VI

Uma névoa acinzentada de óleo em vapor flutuava pela grande gare e o ar apresentava-se impregnado do cheiro ácido e sufocante do carvão queimado. Caminhando inclinado para a direita por causa do peso do malão que carregava com esforço, Luís acabara de chegar e sentia-se já desejoso de sair dali. A Estação de Santa Apolónia até podia ser muito bonita, resplandecente com os seus azulejos e ferros e vidros, mas o ar junto às linhas era absolutamente irrespirável.

"Onde é, Luís?", perguntou a tia Maria, apressada, cortando pela multidão que enchia o terminal.

O sobrinho apontou em frente. L ja aqui.

"Tens a certeza?"

Luís indicou o placar plantado junto à linha, o algarismo claramente visível.

"Linha dois. Está a ver?"

Constatando que se encontrava na plataforma correcta, a tia Maria consultou o bilhete enquanto caminhava ao longo do terminal.

"Temos de nos despachar, está quase a partir."

"Tenha calma, tia. O comboio só sai daqui a dez minutos."

"Valha-me Deus!", suspirou ela, tentando controlar a ansiedade. "Só fico descansada quando me vir lá dentro."


Localizaram a composição e, tomando balanço, Luís atirou o malão para o interior.

Depois ajudou a tia a subir e conduziu-a pelo corredor até ao seu compartimento. Uma vez lá dentro, ganhou coragem para a derradeira tarefa. Respirou fundo, pegou na mala e, o rosto rubro de esforço e bufando e urrando como uma máquina a vapor, ergueu-a e encaixou-a na bagageira localizada por cima dos lugares dos passageiros.

Quando terminou, deixou-se cair com abandono num assento. Era como se o seu corpo exangue se tivesse transformado num saco de batatas, esvaziando-se de uma assentada, inerte e desamparado.

"Puf!", soltou, a arquejar. A parte mais difícil estava concluída, constatou com alívio.

"Já está!"

A tia arrumou as suas coisas e aproximou-se da janela do compartimento, que se encontrava aberta.

"O cheirete lá fora é insuportável", constatou. Agarrou as pegas do vidro e puxou-as para baixo, fechando a janela com estrondo. "Chiça! Assim está melhor."

Sentindo as gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela face, Luís assentiu com a cabeça.

"Sem dúvida."

Fez-se silêncio, apenas pontuado pelo arfar do sobrinho ainda a recuperar o fôlego.

"Se bem compreendo, vais ficar mais tempo em Lisboa", disse a tia Maria. "E depois mandam-te para um sítio qualquer que ninguém sabe ainda onde é."

"A culpa não é minha, tia. Chamaram-me para a tropa e agora estou ao dispor deles. Não há nada a fazer."

"Que arreliação!", exclamou ela, dando um estalido com a língua. "Não podes ao menos pedir para ser colocado no regimento de Bragança?"

Luís encolheu os ombros num gesto de impotência.

"Para já, vou ter de ficar aqui em Lisboa. Mandaram-me frequentar o curso de oficiais milicianos e é isso que me espera nos tempos mais próximos. O resto ver-se-á depois."

A tia Maria considerou a informação.

"Já não é mau."

"O quê? Ficar em Lisboa?"

"Não. Tirares o curso de oficiais milicianos. Quer dizer que ao menos vais para oficial. Sempre é melhor do que mandarem-te para soldado raso, não é?"

"Ó tia, só cá faltava não me porem a oficial", riu-se ele. "Não se esqueça de que agora sou veterinário."

A tia franziu o sobrolho.

"É isso que eu não percebo. Se és veterinário, para que te querem eles na tropa? Não és muito mais útil a exercer a tua profissão na vida civil? Ademais, quem não trabalha arrisca-se a ficar na dependura. Eles pagam alguns cunfres de jeito?"

"Claro que não."

"Então porque te estão a atrapalhar a vida, valha-me Deus? Parece que é por finca-ratunha!"

"O problema é que eu sou veterinário. Andam à cata de veterinários para a tropa."


"Ora essa! Não vejo porquê."

"Por causa dos animais. Quem é que arrasta as peças de artilharia? Como é que se transportam os oficiais? Quem é que carrega os abastecimentos de um lado para o outro?"

"Sei lá."

"São os cavalos, tia. Os cavalos e as mulas e o que mais para lá houver. É por isso que eles precisam de veterinários."

A tia balouçou afirmativamente a cabeça, acompanhando o raciocínio.

"Estou a ver", disse. "E os teus colegas? Também foram todos chamados para a tropa?"

"Alguns."

"Aquele teu amigo, o... o coiso, como é que ele se chama?"

"O Fernando?"

"Esse. Ele também foi?"

"Não."

A tia olhou para lá da janela do compartimento e observou um comboio a chegar à estação com grande ruído e espalhafato; a chaminé libertava uma grossa coluna de fumo negro, adensando a névoa parda que pairava na gare.

"Teve sorte, o diabo do rapaz."

Luís sorriu sem vontade.

"Não foi sorte, tia. Foi cunha."

A tia arregalou os olhos.

"Cunha? Queres dizer que foi um favor?"

"Claro."

"Tiraram-no assim da tropa, a nome de palhas?"

"Foi."

"E tu ficas-te em trinta? Põe-te guicho, rapaz! Porque não fazes tu o mesmo?"

O sobrinho encolheu os ombros, resignado.

"Porque não conheço ninguém a quem possa pedir o favor."

"Mas conhece o teu amigo. Ele é teu amigo, não é?"

"Acho que sim."

"E para que servem os amigos? A mesma pessoa que o safou também te pode safar!"

"Isso não funciona assim, tia."

"Então funciona como?"

"O Fernando é de uma família que pertence à... à situação."

"O que queres dizer com isso?"

"Eles são pelo regime."

"Ora, e tu também és."

A conversa complicava-se neste ponto. Luís ainda admitiu por momentos a hipótese de rebater a tia, mas logo reconsiderou. Não é que a tia Maria fosse uma simplória; não era. Mas o facto é que se tratava de uma mulher do campo e as subtilezas da política escapavam-lhe. Como explicar-lhe o que lhe era manifestamente incompreensível?

"Receio que as coisas não sejam assim tão simples, tia."

"Não vejo porquê", devolveu ela de imediato. "Basta o teu amigo falar com a pessoa a quem pediu o favor. Qual é a complicação?"

"Isso não pode ser feito assim às claras."

"Claro que não. Eles têm de falar à súchia, é evidente."

Luís coçou a cabeça, desconcertado. Teria de lhe explicar muitas coisas para que ela pudesse entender a dificuldade.

"Sabe, as..."

Um longo apito cortou o ar.

"Vamos partir!", exclamou ela, tremelicando de excitação no assento. "É agora."

O sobrinho quase suspirou de alívio. Salvo pelo apito! Desejoso de sair dali, ergueu-se num salto e beijou-lhe a mão.

"Com a sua licença, tia. É melhor ir-me imediatamente embora, senão já não consigo sair."

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"Está bem, mas promete-me que vais falar com o teu amigo..."

"Não adianta, tia. As coisas não funcionam assim."

"Então vais andar a perder tempo na tropa?"

"Tia! O comboio está a partir!"

Como que a confirmar estas palavras, a composição estremeceu e a locomotiva voltou a apitar.

"Arreda, moço", disse ela, fazendo gestos com as mãos para ele sair dali. "Andor!

Susquedono! Vai com Deus."

O comboio arrancou no exacto momento em que Luís saltou para a gare. O rapaz ficou ainda um longo instante a balouçar a mão, dizendo adeus à mão que dele se despedia de uma das janelas da composição; ele era um dos muitos que ficaram a saudar os que partiam, a mão dela era uma das muitas espetadas das janelas das composições a apartarem-se dos que deixavam para trás.

Quando a longa centopeia metálica por fim desapareceu na curva, Luís deu meia volta, pôs o chapéu na cabeça e foi à sua vida.

VII

A estação de Penafiel tinha o aspecto de apeadeiro campestre que caracterizava as estações das terriolas do interior, uma simpática casinha branca decorada a azulejos e rodeada pela verdura aprazível das árvores e arbustos. No ar flutuava o aroma fresco das vinhas já vindimadas e as conversas rumorejadas eram pontuadas pelo melodioso trilar em dueto dos rouxinóis. As folhas de algumas árvores avermelhavam, as cores vivas outonais realçadas pelo sol esplendoroso que aquecia a estação e refulgia no tapete de pétalas que adornava os canteiros.

O quadro bucólico de terra de província foi quebrado por um rumor distante que logo se transformou num brutal ronco estrepitoso; era o comboio que irrompia com grande aparato na estação. Parecia uma besta negra em fúria, fumegante e ruidosa. A composição imobilizou-se com um guincho e um estremeção, como se o animal ofegasse de raiva, e das portas começaram a jorrar viajantes que desciam os degraus metálicos com cautelosa lentidão.

Entre os recém-chegados viam-se alguns militares. A maioria caminhava com decisão, como se estivesse bem familiarizada com aquelas paragens; mas havia um que parecia inseguro, quase hesitante, os olhos a dançarem com incerteza pela estação. Desconhecendo por completo aquele lugar, o forasteiro optou pelo comportamento mais lógico e seguiu a corrente dos outros passageiros até chegar à porta da estação.

Um vulto verde-azeitona cortou-lhe o caminho já perto da saída.

"Alferes Luís?"

"Sou eu."

O homem fez continência.

"Boa tarde, meu alferes", saudou. "Sou a ordenança do capitão Branco." Inclinou-se na direcção da mala que o recém-chegado trazia na mão. "Dá-me licença?"

Aliviado por ter alguém a recebê-lo naquela terra desconhecida, Luís entregou a mala à ordenança e seguiu-a para fora da estação, onde os aguardava um automóvel negro. O soldado levantou a tampa da bagageira para depositar a mala e, nesse instante, a porta traseira do carro abriu-se e saiu de lá um oficial. O alferes olhou para os galões e apercebeu-se de que se tratava de um superior hierárquico, um capitão. Num gesto quase automático, interiorizado ao longo dos meses que passara na Escola Preparatória de Oficiais Milicianos, imobilizou-se e fez continência.

"Meu capitão."

O oficial devolveu a continência.

"Bem-vindo a Penafiel", disse. "Fez boa viagem?"

"Muito boa, meu capitão."

O capitão sorriu com bonomia. Era um homem de estatura média e porte erecto, a transbordar de dignidade.

"Oiça, vamo-nos deixar de formalismos, está bem? Eu sou o capitão Mário Branco e o senhor vai trabalhar sob as minhas ordens. Estou perfeitamente consciente de que o nosso alferes não é um militar de carreira, mas um médico veterinário, pelo que será tratado como tal."

"Sim, meu capitão."

"Aliás, para dizer a verdade nem sei se o trate por alferes ou por doutor. Como prefere?"

"É melhor alferes, meu capitão. Sempre estamos no exército, não é?"

O capitão Branco assentiu.

"Muito bem, fica alferes", disse. Fez um gesto na direcção do interior do automóvel. "Entre, faça o favor."

Constatando que a ordenança já guardara a mala e se dirigia para o lugar do condutor, Luís acomodou-se no assento traseiro.

"Agradeço-lhe a gentileza de me ter vindo receber à estação."

"Não tem de quê", devolveu o capitão, instalando-se ao lado do alferes veterinário. "Não é costume vir buscar um oficial miliciano, mas, tratando-se de um médico veterinário, achei que deveria ter este gesto. O nosso alferes nunca esteve por cá, pois não?"

"Esta é a primeira vez, meu capitão."

"Calculei. Como a viagem é cansativa, pensei que seria simpático vir acolhê-lo."

O automóvel arrancou e começou a escalar a colina em ritmo de passeio, afagando a frescura campestre. Para lá da estrada estendia-se uma vegetação opulenta em cores, o verde dos milheirais a misturar-se na encosta com o esmeralda dos linhares, enquanto a prata reluzente dos regatos gorgulhantes deslizava por entre o ouro das eiras; aqui e ali aparecia uma herdade em cal ou um murete em granito, as heras entrelaçadas nas paredes como aranhas de verdura, para logo voltar a vegetação selvagem dos bosques.

Mas, uns dois quilómetros mais acima, as casas começaram a surgir apinhadas e uma tabuleta indicou Penafiel.

"Estamos a chegar", observou Luís, os olhos colados aos edifícios que iam aparecendo com mais frequência, embora ainda rodeados pela verdura dos quintais cultivados. "A cidade é grande?"

"Tem uns seis mil habitantes, não é muito. Mas olhe que é terra antiga."

"Ai sim?"

"Pois claro. Vem do século xn. Até temos aqui o túmulo do Egas Moniz."

"O aio da corda ao pescoço?"

"Sim, aquele que preferia morrer a faltar à palavra dada." Sorriu. "Como vê, Penafiel é terra de gente fiel. Fiel à sua palavra, fiel à sua pena. Penafiel."

O recém-chegado desviou a atenção das casas para o capitão e devolveu-lhe o sorriso.

Não sabia porquê, mas aquele oficial era-lhe simpático.

"E o regimento?", quis saber. "Que tal é?"

"Infantaria 6 é o orgulho de Portugal, meu caro. Tem história! Foi criado no Porto ainda no século xm e combateu sob as ordens de Wellington contra Napoleão, desde o Buçaco até Toulouse. Estivemos em todas as batalhas. Além do mais, foi este regimento que iniciou a revolução liberal e uma das duas unidades que fizeram a defesa da Carta Constitucional quando ela foi proclamada em Coimbra."

"Muito passado, já vi", assentiu Luís, com um esgar impressionado. "E na Grande Guerra, como foi?"

"Mandámos um batalhão para a Flandres."

"O meu capitão também lá esteve?"

"Não, na altura eu pertencia a um outro regimento e fui enviado para Moçambique."

"Sorte, hem?"

"Qual quê! Aquilo foi muito complicado. Os Alemães vieram do Tanganhica e estavam a dar-nos uma tareia. Quando chegou a vez de a minha unidade partir para os enfrentar, pensei que não regressaria vivo. Até escrevi uma carta de despedida à minha família, veja lá. Só que foi exactamente nessa altura que veio a notícia de que a guerra tinha acabado. Ufa, nem imagina a festa que foi!"

Luís sorriu.

"Suponho que seja essa a vantagem de um médico veterinário na tropa: nunca terei de combater", disse. Pigarreou. "Para dizer a verdade, nem sei bem o que terei para fazer. O regimento tem muitas exigências para as minhas funções?"

"Oh, o normal."

"O que é o normal?"

"O nosso alferes teve alguma preparação especial para as necessidades do exército?"

"Sim, claro. Tirei o primeiro grau da Escola Preparatória de Oficiais Milicianos e trabalhei no Serviço Veterinário Militar e no Hospital Militar Veterinário Principal."

"Lidava com cavalos?"

"Meu capitão, eu prestei provas de equitação no Hospital Militar!", retorquiu o alferes, quase ofendido.

"Então vai estar aqui à vontade. Temos o Serviço Militar Veterinário, uma maneira pomposa de dizer que o nosso alferes vai tratar dos cavalos e dos burros."

"Só isso?"

"Bom, terá também a seu cargo a inspecção sanitária de tudo o que diz respeito à agropecuária do quartel, claro. No

fim de contas, temos de garantir a qualidade dos produtos que consumimos na messe, não se vá dar o caso de haver alimentos que não estejam em condições." Abriu as mãos e exibiu as palmas. "E é tudo."

"Não parece muito."

O capitão fez com o polegar um sinal para o exterior, por onde deslizavam agora as fachadas setecentistas do centro.

"Espera-o uma vida tranquila, vai ver."

O quartel era um paralelepípedo gigante de dois pisos que enchia um quarteirão inteiro mesmo diante da principal avenida da cidade. Apesar de se situarem em pleno centro, as instalações militares dispunham de amplo espaço em frente e num dos lados, o que se afigurava ideal para os exercícios e formaturas.

O capitão Branco conduziu o recém-chegado pelo edifício e levou-o ao gabinete do comandante da força militar ali instalada, o Regimento de Infantaria 6. Subiram ao primeiro andar, bateram à porta da antecâmara e uma voz mandou-os entrar. Sentado a uma secretária estava o oficial de operações, um alferes a quem Branco apresentou Luís.

"Bem-vindo!", saudou o alferes Boavida. "Já estava na altura de termos Veterinário, que diabo!"

"Não me diga que sou o único do quartel..."

"Ai digo, digo. O lugar vagou há dois meses."


"O que aconteceu ao anterior?"

"Era um miliciano, como o nosso alferes. Terminou o serviço militar e foi à sua vida."

Com alguma impaciência, Mário Branco indicou a porta do gabinete do comandante do regimento.

"Acha que podemos entrar?"

O oficial de operações esfregou as mãos num tique nervoso.

"Querem ver o coronel Silvério?"

"Sim", confirmou o capitão. "O nosso alferes veterinário apresenta-se hoje ao serviço e parece-me curdial que venha cumprimentar o nosso comandante."

"Pois é, mas o nosso coronel saiu para o almoço."

O capitão consultou o relógio e franziu o sobrolho. Eram já quatro e meia da tarde.

"Quando volta ele?"

"Não sei." O oficial de operações encolheu os ombros. "Já sabe como o nosso coronel é..."

Mário Branco sabia. Na sua experiência, se o comandante não tinha regressado até àquela hora, isso significava que já não regressaria nesse dia; o coronel era um pançudo de muito alimento e pouco trabalho, pelo que tal atraso significava provavelmente que estaria a digerir numa sesta o excesso de verde tinto que consumira à refeição.

"Como faz o nosso alferes para se apresentar ao serviço?"

O alferes Boavida encarou Luís.

"Tem aí os papéis?"

O recém-chegado tirou uns documentos do bolso do casaco e estendeu-os.

"Estão aqui."

"Deixe-os comigo", disse o oficial de operações, pegando neles. "O nosso coronel assinará amanhã."

Despediram-se ambos do alferes Boavida e saíram para o corredor. Quando a porta se fechou, o capitão fitou o rosto cansado de Luís.

"Oiça lá, não está com fome?"

Deram um salto à messe e encontraram-na fechada. Um cozinheiro ainda se ofereceu para fritar uma costeleta de Porco, mas o capitão Branco rejeitou a ideia e mandou chamarem-lhe a ordenança.

"Vamos ao Aires", anunciou enquanto aguardavam os dois à porta do quartel.

"É longe?"

O capitão apontou para a direita.

"É já ali", disse. "Está a ver aquele edifício?"

"Sim."

"Atrás dele encontra-se a Pensão Morais. O Aires fica em baixo."

Luís fitou o seu superior hierárquico, surpreendido.

"Mas então para que precisamos da ordenança?"

"Para lhe levar a mala."


"A mala? Não é melhor ela ser enviada para os meus aposentos?"

"Justamente. A Pensão Morais vai ser a sua morada nos próximos tempos."

A informação espantou-o ainda mais.

"Não vou instalar-me no quartel?"

"Claro que sim. Mas o seu quarto está ocupado e só ficará livre daqui a uma semana. No entretanto terá de se alojar na Pensão Morais."

Quando a ordenança apareceu, atravessaram a avenida em direcção ao Calvário e meteram pela Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Passaram diante do Tribunal Judicial e entraram na pensão. Luís registou-se no balcão e a ordenança ajudou-o a levar a mala ao quarto.

Já instalado, o alferes veterinário desceu e o capitão conduziu-o ao Aires, o restaurante junto à pensão. Encontraram-no deserto, o que era natural considerando o adiantado da hora, e encostaram-se ao lado da janela. Consultaram a ementa, mas a empregada disse-lhes que já só havia o prato do dia.

"Venha daí a feijoada", exclamou Luís, que não comia nada desde essa manhã.

A empregada afastou-se, deixando-os a olharem um para o outro, meio sem jeito.

"O alferes é casado?", perguntou o capitão, mais para fazer conversa do que por curiosidade.

"Não. Nem tenciono."

A ênfase peremptória da resposta chocou o anfitrião.

"Não diga isso."

"A sério."

"Mas porquê? O que tem o nosso alferes contra o casamento?"

"Não tenho nada. Mas não quero casar."

O capitão analisou Luís com olhos perscrutadores.

"Cheira-me que anda por aí desgosto de amor..."

"Digamos que tenho os meus motivos", rematou o alferes veterinário. "E o meu capitão? É

casado?"

A pergunta constituiu uma evidente tentativa para desviar a conversa, coisa que o superior hierárquico instantaneamente percebeu. No entanto, como homem sensível e bom diplomata, concluiu que não deveria insistir num assunto que Luís manifestamente evitava e aceitou a mudança de direcção implícita na pergunta do seu interlocutor.

"Sim, sou casado."

"Tem filhos?"

"Três."

"Caramba, isso já é uma ninhada!"

O capitão sorriu.

"É bom ser pai."

"São rapazes?"

"O mais velho é rapaz. As outras são meninas."

Prosseguiram a cavaqueira em tom morno, as palavras rolando ao ritmo mole da tarde. A feijoada apareceu requentada e servida com um arroz amarelado e seco, mas vinha suculenta e rica. Meio entorpecido com o verde branco com que regou o prato, Luís foi dividindo a atenção entre a feijoada, que engolia com mal disfarçada glutonaria, o capitão, que o ia esclarecendo sobre os diversos aspectos da vida no quartel, e a janela, minúsculo ecrã tridimensional por onde lhe entravam as cores e os cheiros da cidade.

Lá fora a vida arrastava-se com indolência. Passava uma carroça, um boi sonolento largava uma bosta no empedrado, um camponês carregava um cesto repleto de uvas verde--esmeralda. A luz da tarde mudava imperceptivelmente com o adormecer gradual do sol, adquirindo hipnóticas tonalidades azuladas. Por vezes pela janela irrompia o clip-clap-clip-dap metálico dos cascos dos cavalos; pareciam batuques a injectar energia no ar, mas logo o mugir mandrião de uma vaca ou o farfalhar lento das árvores marcavam o compasso melódico da tarde preguiçosa.

Mais por gulodice do que por fome, Luís arrancou um naco de pão e passou-o pelo prato já vazio, empapando o miolo com o delicioso molho que restava. O seu interlocutor embrenhava-se numa exposição sobre as ligações de camioneta para o Porto; parecia que havia várias por dia nos dois sentidos e as viagens duravam umas duas horas. Enquanto ouvia o capitão discorrer sobre os horários dessas ligações, meteu o naco de pão na boca e olhou distraidamente pela janela.

Foi então que a viu.

O cabelo pareceu-lhe um pouco diferente, mais escuro, mas as linhas delicadas do rosto e aquele ligeiro ar a May McAvoy eram inconfundíveis. Sentiu um baque no peito e ficou petrificado.

"Então?", alarmou-se o capitão, vendo-lhe a fisionomia totalmente alterada. "Sente-se bem?"

Luís ergueu-se de rompante. Seria possível? Estaria com visões? Era mesmo ela?

Precisava de tirar aquilo a limpo.

"Com licença!", exclamou. "Já venho!"

Saiu do lugar e deu um salto para a porta do restaurante. A rapariga já passara, mas o veterinário ficou um longo instante a vê-la de costas a afastar-se, o corpo a deslizar pelo passeio, o perfume a esvoaçar pelo caminho.

"Amélia."

VIII

Aquela imagem e aquele baque perseguiram-no o resto do dia. Vira-lhe o rosto fugazmente da janela do restaurante, sentira-lhe a fragrância, contemplara-a a afastar-se passeio fora. Parecera-lhe Amélia, mas não podia garantir com toda a segurança que fosse mesmo ela; é preciso não esquecer que já se tinham passado alguns anos. Dava-lhe a impressão de que o cabelo era ligeiramente mais escuro e notara algumas diferenças no corpo, em particular na forma como caminhava; o menear das ancas era algo diferente. Tirando isso, porém, iria jurar que se tratava mesmo dela.

Ficou sem saber o que fazer. Ansiando por uma confirmação, ainda pensou em interrogar o capitão sobre a identidade da moça; afinal estavam em terra pequena e todos se conheciam. Mas conteve-se. Não só o capitão Branco não a vira passar, como Luís achou que se arriscava a fazer figura de tonto. O que iria pensar dele o superior hierárquico? Que o seu veterinário queria conhecer a primeira rapariga com quem

se cruzara em Penafiel? Não, concluiu. Teria de descobrir por si mesmo. E discretamente.

Apesar da noite mal dormida, ou talvez por causa dela, compareceu manhã bem cedo no quartel.

O capitão Mário Branco, que incrivelmente tinha sido ainda mais madrugador, recebeu-o com café e entreteve-o até à hora em que o comandante deu entrada no edifício, eram já quase nove da manhã.

Luís foi então levado ao gabinete do responsável pelo regimento e apresentou enfim os cumprimentos ao coronel Silvério.

"Você é que é o veterinário, hem?"

"Sim, meu comandante."

"Já não era sem tempo!", exclamou. "Tenho para cá muitos animais a precisarem de tratamento!"

Soltou uma gargalhada, muito satisfeito com o duplo sentido da sua tirada, e os dois subordinados sorriram por cortesia. A conversa limitou-se a palavras de circunstância, erráticas e vazias, tão fúteis que depressa o capitão o arrancou dali e o levou a conhecer os restantes oficiais.

Concluídas as apresentações, o capitão serviu de cicerone numa visita ao quartel, começando pelas camaratas e passando pelo paiol. Para último deixou os espaços onde Luís iria exercer mais directamente as suas funções. Foram ambos à enfermaria veterinária, onde o recém-chegado conheceu os enfermeiros hípicos que iria chefiar, e deram um salto à oficina de siderotécnica.

"Nunca percebi este nome", queixou-se Luís. "Siderotécnica."

"São os ferradores", explicou o capitão Branco.

O veterinário sorriu.

"Eu sei que são os ferradores. O que não percebo é por que razão chamam a isto oficina de siderotécnica e não oficina de ferragem!"

O superior hierárquico riu-se.

"Dá um ar mais modernaço, suponho eu."

A derradeira etapa foram os anexos, que visitaram já próximo do meio-dia. Ao saírem para o pátio, a primeira coisa que Luís notou foi o forte cheiro a estrume, um odor reminiscente da quinta da família, nos Cerejais. O fedor indiciava a presença de animais nas imediações, o que foi confirmado por um súbito relinchar.

"As cavalariças", anunciou Mário Branco ao chegar aos estábulos. "Está aqui o essencial do seu trabalho."

Luís aproximou-se e espreitou para o interior. Enormes vultos permaneciam plantados na sombra, rodeados de palha; eram os cavalos do regimento. O veterinário analisou-lhes o porte encorpado, quase gordo, e identificou a raça.

"São bolonheses." Mirou o capitão com uma expressão interrogativa. "Vocês montam estes cavalos?"

"Estes, não. Usamo-los para puxar a artilharia."


"Então quais são as montadas?"

O capitão indicou os estábulos ao lado.

"Estão ali."

Adiantaram-se uns metros e espreitaram para os estábulos vizinhos. Ao ver os animais ali recolhidos, Luís assentiu com a cabeça, numa expressão aprovadora; eram mais delgados que os anteriores.

"Célticos", constatou.

Entrou na cavalariça e acercou-se de um deles, um cavalo castanho e robusto. O animal remexeu-se, inquieto com a presença do desconhecido, e relinchou ruidosamente. O veterinário hesitou, nervoso; não estava muito familiarizado com aqueles equídeos. Em Trás-os-Montes lidara sobretudo com mulas e o que sabia sobre cavalos era o que aprendera em Lisboa pelos livros da Escola de Medicina Veterinária ou nos exercícios de equitação do Hospital Militar Veterinário Principal.

"E o pónei", disse o capitão, apoiando os cotovelos na cancela de acesso ao estábulo.

"O quê?"

"Essa égua está nervosa por causa do pónei."

"Qual pónei?"

O oficial indicou uma esquina da cavalariça.

"Aquele ali. É o filho dela. A Diana não gosta de ver estranhos a deambularem por aqui, por causa do pónei." Sorriu. "Sabe como é, coisas de mãe protectora."

O veterinário apercebeu-se de um vulto mais pequeno, entre a égua e o canto mais afastado do estábulo.

"Ah, estou a ver!""

Luís mostrava-se determinado a não dar parte de fraco. Procurando comportar-se como um entendido, encostou-se à égua e acariciou-lhe o topete. Depois murmurou-lhe palavras suaves ao ouvido.

"Linda menina, linda menina." As palavras saíam-lhe como sedativos, suaves e tranquilizadoras.

"Pronto, está tudo bem. Linda menina."

Diana arfou e bateu com as patas traseiras no solo, mas, depois de novas carícias, pareceu ficar mais quieta. Vendo-a acalmar, Luís sorriu. Podia não estar muito familiarizado com cavalos, mas tinha um jeito muito especial para lidar com animais.

Conquistada a confiança da égua, levantou-lhe o lábio superior e analisou-lhe os incisivos.

"Então?", perguntou o capitão.

"Parece-me saudável."

Deslizou depois para o canto do estábulo e apreciou o pónei negro que a égua protegia. Era um cavalinho altivo e de olhar muito vivo, o corpo alto e a postura elegante.

"Belo animal, hem?"

Luís ficou a contemplá-lo, estranhando-lhe a raça. O corpo não conferia com as linhas da mãe; parecia-lhe ainda mais esbelto e ligeiro.


"É filho dela?"

"Sim."

"Mas não parece céltico."

"Tem toda a razão. O pai é o cavalo de um major que aqui esteve no ano passado. Um puro-sangue árabe."

De mãos à ilharga, o veterinário apreciou o pónei com outros olhos.

"É um bonito cavalo, sem dúvida", disse. "Acho que o vou treinar." Inclinou-se sobre o animal e acariciou-lhe o tronco, sentindo o pêlo sedoso deslizar-lhe pelos dedos. "Como se chama ele?"

"Ainda não tem nome."

"Não lhe parece que está na altura de ser baptizado?"

O capitão aproximou-se.

"Tem alguma coisa em mente?"

O pónei rinchou, como se percebesse que era ele o centro da conversa, e Luís pousou-lhe a mão no topete, tentando acalmá-lo.

"Relâmpago."

Apesar de o quartel estar equipado com uma messe, Luís improvisou uma desculpa relacionada com inspecções ao mercado, alegando que ia procurar os bovinos mais saudáveis para a cozinha do quartel, e passou a almoçar no Aires. Teve o cuidado de reservar a mesa junto à janela e dali ficou a vigiar a rua, atento a todos os transeuntes. Se ela passara uma vez por ali, raciocinou, decerto passaria de novo. Era uma questão de ser paciente e esperar.

Esperou um, dois, três dias. Como o quartel era quase ao lado, um major chegou a dar com ele por ali e lançou-lhe um gracejo, perguntando-lhe se era assim que inspeccionava o mercado.

Ao quarto dia, porém, a sorte sorriu-lhe. O almoço nessa ocasião era iscas com arroz de tomate, que depenicou sempre com os olhos pregados na janela, como se tornara seu costume. De repente, viu-a dobrar a esquina e meter-se pelo passeio, aproximando-se da porta do restaurante. Luís ergueu-se num salto e, o coração a bater com força, cravou nela os olhos intensos. Era a hora da verdade, o momento em que perceberia se ela era ou não Amélia.

A rapariga vinha com um vestido cor-de-rosa e transportava uma cesta de vime;dava a impressão de que ia à mercearia. A medida que se acercava, as suas feições foram-se tornando mais distintas. A expressão melancólica que lhe bailava nos olhos era indiscutivelmente de Amélia; o corpo, apesar do caminhar diferente, tinha as mesmas formas; até os lábios apresentavam a carnalidade sensual da antiga namorada.

Mas não.

Não era Amélia. Com decepção, mas também com um certo alívio, Luís constatou que se tratava de uma rapariga diferente. Apercebeu-se disso quando ela passou diante da janela, os olhos garços perdidos em pensamentos. O nariz era diferente, o cabelo também. Luís deixou-se cair na cadeira, quase ofegante. Não era Amélia.

A semelhança revelava-se espantosa, sem dúvida. Era também verdade que, desde a última vez que vira a namorada, julgava encontrá-la em cada rapariga que passava diante dele. Um sorriso, um olhar, por vezes um mero trejeito, qualquer coisa servia para a associar a Amélia. Era como se a visse por toda a parte. Mas desta vez, acreditava, havia algo de diferente e. Não era ele que tentava à viva força descortinar Amélia na primeira rapariga que lhe aparecia à frente; era aquela rapariga que possuía de facto inegáveis parecenças com Amélia.

A constatação de que não se tratava da antiga namorada deixou-o por instantes sem reacção. Se não era Amélia, o caso ficava arrumado. Mas, tal como a pequena traça que começa por corroer um canto da camisa e depressa faz o buraco alastrar a todo o tecido, também a inquietação lhe nasceu num minúsculo ponto do espírito e logo se espalhou por todo o corpo. Era verdade que a rapariga não era Amélia, pensou, mas também era verdade que, mesmo tendo-a visto só de fugida, aquela semelhança fazia com que ela não lhe fosse indiferente. Podia ser pela beleza, podia ser pela graça, podia ser por todos os pormenores de parecença com a sua paixão do liceu. Sim, que fosse pela parecença! E então? Que mal havia nisso? O facto é que a rapariga o deixara perturbado.

Num movimento impetuoso, ergueu-se, largou uma nota na mesa e saiu do Aires quase a correr.

Viu-a ainda a entrar no Tribunal Judicial e desaparecer para lá da porta. Sentiu uma necessidade absoluta de a ver de novo, de saber o que encontraria de Amélia naquela desconhecida. Foi por isso postar-se do outro lado da rua, vigiando a saída como um cão de guarda.

Ao fim de alguns minutos, porém, começou a sentir-se ridículo. O que pensariam as pessoas ao vê-lo ali plantado? Que comentários não se fariam na messe se algum camarada de armas deparasse com ele naquela pose? Diriam que o alferes veterinário estava a inspeccionar o gado que saía do tribunal?

Tirou uns documentos militares do bolso e pôs-se a consultá-los, fingindo-se absorvido em algo de grande relevância para as suas funções. Quem o visse diria que parara ali porque tinham acabado de lhe entregar coisas de incomensurável importância, talvez relatórios sanitários sobre os bovinos da região, quem sabe se não seriam notícias de uma grave epidemia animal?

A rapariga reapareceu dez minutos mais tarde. Retomou o caminho por onde tinha vindo, passando de novo diante da Pensão Morais e do Restaurante Aires, e dirigiu-se para a avenida principal. Luís enterrou o boné militar na cabeça, de modo a ocultar melhor os olhos, e seguiu-a à distância. Viu-a cruzar a Avenida Sacadura Cabral e meter por uma perpendicular, entrando no mercado municipal. O veterinário manteve-se no seu encalço; aquele sítio era perfeito para a vigiar.

Seguiu-a pelo mercado e fingiu inspeccionar as galinhas e os patos expostos nas bancadas, sempre com o cor-de-rosa do vestido dela presente no canto do olho. Topou-a de soslaio a comprar dois chouriços, uma broa e um pacote de maçãs, e de seguida esgueirar-se para a rua. Sem descolar, Luís observou-a a contornar a escola primária e a meter pela rua traseira do quartel. A meio da rua, ela encostou-se à direita e cruzou o portão do quintal de uma vivenda.

Parado na rua com os olhos a dançarem entre a vivenda e a fachada traseira do quartel, Luís não conteve um sorriso malicioso.

"Com que então somos vizinhos, hem?"

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