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O contacto estava estabelecido. Como um predador furtivo que ronda a presa inocente, sabia que só lhe restava fechar o cerco e desferir o ataque final.
Já tinha jogado aquele jogo inúmeras vezes em Lisboa, mas agora ele era um tudo-nada mais excitante, não só porque a sedução decorria numa terra de província, onde o contacto com o belo sexo se revelava mais difícil, e consequentemente mais apetecível e apimentado, como porque, de entre todas as raparigas que conhecera desde que saíra de Bragança, Joana era de longe a mais interessante, sem dúvida porque, devido à semelhança física, trazia com ela o perfume da memória de Amélia.
Não largou a janela do quarto nos dias que se seguiram. Quando a rapariga apareceu no quintal pela primeira vez depois do encontro, reparou de esguelha que ela lhe atirou um olhar furtivo logo que saiu de casa. Luís fingiu-se embrenhado na leitura e comportou-se como se não se tivesse dado conta da sua presença.
Mas, no dia seguinte, no preciso momento em que Joana assomou ao portão para sair à rua, largou o romance e lançou-lhe um adeus e um sorriso.
"Olá! Está tudo bem?"
A rapariga correspondeu com uma saudação calorosa.
"Bom dia! Ainda a ler o padre Amaro?"
"Muito interessante", disse ele, acenando com o livro. "Este Amaro é do arco-da-velha! Já não se fazem padres assim!"
Riram-se os dois e ela abanou a mão em despedida, iniciando o percurso do seu passeio do costume.
"Já não escapas", murmurou Luís, vendo-a tão consciente da sua presença. "És minha."
Assim continuaram por vários dias, trocando acenos e sorrisos à distância. O galanteador da janela foi alimentando desse modo aquela sedução platónica, quase à maneira das novelas, enleando a rapariga com uma subtileza feita de experiência, como um caçador batido a aguardar o momento decisivo. Avaliando dia a dia o modo como ela reagia à sua presença já habitual na janela, ultimou meticulosamente a táctica e marcou a estocada final para meio da semana seguinte.
Era uma quarta-feira soalheira e fria, um daqueles dias em que a brisa desce pelo vale do Sousa e congela a cidade. O capitão Branco tinha-se ausentado para Lisboa, onde ficaria um mês a exercer funções na Escola do Exército, deixando o veterinário mais à vontade com os seus projectos amorosos.
Logo que Joana apareceu no quintal, Luís fez-lhe sinal de que se preparasse e lançou para o vazio um objecto pontiagudo branco. A rapariga ficou surpreendida primeiro e intrigada depois, os olhos presos naquela forma aguçada que zigueziava
pelo ar, como uma folha seca, e que acabou por se estatelar na rua, mesmo diante da vivenda.
Após lançar uma mirada interrogativa para a janela de onde o militar a espreitava, saiu à rua e recolheu o objecto. Era um aviãozinho de papel. Voltou a olhar para Luís, que com um gesto lhe indicou que teria de desdobrar o avião. Joana obedeceu e deparou-se com uma mensagem inesperada.
Mil anos de tormento me parece Cada hora que sem ti e sem esperança Vivo de poder mais tornar a ver-te. Sustenta-me esta vida tua lembrança; A vida sobre tudo me entristece; A vida antes perdera, que perder-te.
Joana leu o poema três vezes; leu-o consecutivamente, acabava uma vez e voltava ao princípio.
Depois de tudo ler e de se certificar de que os versos diziam o que ela pensava que diziam, ergueu os olhos brilhantes para a janela e encostou a folha ao peito, como se o gesto fosse outro poema, como se aquelas palavras lhe tivessem cantado ao coração.
Inclinado sobre a janela, Luís lançou-lhe um beijo. Afogueada de emoções, ela corou, baixou a cabeça e correu para casa. Vendo-a desaparecer tão precipitadamente, o alferes veterinário sorriu, fechou a janela e pousou a mão no velho livro de receitas amorosas que o acompanhava desde aquele Natal nos Cerejais, o título Lírica e o nome Camões estampados a ouro na capa.
"Ah, grande zarolho!", exclamou. "Nunca falhas!"
Já em Lisboa tinha Luís afogado em mulheres o seu desgosto de amor e por várias vezes perguntou a si mesmo se não
estaria agora a fazer a mesma coisa. Precisava de ultrapassar o trauma da separação de Amélia e era sempre à custa de outras que o conseguia. Sabia, contudo, que as suas namoradas não passavam de respostas transitórias. Cada uma servia para lhe alimentar a efémera ilusão de que vencia o desgosto, mas depressa o sentimento de perda regressava, como uma ferida mal sarada, e era esse o sinal de que tinha de mudar para outra. Estaria Joana destinada a ser mais uma na sua infindável lista?
Procurou a solução nos intervalos das suas obrigações de veterinário do regimento, quando se esgueirava do quartel e ia ter com a nova amiga. Aproveitava as saídas diárias de Joana para a acompanhar no passeio, que se foi tornando gradualmente mais longo e apimentado. Luís relatou-lhe a sua vida em Lisboa e as aventuras na faculdade, mas teve sempre o cuidado de omitir a infância em Trás-os-Montes; queria dar a impressão de homem da cidade, vivido e conhecedor das coisas do mundo, e achava que as suas raízes transmontanas não se coadunavam com essa imagem de sofisticação urbana.
O curioso é que também Joana se revelou reservada, embora neste caso tal derivasse da sua natureza.
"Sou órfã", revelou ela quando um dia o passeio os levou até ao recatado jardim da Praça da República. "A minha mãe morreu há dois anos."
"Ah, coitada", exclamou Luís, apercebendo-se de que a ferida era relativamente recente. "És agora tu quem trata do teu pai?"
"O meu pai morreu quando eu era pequenina."
"Mas, então, e o juiz?"
"É o meu padrinho. Ficou viúvo há uns anos e a minha mãe mandou-me para cá viver com ele."
"Porquê?"
"Porque ele não sabia cuidar dele mesmo, coitado. E porque um dos desejos da minha mãe era que eu frequentasse aqui o Colégio do Sagrado Coração de Maria."
"O que tem o colégio de especial?"
"É um colégio de freiras francesas", disse, como se isso explicasse tudo. "Foi aqui que ela estudou quando era nova e tinha a mania de que não havia escola melhor." Baixou a voz, quase num aparte. "Eu cá acho que a viuvez do meu padrinho serviu de pretexto conveniente. Como ele vive aqui e o colégio é também em Penafiel, a minha mãe aproveitou e mandou-me para cá."
Havia em Joana algo que tocava fundo no transmontano. Luís apercebeu-se de que a rapariga tinha um encanto melancólico que lhe era estranhamente familiar, uma espécie de reminiscência de Amélia, como se o espírito de uma vivesse na outra. Aos seus olhos, Joana tornara-se, de certo modo, Amélia. A parecença física e alguns trejeitos davam-lhe a ilusão de que se tratava da mesma pessoa, uma impressão tão forte que a mente logo tratou de sublimar as diferenças registadas pelos olhos, como se a vontade de recuperar Amélia fosse mais poderosa do que a razão. Chegava a pensar que eram coisas da Providência; a paixão do liceu fora-lhe roubada, mas o destino compensava-o com uma segunda oportunidade. Amélia era-lhe devolvida com outro nome.
As coisas entre ambos só voltaram a evoluir ao fim de um mês, quando um dos passeios diários os levou para os lados dos Paços do Concelho. Os périplos da rapariga até ao tribunal tinham-se tornado cada vez mais variados, levando-os a outros pontos da pequena cidade; parecia a Luís que eram uma nova versão dos inesquecíveis passeios com Amélia até ao liceu de Bragança, só que numa outra terra e com um itinerário em permanente mutação.
Numa tarde invernosa ia ele garboso no seu sobretudo militar quando Joana o guiou até uma pequena rua que se abria à esquerda e descia íngreme, quase como se deslizasse para um poço. Uma pequena placa anunciava que estavam na Rua Direita.
"Anda daí", disse ela, encolhida num longo casaco azul--escuro. "Vou mostrar-te uma coisa."
"O quê?"
"O sítio mais romântico de Penafiel."
Descer o empedrado inclinado da rua requeria algum esforço de equilíbrio, pelo que o alferes veterinário teve de agarrar a mão da rapariga para a ajudar a caminhar. A pretexto de que estava frio, ela aconchegou-se em busca de calor, e desceram assim até diante de uma igreja de traça renascentista.
"Esta é a Igreja Matriz", revelou ela, os olhos garços a deslizarem pela fachada de pedra antiga.
"Não é romântica?"
A igreja parecia inclinar-se na rua, tentando também ela manter o equilíbrio na artéria oblíqua, uma parte da fachada mais profunda do que a outra. O edifício tinha um óculo no topo e duas colunas jónicas a enquadrarem a porta.
"Bem... é bonita", concordou Luís, um pouco desconcertado. Para local romântico, esperava outra coisa. "Confesso-te que já vi por aqui sítios mais românticos. Olha, o jardim ao pé do tribunal, por exemplo. Parece-me um..."
Ela tapou-lhe a mão com a boca e voltou a olhar para a igreja.
"Os meus pais casaram aqui."
Considerando que se tratava de uma órfã, era evidente que o local onde os pais se haviam casado tinha para ela um intenso valor simbólico, quase mítico.
Cruzaram a entrada e Joana mostrou-lhe o altar.
"É lindo, não é?"
Era um grande altar rocaille, mas Luís sentia-se mais preocupado com o desconforto do que com a sua harmonia. Fazia muito frio dentro da igreja e no ar pairava o odor beato a hóstias e velas queimadas. Joana parecia porém alheia a isso, a atenção focada no altar, como se recuasse até ao dia do casamento dos pais.
A rapariga virou devagar o rosto para Luís e os seus olhos meigos pestanejaram, pareciam borboletas trémulas. Os dois aconchegavam-se ainda um no outro, as faces quase a tocarem-se, o perfume de Amélia a flutuar nos cabelos de Joana. Inebriado, Luís não conseguiu resistir. Inclinou a cabeça, cerrou as pálpebras e com os lábios mergulhou na boca quente.
O namoro foi vivido às escondidas. Encontravam-se na esquina do quartel e iam beijar-se num canto escondido do discreto jardim da Praça da República, atrás do Palacete do Barão do Calvário, onde funcionava o Tribunal Judicial, o vale verdejante espraiando-se para além do muro.
Ao contrário do que sucedera com os múltiplos casos amorosos em Lisboa, desta vez a ilusão de que a namorada era Amélia não se desfez com o tempo. Pelo contrário, foi-se consolidando. Isso constituiu uma surpresa para o veterinário, que se habituara já a ver a magia do enamoramento desfazer-se ao cabo de algumas semanas, quando as semelhanças das sucessivas raparigas com Amélia esbarravam na constatação de que nenhuma era como a primeira.
Com Joana foi diferente. A medida que o tempo passava, mais se acentuava a ilusão de que ela era Amélia. As parecenças entre as duas revelavam-se óbvias e Luís não as questionava; limitava-se a viver na felicidade do momento, como se
Joana fosse realmente Amélia e estivesse diante do amor reencontrado. Na sua mente, as duas misturavam-se numa única e era sempre a antiga namorada que via quando se encontrava com a nova, de tal modo que por várias vezes quase chamou Amélia a Joana.
A semelhança entre ambas fez crescer em Luís aquela convicção de que lhe tinha sido mesmo dada uma segunda oportunidade. Cabia-lhe a ele decidir entre aproveitá-la e esbanjá-la. Começou a recear que circunstâncias que não controlava lhe roubassem Joana da mesma maneira que Amélia lhe havia sido tirada. A incerteza tornou-o ansioso. Estava convencido de que não dispunha de muito tempo para agir e foi na noite da passagem do ano, quando celebrou no quartel a entrada em 1936, que tomou a decisão.
Joana tinha ido celebrar a noite do Ano Novo a casa dos irmãos, que também viviam em Penafiel, e, como 1 de Janeiro era feriado, não tiveram maneira de se encontrar. Mas no dia seguinte, depois de trocarem sinais entre o quintal dela e a janela dele, cruzaram-se na esquina do quartel, como habitualmente, e seguiram em direcção à Praça da República, o seu poiso secreto.
"O que levas aí?", perguntou ela, indicando um cesto na mão do namorado.
Luís ajeitou o pano que cobria o cesto e manteve-o longe de Joana.
"Uma coisa especial", disse. "É surpresa."
Quando chegaram ao banco do jardim para onde iam sempre, o alferes veterinário pousou o cesto no chão e encarou-a.
"Vá, vira-te para o outro lado e tapa os olhos."
Joana fixou o cesto, como se tentasse ver para além do pano que o cobria.
"Mas o que é isso?"
"Já vais ver", insistiu ele. "Faz o que te digo: vira a cara e tapa os olhos. Anda."
Como uma criança irrequieta, Joana voltou relutantemente o rosto para o tribunal e pôs as mãos sobre os olhos. Ouviu um refolhar surdo atrás dela e suspirou com impaciência.
"Já posso?"
"Espera mais um bocadinho."
O barulho continuou e por duas vezes ela esteve à beira de não conseguir suster a impaciência e quase se virou. Mas conteve-se e esperou pela ordem do namorado.
"Já podes."
Voltou-se e viu uma toalha estendida no banco, sobre a qual se encontrava uma garrafa de vinho do Porto, dois cálices e um pratinho com várias fatias douradas de pão-de-ló.
"O que é isto?"
Luís estendeu-lhe um cálice e uma fatia do bolo.
"Entrámos em 1936 e vamos celebrar, minha querida, porque este ano vai ser muito especial."
Tocou com o seu cálice no cálice dela. "Feliz ano novo!"
Beberam o vinho do Porto de uma assentada e Joana quase ficou sem fôlego. Para compensar o ardor alcoólico que lhe queimava a garganta, engoliu duas fatias de pão-de-ló e soltou uma gargalhada.
"Não sabia que davas tanta importância à passagem do ano."
"Na verdade, não estamos a celebrar apenas a entrada no novo ano."
"Ai não?"
Luís tirou um embrulho do bolso do casaco e estendeu-o à namorada. Joana pegou no pequeno presente e estudou-o com admiração.
"O que é?"
"Abre."
Com os dedos ágeis, a rapariga desfez o papel de embrulho até ficar com uma caixinha minúscula na palma da mão. Abriu a caixinha e o cintilar de uma pedra preciosa quase a ofuscou. Olhou interrogativamente para Luís, que com infinita delicadeza pegou no anel, o fez deslizar num dos dedos dela e lhe devolveu o olhar.
"Casas comigo, Joana?"