I
O rapaz perfilou-se à cabeça da fila, nu, plantado diante da secretária do oficial. O
alferes Luís Afonso olhava para a rua pela janela, apreciando o ar pacato da cidade. Já se habituara a ela, de tal modo que contemplava com uma certa familiaridade as fachadas dos edifícios e das lojas da Avenida Sacadura Cabral e o aspecto prazenteiro que o Campo do Conde de Torres Novas apresentava, mesmo em frente ao quartel.
Suspirou e olhou enfim para a ficha pousada na mesa.
"Nome?", perguntou, mirando a ficha.
"Aurélio do Carmo Silva."
O oficial miliciano levantou a cabeça, segurou os olhos do recruta e arregalou uma sobrancelha, com ar de quem não gostou da resposta.
"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes", corrigiu Luís, acentuando o meu alferes.
O rapaz pareceu ter-se assustado e ficou ainda mais hirto.
"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes."
O alferes veterinário pegou na caneta e tomou nota do nome na ficha.
"Data de nascimento?"
"Uh...", atrapalhou-se o rapaz. "Não sei, meu alferes."
O oficial mirou de novo o recruta, dessa vez com mais atenção. Tinha um ar rude, as mãos grosseiras, as unhas encardidas de preto; era um moço do povo, viera do campo e provavelmente os pais não o tinham registado logo à nascença.
"Em que ano nasceu você?"
"Em 1920, meu alferes. A minha mãe disse-me que foi na altura das colheitas, mas não sei o dia."
Luís voltou a levantar a sobrancelha.
"Não sei o dia, o quê?"
"Não sei o dia, meu alferes."
"Hmm", murmurou o oficial, debruçando-se mais uma vez sobre a ficha. Escrevinhou o ano, mas deixou em branco os espaços relativos ao dia e mês de nascimento.
"Naturalidade?"
"Faz favor de dizer, meu alferes?"
"Naturalidade?"
"Como diz, meu alferes?"
"Onde nasceu você, rapaz? Aqui em Penafiel?"
"Ah! Nasci na casa da minha avó, mesmo ao pé do riacho, ali em Guilhufe, meu alferes."
No momento em que Luís ia a anotar a informação, o telefone negro pousado na secretária começou a tocar com um riiiiiing aflitivo. O oficial pousou a caneta e atendeu.
"Está sim?"
Uma voz metálica, quase eléctrica, respondeu-lhe do outro lado.
"Olá, Luís, como vai isso?"
Era o capitão Branco.
"Estou aqui a atender os novos recrutas", disse, olhando de relance para o homem nu à sua frente. "Preferia ir treinar o Relâmpago, mas o coronel Silvério insiste em pôr-me aqui nestas funções..."
"Nem tem ele outro remédio. O Porto ainda não nos mandou nenhum médico, de modo que tem de ser você a tratar das provas de aptidão." Pigarreou. "Por falar no coronel Silvério, veio aqui ter comigo o oficial de operações, o alferes Boavida, a convocar-nos para uma reunião esta tarde."
"A convocar quem?", perguntou Luís, convencido de que havia escutado mal a última frase.
"A nós."
"A mim também?" -
"Sim."
O veterinário coçou a cabeça, surpreendido.
"Mas o que raio me quer o nosso comandante?"
"O alferes não me explicou. Disse-me apenas que se tratava de um assunto melindroso e confidencial. Temos de estar no gabinete do nosso coronel às três da tarde."
Luís desligou e permaneceu um longo momento a olhar pela janela, meditativo, interrogando-se sobre que assunto seria esse que tanto melindre suscitava e para que raio o quereriam envolvido nele. Haveria novidades sobre Francisco? Desde o crime na Quinta de Pousada que ele e Amélia viviam em sobressalto. Quando a GNR aparecera para investigar a morte do Tino, a versão que apresentaram foi que tinham encontrado ali o corpo quando saíam do casarão depois do pequeno-almoço, tendo ainda constatado que Francisco havia desaparecido. Era, na verdade, a única coisa que poderiam dizer. Se revelassem a verdade, ela seria demasiado suspeita. Além do mais, forçá-
los-ia a explicar como tudo