IX

Durou apenas mais alguns dias a passagem de Luís pela tranquila Pensão Morais. A meio da semana seguinte, quando verificava a saúde de uma vaca jersey destinada ao refeitório, uma ordenança foi ter com ele e comunicou-lhe que o capitão Branco o chamara ao gabinete. O

veterinário tirou a bata e subiu até à sala onde trabalhava o superior hierárquico. O capitão recebeu-o com um cabo, que disse pertencer ao serviço de alojamentos do quartel.

"Tenho uma boa notícia para lhe dar, meu alferes", anunciou o cabo. "O seu quarto já está disponível."

"Aleluia!"

O alferes estendeu-lhe um objecto metálico.

"Tem aqui a chave."

Luís avaliou o objecto. Era comprido e pesado, feito de ferro já meio enferrujado.

"Caramba, mas o que é isto?", exclamou. "A chave do castelo de Guimarães?"

Despediram-se do capitão Branco e, com o cabo a mostrar o caminho, subiram a escadaria interna e percorreram os corredores do quartel até chegarem ao quarto que tinha sido destinado ao veterinário. Ao abrir a porta, Luís deparou-se com um compartimento pequeno, banhado pela luz que jorrava de uma janela larga. Espreitou lá para fora e viu em baixo a escola primária e o mercado.

"Oiça", disse, torcendo o nariz. "Não tem nenhum quarto virado a norte?"

O homem do serviço de alojamentos pareceu desconcertado com a pergunta.

"A norte? Mas isso são as traseiras, meu alferes."

"Pois sim."

"Mas o meu alferes quer ir para um quarto das traseiras?"

"Qual é o mal? Há pulgas e carraças, porventura?"

"Que eu saiba, não."

"Então?"

"É só que... que..."

"Não me diga que não tem lá nada para mim..."

O cabo coçou a cabeça.

"Ter, ter, até tenho. O meu alferes faz mesmo questão de ir para as traseiras?"

"Absolutamente! É crucial para o meu trabalho! Já estive a ver a estrutura arquitectónica do quartel e parece-me que ali posso ter uma vista mais vantajosa sobre os estábulos."

O funcionário do serviço de alojamentos respirou fundo, vencido por tão inopinado argumento.

"Bem, se assim é..." Com a mão convidou Luís a sair, trancou a porta e meteu pelo corredor.

"Venha comigo, meu alferes. Tenho ali um quartito que pode ser disponibilizado." Contraiu os lábios. "Não sei é se será do seu agrado."

"Será, será, fique descansado."

Chegaram ao corredor do fundo e viraram à esquerda. Fazia escuro por ali, os candeeiros estavam apagados e os pontos de luz natural não chegavam para iluminar o caminho. Andaram alguns metros e o cabo abriu uma porta à direita.


"É aqui."

O quarto era ainda mais pequeno que o anterior e tinha caixotes empilhados uns sobre os outros.

"Mas isto não está habitável", constatou Luís tentando desbravar caminho entre os caixotes.

"A noite estará, meu alferes. É uma questão de limpar tudo isto e trazer para aqui a mobília do outro quarto. Faz-se esta tarde, não há problema."

O veterinário inclinou-se para a janela e espreitou lá para fora. Do outro lado da rua, mesmo em frente ao quarto, estava a vivenda onde a rapariga havia entrado na semana anterior. Luís virou-se para o cabo e, abrindo os braços para abarcar o pequeno quarto, sorriu.

"É perfeito."

Desde que se mudou para o seu novo quarto, nas traseiras do quartel, Luís passou a ir amiúde à janela bisbilhotar o movimento na vivenda. Tratava-se de uma casa branca de dois andares, com um grande quintal de ambos os lados num terreno que findava num V muito estreito. Viam-se árvores de frutos, uma horta e até vinhas, no lado mais afastado, o que terminava em V. No outro, o que estava situado mesmo diante da janela do quarto do alferes veterinário, encontrava--se um pátio com baloiços, um banco de madeira, uma pequena fonte e canteiros espalhados por toda a parte.

O movimento na vivenda era frequente e Luís habituou-se a ver a rapariga cirandar pelo quintal.

Por vezes ajudava as criadas a porem a roupa a secar ou ia colher uns frutos ao limoeiro. Recebia ocasionalmente uma visita, mas a maior parte do tempo limitava-se a permanecer sentada no baloiço a cantarolar ou no banco de madeira a ler. Saía todos os princípios de tarde à rua, sempre com a sua cesta debaixo do braço, para voltar cerca de uma hora depois.

"Quem é que mora na vivenda aqui ao lado?", perguntou Luís ao alferes do serviço de alojamento, na primeira oportunidade que teve para abordar o assunto.

"Qual vivenda? Aquela do grande quintal?"

"Sim."

"O juiz Brandão."

"Quem é esse?"

O alferes arregalou os olhos.

"Ui! Homem severo." Sacudiu a mão direita. "Quando se põe a botar sentença ali no Calvário, é um ver se t'avias..."

Era então filha de um juiz!, concluiu com admiração. Vendo bem, fazia sentido. Isso explicava que a tivesse visto a passar diante do Aires a caminho do Tribunal Judicial, no Calvário; ia ver o pai, talvez mesmo levar-lhe alguma coisa para comer.

Luís ainda ponderou a possibilidade de interrogar o capitão Branco sobre o assunto, mas reconsiderou. Ia-lhe perguntar o quê? Como se chamava a filha do juiz? Que triste figura faria... O

seu superior hierárquico, embora homem afável e disponível, parecia-lhe pessoa rigorosa e não se lhe afigurava alguém que desse confiança a esse tipo de conversa. Além do mais, vivia agora numa terra cujos costumes desconhecia; se Penafiel fosse como Bragança, e provavelmente era, a prudência seria o mais aconselhável em tais circunstâncias.

O melhor, concluiu com a avisada sensatez de quem está familiarizado com os rigores da província, era descobrir por ele mesmo.


O livro tinha já as páginas amareladas e a capa riscada, mas pouco importava; para os efeitos que trazia em mente, até lhe parecia melhor assim. Folheou uma derradeira vez O Crime do Padre Amaro e decidiu-se a levantá-lo.

"Vai ser mesmo este."

Saiu da biblioteca do quartel com o romance na mão e levou-o para o quarto. Tirou o casaco e empoleirou-se na janela a folhear o livro, mas com os olhos presos na vivenda branca. A custa de horas a estudar as rotinas da rapariga da vivenda, sabia que era pelo final do almoço que ela habitualmente saía de casa para levar a merenda do pai ao Tribunal Judicial.

Pouco passava das duas da tarde quando a vizinha emergiu da casa, desta feita com um vestido lilás, e cruzou o portão para iniciar o seu passeio habitual. Apercebendo-se de que chegara o momento de pôr o seu plano em marcha, Luís pegou no livro, estendeu-o para fora da janela e deixou-o cair.

O volume tombou com espalhafato na rua, lá em baixo, atraindo a atenção da rapariga. Ela fitou o livro com surpresa e olhou para cima, tentando perceber de onde caíra.

"Olá!", cumprimentou-a Luís, abrindo um sorriso embaraçado logo que foi avistado. "Será que me pode ajudar?"

"E seu?", perguntou ela, apontando para o livro escarrapachado na rua.

"Estava a ler e... caiu-me. Sou mesmo desastrado."

"Quer que o apanhe?"

"Se fizer o favor."

A rapariga pousou o cesto no passeio, olhou para os dois lados da rua e foi apanhar o volume.

Com o livro na mão, ergueu os olhos para Luís, que permanecia à janela.

"E agora? O que faço?"

Luís ergueu a palma da mão, pedindo-lhe que aguardasse.

"Espere um pouco, não saia daí. Já vou ter consigo."

Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, o alferes veterinário sumiu-se da janela.

Enquanto esperava, a rapariga encostou-se a uma árvore, no passeio, e pôs-se a estudar o romance. Foi nessa pose que Luís deu com ela quando apareceu na rua. Vinha janota na sua farda militar e sorriu ao aproximar-se da vizinha.

"Peço imensa desculpa pelo incómodo", começou por dizer. "Estava à janela a ler e o livro caiu-me."

A rapariga estendeu-lhe o volume e Luís olhou-a nos olhos. Era realmente parecida com Amélia, confirmou. Vendo-a assim de perto, a uns meros dois palmos de distância, reparou que as diferenças entre ela e a antiga namorada eram marcadas, mas afigurava-se-lhe inegável que partilhavam as duas o mesmo género de beleza.

"Está a gostar?", perguntou ela.

"De quê? De a conhecer?"

A rapariga enrubesceu e riu-se.

"Não, do livro."

"Ah, sim. É muito bom." Olhou de relance para o romance que ela lhe devolvera. "Já alguma vez leu O Crime do Padre Amaro}'''


"Claro. Quem não leu?"

"Era um maroto este Amaro, hem?"

Ela voltou a rir-se.

"Maroto é pouco."

Luís estendeu-lhe a mão.

"Eu chamo-me Amaro. Como está?"

"A sério? Chama-se mesmo Amaro?"

Ele piscou-lhe o olho.

"Não, sou eu a brincar. O meu nome é Luís." Indicou com o polegar a fachada traseira do quartel, do outro lado da rua. "Sou alferes veterinário aqui no regimento."

"Olá, eu sou a Joana."

"Joaninha dos olhos verdes, verdes?"

"Oh, não brinque."

"Desculpe, não resisti. Vive por aqui?"

Joana apontou para a vivenda branca.

"Ali mesmo."

"Ah, que engraçado! Somos vizinhos e nunca a vi!"

"Tem piada que eu também nunca o vi a si. O senhor é de cá?"

"Não", disse ele. "Vim de Lisboa. Cheguei há algumas semanas."

A rapariga assentiu com a cabeça.

"Então seja bem-vindo a Penafiel", disse, estendendo-lhe a mão. "Tive muito gosto em conhecê-

lo. Boa tarde."

"Oh! Já se vai embora?"

Joana pegou na cesta, que estava pousada junto à árvore, e começou a caminhar.

"Tenho de ir." Acenou-lhe. "Adeus!"

Загрузка...