IV
O carro de bois avançava devagar pela rua, arrastando um carregamento de azeitonas negras, tão reluzentes que pareciam pérolas. O agricultor que conduzia o carro seguia à frente, enérgico e transpirado, as mãos a puxarem a correia que guiava a direcção do animal.
"Uga! Uga!", repetia o homem, incentivando o boi. "Para a frente, vamos! Arriba!"
Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso.
Logo que o carro de bois passou, Luís cruzou para o outro passeio em ziguezague, evitando os excrementos de animais que se acumulavam pela via.
Foi então que a viu.
Amélia vinha a sair da mercearia a carregar um cesto de verga e nunca como nesse instante lhe pareceu tão adorável. Ainda nessa manhã de sábado a tinha encontrado nas aulas, aliás vira-a uma hora antes a sair do liceu, mas agora andava sem a bata escolar e adquirira novo brilho. Trazia um vestido
branco com flores vermelhas, um lenço de seda púrpura aninhado ao pescoço, as saias perigosamente curtas a tombarem logo abaixo do joelho; trajes sem dúvida atrevidos, de uma elegância condenada nos púlpitos das igrejas de todo o mundo civilizado.
Sem se conter, Luís deu dois saltos na sua direcção.
"Olá."
Ela estacou, admirada.
"Oh", exclamou. "Então? Também vens às compras?"
"Eu não. Vinha a passear por aqui." Contemplou-lhe o vestido com ar apreciador. "Hoje estás toda chique."
Ela baixou a cabeça e mirou o seu vestido branco, rodando as ancas para fazer a saia rodopiar.
"Achas? Comprei-o no ano passado, quando fomos ao Porto. Dei com ele numa vitrina da Cedofeita."
"É janota. Mas essa saia logo abaixo do joelho, não achas que ela... enfim..."
"Ela o quê?"
"Não será um pouco curta de mais?"
"Ora! É a moda!"
"Mas aqui em Bragança, não sei se concordas, parece-me um pouco arrojada." Girou o rosto em redor. "O pessoal não te lança olhares?"
Amélia soltou um risinho.
"Ui, nem imaginas! Havias então de ver o padre Pintado! Ainda esta manhã o encontrei e ele deu-me logo um sermão!"
"Olha quem!"
"Chamou ao vestido uma indecência, uma tentação do Demónio, e até citou o arcebispo de Nápoles!"
"Quem?"
"O arcebispo de Nápoles, vê lá tu! Disse que o arcebispo responsabilizava estas saias pelo terramoto em Amalfi!"
Foi a vez de Luís se rir.
"Olha que se calhar tem razão." Lançou-lhe um novo olhar para as saias, mas desta vez com pura malícia. "E tu, assim vestida, és bem capaz de provocar um terramoto por aqui."
"Pateta!" Amélia virou-se para trás e procurou o relógio de pêndulo pregado na parede da mercearia. "Ai, já é quase uma hora. Tenho de me despachar."
"Estás com pressa?"
Ela ergueu o braço e exibiu as compras, de onde sobressaíam as verduras.
"É a minha mãe. Está à espera da salada para acabar o almoço."
Luís inclinou-se para o cesto.
"Deixa estar, eu ajudo-te a levar o barreleiro."
"Só um bocadinho", disse ela, entregando-lhe as compras e retomando a marcha pelo passeio.
"Quando chegarmos perto de casa vais-te embora, está bem?"
"Porquê? Qual é o problema?"
"Se a minha mãe me vê com um rapaz, mata-me."
"Ena, que mãe mais bruta."
"Ai, nem imaginas. É uma autêntica polícia."
Luís endireitou-se e fez um ar empertigado.
"Achas que não ia gostar de mim?"
Amélia riu-se.
"De ti? Hmm... não sei. És rico, porventura?"
"Não sou pobre."
"Mas não sei se és o que ela espera. A minha mãe cismou que eu estou reservada para o filho de um homem rico, daqueles grandes capitalistas que aparecem nas revistas."
"E o que importa isso? Não é com ela que vou casar."
A rapariga fez um ar provocador.
"Então é com quem?"
Luís engoliu em seco. Não estava à espera que Amélia conduzisse as coisas naquela direcção e aquele não era certamente o momento nem o sítio adequado para irem mais longe do que já tinham ido.
"É... é com quem tiver de ser."
"Ah."
Caminharam alguns minutos em silêncio, ele da parte exterior do passeio a carregar o barreleiro, ela no interior a fitar o chão. A conversa tocara inadvertidamente num ponto sensível e ambos tacteavam agora terreno inexplorado.
Já se conheciam havia um mês e meio e tinham-se habituado aos encontros nos intervalos das aulas. Luís ardia de paixão, cada minuto acordado era ocupado por ela, cada momento a dormir era sonhado com ela; sentia-se ansioso quando não estava no liceu e apenas em paz quando se lhe juntava. Dir-se-ia que vivia exclusivamente para aqueles encontros; todo o resto do tempo era consumido num tormento, um doce suplício que apenas se atenuava quando se entretinha a recordar o que haviam dito um ao outro ou a planear temas para as próximas conversas.
Torturava-se a adivinhar o que lhe ia na cabeça. Será que ela gostava dele? Parecia-lhe que sim. Que outra explicação poderia haver para o facto de ela se afastar das amigas da turma para passar o tempo com ele? Mas a natureza exacta dos sentimentos que Amélia nutria por ele escapava-lhe. Seria apenas amizade? Achar-lhe-ia ela graça, mas nada mais do que isso? Ou será que ela pensava nele como ele pensava nela? Esta pergunta visitava-o com frequência e não achava resposta. Por vezes pensava que sim, convencia-se de que Amélia gostava mesmo dele, mas noutras ocasiões tinha dúvidas, tergiversava, achava que o seu desejo de que ela gostasse dele o fazia confundir tudo. No fim de contas, como explicar a sua passividade? Não tinha Amélia acabado de dizer que estava destinada a outro homem? Não passaria ele de mero passatempo para quem se prepara para mais altos voos?
Em boa verdade, como podia Luís ambicionar uma rapariga tão bela? Não seria presunção sua pensar que a moça mais bonita do liceu poderia gostar dele, gostar de verdade, gostar como nos grandes amores dos filmes ou dos romances?
"A minha casa é para ali", disse Amélia, rompendo o silêncio que se instalara entre ambos.
Luís esticou a cabeça, esquadrinhando a fila de fachadas que se estendia pela rua.
"Qual delas?"
A rapariga franziu o sobrolho.
"Para que queres saber?"
"Ora, gostaria de conhecer a casa onde vives."
"Para quê? Para te botares lá à porta e a minha mãe dar contigo? Havia de ser bonito!"
Luís fechou o rosto, ofendido.
"Tomas-me por quem?" Entregou-lhe o barreleiro e despediu-se, agreste e seco, possuído por um súbito assomo de orgulho. "Adeus."
Deu meia volta e afastou-se. No entanto, volvidos três passos logo lhe começou a custar respirar; o coração tinha mergulhado num turbilhão e palpitava de angústia. Já tivera várias paixonetas, namoricos de criança, mas aquela era a sua primeira paixão a sério, coisa forte a valer, e não sabia como lidar com as múltiplas emoções que o sufocavam. Sentia-se zangado e mortificado ao mesmo tempo, perdido para além do horizonte da razão. Afastava-se dela e arrependia-se já da estúpida soberba que tomara conta dele, amaldiçoava-se em
silêncio por deixar os sentimentos controlarem-lhe a mente; o que lhe passara pela cabeça para se armar em virgem ofendida? Talvez no dia seguinte se plantasse de joelhos a implorar-lhe perdão; a verdade é que se afastava e tinha já saudades dela, sabia que não era capaz de passar sem a ver.
"Luís!"
Aquele chamamento soou-lhe como um gongo salvador, ou talvez fosse apenas o adiamento da execução, efémero mas abençoado. Estacou e, quase a medo, olhou para trás e encarou-a. Amélia permanecia plantada na esquina da sua rua com o barreleiro pousado no chão, o vestido branco com flores vermelhas a bailar ao vento, o cabelo ondulado com madeixas aloiradas a cintilar ao sol, os olhos de mel derreten-do-se nele.
"O que é?"
Ela apontou para os pés.
"Amanhã esperas por mim aqui nesta esquina?"
"Amanhã?"
"Sim, levas-me até ao liceu?"
O rosto de Luís abriu-se num sorriso aliviado.
"Amanhã aqui, às sete e meia."