." "De que raio está o senhor a falar?"

"Estou a falar dos traços da nossa raça! Estou a falar deste povo afável, esperto, hospitaleiro, trabalhador, com um grande espírito de sacrifício. Estou a falar de tudo aquilo que nos está na massa do sangue. O problema é que sofremos de excesso de sentimentalismo e temos um horror absoluto a disciplina. Há demasiado individualismo e défice de tenacidade nas nossas gentes. Daí que precisemos de ordem, de respeito e de bons usos e costumes." Indicou Luís e Margarida com a mão. "É por isso que é preciso combater esta vossa tendência para o abandalhamento. Porque o..."

"Desculpe?", atalhou o transmontano, definitivamente irritado com o inopinado sermão. "Bandalho é o senhor! Como se atreve a vir aqui incomodar-nos com essa conversa para tolos?"

"Como?" O homem ruborizou, a irritação deixando-o em ponto de fervura. Espetou o corpo para a frente, a expressão muito indignada e os olhos injectados. "O que me chamou o

cavalheiro?"

Vendo o desconhecido inclinar-se agressivamente sobre si, Luís ergueu-se da mesa e encostou a cara à cara do outro.

"Chamei-lhe o que o senhor me chamou. Porquê?"

Os clientes do café acercaram-se da mesa, na expectativa de um confronto, e um deles, de ar mais janota, com um fato à Príncipe de Gales, acorreu a intervir.

"Calma! Calma!", disse ele, tentando interpor-se e separar Luís do outro. "Não se exaltem, vamos lá." Fez um gesto na direcção de Margarida, que tremia no seu lugar. "Estão aqui senhoras, haja maneiras."

Apesar dos esforços para os separar, os dois mantiveram-se de rosto colado, olhando-se furiosamente.

"Já vi que o cavalheiro é do reviralho", rosnou Aniceto Silva.

"Se calhar sou. E depois?"

"O reviralho é a escória deste país."

"Talvez estejamos a precisar de alguma escória, quem sabe? Pode ser a maneira de correr com alguns camelos que por aqui andam a meter o nariz onde não são chamados."

Aniceto descolou por fim a cara, mirou Luís com uma expressão de desprezo e apontou-lhe o dedo.

"Eu, se fosse a si, tinha cuidado, ouviu? Muito cuidado. Quem sabe se um dia não o apanho na esquina..."

Deu meia volta e afastou-se, desaparecendo por entre a multidão ávida de escândalo. Perante este abandono, o silêncio expectante no café logo se tornou burburinho e depois algazarra; a diversão tinha terminado e tudo regressava ao normal. Os clientes voltaram aos copos e às conversas, soltando ocasionais piropos às girls que iam passando a conta-gotas lá fora; dizia-se que as melhores eram as espanholas, ou pelo menos era essa a moda, pelo que todos se mantinham atentos à passagem das coristas, um olho na conversa e outro na rua, não fosse aparecer uma andaluza ou uma asturiana e perderem esses grandes espectáculos da natureza.

"Eu, no vosso caso, evitava voltar a cruzar-me com o Aniceto", soltou uma voz junto à mesa.


Ainda a recuperar da tensão vivida momentos antes, o casal de namorados ergueu os olhos e viu um homem encostado à parede a fumar, como se estivesse ali a aguardar que um lugar vagasse para se sentar. Era o desconhecido do fato à Príncipe de Gales.

"Porquê? O que tem ele?"

O homem aspirou o cigarro, fez uma pausa deliberada e soltou pelas narinas uma nuvem cinzenta que lhe ficou a pairar diante do rosto; parecia neblina a flutuar numa noite de bruma.

"É um tipo perigoso."

Atirou o cigarro para o chão, esmagou-o com o pé e foi-se embora.

III

O grupo de rapazes irrompeu pelo átrio da Escola Superior de Medicina Veterinária com um ar nervoso que de imediato atraiu a atenção de Luís. Alguns vinham vestidos de fato--

macaco, como se fossem operários, e outros apresentavam-se desarranjados, com as camisas fora das calças ou camisolas de lã remendadas nos cotovelos.

Um dos recém-chegados apareceu com um banco nas mãos, que claramente fora buscar a uma sala de aulas, e pousou-o no centro do átrio. Um rapaz de fato-macaco empoleirou-se no banco, o corpo elevando-se sobre o mar de cabeças.

"Atenção, pessoal! Atenção!"

A voz forte ressoou pela escola e em poucos instantes o átrio encheu-se de curiosos.

"O que é isto?", perguntou Fernando, abeirando-se de Luís. "Quem é este tipo?"

"Não sei. Chegaram aqui e o gajo pôs-se em cima do banco. Deixa ouvir."

O rapaz do banco fez sinal aos estudantes de que se aproximassem e então começou a falar.

"Camaradas!", gritou, erguendo os braços. "Camaradas, prestem atenção!" Aguardou um instante, enquanto se ouviam uns chius e o burburinho amainava, deixando o silêncio impor-se. "Camaradas, a liberdade está em perigo! A ditadura quer transformar os Portugueses num bando de cordeiros! Nós somos estudantes! Nós somos o futuro do país!

Temos de garantir os direitos do proletariado e do campesinato! Como estudantes, somos a vanguarda da classe operária! Temos um dever de rebelião e vamos revoltar-nos! Não votem nestas eleições! Não colaborem na farsa! Abaixo a ditadura!"

Algumas vozes no átrio ecoaram a palavra de ordem.

"Abaixo a ditadura!"

Nesse instante foi desfraldada uma grande bandeira vermelha que todos reconheceram como a do Partido Comunista.

"Viva a liberdade! Viva o marxismo-leninismo! Viva o camarada Estaline!"

Soaram alguns "vivas", mas a maior parte dos estudantes observava a cena com estupefacção. Alguns dos jovens que faziam parte do grupo recém-chegado começaram a distribuir folhetos pelo átrio e Luís foi um dos que receberam um panfleto. O papel tinha uma frase à cabeça a dizer "Abaixo o Fascismo!" e uma foice e martelo estampadas a vermelho no canto, com a sigla FJCP.

"Larga isso", disse Fernando, puxando o braço do amigo. "Vamos embora daqui."

"Não. Deixa ver o que eles querem."

"Estás doido?" Apontou para um activista plantado à porta. "Repara naquele. Não vês o que o gajo tem metido nas calças?"

Luís olhou e viu a coronha de uma pistola a espreitar do cinto.

"Os tipos estão armados."

"Anda, vamos embora."

Antes que Luís respondesse, ouviu-se um apito e instalou-se de imediato a confusão. O rapaz do banco saltou para o chão, a bandeira foi recolhida e os outros puseram-se a abrir alas por entre a assistência.

"Polícia!", exclamou uma voz junto à porta da entrada. "Vem aí a polícia!"

O grito pareceu despertar a multidão da letargia. Desataram todos a espalhar-se pelo átrio, procurando sair do caminho do que quer que aí viesse, e Luís deu consigo a correr pelo corredor da escola ao lado de um rapaz de fato-macaco.

No meio daquela balbúrdia vislumbrou fardas a cruzarem a porta ao fundo do corredor e a entrarem no edifício. Olhou para o rapaz do fato-macaco e constatou que ele não tinha avistado a polícia. Pior do que isso, corria para ela como uma lebre em direcção à armadilha. Num gesto quase instintivo, agarrou-o pelo braço e travou-o.

"Por aqui!", disse.

"Larga-me!", gritou o rapaz, tentando sacudir a mão. "Larga-me, porra!"

"Por aqui", repetiu Luís.

Foi nesse momento que o militante comunista viu as fardas e compreendeu o gesto do rapaz que o travava. Sem dizer uma palavra, mudou de direcção e seguiu Luís, confiando nele como um cego confia no seu cão.

Meteram por uma porta lateral e foram dar a um laboratório. Ziguezaguearam por entre as mesas e Luís guiou o rapaz de fato-macaco para um compartimento anexo, onde se encontravam jaulas com pequenos animais. Dirigiu-se a uma porta e

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abriu-a. Era uma passagem de serviço que ligava o edifício ao pátio interior arborizado, um belo jardim naturalista, à maneira inglesa. O estudante empurrou o activista para fora e indicou um ponto à esquerda.

"Estás a ver aqueles portões ali? É a saída das traseiras."

O rapaz do fato-macaco apertou-lhe a mão.

"Obrigado, camarada", disse. "Sou o Zé Pereira."

"Luís Afonso."


O fugitivo deu uns passos, mas logo travou e olhou de relance para trás, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia.

"Olha lá, não te queres juntar à malta?"

Ignorando a pergunta, Luís apontou com insistência para o portão.

"Foge!"

A Escola Superior de Medicina Veterinária era aquilo que os amantes das palavras pomposas designavam por instituição vetusta. Nascera em 1830 com o nome de Real Escola de Veterinária, mas deixara de ser Real poucas décadas depois, talvez num acto de premonição do fim da monarquia. Era já uma instituição centenária, mas funcionava agora em instalações acabadas de erguer na Rua Gomes Freire. Na verdade, o edifício era tão recente que o cheiro a tinta fresca ainda vagueava pelo ar, apesar de nesse dia o aroma dominante ser o da insurreição.

"O Luís, tu estás parvo ou quê?"

Desciam a escadaria da escola, onde a calma já havia regressado, e Fernando acabara de ouvir o relato do sucedido na fuga.

"O que queres? Tinha de o safar."

"Mas o gajo era comunista, caraças!"

"Qual é o problema?"

Fernando revirou os olhos.

"Deves estar a gozar comigo", disse. "Para que é que o ajudaste?"

"Para o salvar."

"Mas porquê? És comunista?"

"Que eu saiba não."

"Então porque ajudaste o gajo?"

Luís meditou na pergunta.

"Se queres que te diga, não me entendo com os ares autoritários a que estes senhores se dão."

"Quem?"

"O regime."

"Mas que mal te fez o regime, caraças?"

O transmontano parou no pátio e seguiu com o olhar o balouçar insinuante das ancas de duas raparigas que subiam as escadas a par.

"Gosto de fazer o que me dá na real gana, sem ter de prestar contas a ninguém."

"Não é disso que estamos a falar. O que está aqui em causa é teres ajudado um comunista a escapar à polícia, quando o que devias ter feito era entregá-lo!"

"Não, o que está aqui em causa não é eu ajudar um gajo a safar-se à polícia. O que está aqui em causa é que eu não posso dar um beijo no café à minha namorada!"

"Ah, sim!", exclamou Fernando com uma expressão de sarcasmo. "Logo vi que era isso! Muito me admiraria se não houvesse saias por trás desta história."

"Não é uma questão de saias. É uma questão de liberdade, de poder fazer o que me apetece sem ter de estar a prestar contas a uns idiotas com a mania que são donos da verdade."


"Estás a referir-te ao tipo que te chateou ontem no Parque Mayer?"

"Estou a referir-me a tudo."

"Olha lá, como era em Trás-os-Montes? Também fazias com as miúdas o que te dava na real gana?"

"Claro que não. Foi por isso mesmo que vim para Lisboa."

"Julguei que tivesses vindo para ser veterinário..."

"Também. Junto o útil ao agradável, qual é o mal?"

Saíram do edifício e viraram à direita na direcção do jardim da Praça José Fontana.

Sentaram-se num banco junto ao coreto, por entre as tílias, a apanhar sol e a apreciar as raparigas que saíam do Liceu Camões. A manhã permanecia fresca, mas a luz do dia temperava-lhes o rosto com uma brasinha deliciosa.

"Ainda não me contaste como são as coisas na tua terra."

Luís encolheu os ombros.

"Não há nada para contar. Aquilo é província, vive-se com a mentalidade do século xix e está tudo dito."

"Passeias na rua aos beijos às gajas?"

O transmontano riu-se.

"Deves estar a gozar! Em Trás-os-Montes anda tudo muito controladinho, o que pensas tu?" Indicou uma estudante do liceu que acabava de passar diante deles, apressada. "Olha, para ver as miúdas... só às escondidas. As mães delas são do pior que há, nem imaginas. Se descobrem que há namorico é uma chatice."

"Estás a ver? Afinal em Lisboa não estamos tão mal como isso..."

"Em comparação com a província, claro que não. Era o que mais faltava! Lá na parvónia as mães dispõem da vida das filhas como muito bem entendem. Chegam a ser elas quem decide com quem vão as miúdas casar..."

"Estás a brincar."

Luís respirou fundo.

"Quem me dera", disse, subitamente cansado. "Fiquei farto daquilo e enquanto não vim para aqui não descansei. Prefiro estar em Lisboa à minha vontade e fazer o que muito bem entender, sem ter ninguém a chatear-me, a andar lá a aturar aquela mentalidade. É por isso que não tolero estes anormais com a mania de se meterem onde não são chamados, estás a perceber? Eles que vão para o inferno!"

O amigo fez um gesto conciliador.

"Está bem, eu entendo isso. Mas tu também tens de compreender que os tempos mudaram, Luís.

Lisboa pode não ser a província, mas mesmo assim é preciso ter tino. Isto não é como antigamente."

"Se calhar antigamente é que estava bem."

"Qual quê! Não havia autoridade nenhuma, era uma desordem que nem te passa pela cabeça."

"E achas que é à bofetada que se impõe a ordem?"

"Se calhar é como dizia o outro: umas bofetadas bem dadas e na hora certa não fazem mal a ninguém. Podem até ter efeitos profilácticos."

"Isso, vai citando o Salazar."

"O Toninho tem razão, o que queres? Se os gajos desta manhã tivessem sido apanhados, levavam um sustozinho na esquadra e nunca mais se metiam noutra. Não há nada como uns bofes no momento mais oportuno."

"Dizes isso porque nunca os levaste."

"Não os levei porque nunca precisei. Sabes, Luís, o Estado tem de ter autoridade, e se o respeitarmos não haverá problemas." Mudou de voz, assumindo um tom declamativo. "Que o Estado seja tão forte que não precise de ser violento."

"Não me venhas com mais máximas de Salazar."

"Porque não? Se há ordem neste país, a ele o devemos."

"Não preciso deste tipo de ordem."

"Não me vais dizer que achas que é melhor vivermos na anarquia..."

"Na anarquia, não digo. Mas há de certeza coisas melhores do que isto. Passámos de um extremo ao outro, quando se calhar é possível encontrar um equilíbrio mais satisfatório."

Fernando fez um estalido com a língua, exasperado.

"Francamente!", exclamou. "Já viste o que aconteceria se o Toninho não estivesse cá?"

"Era uma maravilha. Para começar, sentíamo-nos livres."

"Não sejas parvo."

"Não me digas que gostas de ter estes idiotas à perna, sempre a dizerem-te o que podes e o que não podes fazer, como te deves comportar e vestir, o que deves dizer e o que não podes pensar, a avisarem-te de que tenhas sempre muito respeitinho, a impedirem-te de dar beijos à tua namorada na rua, a perseguirem-te por lançares uns vivas à liberdade, não podes isto, não podes aquilo..."

"Claro que não gosto. Mas já pensaste que este é o preço a pagar para que o país vá para a frente?"

"Balelas! Olha para a América, olha para a Inglaterra. Achas que eles precisam de palermas a dizerem-lhes o que as pessoas podem ou não fazer, dizer e pensar? E isso porventura impede-os de terem ordem e disciplina? Que eu saiba, são países onde o progresso existe sem ser necessário recorrer a estes ditadorzinhos de pacotilha."

O amigo olhou em redor, aflito, procurando certificar-se de que ninguém ouvira.

"Chiu", pediu. "Estás doido ou quê? Fala mais baixo. Não lhe chames isso..."

"Não lhe chamo o quê? Ditadorzinho de pacotilha?"

"Cala-te."

"Então vou dizer outra vez: ditador..."

"Assim vou-me embora!"

"...zinho de pacotilha."

Num assomo de irritação, Fernando ergueu-se do banco.

"Pronto, vou-me embora!"


Com uma gargalhada, Luís agarrou no amigo pela cintura e puxou-o para trás.

"Tem calma. Ninguém ouviu."

"Deixa-me!", insistiu o outro, tentando soltar-se. "Não estou para aturar isto!"

"Está bem, não volto a portar-me mal..."

Após uma breve hesitação, uma mera fracção de segundo em que avaliou a sinceridade da promessa, Fernando voltou a sentar-se.

"Ouve, Luís", disse, apontando-lhe o dedo em jeito de aviso. "Nós não estamos na América nem na Inglaterra."

"Infelizmente."

"Não digas disparates. O tipo de regime que eles têm não se coaduna com o nosso temperamento latino, que é desordeiro e individualista por natureza, como muito bem sabes. Tu viste a confusão que por aqui deu a democracia no tempo da república? E estás a ver a confusão que ela anda agora a dar em Espanha? É isso que queres?"

"De que te queixas? Em Espanha quem manda são as direitas."

"Mas há eleições. Quem me garante a mim que daqui a uns tempos as esquerdas não voltam ao poleiro?"

"Há sempre a Rússia", lembrou-se Luís. "Já viste a Rússia? Lá quem manda é o povo! A ditadura não é de um iluminado, como aqui, mas do proletariado. Não será isso bem melhor?"

"Também não estamos na Rússia. E ainda bem! Do que nos precisamos é de ordem, Luís. Não de ilusões! O exemplo

a seguir não é o da América, nem o da Inglaterra, nem o de Espanha, e muito menos o da Rússia. O exemplo a seguir é o da Itália, percebeste? Até os Alemães, que de parvos não têm nada, já o entenderam. Somos um império e um império não se mantém com capitalistas que só pensam no seu dinheiro ou com comunistas que só querem roubá-lo e esbanjá-lo e que nem sequer Deus respeitam! Um império ergue-se e mantém--se com sacrifício e com patriotismo. E para que haja sacrifício e patriotismo é evidentemente preciso ordem."

"Não me venhas com histórias."

"Não são histórias, Luís. É a pura verdade. Tu estavas lá a viver nas berças e se calhar não te apercebeste da rebaldaria que andava por este Portugal fora." Indicou o casario em redor da Escola Superior de Veterinária. "Mas eu nasci e vivi aqui em Lisboa e sei muito bem do que estou a falar. Sabes porque me irrito por te ver a ajudar aqueles comunistas?

Porque desde miúdo que ando a ver esta cidade em pé de guerra. Volta e meia os malucos lá pegam em armas e põem--se aos tiros e à canhoada e a malta que se aguente. E estes gajos que aqui vieram esta manhã representam o regresso a esse estado de coisas."

"Está bem, admito que as coisas antigamente fossem complicadas. Mas não há partos fáceis, pois não? A república podia não ser perfeita e permitir abusos, mas sempre era melhor do que isto."

"Isso dizes tu! Olha, eu tinha dez anos quando foi a Noite Sangrenta e não me esqueço da cara do meu pai ao chegar a casa. Vinha lívido, absolutamente horrorizado. Tinha assistido ao fuzilamento do Machado Santos ali no Intendente e ele próprio nem sabia como conseguira escapar à..."

"Qual Machado Santos? O herói da república?"

"Esse mesmo."

Luís franziu o sobrolho, interessado.

"O teu pai assistiu ao fuzilamento do Machado Santos? Nunca me tinhas contado essa."

"É verdade."

"Mas como?"

"Não te lembras das eleições de 1921?"

"Estás a gozar comigo? Eu era um fedelho, sabia lá o que eram eleições! Além do mais, em Trás-os-Montes passava-nos tudo ao lado."

"Aqui em Lisboa garanto-te que nada nos passava despercebido, sobretudo por causa da rebaldaria que se instalou com as eleições." Hesitou. "Instalou, é uma forma de dizer. Na verdade, a rebaldaria tinha começado muito tempo antes."

"Adiante, adiante."'

"Bem, o Partido Liberal ganhou as eleições de 1921 e os republicanos radicais, esses grandes democratas, não gostaram. Uns meses depois puseram a GNR e a Marinha em acção e deram ordem de caça ao primeiro-ministro, que era então o... como é que ele se chamava? O coiso... o Granjo, o José Granjo."

"António", corrigiu Luís. "António Granjo."

"Ah, então conheces a história."

"Estás parvo ou quê? Toda a gente conhece a história da Noite Sangrenta. O que eu nunca tinha conhecido era uma pessoa que tivesse assistido a isso."

"Assistir, assistir... não assisti. Mas ouvi." Apontou para o outro lado da praça. "Na altura morávamos ao pé da Avenidas da Liberdade e lembro-me de acordar com a artilharia pesada que a GNR instalou na Rotunda." Bateu duas palmas ruidosas, a simular detonações. "Pam! Pam! Até a casa tremeu. A minha mãe manteve-nos fechados no quarto e não nos deixou ver nada, mas o meu pai, que é militar, recebeu

imediatamente ordens para se apresentar ao serviço. Mandaram-no acompanhar o Machado Santos, que tinha a cabeça a prémio."

"Porquê?"

"Sei lá. Não gostavam dele, acho eu."

"E depois?"

"Os tipos revoltaram-se contra o governo saído das eleições e quiseram derrubar o Granjo, não foi? O que eles fizeram foi impor ao presidente da República uma série de nomes para o novo executivo, mas o problema é que o presidente se recusou a nomeá-los.

Foi então que os radicais organizaram um comboio para ir buscar uma data de personalidades que se lhes opunham para as entregar à GNR, aos marinheiros e à multidão.

Apanharam assim o primeiro-ministro e abateram-no como a um cão, a tiro e a golpes de espada. Depois mataram o comandante Maia e o comandante Silva."


"E o teu pai?"

"Ia com o Machado Santos quando a camioneta em que seguiam teve uma avaria no Intendente. A turba apanhou o Machado Santos e fuzilou-o logo ali. O meu pai ainda hoje não sabe como conseguiu fugir."

Luís coçou o queixo.

"Não há dúvida", concedeu. "Matar o primeiro-ministro e o herói da república foi um episódio chato, não se pode negar. Mas não temos agora de andar todos a pagar por esse disparate cometido há quinze anos, ou temos?"

"Há treze anos", corrigiu Fernando. "Foi em 1921."

"Não interessa. Já passou tempo suficiente."

"Ó Luís, tu achas mesmo que o que aconteceu na Noite Sangrenta foi um episódio isolado? Não foi! Não te esqueças de que tudo isso veio numa sequência de revoltas e mais revoltas. A instabilidade naquele tempo era permanente, os governos não se aguentavam, à mínima coisa saía toda a gente à rua aos tiros, a economia estava num estado calamitoso...

olha, daquela maneira não podíamos continuar a viver. Portugal estava transformado numa autêntica república de anedota."

"E agora? Não me vais dizer que chegámos ao paraíso..."

Fernando suspirou.

"A malta está cansada, Luís. Por que motivo pensas que o Toninho goza de tanto apoio popular? O pessoal está fartinho de confusão, quer é ficar descansado e viver a sua vidinha em paz." Meneou as sobrancelhas, condescendente. "Está bem, às vezes cometem-se uns abusos, a liberdade até podia ser um pouquinho maior, admito que sim. Mas esse é um pequeno preço a pagar pelo descanso que agora temos. Tu achas que há alguém de bom senso que queira voltar às trapalhadas da república?"

"Por acaso há."

"Quem?"

Luís indicou o edifício bege da Escola Superior de Medicina Veterinária, mesmo à direita, uma grande bandeira pendurada no mastro da varanda sobre a entrada principal.

"Aqui na faculdade, por exemplo. Aqueles tipos que vimos esta manhã acham que devíamos derrubar este regime."

"Oh, o que sabem eles da vida? São uns idealistas, uns sonhadores, não têm noção de nada."

"E tu? Tens?"

"Tenho mais do que a maioria. Possuo sobretudo memória e se há coisa que sei é que não quero voltar ao antigamente."

"Falas como se, com Salazar, a paz se tivesse instalado no país. Mas isso não é verdade.

Quando cheguei aqui a Lisboa dei logo de caras com a confusão. Lembro-me perfeitamente dos atentados à bomba que para aí houve e de ver os republicanos e os sindicalistas a manifestarem-se e a andarem constantemente à porrada com a polícia." Indicou de novo a fachada da escola. "Até aqui tivemos confusão, ou não te lembras das bulhas que houve entre a malta?"

Esta pergunta foi acolhida por Fernando com um sorriso.

"Então não me lembro?", retorquiu. "Eu próprio dei uns valentes estalos a um gajo do segundo ano, como é que ele se chama? O... o Armando. Aquele palerma andou a..."

"Achas que isso é que é a paz e a ordem do Estado Novo?"

"Nem queiras comparar."

"Ah, já não te convém a comparação..."

"São coisas diferentes."

"Dizes tu."

"Desculpa, mas não podes pegar numa meia dúzia de protestos envolvendo sindicalistas e estudantes e a partir daí dizer que a contestação ao regime é generalizada. Não é. O

pessoal está farto de confusão e apoia o Toninho."

"Então e a tropa?"

"O que tem a tropa?"

"A tropa que saiu à rua para derrubar o regime", disse Luís. "Foi há apenas três anos, não é há tanto tempo como isso..."

"O quê? Estás a referir-te à revolta de 1931?"

"Pois, já eu cá andava em Veterinária."

"Ora, um piquenique! E bem útil, aliás! Esses idiotas permitiram ao Toninho perceber quem estava com ele e quem estava contra ele. Se não fosse essa sedição de imbecis, se calhar ele não tinha podido passar o exército e a função pública a pente fino e livrar-se dos indesejáveis." Soprou para a mão. "Pffff! Adeus reviralho! Foi o canto do cisne desses cretinos."

"Qual canto do cisne? Então e a greve geral? Que eu saiba foi há apenas..." Fez um rápido cálculo mental, com a ajuda dos dedos. "Cinco meses... menos do que isso."

"Outro fracasso! A excepção da Marinha Grande, no resto do país os reviralhistas falharam por completo."

"Não estás a perceber, Fernando. O que está em causa não é o fracasso da greve. É evidente que, com toda esta repressão, ela ia fracassar. O que eu estou a tentar dizer é que, e ao contrário do que tu defendes, o reviralhismo não acabou. Não te esqueças de que a greve geral é muito recente. E não te esqueças do que vimos ainda hoje aqui na escola. Isso mostra que a oposição está bem viva."

"Estava, Luís. Estava. Olha o que aconteceu ao professor Sousa. Foi dos poucos que aderiram à greve e o que lhe sucedeu? Acabou por ser despedido. Nunca mais poderá trabalhar para o Estado."

"Foi muito corajoso."

"Foi muito parvo, queres tu dizer. Achas que o resto do pessoal lhe quer seguir o exemplo?"

Luís quase saltou.

"Então estás a dar-me razão!"

"Em quê?"

"Se mais pessoas não aderiram, não foi porque defendem o regime. Foi porque têm medo. As pessoas têm medo de dizer o que pensam! E quando dizem têm logo a polícia à perna, como se viu ainda esta manhã. Vivemos num país de medo."

"Essa conversa só é válida para meia dúzia de intelectuais com a mania que sabem tudo."

Indicou um transeunte que passava naquele momento. "O Zé Pagode está-se nas tintas para isso. O

fracasso da greve geral é a prova de que o povo está cansado de confusão e quer é ordem e paz.

Ninguém se

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esquece de que quem pôs o país nos eixos foi o Toninho. Sem ele, isto não ia a lado nenhum."

"Quem fez fracassar a greve geral não foi o povo, foi a polícia e o exército."

"O povo está com o Toninho, Luís. Além disso, não te esqueças de que a ditadura até tem sido mais democrática do que a república."

O amigo soltou uma gargalhada sem humor.

"Não me faças rir!"

"Achas graça? Mas é verdade!"

"A ditadura? Mais democrática do que a república? Em quê?"

"No sufrágio universal, por exemplo. Os republicanos eram uns grandes democratas, não eram? Mas depois montaram um esquema em que só uma pequeníssima parte da população podia votar. Ou seja, os deputados não representavam o povo, mas um punhado de idiotas pertencentes à elite! Além do mais, nem sequer deram direito de voto às mulheres! Eram progressistas que se fartavam, mas não deixavam as mulheres votar! Foi preciso vir o Toninho para que as mulheres tivessem o direito de voto! Só no ano passado é que as mulheres foram pela primeira vez às urnas em Portugal, ou já te esqueceste?"

"As eleições vão ser este ano."

"Estou a referir-me ao referendo da Constituição, idiota. O Toninho pô-las a votar, coisa que esses grandes democratas da república foram incapazes de fazer."

"Lá teriam as suas razões..."

Foi a vez de ser Fernando a rir-se.

"Eles tinham era medo de perder, é o que era!", exclamou. "Sabiam que, se deixassem os camponeses votar, os monárquicos ganhavam! E sabiam que, se deixassem as mulheres votar, a

Igreja Católica ganhava! Logo, tudo fizeram para controlar o voto e só deixaram votar aqueles que eram pela república! Achas que isso é democracia? Só votam aqueles que votam por nós?"

"Naquele tempo, ao menos, podia-se dizer o que se queria."

"Ah, sim! Falar era com eles, lá nisso ninguém os batia. O problema era quando chegava a hora de fazer coisas. Ui! Aí é que era uma chatice!"

"Desculpa lá, mas quem te ouvir e não souber como as coisas realmente são ainda vai pensar que Salazar é um democrata."

"Este ano vamos ter eleições."


"Eleições da treta! Só cinco por cento das pessoas é que podem votar e há apenas um partido inscrito! Achas que isto são eleições que se façam? É tudo uma fantochada!"

"Ora! Que eu saiba o Toninho nunca fingiu ser um democrata, antes pelo contrário. Além do mais, a União Nacional não é um partido. A Constituição não permite a existência de partidos."

"Claro que a União Nacional é um partido, só que lhe dão outro nome. Mas não enganam ninguém."

"Ouve, Luís", disse Fernando num tom paternal. "Os partidos só servem para dividir e a nação não precisa deles para nada. Portugal é um todo, é um corpo único. Os partidos só representam os interesses de determinado grupo e servem apenas para fragmentar o país. Se os deixarmos tomar conta do regime podem levar Portugal à ruína, como se viu com a república."

"Se assim é, por que razão se dão ao trabalho de organizar eleições? Hã? Não era mais fácil governar sem estar a montar esta palhaçada toda?"

"Sim, tens razão", concordou Fernando. "Mas acho que é uma maneira de legitimar o governo aos olhos do mundo.

Além do mais, vai servindo para ver onde está a oposição, não é verdade? A polícia agradece e actualiza os ficheiros..."

Aquele era um assunto em que nunca se iriam entender, concluiu Luís. Não fazia sentido prosseguirem a conversa, não iam chegar a sítio nenhum. Apercebendo-se das horas, levantou-se e deu umas palmadas nas nádegas para sacudir o pó que ficara colado às calças.

"Portanto, achas que agora é que é bom, não é?"

"Não sei se é bom, mas as coisas estão pelo menos muito melhor do que estavam."

"Então fica-te com a tua que eu fico-me com a minha", disse, em jeito de conclusão, pegando na pasta.

"Onde vais?"

Luís abriu a pasta e retirou um papelinho com o horário.

"Para as aulas, para onde haveria de ir?"

O amigo rolou os olhos e levantou-se a custo.

"Que chatice", resmungou, voltando o rosto para o Sol para gozar os últimos raios.

"Estava-se aqui tão bem..."

"Pois é, mas há que trabalhar."

"Temos Parasitologia, não temos?"

Luís ia já em direcção à porta de entrada do edifício e abanou a cabeça, corrigindo o amigo.

"Zootecnia Tropical."

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