XV

Ao sair para o deslavado corredor do edifício pareceu-lhe que tinha cruzado a porta de um mundo irreal. A sequência dos acontecimentos seguintes deu-lhe a sensação de que tudo decorria como numa fita americana de segunda categoria, os sentidos embotados por uma estranha mistura de rapidez e lentidão, realidade e fantasia, dor e narcose. Luís sentia-se atarantado, um mero joguete que o agente Amaro arrastava pelas entranhas da sede da polícia de vigilância, virando à esquerda e à direita, dobrando esquinas, subindo escadas, percorrendo corredores.


O polícia imobilizou-se enfim diante de uma porta e empurrou-o lá para dentro. Era um compartimento esconso e quente, as paredes recortadas por traços de luz e manchas de sombras. As mãos do carcereiro puxaram-no para diante de uma enorme máquina coberta por um pano e voltada para uma parede nua, onde se encontrava apenas uma cadeira. Teve medo; era como se o encostassem a uma parede para o executarem.

"Senta-te!", ladrou Amaro.

Luís olhou-o aparvalhado, abismado por ver o actor da cena a sair da tela para o interpelar. Até o inusitado tratamento por tu lhe pareceu confirmar que tudo aquilo não era real, embora não fosse capaz de romper com aquele pesadelo entorpecedor.

"Senta-te, não ouviste?"

Obedecendo como um sonâmbulo, Luís sentou-se e encarou o ameaçador aparelho metálico diante do qual se posicionara. No instante em que viu a lente e percebeu que se tratava de uma máquina fotográfica, uma explosão de luz encandeou-o e no quarto estalou um clac. Tinha sido o flash que o iluminara de frente.

"Volta-te!"

O detido não percebeu a ordem e viu Amaro aproximar-se com impaciência.

"Olha lá, estás a reinar comigo?", perguntou em tom de acinte, as mãos nas ancas como um forcado. Agarrou-o pelos ombros e rodou-lhe o corpo para a direita. "Assim, palerma."

O agente desapareceu e um novo clarão iluminou o compartimento.

Clac.

"Agora para o outro lado."

Desta vez Luís obedeceu e, sem ser necessário que o forçassem, voltou-se para a esquerda.

Mais um flash.

Clac.

Sem perder tempo, o agente tirou-o daquele quarto e levou-o até um balcão, onde lhe pegou na mão direita e a espalmou numa esponja de tinta. Imprimiu todos os dedos ao mesmo tempo numa folha e depois os quatro dedos em separado, à excepção do polegar. A operação foi repetida com a mão esquerda.

"Vai lavar as mãos", ordenou Amaro. "Depois tira tudo o que tens nos bolsos."

Em estado de choque, Luís ia obedecendo maquinalmente às ordens que lhe eram vociferadas de maus modos. Sentia-se destacado daquilo tudo, como se estivesse a observar a cena, não a vivê-la.

Encarava as coisas como espectador, não como actor, e foi com um misto de surpresa e curiosidade que se viu a si próprio a passar as mãos pela água que jorrava de uma torneira e a secá-las na toalha.

Levantou o olhar para o pequeno espelho diante do lavatório e espantou-se com os olhos baços que o reflexo lhe devolveu.

"Então?", rompeu a voz do agente Amaro. "Estás a ver se estás bonito? Despeja-me mas é esses bolsos, e já!"

Luís tirou tudo o que trazia nas calças e pousou todos os objectos pessoais em cima do balcão onde lhe haviam tirado as impressões digitais. O agente da PVDE pegou em cada um deles e anotou a sua descrição num formulário.

"Uma carteira de calfe", registou. "Uma carta de motorista com o número 8288." Tomou nota.

"Um passe da carreira de caminheta de Bragança." Mais um registo. "Uma caneta Conk-lin com o número 1902809." Rabiscou a referência. "Vinte e dois escudos e cinquenta centavos." Ergueu a cabeça e olhou para o detido. "Não tens o bilhete de identidade contigo?"

"Deixei-o na recepção ao entrar."

Amaro mandou outro funcionário buscar o documento. O homem reapareceu instantes depois e entregou-o ao agente.

"Um bilhete de identidade com o número 467845, do Arquivo de Identificação de Bragança."

Espreitou Luís. "Mais alguma coisa?"

"Não."

O agente da PVDE revistou-o de alto a baixo e no final deu-se por satisfeito. O formulário estava enfim completo.

Guardou-o numa pasta com o registo das impressões digitais e dirigiu-se a um armário. Tirou de lá um objecto metálico que tilintava e que Luís, absolutamente horrorizado, percebeu serem algemas.

"Estica os braços."

O agente colocou-lhe as algemas e contemplou o detido enquanto revia mentalmente todos os procedimentos. Estava tudo tratado, concluiu. Só faltava levá-lo para os calabouços do Governo Civil.

O braseiro do estio acolheu-os na rua.

"Vou assim?", espantou-se Luís, alteando os braços para exibir as frias argolas metálicas que lhe limitavam os movimentos.

Sentia-se chocado por ser obrigado a caminhar pela rua com as mãos agrilhoadas, à vista de todos, as sombras de carcereiro e recluso lambendo as pedras aquecidas pelo sol quente da tarde.

"O que queres tu, hã?", devolveu Amaro, com maus modos. "Ir de Rolls-Royce?" Deu-lhe um empurrão brutal que quase o fez tropeçar. "Toca a andar e caluda, meu grande camelo! Dizes mais uma e levas uma chapadona."

Calcorrearam o passeio em silêncio, Luís à frente com as mãos algemadas diante do ventre, atrás o agente sempre a empurrá-lo com o braço direito. A sensação de distanciamento regressou em força e deu consigo a encarar a cena como se fosse um mero transeunte, não a figura sobre a qual todos os olhos caíam naquela rua. Chegou a pensar que não passava tudo de um sonho, que tal coisa não lhe estava a suceder, mas logo dizia a si mesmo que não, que tudo aquilo era verdadeiro, que estava mesmo a ser arrastado por Lisboa como se fosse um vulgar criminoso.

O movimento cá fora era animado. Os transeuntes, sem descolarem os olhos do duo que saíra da sede da PVDE, aligeiraram o passo e tentaram passar despercebidos, apesar de os automóveis abrandarem para os condutores espreitarem o que se passava. No meio da cacofonia dos sons da rua soou o tilintar característico de uma campainha; era o triciclo dos gelados Esquimaux que passava, alegre e convidativo, conferindo à cena um toque de surreal jovialidade.


Esforçando-se por ignorar a atenção que estavam a atrair, guarda e detido dobraram a esquina e entraram no edifício do Governo Civil de Lisboa. Orientando-se dentro das instalações como se fosse da casa, Amaro levou o veterinário até aos calabouços e entregou-o ao responsável pelos serviços, a quem estendeu um documento.

"Assine-me a guia."

Antes de se ir embora, aproximou-se muito de Luís, como se o quisesse desafiar, e quase lhe encostou o nariz. Depois, com um movimento muito rápido e totalmente inesperado, desferiu-lhe um estrondoso estalo na cara.

Pab.

Com a bochecha incendiada, o recluso viu o agente rir-se e lançar-lhe um derradeiro olhar trocista.

"Porta-te bem, hem?"

A cela era relativamente fresca, sobretudo quando comparada com o calor que fazia na rua, mas isso estava longe de consolar o seu mais recente hóspede. Experimentando uma claustrofóbica dificuldade em respirar, Luís sentou-se na cama e escondeu o rosto entre as mãos, como se a treva pudesse apagar o horror em que se vira inesperadamente mergulhado, e começou a soluçar. Como era possível ter chegado àquele ponto? O que fizera ele para merecer tal tratamento? E, sobretudo, porquê ele? Porquê ele? Porque não outro?

Uma sensação de total e absoluto desespero e vulnerabilidade apossou-se de Luís. Sentia-se como um animal atirado para um curral à espera que o viessem buscar para a matança. Na verdade, para aquela gente era a isso que ele se resumia. Um animal que os iria refastelar no momento que considerassem mais oportuno. E não havia nada, mas absolutamente nada, que ele pudesse fazer.

Não tinha amigos a quem recorrer, não havia uma lei na qual confiar, a arbitrariedade parecia-lhe absoluta.

Chorava quase em silêncio, apenas denunciado pelos soluços ritmados, até que um gemido lhe nasceu das entranhas e se soltou pela garganta. Achava-se perdido, desorientado, incapaz de encontrar soluções para sair daquela embrulhada. Deitou-se na cama e encolheu-se, o rosto sempre tapado, o corpo dobrado na posição fetal; era já uma criança a tentar proteger-se do mundo hostil que a agredia.

No auge da aflição, sem saber como proceder e para onde se voltar, a respiração sufocada pela desesperança, ajoelhou-se no chão, os cotovelos apoiados na cama, a testa encostada às mãos, os olhos cerrados nas lágrimas, os dedos unidos numa prece, e começou a rezar. Ele que nunca rezava, ele que se ria das superstições da populaça ignorante e crédula, ele que acreditava que fora o homem que criara Deus e não o contrário, ali estava ele a orar como o mais fervoroso dos fiéis.

Entoou vários ave-marias e titubeou o pai-nosso, mas aqui embatucou nas palavras; conhecia o refrão inicial, mas apagavam-se-lhe as palavras algumas estrofes mais adiante. Constatando a sua ignorância, voltou às ave-marias e recitou-as num sussurro, as orações umas atrás das outras, numa ladainha contínua até aquele aperto asfixiante se ir esvanecendo.


"Ave-Maria-cheia-de-graça-bendita-sois-vós-bendito-o-fru-to-de-vosso-ventre-Jesus-Santa-Maria-mãe-de-Deus..."

As palavras tornaram-se um murmúrio imperceptível, como se o importante não fosse pronunciá-las, mas senti-las. Algo na mente lhe dizia que aquilo era um disparate, que não era por rezar que alguma coisa mudaria, mas a verdade é que a opressão no peito foi diminuindo à medida que pelo fervor se ia entregando ao destino.

Quando achou que chegava, ergueu-se e sentou-se na cama. Respirou fundo e verificou que se sentia mais aliviado. Era irónico como ele, que sempre se achara uma mente progressista, havia recorrido a um expediente que considerava tão primário para aplacar a ansiedade. Mas o facto é que resultara e já conseguia respirar melhor. Era como se se tivesse entregue a alguém superior, como um filho se agarra ao pai no instante em que mais teme o mundo. Se nada podia fazer, porque não acreditar que uma entidade metafísica se apiedaria dele, porque não confortar-se com a ideia de que algo maior o protegeria? O que tinha ele a perder? Podia ser uma tolice, era-o provavelmente, mas não havia dúvidas de que rezar o fazia sentir-se melhor.

Com o coração mais leve e a mente mais límpida, pôs-se a pensar no seu caso. Tinha vinte e quatro horas para dar uma resposta. O que iria ele dizer quando o abutre da PVDE lhe entrasse na cela e lhe anunciasse que chegara a hora de decidir? Tornar-se-ia um informador da polícia de vigilância ou deixaria que o condenassem por um assassínio que não cometera?

Encarou as duas opções, mediu as consequências de cada uma delas e suspirou vezes sem conta.

Não ia ser nada fácil.

A noite caiu e pensou em Amélia e em Joana. Será que elas sabiam o que se passava? A mulher estaria sem dúvida nervosa.

Prometera que lhe enviaria um telegrama logo que saísse da sede da PVDE, para que Joana descansasse, mas, como era evidente, não o pudera fazer. Será que ela já tinha tomado alguma medida? Teria ido falar com o juiz? Teria mandado algum telegrama a Amélia? E isso adiantaria alguma coisa? Poderia alguém importar-se com a detenção de um veterinário de Trás-os-Montes?

Não estaria ele perdido para o mundo?

Mergulhado na escuridão da cela, depois de se levantar e sentar sucessivamente, ao fim de inúmeras voltas pelo cubículo, após deitar-se e constatar que era impossível dormir, dei-xou-se ficar sentado longamente na cama até conseguir verbalizar a velha ideia que o assombrava nos momentos difíceis.

"Viver é sofrer."

Seria capaz?

XVI

O atormentado e tardio sono de Luís foi perturbado pelo clang-clang metálico de uma chave a rodar na fechadura. Sonhava nessa altura que a polícia o apanhava em flagrante a partir o pescoço do caseiro de Castelo de Paiva, e os sons da chave na fechadura misturaram-se com o sonho e tornaram-se os sons da coluna do homem a estalar. Mas o chiar da porta da cela a abrir-se rompeu a fantasia do sono e o veterinário viu-se de repente transportado para a realidade.

Fui preso!, foi a primeira coisa que lhe veio à mente ao abrir os olhos. Levantou a cabeça e, subitamente muito desperto, deparou-se com a silhueta pequena e seca do inspector da PVDE a encará-lo.

"Então?", perguntou Aniceto Silva com uma expressão jovial. "Dormiu bem?"

O recluso afastou o cobertor imundo e sentou-se na cama, mas não respondeu.

"Não me diga que a noite não foi agradável", insistiu o polícia em tom jocoso. Fez um gesto a indicar o apertado cubículo. "Aqui o Savoy não estava do seu agrado?"

Sem vontade de dar troco aos gracejos, Luís esfregou os olhos e bocejou, simulando não ter ficado afectado com aquela noite nos calabouços.

"Quando é que esta palhaçada vai terminar?"

"Só o cavalheiro é que pode responder a essa pergunta", devolveu o polícia. "Eu, cá por mim, terminava isto já neste momento."

O inspector colocou-se diante do recluso com as pernas abertas, à maneira de um forcado diante do touro. Luís sentiu que aquela postura o inferiorizava ainda mais e levantou-se, tirando partido do facto de ser mais alto que o seu carcereiro para tentar reequilibrar a relação de forças que insidiosamente se estabelecia.

"O senhor sabe muito bem que eu não matei ninguém", disse, olhando-o agora de cima para baixo.

"Não vamos recomeçar com a mesma conversa, pois não?", retorquiu Aniceto Silva, cruzando os braços num gesto de fastio. "Acho que a esse respeito as coisas ficaram muito claras entre nós, não ficaram? Ou o cavalheiro ainda tem dúvidas?"

Luís manteve por momentos o olhar fixo no inspector, mas acabou por abanar a cabeça.

"Não. Já não tenho dúvidas nenhumas."

Os lábios do homem da PVDE desenharam o esboço de um sorriso vitorioso.

"Folgo em sabê-lo." O rosto descontraiu-se-lhe ligeiramente. "Há quanto tempo o cavalheiro não come?"

A pergunta surpreendeu o recluso.

"Desde o almoço de ontem."

"Quer tomar alguma coisa?"

Luís hesitou, na dúvida sobre se a pergunta era a sério ou se havia algo por detrás dela. Decidiu que não tinha nada a perder; o pior que lhe podia acontecer era continuar sem comer. Era verdade que toda aquela situação lhe tirara o apetite, mas sabia que precisava de se alimentar; o jejum prolongado poderia deixá-lo demasiado frágil.

"Um café com leite e um pão com carne eram capazes de cair bem", sugeriu.

O inspector voltou-se para o guarda que vigiava a cena no corredor, do outro lado das grades.

"O coiso, traga aqui um galão e um prego para o cavalheiro."


O hábito de Aniceto Silva em referir-se a Luís como o "cavalheiro" havia muito que lhe mexia com os nervos. O polícia pronunciava a palavra com acinte, transformando-a quase em coisa de escárnio, mas nunca lhe parecera tão insultuosa como naquele momento. Apeteceu-lhe devolver a expressão no mesmo tom, com a mesma bílis ácida com que ela lhe chegava, mas conteve-se; sabia que nada ganharia com isso e achou que o melhor era manter a cabeça fria.

Preferiu, por isso, concentrar-se nas preocupações mais mundanas, e as mais imediatas eram as referentes a Joana e a Amélia.

"Já alertaram a minha mulher?"

"Para quê?"

"Enfim, para que ela saiba da minha... da minha situação."

"Acha mesmo que ela precisa de saber?"

"Bem, se eu não disser nada ela há-de com certeza ficar ralada."

"E se disser também ficará ralada, não lhe parece?"

Luís considerou a observação.

"Lá isso é verdade", admitiu. "Mas ela estava à espera que eu lhe mandasse um telegrama depois da nossa reunião a dizer que estava tudo bem. Como não mandei..."

"A ralação da sua mulher é a última das minhas preocupações", sentenciou o inspector. "Aliás, ela estar ou não ralada depende de si, não de mim. Se o cavalheiro se mostrar cooperante, a sua senhora nem sequer saberá que o cavalheiro pernoitou aqui no Savoy."

O guarda de serviço aos calabouços apareceu com uma bandeja a sustentar um copo longo de café com leite e um pratinho com uma sanduíche de carne. Abriu a porta da cela e, após uma curta hesitação, lá concluiu que não era moço de recados do recluso e pousou a bandeja no chão, junto à entrada, e saiu de imediato.

Com a boca subitamente a salivar, Luís foi à porta recolher o galão e o prego e começou logo a comer. Deu consigo a arfar e a emitir grunhidos; nunca imaginara que pudesse ter fome e muito menos que ela fosse tão grande.

"O cavalheiro estava mesmo com larica", observou o homem da PVDE com satisfação.

"Hmpf."

O detido mal conseguia responder, tão cheia tinha a boca. Achou o prego delicioso e apercebeu-se de que, se calhar, era muito pouca comida para tanto e tão inesperado apetite.

O inspector deu uma volta à cela, como se quisesse apreciar a comodidade do local, embora estivesse na verdade a respeitar uma pausa para deixar Luís comer. A certa altura imobilizou-se de novo diante do recluso, que se sentara na borda da cama a devorar o último pedaço do prego.

"Bem, preciso de saber qual a sua resposta", disse, subitamente impaciente. "Vai ou não cooperar connosco?"

Luís mastigava ainda e fez um sinal para a boca, mostran-do-a a mastigar.

"Hmpf", foi tudo o que voltou a conseguir dizer.

Era evidente que não chegara ainda o momento de extrair do preso o que dele queria. Aniceto Silva aguardou mais um minuto, os olhos cravados no recluso, desviando-se apenas para consultar a progressão do ponteiro dos segundos no mostrador do relógio.

"O seu tempo esgotou-se", anunciou ao ver o ponteiro perfazer um minuto. "Como é? Vai ou não colaborar no nosso trabalho?"

O veterinário bebeu um trago de leite com café.

"Oiça, eu não estou ainda em condições de responder", disse, tentando ganhar tempo. "O que o senhor me está a pedir é algo que violenta a minha consciência. Se eu realmente tivesse morto o caseiro, era uma coisa. Mas eu não matei ninguém. Por que razão estou a ser vítima de chantagem desta forma?"

"O cavalheiro não me deu uma resposta clara."

"Nem posso dar. Como lhe expliquei, preciso de tempo para amadurecer esta questão e para..."

"Acabou-se o tempo!", berrou repentinamente o inspector. "Sim ou não?"

Apanhado de surpresa pela súbita mudança de tom do polícia, Luís estremeceu de susto e sentiu-se paralisar; não estava realmente preparado para dizer não, mas também não conseguia responder sim. As consequências de qualquer das respostas eram demasiado terríveis para serem contempladas e precisava de ganhar tempo para tentar ver se haveria uma qualquer outra solução.

"Eu... eu não consigo dar-lhe a resposta neste momento. É demasiado..."

O homem da PVDE agarrou-o bruscamente pelos colarinhos e puxou-o para si. Aniceto Silva não passava de um homem pequeno e franzino, mas Luís apercebeu-se de que o tamanho era enganador e de que a minúscula figura escondia um poderoso dínamo de energia.

"O cavalheiro está a dizer-me que não."

"Não, eu não disse isso. Repito..."

O polícia nem o deixou terminar a frase. Com um movimento rápido do braço, esmurrou Luís no fígado. O veterinário dobrou-se em dois, uma dor lancinante a nascer-lhe no estômago, o ar a fugir-lhe dos pulmões, um gemido surdo a rasgar-lhe a garganta. O inspector deu-lhe mais um soco e outro, sempre no fígado. Luís sentiu as entranhas em ebulição e uma erupção ácida bloqueou-lhe a respiração. Foi como se todo o corpo se tivesse comprimido, os músculos contraindo-se e os movimentos tolhidos.

"Agh..."

Levou uns instantes a perceber o que lhe sucedera. Quando abriu os olhos viu a massa disforme acastanhada da carne e do galão misturados num vómito ácido que alagava o chão diante da sua boca. Estava encolhido em posição fetal no chão e escutou passos a afastarem-se.

Ainda sem conseguir falar, virou a cara e, de uma forma nebulosa e desfocada, viu a parte de trás dos sapatos impecavelmente engraxados do inspector a afastarem-se em direcção à porta da cela. Os sapatos pararam e os bicos ficaram de perfil, como se o inspector da PVDE se tivesse voltado para trás.

"O cavalheiro tem até ao meio-dia para dizer que sim", disse a voz de Aniceto Silva. "Se não o fizer, a declaração do senhor Francisco Rodrigues dará a essa hora entrada no Ministério Público."

O clang-clang da chave na fechadura voltou a soar. A porta abriu-se e os sapatos desapareceram atrás do som das passadas que ia morrendo enquanto o inspector abandonava os calabouços. A porta fechou-se com estrondo e um profundo e medonho silêncio instalou-se na cela. Apenas ouvia agora o farfalhar trôpego da sua respiração.

Com um gosto azedo a incendiar-lhe a boca e o odor acre do vomitado a invadir-lhe as narinas, Luís ergueu-se a custo e, com um longo gemido de dor, cambaleou de regresso à cama. Sentou-se pesadamente e tapou os olhos com as mãos, consciente de que o seu destino estava selado. Sabia que jamais aceitaria transformar-se num bufo e isso tinha um preço: faria dele o assassino do caseiro de Castelo de Paiva.

XVII

Chegou a Penafiel numa tarde tépida e lânguida, quando a penumbra do crepúsculo despontava já no horizonte e o derradeiro fulgor laranja do Sol se derramava em reflexos pelo ventre exposto das nuvens pálidas que deslizavam pachorrentas sobre o vale. Fechado na carrinha celular, Luís ouvia o ronco dos motores misturar-se com o clip-clop nervoso dos cascos dos cavalos e com o mugido calaceiro dos bois. Sentia-se um cego a tactear o caminho às escuras; não via um palmo, ouvia a vida a animar-se em redor e tudo tentava reconstituir pelos sons. Mas, apesar de todos os barulhos e do balouçar constante da viatura quando virava para esquerda ou para a direita, o facto é que não conseguia perceber em que ponto da cidade se encontrava.

A carrinha imobilizou-se com um solavanco e um suspiro, o motor estrebuchou e morreu e, após um súbito silêncio retemperador, escutou vozes e passos. A porta abriu-se e a luz invadiu o cubículo, revelando um guarda com o boné torto e

a farda engelhada a esperá-lo lá fora. O guarda fez-lhe sinal com a cabeça de que descesse.

"Anda, malandro!"

Girou a cabeça logo que pousou o pé cá fora. A sua frente estava o Palacete do Barão do Calvário, onde se encontrava instalado o Tribunal Judicial, o local onde o padrinho da mulher trabalhava; do outro lado estendia-se o belo jardim da Praça da República com a magnífica vista para o vale. Fora ali que pedira Joana em casamento.

"Julgas que estás em passeio ou quê?", perguntou o guarda com maus modos, puxando-o em direcção ao palacete. "Mexe-te!"

Foi aos tropeções que Luís se viu empurrado para o interior do edifício do tribunal. Arrastaram-no para o rés-do-chão, onde havia sido estabelecida a cadeia municipal, e acabou por ser encerrado numa pequena cela; não o sabia nem jamais poderia saber, mas tinha sido justamente naquele mesmo espaço que, semanas antes, Francisco havia ditado à PVDE a declaração que transformara Luís num assassino.

O novo hóspede da cadeia municipal de Penafiel estava, porém, por esta altura para lá de preocupações sobre quem fizera o quê, quem dissera o que mais e como demonstrar o que era supostamente necessário provar. Sabia-se inocente; o problema é que tinha plena consciência de que isso de nada importava naquelas circunstâncias. Se estava preso não era porque tivesse matado ou deixado de matar outro homem, mas porque se recusara a colaborar na vigilância de um terceiro.

Ou, se calhar, nem sequer era por isso; talvez estivesse ali simplesmente porque alguém implicara com ele, porque um dia tinha estado no sítio errado à hora errada e dito algo de errado à pessoa errada. Tão simples quanto isso.

Mas nesta altura já nada importava. Fosse por isto ou por aquilo, a verdade é que fora para ali atirado e tudo o resto lhe parecia agora irrelevante.

"Psst", chamou uma voz.

Olhou e viu outro recluso fazer-lhe um sinal na cela ao lado.

"Hmm?"

"Porque te botaram aqui? O que fizeste?"

Luís encarou o outro e ainda pensou em responder. Mas logo um cansaço imenso o assaltou e fez mudar de ideias. Encolheu-se no seu canto e deixou-se ali ficar, como se aquela esquina fosse um refúgio, o amparo da agressão de um mundo hostil.

Desde que havia sido detido em Lisboa que mergulhara numa depressão, mas ali, em Penafiel, a angústia parecia ainda maior. Viviam naquela cidade pessoas que conhecia e respeitava; sobretudo estava ali Amélia, a única mulher que verdadeiramente amava. E agora encontrava-se ele naquela prisão, indefeso, alvo de suspeita, sujeito à vergonha, objecto de humilhação. Como poderia dali em diante encarar todas aquelas pessoas? Como iriam elas olhá-lo? Como conseguiria sobreviver a tudo aquilo? Amélia sabia-o inocente, é certo, mas não iria isso apenas incendiar o seu tormento? Se saber que uma pessoa amada fora presa por um crime que cometeu era terrível, que dizer do desespero de saber que uma pessoa amada estava a ser gravemente punida por algo que não fizera e não poder resgatá-la desse tormento?

A noite caiu e a sombra abateu-se sobre a cela. No afogo dos intermitentes ataques de ansiedade, Luís não conseguia permanecer quieto. Quando a aflição o assolava, saltava do seu canto e dava voltas e voltas ao compartimento. Por vezes empoleirava-se no tosco banco de madeira que lhe haviam deixado ali e espreitava o exterior pelas grades altas que selavam a janelinha no topo da parede. Estava escuro e, de mãos agarradas às barras frias e face colada ao metal enferrujado, apenas vislumbrava silhuetas coladas aos passeios, vultos fantasmagóricos que gotejavam intermitentemente pelas ruas sombrias.

A exaltação da ansiedade sucedia-se a letargia da depressão. Que fazer? Como sair daquela situação? Que seria dele? Voltava ao seu canto e esperava pelo novo assalto de medo descontrolado. Percebeu que não conseguiria adormecer e passou a noite inteira sem pregar olho, alternando entre estados de espírito opostos, ora agitado pela ansiedade, ora entorpecido pela depressão.

Recebeu visitas no dia seguinte. A primeira a ir vê-lo à cadeia municipal foi, como parecia inevitável, Joana. Não se tratava na verdade de quem Luís mais desejava ver naquele momento, ansiava antes pelo conforto de Amélia, mas Joana era a sua mulher e isso conferia-lhe direitos inalienáveis.


"Diz-me a verdade", atirou-lhe Joana mal se sentou diante dele, as órbitas vermelhas de aflição. "Foste tu que mataste o Tino?"

Luís inclinou a cabeça, agastado.

"O que achas tu?"

Os olhos da mulher saltitaram de um ponto para o outro, como se buscassem uma resposta num qualquer canto da salinha.

"Eu... eu não sei", titubeou. "Isto é tão incrível, tão... tão... não sei o que pensar."

"Claro que não matei o homem."

"Mas eles dizem que tu... que tu quiseste dar-te a... a liberdades com a Amélia."

"E o que diz ela?"

"Que é mentira."

Luís tinha consciência de que essa era a única resposta que Amélia poderia dar, mas saber que ela o tinha de facto dito de algum modo confortou-o.

"Claro que é mentira."

"Então por que razão te acusam eles de uma coisa destas, valha-me Deus?" Todo o corpo dela se contorcia num ponto de interrogação. "Porquê? Porquê?"

A pergunta quase arrancou dele a verdade, mas conteve-se. Havia que ter cuidado. O que deveria ele dizer sobre o assunto? Que a PVDE o pusera nas mãos do Ministério Público porque ele não aceitara espiar um amigo de Vinhais? Assim postas as coisas, a explicação parecia forçada e o castigo desproporcionado. Além do mais, era uma coisa perigosa de se dizer. Se desse essa explicação, talvez pusesse as outras pessoas em perigo. Ou talvez não.

Na verdade, não sabia o que dizer. Depois de pensar longamente no assunto, concluíra já que a verdadeira causa era provavelmente outra. Achava que na origem da sua situação estava uma mera sucessão de azares, uma troca de palavras azeda que não deveria ter ocorrido numa noite de Lisboa, uma morte que se poderia ter evitado, uma detenção que nunca deveria ter acontecido, uma falsidade que jamais poderia ter sido dita.

Fosse como fosse, pareceu-lhe mais prudente ter cuidado com o que afirmava.

"Não sei, Joana", disse. "Parece que foi o que o Chico declarou quando o prenderam."

"Mas como pode ele ter dito tal coisa?"

"Não faço ideia. Vocês é que o conhecem..."

A mulher abanou a cabeça, sabendo que não era impossível Francisco ter feito falsas declarações. Embora não tivesse convivido muito com ele, ou talvez justamente por causa disso, a verdade é que sempre achara o irmão adoptivo uma pessoa estranha. Os acontecimentos dos últimos dias pareciam confirmá-lo de uma forma sinistra.

"Onde está ele?", perguntou ela, como se tivesse acabado de ter uma ideia.

"Quem? O teu irmão? Para que queres saber?"

"Ora, para falar com ele! Ele tem de contar a verdade!"

"O tipo está-se bem ralando para a verdade. O que ele quis foi escapar, mais nada."

"Não importa, temos de falar com ele. Onde está o Chico?"


"Sei lá", devolveu Luís com um encolher de ombros. "Libertaram-no e ele desapareceu.

Suspeito que só lhe vamos pôr os olhos em cima no dia do julgamento. Ou se calhar nem aí. Parece que lhe escreveram um depoimento e ele assinou de cruz..."

Joana apertou as mãos do marido, de repente afogueada.

"Ai, Virgem Maria! O que vai ser de nós?"

Luís não sabia o que responder. Na verdade, era ele quem mais precisava de orientação e conforto, e não dispunha de energia para dar; não podia oferecer à mulher o que ele próprio não possuía dentro de si.

"O doutor Garcia?", quis saber, perguntando pelo advogado de Vinhais. "Ele vem aí?"

"Chega amanhã", afirmou ela.

O olhar animou-se-lhe, como se um lampejo de esperança refulgisse dentro de si.

"E... e já viu o processo?"

"Sim."

"O que diz ele?"

Joana hesitou o suficiente para Luís perceber que as notícias não eram boas.

"Diz que vai ver o que se pode fazer."

"Mas o que acha ele do caso?"

"Acha que... enfim, vai tentar ajudar-te."

O recluso estreitou as pálpebras e endureceu as mandíbulas, fitando-a como se lhe quisesse desnudar a alma.

"Diz-me a verdade, Joana. Que te disse ele?"

A mulher baixou os olhos, o queixo começou a tremer-lhe e uma lágrima teimosa deslizou-lhe pelo rosto.

"Disse que o caso é complicado." Fungou. "E o meu padrinho concorda."

"Quem? O juiz Brandão?"

"Sim. Pedi-lhe que te ajudasse, mas ele disse que não pode fazer nada."

"O teu padrinho e o doutor Garcia acham que vou ser condenado?"

Joana assentiu com a cabeça, incapaz de fitar o marido.

"Quantos anos?"

Ela manteve os olhos fixos na mesa, como se não fosse capaz de responder.

"Quantos anos?", insistiu ele.

Luís estava determinado a enfrentar a realidade, temendo-a em absoluto mas desejando-a com morbidez. Era como se a verdade fosse um magneto com dois pólos; queria fugir dela mas corria para ela.

"O doutor Garcia disse que é preciso ter esperança. Ele disse que vai fazer tudo por tudo."

"Não foi isso o que eu perguntei. Qual é a estimativa que o doutor Garcia e o teu padrinho fazem em caso de eu ser condenado? Quantos anos poderei ter de passar na cadeia?"

Joana fez um esforço para falar, mas falhou a primeira tentativa. Foi só ao fim de alguns segundos que a voz fina e trémula logrou responder à terrível pergunta.


"Vinte", sussurrou ela. "O quê?"

Perdida e incapaz de se conter mais, a mulher desfez-se num pranto de desgosto. "Pelo menos vinte anos."

XVIII

Os minutos naquela cela húmida pareciam decorrer a contagotas. O monótono pingar metálico de um cano mal atarraxado no tecto era complementado pelo zumbido enervante das varejeiras que não largavam os baldes com dejectos, como se um violino mal afinado miasse de improviso em resposta à teimosa batida de uma tecla encravada no piano. Aqui e ali erguia-se o lamento triste de um outro recluso ou uma ordem ladrada pelo carcereiro; pareciam tenores em dueto a dar um toque humano àquela desconchavada melodia.

Mas Luís permanecia alheio aos sons e fedores que flutuavam avulsos pelas paredes do cárcere, mergulhado que estava num longo torpor depressivo, o olhar perdido na visão desfocada das grades, a respiração pausada e indolente, a vontade a esvair-se num sopro. Tenho de encontrar uma solução para isto, pensava obsessivamente. Não aguento esta situação muito tempo. Isto é intolerável.

Nas vinte e quatro horas que se seguiram à sua chegada à cadeia municipal de Penafiel só escapou da letargia e despertou para a vida durante as breves visitas que foi recebendo. Depois de Joana foi a vez de o casal Branco o ir ver, mas o encontro revelou-se embaraçoso, talvez por causa da humilhação que aquela situação representava para todos, mas mais provavelmente em virtude de a acusação arrastar o nome de Amélia para o centro da confusão.

"Quero dizer-lhe que sei que a acusação que lhe estão a fazer é absolutamente infundada", declarou o capitão Branco depois do silêncio desconfortável que se seguiu às primeiras palavras de circunstância. "É uma infâmia e espero que a verdade venha ao de cima."

"Obrigado, meu capitão."

O oficial continuou no mesmo tom de quem diz o que lhe parece correcto nas circunstâncias.

"A Amélia confirmou-me que aquilo que o Chico declarou é falso." Branco olhou para a mulher, como se buscasse confirmação. "Não é, querida?"

Amélia fitava Luís com uma expressão indefinida, perdida entre o choque e a incredulidade com o evoluir dos acontecimentos, estarrecida com o rosto inesperadamente chupado que encontrara à sua frente. Ao sentir-se interpelada, estremeceu, como se despertasse, e fez um movimento mecânico com a cabeça.

"Sim, claro."

"De modo que não vejo com que base lhe fizeram esta acusação", retomou o capitão, com a convicção de quem quer acreditar no que está a dizer. "E ridículo."

A vontade de Luís era que o capitão desaparecesse dali naquele instante, se sumisse quanto antes e o deixasse a sós com Amélia. Mal ouvia o que o seu antigo superior hierárquico no exército lhe dizia. Escutava aquela voz familiar mencionar qualquer coisa sobre o processo e as acusações e o absurdo de tudo aquilo, mas apenas se esforçava por fingir que seguia o que era dito. Quando o tom das palavras do capitão o requeria, ia fazendo que sim com a cabeça e murmurava o seu assentimento.

"Hmm-hmm."

Não acompanhava, porém, o sentido das palavras. Limitava-se a mirar o capitão como um sonâmbulo, vendo-o a movimentar a boca como um peixe dentro de água. Voltava a assentir sempre que notava uma pausa e, à primeira oportunidade, desviava a atenção para Amélia, que não lhe largava os olhos. Comunicavam em silêncio naquelas breves trocas de olhares, as palavras transformadas em sentimentos, as expressões em carícias.

Cinco minutos.

Aquilo por que Luís mais ansiava naquele momento era por permanecer a sós com Amélia durante cinco minutos. Transformaria aquele instante numa eternidade, entregar-selhe-ia com toda a alma, libertaria de vez a paixão que lhe agrilhoava o peito. Mas a realidade foi-se impondo gradualmente, à medida que as palavras do capitão deixavam de ser um amontoado indefinido de movimentos de boca e se tornavam novamente audíveis.

Luís tomou a pouco e pouco consciência de que estava entregue a si mesmo e de que o único conforto que alguma vez poderia receber era a compaixão que, como lágrimas quentes, Amélia derramava em silêncio pelos seus olhos tristes.

Como prometido por Joana, o doutor Garcia compareceu no dia seguinte ao da transferência do recluso para Penafiel. O advogado veio com uma aparência jovial, procurando

transmitir uma corrente de optimismo e energia positiva, mas, nas entrelinhas da exposição sobre a situação do processo e o ambiente em torno dele, Luís confirmou que a posição em que se encontrava era de grande delicadeza.

"Oiça, doutor Afonso", afirmou o doutor Garcia no final da sua exposição. "Como advogado tenho o dever de manter confidencialidade sobre tudo o que o senhor me disser."

Deixou a frase suspensa, como se houvesse nela um sentido subliminar, mas Luís devolveu-lhe o olhar com uma expressão vazia, não entendendo onde queria ele chegar.

"Sim?..."

O advogado remexeu-se na cadeira e inclinou-se na direcção do cliente, na postura de quem quer sublinhar o que tem para dizer.

"O que eu estou a tentar explicar-lhe é que o senhor, a mim, pode dizer a verdade", murmurou, como se tivesse medo de que alguém estivesse à escuta. "Entende?"

"Mas eu estou a dizer-lhe a verdade."

"Portanto, o senhor não matou o caseiro..."

"Já lhe disse que não. Foi o Chico."

"E tem maneira de o provar?"

"Provar como?"

"Sei lá, existe alguma testemunha?"


Luís hesitou. Havia Amélia, claro. Ela havia assistido a tudo e seria decisiva. Mas não, pensou. Acontecesse o que acontecesse, não podia arrastá-la para aquilo. Se a pusesse a depor, não tinha a menor dúvida de que a PVDE arranjaria maneira de inserir no processo a informação de que Amélia era sua amante. De uma assentada, colaria a Luís um móbil plausível para o crime e mancharia irremediavelmente a reputação de Amélia enquanto mulher honrada. Isso ele não podia consentir de modo algum.

"Não."

Mas o advogado era experiente e havia detectado a hesitação.

"O senhor doutor não me está a contar tudo..."

"Quero lá saber", respondeu com abandono, quase como se nada daquilo lhe interessasse.

O doutor Garcia respirou fundo, endireitou-se na cadeira e coçou a cabeça.

"O doutor Afonso, veja lá se entende isto", disse, a voz carregada de paciência. "A sua situação é de extrema gravidade." Folheou umas páginas dactilografadas que havia tirado da malinha e pousara sobre as pernas. "É verdade que existe apenas um depoimento contra si, esta declaração desse senhor Francisco. Em circunstâncias normais seria a palavra de um contra a palavra do outro e é muito possível que o tribunal não chegasse a conclusão alguma. No entanto, e por algum motivo que eu não estou a descortinar, as autoridades estão a conferir a esse senhor grande credibilidade. É provável que isso tenha a ver com o envolvimento da pevide neste caso, o que me parece tremendamente preocupante, como deve calcular." Voltou a acariciar as folhas. "Assim sendo, com base neste depoimento acusatório desse senhor Francisco, não tenho dúvidas de que, considerando o dedo da pevide neste processo e o ambiente criado em torno de si, o senhor será condenado a muitos anos de cadeia por homicídio. Está a perceber o que lhe estou a dizer?"

Luís assentiu com a cabeça, mas não emitiu um único som.

"Se há alguma coisa ou alguma testemunha que possa provar a sua inocência, então é melhor que ela apareça já. O silêncio que o senhor doutor adoptou, seja por que motivo for, é muito perigoso. Se o senhor doutor não cometeu o crime, não há nada que queira proteger que justifique passar

vinte anos na cadeia. Vinte anos de cadeia é uma vida inteira, compreendeu?"

Novo assentimento silencioso.

"Nada justifica tal sacrifício", repetiu o advogado para sublinhar a ideia. "Daí que eu formule novamente a pergunta: há ou não uma testemunha que o possa ilibar?"

A mente de Luís estava mergulhada num terrível dilema. Amélia poderia resgatá-lo. Mas a que preço?

"Não", respondeu, procurando imprimir firmeza à sua voz, mas receando ao mesmo tempo estar a cometer um terrível erro.

O doutor Garcia tomou consciência de que assim não iria lá. Havia ali alguma coisa que o seu cliente não lhe estava a revelar, percebeu. Para a arrancar, talvez fosse melhor mudar de táctica e confrontá-lo de uma forma diferente.

"A sua mulher não assistiu a nada?" Tocou mais uma vez nas folhas do processo. "Diz aqui que naquele dia ela também se encontrava na quinta de Castelo de Paiva..."

"Não, a Joana não viu nada."

"E a sua cunhada, a dona Amélia?"

"Também não."

"A dona Amélia negou que o senhor se tivesse dado a liberdades com ela." Esfregou a palma da mão no queixo. "O depoimento que ela vai fazer poderá ser uma grande ajuda."

"Nem pensar."

O advogado arregalou os olhos, sem entender.

"Como? Acha que o testemunho dela não será favorável?"

"Não é isso", corrigiu Luís. "Não quero que a Amélia preste qualquer depoimento."

"O quê?"

"É isso mesmo o que o senhor ouviu. Ela que nem ponha os pés no tribunal."

"Mas... porquê?"

"Porque não quero."

O doutor Garcia agitou a cabeça, como se tentasse expulsar algo que o impedia de ouvir bem.

"Peço desculpa, mas isso não faz nenhum sentido. A dona Amélia é referida no depoimento do senhor Francisco como estando na origem de tudo." Apontou para os papéis do processo que mantinha amontoados sobre as pernas. "Diz aqui que o senhor doutor tentou dar-se a liberdades com a dona Amélia e o caseiro apareceu em defesa da senhora. O senhor Francisco alega que foi por isso que o senhor doutor matou o caseiro. Mas, se a dona Amélia declarar que o senhor doutor não tentou dar-se a liberdades com ela, isso põe em causa o depoimento acusatório."

O raciocínio era sólido, mas Luís temia o que viesse a acontecer se Amélia testemunhasse no processo. O inspector Aniceto Silva havia sido muito claro na insinuação que fizera: se Luís queria manter secreta a sua relação amorosa com Amélia, não a podia pôr a testemunhar. Era tão simples quanto isso.

"Eu entendo o que está a dizer-me", afirmou o recluso. "Mas não quero a Amélia envolvida neste processo."

"Desculpe, mas envolvida já ela está."

"Deixa de estar."

"Deixa de estar, como? O nome da dona Amélia é mencionado no depoimento do senhor Francisco..."

"Isso torna obrigatório que ela testemunhe em tribunal?"

"Parece-me evidente."

"Ela é obrigada a testemunhar, mesmo que nós não a convoquemos?"

O advogado hesitou, desconcertado com tal cenário.

"Bem... quer dizer, para que ela testemunhe é preciso que alguém a convoque, claro. A acusação não o vai fazer, como


é evidente, uma vez que não me parece que ganhe alguma coisa com isso. Teremos de ser nós a chamá-la."

"Então se não a convocarmos ela não irá testemunhar, não é verdade?"

"Enfim... sim. Ela só irá testemunhar se a convocarmos."

"Então não a convocamos."

"Mas isso seria uma loucura", exclamou o doutor Garcia, quase revoltado com a sugestão. "Ela é a única arma que temos para montar a defesa."

"Teremos de prescindir dela."

"Como?"

"O doutor Garcia, deixe-me tornar isto muito claro", afirmou Luís, fitando o advogado nos olhos com a intensidade de quem não admite ser contrariado. "Por motivos que não lhe posso explicar, a Amélia não irá sentar-se no banco das testemunhas. Não aceitarei isso e o senhor fará o favor de não a chamar a depor."

O advogado fitava-o boquiaberto.

"O senhor tem a certeza do que está a fazer?"

"Posso não ter a certeza de muitas coisas, mas neste ponto a minha certeza é absoluta.

Custe o que custar, a Amélia não pode ser envolvida no processo."

"Mas... explique-me só porquê. Gostaria de entender."

O recluso considerou a possibilidade de abrir o jogo. Sentia-se tremendamente solitário e precisava de alguém com quem desabafar. Poderia dizer ao advogado que tudo aquilo se devia a ele próprio, doutor Garcia, que a PVDE o queria espiar, que Fernando era um bufo e que ele, Luís, estava a ser punido por se recusar a assumir também esse papel.

Mas talvez a verdade nem fosse bem essa. De novo pensou que, no fundo, estava era a ser objecto de um ajuste de contas mesquinho, pelo que não era justo reduzir toda aquela situação

à sua recusa em tornar-se um informador. Por outro lado, concluiu mais uma vez que talvez fosse melhor ser prudente. Revelar a verdade, qualquer verdade, de nada adiantaria naquele momento.

Pior, o inspector Aniceto Silva ficaria furioso e, se não tivesse cuidado, retaliaria onde lhe doeria mais, expondo Amélia da pior forma possível. Desse por onde desse, Luís jamais aceitaria deixá-la naquela posição. Se alguém tinha de ser sacrificado, estava disposto a ser ele. Ela, nunca.

"Os motivos são meus", insistiu. "E a decisão também. A Amélia não pode ser chamada a depor."

"Então como quer o senhor doutor que eu monte a defesa?"

"O advogado é o senhor."

O doutor Garcia deixou a cabeça descair para trás e fitou o tecto da cela, suspirando com desânimo. Mas logo voltou a endireitar-se, ganhando balanço para tentar enfrentar positivamente a situação; tinha consciência de que não podia ser ele a desistir. O veterinário lá sabia o que estava a fazer, pensou. Se queria prescindir daquela testemunha crucial por motivos que não tencionava partilhar, que poderia ele fazer? Parecia--lhe uma loucura, mas, enfim, o cliente é que mandava.

"O senhor doutor tem a noção do que se encontra neste caminho que está a trilhar, não tem?"


"Elucide-me."

O advogado ajeitou a gravata e fungou, como se se estivesse já a preparar para o inevitável.

"O desastre, senhor doutor. O desastre."

XIX

Um sopro de aragem traçava um rasto cintilante no pó que flutuava à meia-luz da manhã, como se mil grãos de ouro faiscassem pelo ar. Submerso no seu mutismo deprimido, interrogando-se mil vezes sobre como sair daquela situação impossível, os ouvidos de Luís registaram o som dos passos no corredor a sobreporem-se ao interminável lacrimejar do cano do tecto, mas nem prestou atenção; a sua mente parecia fechada aos rumores que lhe chegavam do exterior.

"O Afonso", chamou uma voz. "Tens mais uma visita."

O preso levantou o olhar velado e encarou interrogativamente o carcereiro, como se lhe perguntasse porque o incomodava. Mas o homem estava concentrado na chave e na fechadura que tentava abrir, pelo que Luís teve de encontrar a resposta por si mesmo. Devia ser Joana, pensou. Era ainda muito cedo, mas se calhar dera-lhe para madrugar.

O carcereiro deixou-o sair da cela e levou-o até à sala das visitas. Quando a porta se abriu, Luís sentiu um baque ao

perceber quem estava ali para o ver. Era Amélia. Procurou em redor, em busca do marido, mas não o viu.

"Olá, Luís", murmurou ela, a voz doce e meiga.

Prenderam o olhar um no outro e ela pareceu-lhe incrivelmente bela. Vinha com um vestido azul aos folhos brancos, um fio púrpura em torno do pescoço alto, o cabelo solto sobre os ombros, os olhos banhados por uma liquidez melancólica.

"Olá, Amélia. Vieste sozinha?"

"Preciso de falar contigo."

Que bom, quase exclamou.

"Eu também."

O recluso sentou-se diante daquela criatura esplendorosa e quase sentiu vergonha de" si mesmo.

Como era possível amar uma mulher tão bonita e apresentar-se diante dela assim tão porco, tão miserável, tão desgraçado? Devo cheirar a esterco e a urina, pensou, e além do mais ando magríssimo por causa desta falta de apetite. Encolheu-se de constrangimento com a figura que imaginava projectar.

Talvez intuindo a vergonha que o acossava, Amélia abriu-se num sorriso angelical e pô-lo à vontade. Se cheirava mal, ela parecia não notar; se se achava feio, ela claramente não pensava assim; se a emaciação do cárcere a chocava, ela não dava sinal. Luís acalmou, enfeitiçado pelo olhar dourado que cintilava na penumbra.

"Tenho tantas saudades tuas", disse ele, deslizando a mão pela mesa, as unhas sujas de negrura.


Respondendo ao movimento, Amélia agarrou-lhe a mão trémula e apertou-a com força. Também ela estava agitada, mas vinha quente e macia, e sentir-lhe a pele era como acariciar a pétala aveludada de uma rosa tenra.

"Eu também, meu querido. Eu também."

Ficaram um longo instante de mãos dadas, a fruir o momento, a torná-lo eterno.

"Lembras-te dos passeios até ao liceu?", perguntou Luís, como se a memória da juventude em Bragança o libertasse daquela prisão.

"íamos de minha casa a namoriscar", lembrou ela. "Naquele tempo era tudo tão simples. Meu Deus, como éramos inocentes!"

"Eu gostava de ti, tu gostavas de mim, o futuro era nosso, como poderíamos não ser inocentes?"

Luís mordeu o lábio. "Mas tudo nos foi roubado."

"Não somos nós quem manda no nosso destino, pois não?"

O amante abanou a cabeça com tristeza.

"Pelos vistos, não. Não passamos de marionetas das circunstâncias."

Amélia respirou fundo, como se tentasse ganhar coragem.

"Pois é", disse, o tom tornando-se inesperadamente assertivo. "Mas eu vim aqui para reclamar as rédeas do nosso destino. Não quero continuar a ser uma marioneta."

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que chega, não aguento mais! Está na hora de assumirmos o controlo da nossa vida!"

Luís olhou-a com uma ponta de perplexidade, sem perceber exactamente o sentido prático daquelas palavras.

"E como tencionas fazer isso?"

"Contando a verdade."

"Qual verdade?"

"A verdade sobre o que realmente aconteceu em Castelo de Paiva."

"Estás doida?"

"Doida? Doida estarei eu se deixar que esta farsa continue por mais um dia que seja!"

"Mas o que lhes vais contar exactamente?"

"O que aconteceu. Que o Chico partiu o pescoço do Tino à minha frente... à nossa frente."

"E achas que isso chega?"

"Tem de chegar."

Luís apertou-lhe as mãos com mais força.

"Meu amor, eles não se vão ficar por aí. Se disseres que viste o Chico a matar o caseiro, eles vão até às últimas consequências para apurar os motivos por detrás de tudo. Ficar-se-á a saber que o Chico actuou para proteger a tua reputação e que tudo começou porque o caseiro nos apanhou juntos lá no curral a... a... enfim. Estás a perceber o que vai acontecer?"


"Sim", assentiu ela. "-Será terrível."

"É por isso que não podes testemunhar a meu favor, meu amor. Se o fizeres, a verdade virá toda à tona."

"Paciência."

"Paciência?", admirou-se Luís. "Isso será o caos na tua vida! O teu marido ficará a saber de tudo! A tua irmã odiar-te-á! Pior do que tudo, acabarás por ser expulsa de casa e ficarás sem ver os teus filhos! Serás rejeitada por toda a gente! Tens consciência disso?"

Uma grossa lágrima deslizou pelo rosto delicado de Amélia.

"Sim", sussurrou, como se estivesse esmagada pelo futuro já em gestação. "Eu sei."

"Achas-te preparada para isso?"

Amélia soluçou.

"O mais difícil será não poder ver os meus meninos..."

"Irias desgraçar-te, meu amor."

Os soluços tornaram-se um pranto. O ataque de choro impedia Amélia de fechar os olhos. Cruzou os braços sobre o

estômago e dobrou-se sobre si mesma, numa postura de desespero.

"Desgraçada já eu estou!"

Emocionado e transbordante de amor, Luís ergueu-se e abraçou-a, como se tentasse protegê-la da realidade que os cercava.

"Pronto, pronto", murmurou-lhe ao ouvido enquanto lhe afagava os cabelos. Cheiravam a eucalipto. "Tem calma, vai tudo correr bem. Vais ver."

Amélia tremia convulsivamente, como se estivesse gelada, o queixo a tiritar sem controlo, os braços a tremelicar. Luís tentava reconfortá-la como podia, mas a ele próprio faltavam-lhe as palavras, não havia nada que pudesse dizer capaz de ocultar o quão complicada era toda aquela situação. Sabia que não existiam saídas boas para aquele dilema; teriam de escolher entre soluções más e péssimas.

As convulsões prolongaram-se por alguns minutos, até que Amélia recuperou gradualmente a compostura.

"Hoje vou à polícia contar tudo", disse, mal foi capaz de recomeçar a falar.

"Não vais nada, tem calma."

"Tenho de ir."

"Não faças isso", insistiu ele. "Vais-te desgraçar a ti, vais desgraçar a tua irmã, vais desgraçar o teu marido e vais desgraçar os teus filhos. E isso para quê? Para me salvares a mim! A mim, que já estou desgraçado!"

Ela pôs-lhe as mãos quentes no rosto, uma em cada bochecha, apertou-o e aproximou a cara até os narizes estarem quase encostados.

"Ouve, Luís", sussurrou com intensidade. "Não consigo dormir mais uma única noite a pensar que estás na cadeia e só não sais por minha causa. Esta situação não pode continuar."


"E eu não conseguirei dormir tranquilamente mais uma única noite se souber que te desgraçaste para me salvar."

"Mas tu vais ser condenado a vinte anos por um crime que não cometeste! Vinte anos, Luís! Isso não quero, não posso, não vou aceitar!"

"E tu serás condenada até à eternidade por um crime que nem sequer devia ser crime. E

atrás de ti será arrastada toda a tua família. Toda ela. Isso eu também não quero, não posso nem vou aceitar."

Ela permaneceu um longo tempo a fitá-lo.

"És teimoso, hem?"

Luís fez um esforço para sorrir.

"Muito. Sobretudo quando tenho razão. Mais vale eu arriscar vinte anos na cadeia do que tu, os teus filhos, a tua irmã e o teu marido passarem a eternidade no inferno para salvar quem já está para lá da salvação."

"Não digas disparates. Eu não posso consentir que estejas preso, isso está fora de questão."

"Mas terás de consentir."

Os olhos enlaçaram-se e Amélia suspirou, como se estivesse já resignada ao destino.

"Não posso deixar que isto continue por todas as razões que tu conheces e por mais uma que ainda desconheces."

"Estás a falar de quê?"

Ela estendeu a mão para baixo da mesa e levantou a malinha castanha que tinha encostada aos pés. Pousou a malinha no regaço, abriu-a e extraiu um grande envelope branco com um carimbo azul gasto a anunciar "Photo Anthony". Abriu o envelope e retirou o rectângulo rendilhado de uma fotografia.

"Estou a falar disto", disse, estendendo-lhe a imagem.

Luís pegou no rectângulo e pousou os olhos no rosto sorridente e desdentado de um menininho aloirado; posava em trajes domingueiros junto a um vaso e a um cão, e o fundo era difuso. Era uma fotografia de estúdio e provavelmente o cão não passava de um adereço da Photo Anthony, a prestigiada casa de fotografia de Penafiel.

"Quem é?"

"Não lhe reconheces os traços?"

Luís fixou os olhos no sorriso da criança e ergueu-os para o rosto de Amélia, comparando as fisionomias.

"É o teu filho?"

A amante cravou nele os olhos cor de mel com fervor, como se lhe quisesse espreitar o coração.

"É o nosso filho."

Luís abriu a boca e fechou-a sem produzir um único som. Olhou para Amélia e depois para a fotografia e depois para Amélia de novo, atordoado com a novidade.


"O... o nosso filho?", balbuciou por fim. "O que... o que queres dizer com isso?"

"O que achas?"

Voltou a cravar os olhos na imagem.

"Estás a dizer que... que este miúdo é meu?"

"Não é evidente?", perguntou ela, apontando para o rosto fixado pela câmara. "Olha aqui as linhas do queixo, assim quadradas. Olha para a expressão sonhadora dos olhos. É o teu retrato chapado, não há dúvida nenhuma."

"Mas... mas a Joana disse-me que ele era parecido com o pai..."

"E é."

"Não é isso", corrigiu. "Ela disse-me que o miúdo se parecia com o teu marido."

Amélia encolheu os ombros, como quem diz que a opinião da irmã era irrelevante para o caso.

"As pessoas vêem o que querem ver", afirmou. "Eu disse à Joana que ele se parecia com o pai e ela acreditou. Limitei-me, aliás, a dizer-lhe a verdade. Ele parece-se realmente com o pai, só não lhe disse que o pai não era o Mário." Voltou a indicar a fotografia. "Se olhares com atenção, vais ver que o Zé foi buscar os teus olhos e a tua linha do rosto."

"Chama-se Zé?"

"Não sabias?"

"Nunca quis saber."

Ela sorriu levemente.

"Tonto", disse. "Chamei-lhe José. Ainda pensei em dar-lhe o teu nome, mas percebi que seria suspeito. Se olhares bem para a fotografia, no entanto, percebes logo as parecenças."

Luís fixou a imagem com estupefacção, vendo e receando acreditar.

"Cos diabos!", exclamou. "Será possível? Ele é meu filho?"

"Todinho."

"Mas porque não me disseste nada?"

"Estou a dizer-te."

"Antes. Porque não me disseste nada antes?"

"E que querias tu que eu dissesse?", perguntou Amélia. Mudou o tom de voz: "Olá, tenho aqui o teu filho, mas tens de estar calado e fingir que ele te é indiferente. Não o podes educar, não o podes mimar, nem podemos revelar nada a ninguém." Mirou-o como quem acabara de expor uma evidência. "Achas que eu deveria ter feito isso?"

"Quer dizer... pois, não me parece uma situação normal, mas... enfim... eu gostaria de ter sabido mais cedo."

"E o que adiantaria isso?"

"E o que adianta agora?"

"Agora... agora permite-te perceber que, para além de todos os outros, existe ainda mais um motivo pelo qual não posso permitir que sejas condenado."

Com um suspiro cansado, Luís pousou a fotografia sobre a mesa e esfregou os olhos com as pontas dos dedos.

"Isto não altera nada."

"Claro que altera."

"Pensa, Amélia", disse ele, colando o indicador à testa. "O que irá acontecer quando se souber que nós... que nós nos amamos?" Passou a mão sobre o sorriso que a máquina fotográfica fixara no tempo. "O que achas que vai fazer o teu marido?"

"Não quero pensar nisso."

"Mas tens de pensar. A cidade toda vai saber que ele é... enfim, foi atraiçoado. Ele vai sentir-se humilhado, o que julgas tu? Ninguém gosta de ser conhecido por... por cornudo. A partir daí, pode fazer tudo. Pode até matar-te!"

"Ele não vai fazer isso."

"Como sabes? A lei é branda com os maridos que matam as mulheres em casos de defesa da honra."

"O Mário é boa pessoa."

"Também Abraão era boa pessoa e o facto é que ia degolando o filho."

"Oh! Não é a mesma coisa."

Luís estendeu os braços e segurou-a pelos ombros, abanan-do-a como se a quisesse despertar.

"Amélia, não te iludas. O teu marido vai ser humilhado em público. Ele é um militar de carreira e os militares têm um código de honra muito forte. Se ele não fizer nada, será motivo de chacota por parte dos seus pares. Os militares aguentam muita coisa, mas não suportam ser apontados como bananas e gozados nos quartéis. Mesmo que ele não pegue em nenhuma arma e não cometa nenhum disparate, o mínimo que te fará é expulsar-te de casa e privar-te de ver as crianças. Não te iludas quanto a isso. Por mais que lhe custe, isso é o mínimo que ele terá de fazer para salvar a face. E se, para me atingir também a mim, isso significar punir igualmente o meu filho, fa-lo-á sem hesitações." Ergueu o dedo, sentencioso. "Que não haja dúvidas sobre isso."

"Mas, então... o que faço eu?"

"Nada."

Amélia abanou a cabeça, enfática.

"Nada, não pode ser!" exclamou. "Nunca aceitarei que sejas condenado por um crime que não cometeste. Se alguém tem de pagar, que seja eu."

"Mas tens de entender que não és só tu quem vai pagar", insistiu Luís. "Vai ser toda a família!"

"Vais ver que..."

A porta da salinha abriu-se bruscamente, interrompendo a conversa. O carcereiro espreitou e fez sinal para o relógio que trazia no pulso.

"Está na hora", anunciou.

"Só mais um instante", pediu Amélia.


O guarda deu um passo em frente e pousou a mão no ombro de Luís.

"Está na hora."

Os olhos dos dois amantes cruzaram-se, como se acreditassem que o olhar os poderia prender aos seus lugares. Queriam prolongar a conversa, ansiavam pelas palavras do outro, sentiam uma imensa fome de amor que apenas a presença do

outro conseguia saciar. Nem pensar em separarem-se naquele instante, nenhum dos dois se sentia com forças para deixar o outro.

"Só mais um momento", sussurrou ela, quase a implorar.

"Vamos!", ordenou o guarda, puxando Luís. "Está na hora de voltar para a cela!"

"Largue-me!", devolveu o recluso, contorcendo-se para se libertar. "Deixe-me!"

Mas o guarda, um homem gordo cujos braços valiam por dois do preso, bloqueou-o com as mãos e levantou-o à força.

"Já disse para irmos!"

Luís fez um esforço para se livrar daquele abraço asfixiante, mas parecia tolhido por uma caixa de ferro.

"Largue-me!"

"Vamos!", exclamou o guarda, já à beira de perder a paciência.

Apercebendo-se de que o carcereiro estava prestes a tornar-se violento, Amélia estendeu a mão e selou os lábios de Luís com os dedos, silenciando-o.

"Chiu", soprou. "Vai."

Seguraram o olhar um no outro, como náufragos apartados por correntes irresistíveis. Havia tanto para dizer, mas já nada mais poderiam falar. Pior ainda era não se poderem despedir com um beijo, um abraço, uma mera carícia; mas ali, à frente daquele homem e tolhidos pelas circunstâncias, mais não podiam fazer do que trocar aquele derradeiro olhar.

"Não faças nada sem voltar a falar comigo", pediu Luís, arrastado já para a porta.

"Tenho de ir à polícia", devolveu ela. "Não consigo voltar a dormir se não for."

"Dá-me só mais um dia", implorou o recluso, saindo já para o corredor. "Só mais um dia."

Amélia hesitou. Queria muito descarregar aquele fardo, libertar a consciência e salvar Luís de uma vez por todas, mas o pedido foi feito com tanta paixão que sentiu que não lho podia recusar.

"Está bem", assentiu. "Até amanhã."

A resposta veio já lá do fundo, como um lamento, a voz a desaparecer na treva.

"Adeus, Amélia."

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