IV

Apesar de as conversas políticas serem recorrentes, os dois nunca se chegaram a entender sobre o Estado Novo. Os argumentos de Fernando faziam sentido à sua maneira, os factos históricos que apresentava eram verdadeiros, mas mesmo assim havia algo que deixava Luís desconfortável. Não sabia o quê, mas o transmontano queria mais do que aquilo que via à volta. Devia haver melhor do que a mão de ferro sob a qual o país asfixiava. Era uma questão de procurar.

Procurar foi coisa que ele não deixou de fazer desde o dia em que compreendeu que Amélia nunca seria sua. A partir desse momento a sua vida tornou-se uma permanente busca, mas durante muito tempo não percebeu o que procurava. Procurava, e era tudo. Mudou-se para Lisboa alegando que ia tirar Veterinária, mas foi na verdade procurar. Procurou mulheres, procurou livros, procurou ideias. Sabia que tinha de encontrar algo, mas não percebia exactamente o quê.

Até que um dia, já perto do final do curso em Lisboa, entendeu finalmente. Não foi um grande acontecimento que trouxe a luz que lhe iluminou a consciência. Tratou-se antes de um pequeno incidente, uma verdadeira minudência, coisa tão ridiculamente trivial que jamais a guardaria na memória não fosse a poderosa cadeia de raciocínios que tal insignificância desencadeou, como um minúsculo calhau cuja simples deslocação acidental inicia a devastadora avalancha que tudo muda.

Acontece que, numa noite de Junho inesperadamente fresca, tinha ido ao São Luís Cine ver um filme com Fernando, como era costume às sextas-feiras. A fita dessa noite foi Uma Loira para Três, película americana que atraíra grande clientela masculina, ou não fosse a estrela principal quem era.

"Esta Mae West é um espectáculo", observou Luís no elegante foyer do mais chie dos cinematógrafos de Lisboa.

"Mulher endiabrada", concordou Fernando, os olhos a passearem pelas lápides de mármore com cartazes a exibirem os rostos dos grandes nomes do cinema. "Mas confesso que aprecio mais a Garbo. É uma beleza mais graciosa."

Saíram à rua e Luís reparou nas películas brancas que se espalhavam pelos ombros do casaco do amigo.

"Olha lá, estás cheio de caspa."

Fernando espreitou os ombros.

"Pois estou", constatou. Tentou sacudir as películas com os dedos. "Comecei agora a usar o Petróleo Hahn. Vamos lá a ver se faz efeito."

"Isso é mesmo bom?"

"Sei lá."

Luís aproximou o nariz do cabelo do amigo e inspirou duas vezes.

"Pelo menos não cheira a estrume."

Iam assim a conversar pela rua, brincando um com o outro e discutindo mundanidades, quando, depois de descerem o Chiado e ao chegarem ao Rossio, Luís reparou numa mulher andrajosa encolhida numa manta e sentada sobre folhas de jornal estendidas no passeio. Era já noite cerrada e a mulher tinha encostada ao peito a cabeça suja de uma criança adormecida, por certo a filha, e ao lado encontrava-se um cesto de vime com um bebé embrulhado lá dentro. Talvez aquela mãe nem fosse mulher, apenas uma rapariga que a vida prematuramente envelhecera, mas algo na sua fisionomia atraiu a atenção do estudante. Tratava-se de qualquer coisa de indefinível, talvez do fardo da miséria que lhe pesava nos olhos, quiçá do alívio que buscava no braço estendido aos transeuntes.

"Dê-me uma esmolinha, por amor de Deus."

Também a ele a pedinte dirigiu o braço suplicante. Em vez de a ignorar ou de lhe lançar umas moedas de caridade, porém, Luís ficou momentaneamente a contemplá-la. Já tinha visto muitos pedintes nas ruas, Lisboa estava cheia deles, sujos, andrajosos e deformados, mas percebeu que era a primeira vez que os via mesmo. Via-os.

Foi o momento da epifania. Numa explosão de consciência, Luís caiu em si e compreendeu por fim o verdadeiro desígnio da sua busca. A justiça. Como se tivesse sido atingido por um raio de luz, teve nesse mesmo instante a noção de que, desde que Amélia lhe havia sido retirada, a sua vida se tinha transformado numa demanda contra a iniquidade.

A rapariga estendia-lhe o braço a implorar uma esmola e era como se fosse ele de braço estendido à vida a clamar por justiça.

Percebeu então que carregava dentro de si a revolta reprimida pelo amor que lhe havia sido roubado e alimentava uma sede louca, sôfrega, dolorosa, de justiça. Não queria vingança, não era disso que se tratava; procurava apenas um sentido de justiça. Vendo bem, considerou de imediato, se calhar nem era tanto a justiça o que verdadeiramente o atormentava, mas a injustiça. Incomodava-o a incerteza da vida, a arbitrariedade da sorte, a perversidade do destino. Com a imagem da pedinte esfarrapada diante dele, como um pequeno alçapão que se abriu e revelou o mais fundo de si mesmo, descobriu que o que realmente buscava era um sentido para a dor que não abrandava, e essa busca traduzia-se na demanda de um significado para a injustiça da existência.

"Então?", impacientou-se Fernando. "Vens?"

Quase automaticamente, Luís recomeçou a andar, mas sempre perdido nos seus pensamentos.

Murmurou algo imperceptível, tão incompreensível que levou o amigo a chegar-se mais a ele.

"O quê?"

Repetiu mais alto:

"Viver é sofrer."

Essa foi uma frase que lhe martelou na cabeça desde esse dia. Viver é sofrer. Essa verdade eterna estava-lhe presente na carne havia muito mais tempo do que imaginava.

Qual a justiça de ter perdido os pais ainda em criança? Qual a justiça da miséria e da fome da pedinte com o braço estendido? Qual a justiça de lhe ter sido roubada a paixão do liceu?

A infelicidade e o sofrimento, a perda e a dor, o que eram senão a regra deste mundo?

Onde havia justiça no tormento?

Não. Em definitivo, viver é sofrer. Nós é que procuramos instituir alguma justiça onde ela por si mesma não existe. Tudo é injusto, o sofrimento está em toda a parte, a dor é permanente. Bastava, aliás, olhar para os animais que estudava na Escola Superior de Veterinária e perceber o seu modo de vida na natureza, vê-los a caçar, a devorar, a fugir e a ser

devorados. Era afinal a isso que se resumia a sua existência, um permanente estado de horror e de flagelo em que a cada dia, a cada hora, a cada segundo, milhões de seres eram despedaçados e comidos vivos para sustentar uma única refeição de outros seres igualmente acossados por outros predadores. Disfarçada pela máscara cintilante da civilização, que polia a realidade com o talento lustroso de um ilusionista, a vida dos homens não se afigurava em boa verdade muito diferente da dos animais, como se podia descobrir no rosto e na vida daquela mulher que vira no Rossio. Para ela não havia animatógrafo nem poesia, apenas a mão estendida para sobreviver a esse dia.

Começou a convencer-se de que o mundo não tinha significado nem propósito; existia simplesmente, com desprendimento, alheio ao espantoso sofrimento que as suas regras implacáveis ditavam. Cada vida é uma tragédia imensa para quem a vive, mas cruelmente insignificante à escala do universo. Os seres vivos sofrem e o mundo mostra-se estranho a esse sofrimento, encarando-o com indiferença, aceitando-o como fazendo parte da ordem natural das coisas, como se a dor fosse o motor da existência, a iniquidade o seu preço. Cada desejo procura satisfação, cada obstáculo gera sofrimento. Mesmo a satisfação de um desejo apenas suscita felicidade temporária; logo a seguir vem um novo desejo, de novo travado por mais um obstáculo, o que significa que a existência é sempre luta, o sofrimento omnipresente, a felicidade efémera. Caramba!, pensou enquanto cogitava sombriamente sobre a tragédia da vida. Olhem para Dante, que não teve qualquer dificuldade em imaginar o Inferno... Bastou-lhe ir buscar os elementos que já existiam no mundo e, pimba!, eis o Inferno! Mas, oh!, quando chegou a hora de conceber o Céu, aí é que foi o cabo dos trabalhos! O

grande poeta não

teve artes para imaginar o Céu porque não havia neste mundo nada que o inspirasse para conceber o Paraíso! Nada! Meu Deus, não será isso a prova mais completa de que nós afinal vivemos no Inferno?

A descoberta deixou-o deprimido. Vivemos no Inferno! Se o sofrimento é a regra da vida, então Luís precisava de compreender a razão de estar ali, de respirar, de viver para o momento seguinte. Por que motivo era o mundo internamente doloroso? Qual o desígnio superior que o tormento servia? Qual o propósito de tanta dor?

Apercebeu-se de que, durante todos esses anos, fora essa busca que alimentara a sua convicção de que era necessária uma mudança. Mudança de Bragança para Lisboa, mudança de mulheres, mudança de políticos. Luís passou a viver obcecado pela mudança.

Mudança significava mudar o presente, mas mudá-lo em busca de algo melhor. E o que era o melhor? Para seu pasmo, tomou consciência de que, para si, o melhor não era o futuro, nunca fora o futuro, mas o passado. O passado. E o passado eram os passeios matinais de mão dada até ao liceu de Bragança, o passado eram os olhos cor de mel por que se apaixonara anos antes, o passado era ela. Ela. Ah, como tinha saudades de Amélia!

No rescaldo da sua epifania no Rossio compreendeu gradualmente que todas as mulheres que tivera, todos os corpos que gozara, todas as almas que amara não eram mais do que representações do seu único amor. Mudava de mulheres porque nenhuma era Amélia e no seu íntimo não aceitava que o seu verdadeiro amor estava agora para sempre perdido. Pensava nela todos os dias, embora cada vez mais pausadamente. Dava-lhe a impressão de que o tempo a ia arrumando com cuidado num canto, como se fosse uma fera cuja fúria não queria atiçar; mas o facto é que a dor permanecia lá. Talvez não tão dilacerante como no princípio; transformara-se já em sofrimento crónico, era como o murmúrio do vento a fustigar as folhas, uma chama que ardia em lume brando, um estrépito de fundo que não explodia mas também não morria. Vivia em negação, recusava-se a aceitar as consequências da perda da sua amada, evitava o luto que talvez o libertasse.

Tudo o resto, a passagem para Lisboa, a oposição ao regime, o desejo insaciável de mudança, mais não eram do que sequelas do pecado original.

Sublimava essa ferida primordial de várias maneiras, e a forma como encarava o mundo em que vivia era uma delas. Queria mudar o presente e, em política, o que era o presente senão Salazar? Tornava-se, pois, necessário mudar Salazar. Era ele o rosto do estado das coisas, o símbolo da mentalidade que lhe levara Amélia. Mudando Salazar, mudava-se o pensamento tacanho e atrasado em que o país vivia, mas mudavam-se sobretudo os comportamentos mesquinhos e retrógrados que o haviam separado da eterna namorada. E

talvez acabasse a dor. Talvez.

Ao perceber tudo isto, Luís chegou à conclusão de que teria de se pacificar. Precisava de aceitar a realidade, não podia continuar assim, urgia sarar aquela profunda ferida. A única maneira de o conseguir era fazer o que sempre evitara.

O luto por Amélia.

Quando Luís decidiu ir para Lisboa, os maiores obstáculos aos seus projectos foram levantados justamente pela pessoa que tinha a responsabilidade de lhe dar o dinheiro para os financiar, a tia Maria. Mulher prudente e desconfiada, ou não fosse transmontana até ao tutano, não se cansou de sublinhar a sinistra fama das fêmeas de Lisboa, umas vamps e coisas piores. Dizia ela que, entre as raparigas e senhoras de Alfândiga da Fé, se sabia de ciência certa que a maior parte das lisboetas eram fadistas de reputação duvidosa, sinuosas sereias que, entoando traiçoeiros cânticos hipnóticos, eram capazes de desviar do bom caminho o mais sério dos moços, pois então não se descobrira que nem certos padres resistiam à terrível tentação quando frequentavam os antros de pecado na capital?

As lisboetas revelaram-se, pelo menos à primeira vista, à altura de tão questionáveis pergaminhos. Com o seu olhar limpo e porte elegante, Luís chegou à grande cidade e conquistou-as de enfiada. Volta e meia descartava uma e ia buscar outra; os admiradores chamavam-lhe o Casanova de Bragança, mas os detractores conheciam-no por Matadouro de Virtuosas. Quem o acompanhava de perto sabia que as lisboetas não eram na realidade as debochadas sereias comedoras de homens de que tanto se falava em Trás-os-Montes; o verdadeiro predador à solta por Lisboa era antes aquele transmontano de falas meigas e expressão sedutora, o rapaz que as coleccionava como se fossem borboletas.

Luís estudou Veterinária dividindo os livros com os lençóis. Saltava da aula de Zootecnia Geral para a cama de Helena, dissecava um coelho em Anatomia Patológica e espremia um seio de Jacinta em anatomia feminina, discutia política com o amigo Fernando e amor com a varina Alzira.

"Há aqui muita matéria para estudar", gostava de dizer, um olho no livro, o outro na cachopa que se sentara ao lado.

Por vezes as aulas eram interrompidas por inspectores do regime, homens soturnos e de expressão severa que vinham lembrar aos futuros veterinários o seu dever de fazer "tudo pela Nação e nada contra a Nação", aforismo então muito em voga; e apontavam para a reforma agrária efectuada poucos anos antes na vizinha Espanha como prova final dos perigos decorrentes dos aventureirismos loucos e irresponsáveis dos comunistas espanhóis, os mesmos sob cuja asa, não se esqueciam de sublinhar, os reviralhistas portugueses agora viviam.

Noutros casos os visitantes eram meros propagandistas, figuras menores como aquele gordinho do Ministério das Colónias que um dia foi à sala convencer os alunos a assinarem um papel para se candidatarem a lugares no império colonial, "terra de oportunidades", ou a senhora de óculos e com ar de galinha depenada que apareceu à cata de talentos para uma das inúmeras iniciativas promovidas pelo Secretariado da Propaganda Nacional, a instituição recentemente criada com a missão de dinamizar o trabalho dos modernos criadores portugueses-na promoção do regime.

Com o amigo Fernando ia às películas mais picantes dos cinematógrafos de Lisboa. Todas as sextas-feiras saíam para ver as novidades, sendo que as maiores sensações eram em geral as do Tivoli. Aí assistiram a O Sinal da Cruz, fita que a publicidade dizia ser "da Roma antiga, das bacanais e das multidões nos circos"; está-se mesmo a ver que a referência às "bacanais" lhes excitou a imaginação, mas o filme nada mostrou que estivesse à altura de tão sensacional propaganda. Quem não os decepcionou foi Marlene Dietrich, a nova diva loura que, no mesmo Tivoli, apareceu nua numa cena do filme Cântico dos Cânticos, em que posava como modelo de um escultor. É certo que a nudez se anunciou fugaz e aquele grande mulheraço nunca chegou a cumprir a promessa de tudo revelar, mas, caramba!, já era bem mais do que as pernas, sempre belas é certo, que a actriz exibia profusamente em todos os seus filmes.

Os momentos solitários eram vividos à volta dos livros. As frequentes visitas às livrarias do Chiado puseram-no em

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contacto com a literatura e a poesia do seu tempo, mais os gigantes da filosofia. Conheceu poetas e escritores que frequentavam aquelas bandas, alguns dos quais partilharam consigo à mesa do café as suas prosas e poemas mais secretos; estudou Kant à luz do dia e Marx à chama do petromax, mas os seus preferidos revelaram-se Kierkegaard e sobretudo Scho-penhauer; e, claro, leu os clássicos da literatura, como Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, os seus favoritos; mas também se esforçou por entender os mais difíceis José Régio ou Raul Brandão. Entre os estrangeiros, as suas preferências iam para os franceses, em particular Zola, Flaubert e Hugo, mais os poemas de Baudelaire e Rimbaud, com deambulações não muito bem sucedidas por Proust ou Gide.

O seu predilecto era, todavia, o Romances sans paroles, embalado ao ritmo das nostálgicas palavras de Verlaine, que recitava em voz alta quando se achava sozinho no seu quarto da Rua Luciano Cordeiro:

II pleure sans raison Dans ce coeur qui s'écoeure. Quoi!

Nulle trahison?... Ce deuil est sans raison.

Cest bien la pire peine De ne savoir pourquoi Sans amour

et sans haine Mon coeur a tant de peine.

As saudades de Amélia, vibrantes na melancólica letra dos poemas que devorava à noite antes de desligar o petromax, corroíam-no até à exaustão. Refugiava-se na lembrança do olhar dourado de Amélia e a memória dos dias em que

passeara a namorada até ao liceu de Bragança pesava-lhe no peito, estreitava-o com tanta força que quase sufocava. Que feliz tinha sido em cada segundo que vivera naqueles inesquecíveis passeios até às aulas! Como fora estúpido em não perceber que a simples viagem da esquina da casa dela até à porta da sala onde a deixava era a coisa mais bonita que fizera na vida! O que daria para tudo viver outra vez...

Revivia esses instantes mágicos sempre que se achava sozinho à noite e era nas crises mais agudas de saudade, quando a nostalgia o apertava tanto que até se sentia asfixiar, que tomava a decisão fatídica. Tratava-se de uma decisão de paixão, como era natural nestas coisas, mas assumida com uma frieza arrepiante: ia deixar aquela e procurar outra namorada. As amantes não passavam de páginas de um livro, existiam para serem fruídas; lia-as com deleite e depois de consumidas passava à seguinte, atrás de uma vinha sempre outra. Talvez a seguinte lhe trouxesse o que procurava, o poema que lhe escapava em cada livro, o final em que culminaria toda a história: a magia perdida de Amélia.

A cerimónia de entrega dos diplomas foi, como sempre, muito concorrida. A ocasião era solene e celebrava um dos mais importantes momentos na vida de uma pessoa. O calor antecipava o Verão de 1935, com a luz quente a vestir a cidade de cor, o sol inclemente a arrancar reflexos do vidro das janelas e a semear tonalidades laranja nas telhas do vasto casario que ondulava pelas colinas.

Apesar do ar abafado, o anfiteatro da Escola Superior de Medicina Veterinária encheu-se de gente. Os professores e os recém-licenciados compareceram em peso, como seria de esperar; mas a maioria dos presentes eram os familiares dos homenageados, parte dos quais viera da província de propósito para a grande ocasião.

"Puf!", soltou a tia Maria, abanando o leque com movimentos lânguidos. "Isto está insuportável! Por amor de Deus, não haverá nenhuma alma caridosa que abra as janelas?"

Luís estudou os vidros por onde espreitava a luz do dia.

"Elas já se encontram abertas, tia. O problema é que o dia está quente. Além do mais, o ar não circula, é uma maçada."

A tia sorriu e apertou-lhe a bochecha.

"Oh, não faz mal!", disse, conformada. "O que interessa é que estamos os dois aqui e tu já és doutor."

"Só quando me entregarem o diploma..."

"Oh, isso é uma formalidade. Tu passaste, não passaste?"

"Claro."

"Então já és doutor! Um verdadeiro home-de-recibo!" Entrelaçou as mãos. "Ai se os teus pais aqui estivessem... o orgulho que eles teriam!" Suspirou e voltou a abanar o leque. "Deixa estar, não faz mal. Eu sinto-me orgulhosa por toda a família." Parou de novo o leque. "Olha lá, para onde é que vais trabalhar agora? Espero que vás lá para os Cerejais..."

"Não sei, tia. Não me apetece lá muito fechar-me na quinta."

"Então para onde vais tu?"

"Para já, vou amanhã ao quartel para me certificar de que passei à reserva militar. Depois vou ver as vagas que existem para veterinário."

"Ao menos vai para Alfândega."

"Vamos ver..."

Uma fila de homens de batina negra entrou no anfiteatro e logo se fez silêncio. A reunião adquiria súbita solenidade e os sussurros e as tosses substituíram a algazarra.

"Quem são?", perguntou a tia Maria, o leque diante da boca para lhe abafar a voz.

"São os doutorados. O da frente é o director."

A senhora contemplou-os, fascinada.

"Que gente tão distinta", murmurou. "São zaguchos, ora são?"

"Sim, muito espertos. Têm de ser, não é?"

Os professores caminhavam com uma postura pomposa, pareceriam militares em parada se não fossem as batinas e o corpo curvado pelo hábito de se debruçarem sobre tanto livro.

"Mas têm um ar um pouco cediço", rematou a tia Maria, impressionada com a idade avançada de alguns.

Os professores subiram ao palanque e sentaram-se na longa mesa, enfrentando a assistência. O director, um homem frágil de bigode e sobrancelhas brancas e olhar cansado, conferenciou com os do lado por instantes, aparentemente a acertar procedimentos, até que se endireitou, olhou para a frente e pigarreou.

"Minhas senhoras e meus senhores", disse, a voz fraca e trémula. "Vamos dar início à sessão solene de formatura."

Depois de umas observações de circunstância, o director deu a palavra a um outro doutorado. Era um professor de meia-idade, o bigode e a barbicha pontiagudos e grisalhos, óculos muito graduados encavalitados sobre o nariz. O homem ergueu-se da mesa e, de olhos míopes quase colados ao papel, discursou sobre a nobre missão do veterinário e a importância do seu trabalho "para o progresso da nação". O discurso prolongou-se em tom monocórdico, algumas frases quase inaudíveis; mas as palavras adquiriram força quando o discursante, fazendo uma pausa na leitura e encarando a plateia, arrancou a frase de grande impacto.

"Temos obrigação de sacrificar tudo por todos", disse, "mas não devemos sacrificar-nos todos por alguns."

"Muito bem!", exclamou uma voz entusiástica.

As palmas ecoaram pelo anfiteatro, era de longe a tirada de melhor efeito de todo o discurso. A Luís, contudo, cheirou-lhe a plágio; havia ali dedinho alheio, por certo oratória com a assinatura inconfundível do Presidente do Conselho, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal.

Depois do discurso, um outro professor veio juntar-se ao orador com uma pequena caixa de cartão, que pousou sobre uma mesinha. Tirou uma folha do bolso do casaco e começou a chamar.

"Adão Miguel Antunes Telles."

Um estudante ergueu-se da plateia e caminhou com pouca confiança até ao palanque. Foi-lhe entregue o diploma e o rapaz voltou para trás muito corado e debaixo de uma regulamentar salva de palmas.

Os nomes sucederam-se e logo se tornou evidente que a ordem de chamada era alfabética. Luís sabia que antes dele vinha o Licínio, pelo que, quando o colega subiu ao palanque, se preparou para ouvir o seu próprio nome.

"Luís António Afonso."

Luís António Afonso.

Assim. Sem tirar nem pôr. O nome estava afixado na lista do quartel e Luís via-o, encontrava-se lá escrito com todas as letras, mas mesmo assim recusava-se a aceitar.

"Deve haver engano", exclamou, abanando a cabeça.

Fernando esticou o pescoço e leu o nome dactilografado na folha pregada na parede.

"Luís António Afonso", confirmou. "És tu."

"Não pode ser."

"Olha lá, tu não te chamas Luís António..."

"Tem de haver engano."

"... Afonso?"

"Isto é mau de mais!", exclamou. "Então entregaram-me ontem o diploma de veterinário e hoje venho aqui ao quartel e topo com o meu nome para ir para a tropa?" Abanou a cabeça, agastado.

"Não pode ser! Deve haver engano!"


Recusando-se a aceitar a evidência, Luís largou a lista e dirigiu-se ao guichet. Uma longa fila de jovens já se encontrava no local e o recém-chegado não teve alternativa que não fosse aguardar que os da frente se despachassem.

"Desculpe", disse, logo que chegou a sua vez. "Será que pode verificar a identidade de um nome que ali está afixado?"

O soldado do outro lado do vidro pediu-lhe o nome e foi confirmar nos calhamaços dos serviços de recrutamento. Localizou um volume, lambeu o indicador para ajudar a folhear, parou numa página, hesitou, virou para a seguinte, passou o dedo pelas linhas, encontrou a que procurava e ergueu os olhos.

"Você é de Alfândega da Fé?"

"Sou."

O soldado fechou o calhamaço, as dúvidas desfeitas.

"É você."

Luís ficou a mirá-lo, entre o horror e a estupefacção.

"Mas... mas... não pode ser. Será que pode verificar outra vez?"

"Está verificado."

"Mas deve haver engano!"

Com ar enfadado, o soldado encolheu os ombros e lançou o olhar para além de Luís.

"O seguinte!"

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