VI
As coisas pioraram quando vieram as férias do Natal. Luís apanhou o comboio para Alfândega da Fé e depois a diligência com destino aos Cerejais. Deixou-se levar pela estrada de terra com os olhos perdidos na paisagem verde e montanhosa, resignado à pausa das aulas, sabendo que as férias significavam, na verdade, um interregno de Amélia.
"Vens um rapagão!", cumprimentou-o a tia Maria à porta da propriedade, segurando-o pelos ombros. "Um homem! Estás pronto a ajudar aqui no trabalho?"
"Bem... quer dizer...", atrapalhou-se Luís, para quem gastar as férias a trabalhar na terra não se afigurava uma perspectiva particularmente estimulante. "Há assim tanta... tanta coisa para fazer?"
A tia exibiu as oliveiras que se estendiam pela quinta; pareciam velhas bruxas carcomidas pelo tempo.
"Trabalho é coisa que não falta por aqui, valha-me Deus", exclamou. "Olha-me para este olival!
Não é lindo?"
"Lá isso é", concordou sem convicção.
"Então vais-nos dar uma ajudinha."
"Sabe, as azeitonas não me interessam muito..."
"Então o que te interessa?"
O sobrinho quase embatucou. Não lhe parecia grande ideia passar as férias de Natal a tratar de um olival, ainda por cima com o frio que fazia. Mas não o podia explicar com essas palavras. Em busca de um pretexto para se escapar, contemplou a propriedade e simulou uma expressão pensativa.
"A tia já ouviu falar na campanha do trigo?"
"Sim, andam agora com essa conversa. Porquê?"
"Não encara a possibilidade de passar a plantar trigo? Dizem que querem acabar com as importações e que é preciso tornar o país independente na produção do pão. Parece que o Estado paga uma fortuna por cada hectare plantado."
"Não é bem assim. Existe de facto um subsídio de cem escudos por hectare, mas só se o trigo for plantado em terras incultas ou onde houver cultura da vinha. Não é o nosso caso."
"Olhe que a campanha do trigo é o futuro, tia."
"Talvez, mas não para nós."
A conversa teve o dom de esfriar o entusiasmo de dona Maria pelo recrutamento do sobrinho. Tornara-se-lhe por demais evidente que Luís não mostrava o mínimo interesse no trabalho nos olivais e resolveu deixá-lo em paz.
Contudo, isso não foi necessariamente uma benesse, como Luís depressa percebeu. Se o tempo em Bragança já era lento, nos Cerejais teve a sensação distinta de que os relógios haviam literalmente parado. Não tinha nada que fazer.
Deitado na cama pela manhã, o corpo enroscado nas mantas para se abrigar do frio glacial, Luís desesperou de esperar, até porque esperava por nada. Limitava-se a languescer na prostração mole das férias. Lá fora os caseiros trabalhavam nos olivais e a patroa dirigia tudo como um rijo capataz. A tia Maria era uma quarentona de armas, viúva de um professor da escola primária que encontrou na gestão da propriedade do falecido irmão o seu propósito de vida, e exibia uma energia de fazer inveja a qualquer rapazola.
Vendo-os assim ocupados, a ela e aos caseiros, Luís suspirou vezes sem conta, perguntando a si mesmo se queria de facto a vida de província, se o seu futuro estaria realmente naquele pedaço de terra, se iria terminar os estudos para se enterrar nos Cerejais.
"Que estopada!"
O Natal foi, porém, celebrado com inesperada animação. Mulher avançada para o seu tempo e disposta a ignorar convenções sociais quando a ocasião o aconselhava, a tia convidou o caseiro e a família para a ceia, uma alteração à rotina que contrastou com os usuais jantares a dois à luz do candeeiro de petróleo. O senhor Ferreira e a mulher tinham quatro filhos que pareciam não parar quietos, remexendo-se nas cadeiras ou correndo à volta da mesa; a mulher afadigava-se a tentar controlá-los e Luís seguia o pandemónio com um olhar divertido. Sempre era um espectáculo diferente a animar a noite.
"Então, Ferreira?", perguntou a tia. "A ceia está boa?"
"Ah, minha senhora, este arroz de polvo está uma espantação", respondeu o caseiro, as mãos grossas e rudes agarradas à colher. "O picoso é que me apoquenta um poucochinho, faz-me arder a boca." Olhou para Luís. "Não acha, senhor deitor?"
"Eu gosto assim."
Aquele arroz era o prato tradicional do Natal em casa e, servido molhado e com um travo suave a picante, apresentava o dedo inconfundível da tia.
"Então o que planeias fazer quando acabares o liceu?", quis ela saber quando entraram na sobremesa, um delicioso arroz-doce salpicado a pó de canela.
"Oh, não sei ainda."
"Tens ideia de vir para cá?"
"Para quê? Para colher azeitonas?"
Sabendo que os olivais não seduziam Luís, a tia desviou os olhos para o caseiro.
"Para isso temos aqui o senhor Ferreira." Voltou a encarar o sobrinho. "Na verdade, tudo isto está a funcionar muito bem. Mas tenho curiosidade de conhecer os teus planos, claro."
Luís encolheu os ombros.
"ó tia, não tenho planos para já. Vou terminar o liceu e depois logo se vê..."
Dona Maria serviu-se do arroz-doce, como se concentrasse nele toda a sua atenção.
"E moça? Já tens alguém em vista?"
Apanhado de surpresa, o sobrinho corou.
"Eu? Claro... claro que não."
"Mas é melhor ires pensando nisso. Já te vais fazendo um homenzinho e começa a ser hora de constituíres família."
"Tia! Eu só tenho dezassete anos."
"E então? Já estás em idade." Olhou para o caseiro, como se buscasse apoio. "Não acha, Ferreira?"
O caseiro assentiu de pronto, solícito com a patroa.
"Sem dúvida, minha senhora. Há tempo e retempo que o menino devia ter posto o olho numa mocinha." Mergulhou a colher no arroz-doce. "Eu cá casei aos quinze. Atrasmente era tudo cedinho."
Sem paciência para argumentar com o senhor Ferreira, que considerava um pacóvio das berças, Luís optou por se calar.
"Tu já viste a Natália?", arriscou a tia.
"Qual Natália?"
"A filha do doutor Leitão."
"Quem? A do farmacêutico?"
"Essa mesmo. Olha que é um bom partido." Voltou a espreitar o caseiro. "Não é, Ferreira?"
"Oh, se é!", concordou o homem, para quem a palavra de dona Maria tinha qualidade divina.
"Ademais, e se a minha senhora me permite dizer isto, o deitor Leitão está cheio de cunfres e aquela cicisbeia ainda vai herdar uma grossa maquia."
Luís fez um estalido irritado com a língua.
"Eu quero lá saber da Leitona!"
"Natália", corrigiu a tia. "Está um amor de moça."
"É toda bem posta, sim senhora", concordou o senhor Ferreira com um balouçar afirmativo da cabeça, as palavras abafadas pelo arroz-doce que lhe enchia a boca. "Dá gosto vê-la."
O rapaz encolheu exageradamente os ombros, para sublinhar a sua indiferença.
"Bom proveito!"
O caseiro olhou-o de esguelha com a expressão entendida de quem conhecia a vida.
"Ou me engano muito, minha senhora, ou aqui o seu sobrinho é um salamurdo dos antigos", observou para a patroa. "Anda quietinho como um mocho, mas fá-las pela calada."
O assunto ficou encerrado, ou pelo menos assim parecia. Quando chegou a altura de abrir os presentes e Luís recebeu o seu, porém, o rapaz deparou com um pequeno livro de poemas que a tia lhe oferecera.
"Camões?", interrogou-se, contemplando a capa e o nome do autor. O título era Lírica.
Fez um sorriso pouco convincente. "Obrigado, tia. Gosto muito."
A tia estendeu o braço na direcção do livrinho, pegou nele e folheou-o com cuidado.
"Queres ouvir isto?", perguntou, localizando um trecho com o dedo. Afinou a voz, preparando-se para recitar. "Ora presta atenção."
Amor, que o gesto humano na alma escreve, Vivas faíscas me mostrou um dia, Donde um puro cristal se derretia Por entre vivas rosas e alva neve.
"Que bem", disse Luís, esforçando-se por esconder o enfado e parecer sincero. "Muito bonito, sim senhora."
"É, não é?", sorriu a tia, acenando com o pequeno livro. "É disto que as catraias gostam.
Recitas-lhes uns poemazitos de Camões com voz delicodoce e, tumba!, elas ficam logo todas caidinhas."
O sobrinho fixou os olhos no livro, de repente genuinamente interessado.
"A sério?"
"Claro", confirmou ela. "As mulheres adoram palavras românticas, o que pensas tu? E
quem há por aí que seja mais romântico do que o zarolho? Vais ter com a Natália, bufas--
lhe estes poemas ao ouvido e vais ver o que acontece..."
Luís não queria saber de Natália nenhuma, mas descobriu uma óbvia utilidade naquele livro. Então elas gostam de palavras românticas, ora é? Ouvem Camões e ficam logo caidinhas, ora ficam? Bastam umas palavras doces e tumba!, ora tumba?
Agarrou-se aos poemas com a mesma genica com que se agarrava ao arroz-doce da tia e passou o resto das férias a decorar os versos românticos; haveria de ter toda a Lírica na ponta da língua e, convenceu-se, se isso não desferisse o golpe fatal, então mais nada o poderia fazer.
Veio a passagem do ano e entrou em 1930 preso ao livro de poesia que recebera pelo Natal, acreditando ter enfim encontrado a arma secreta que tudo decidiria.
Seria Camões a chave do coração de Amélia.
VII
Os olhos saltitaram-lhe de alegria quando, numa madrugada gelada de Janeiro, já de regresso a Bragança e no recomeço das aulas, a viu descer a rua para o encontro no ponto habitual. Vinha linda, mais bonita do que era costume, as madeixas douradas do cabelo a fulgirem na luz baixa da manhã, um sorriso gaiato a bailar-lhe nos lábios, o corpo meneando-se como o de uma gata. Ou talvez fosse apenas a imaginação a pregar-lhe uma partida; se calhar Amélia vinha bonita como sempre, mas eram as saudades que a tornavam tão resplandecente.
Teve nesse instante ganas de a abraçar, de a esmagar contra o peito, exultante por ter terminado a longa provação das férias, mas conseguiu conter o ímpeto. Desceram pela rua a saltarinhar, alheios a tudo. Os transeuntes deslizavam pelo passeio como espectros, não passavam de leves sombras que se desvaneciam na neblina. Luís apenas tinha olhos para a sua amada, a angústia do Natal longe de Amélia substituída pela excitação de estar enfim com ela, como se passasse da angústia à excitação com a facilidade de quem vem do frio da rua e num instante se instala no calor do borralho.
"Então?", perguntou ele, lutando por esconder a excitação. "Essas férias?"
Amélia encolheu os ombros, mas manteve o sorriso que lhe ateava o olhar.
"Foram normais. E as tuas?"
"Normais também."
"O que fizeste?"
"Fui aos Cerejais passar o Natal. E estudei, claro."
Ela lançou-lhe uma expressão maliciosa.
"Tu? A estudar?"
"Sim, claro. Porquê?"
"Por nada. Não tens ar de marrão."
"Nem sou. Mas estudo."
"Ah, bom."
"E leio poesia."
Amélia torceu os lábios e espreitou-o de esguelha, céptica.
"Estás a brincar."
"Juro. Queres ouvir?"
"Claro."
Luís fez hmm-htnm com a garganta, fixou-a com atenção e começou a recitar.
Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios incendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente?
Amélia escutou-o muito atenta, o olhar de caramelo a beber as palavras, a respiração enlevada pela doçura melancólica dos versos, o rosto banhado pela perfeição que o poema derramava como gotas douradas de mel.
Quando Luís se calou, ela demorou uns instantes a reagir.
"Ena, não te sabia poeta!"
O rapaz sorriu.
"Bem, os poemas não são meus", disse em jeito de confissão. "São de Camões."
"Bem bonitos. Passaste o Natal a ler poesia?"
"Sim."
Um cintilar fascinado perpassou-lhe pelo olhar.
"Estou... surpreendida."
"Porquê? O que achavas tu que eu fazia nas férias?"
"Ora! Julguei que fosses jogar à trincassuada!"
O rapaz parou e pôs as mãos na cintura, fingindo-se ofendido.
"Lá vem outra vez essa conversa da trincassuada. Mas por quem me toma a menina?"
Tentando libertar-se dos efeitos hipnóticos dos versos que a tinham encantado, Amélia soltou uma gargalhada.
"Por um lafardo!"
"Eu? Um lafardo?"
"Sim. Só os lafardos jogam à trincassuada."
Retomaram a marcha.
"Pois, pois. E qual dos lafardos da trincassuada no liceu era mais bonito?"
Ela voltou a rir-se.
"Para que queres saber isso?"
"Ora, por nada. Tenho curiosidade."
Amélia fez um ar pensativo.
"Quem era o mais bonito? Hmm... deixa cá ver. Eu acho que era... era o... o Gonçalves!"
"Quem?"
Luís fez um gesto como de quem a ia atacar e ela, com uma gargalhada, deu um salto para trás e escapou-se.
"O Gonçalves!"
Começaram a correr pela rua, Amélia a fugir numa cascalhada de risos, ele atrás fingindo uma fúria. A rapariga escapulia-se com agilidade, apesar de trazer os cadernos apertados entre os braços, mas não tinha hipóteses perante a passada rápida e possante de Luís, que, sem se esforçar muito, deixando embora prolongar o delicioso jogo, adiando a captura pelo tempo que lhe pareceu razoável, acabou por alcançá-la.
"Ora diz lá outra vez", sussurrou-lhe ele ao ouvido enquanto a apertava entre os braços.
"Quem era o mais bonito?"
"O Gonçalves!"
Ele apertou-a com mais força.
"Quem?"
"Ai, bruto!", gemeu ela, cerrando as sobrancelhas. "Larga-me! Estás a magoar-me. Para poeta, és uma besta."
Luís aliviou o aperto, mas manteve-a presa entre os braços e colou-lhe os lábios ao ouvido.
Ditoso seja aquele que somente Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças De poder nalgum tempo ser contente.
"Hmm", ronronou a rapariga, rendendo-se à graciosa harmonia das palavras. "Que lindo."
"Então diz lá: quem era o mais bonito da trincassuada?"
"Hmm?"
"Quem?"
Amélia inclinou ligeiramente a cabeça para trás e fitou-o nos olhos. O sorriso maroto evaporou-se-lhe da boca e o rosto perfeito tornou-se meigo e doce, tão langoroso e suave como a resposta que soprou num murmúrio ardente.
"Tu."
Pela primeira vez tão perto um do outro, Luís cheirou-lhe o perfume de rosas e ela sentiu-lhe o cheiro a rapaz que já é quase homem. Os olhos de mel de Amélia fundiram-se nos castanhos dele, as respirações enlaçadas num único fôlego, os corações inflamando-se de ardor, ambos perscrutando o rosto do outro com a intensidade de quem sabe que encontrou o amor.
Incapaz de resistir, Luís inclinou-se devagar sobre ela. Foi apenas um movimento ligeiro, mas o suficiente para lhe tocar os lábios aveludados, primeiro ao de leve, como quem prova um doce, depois com sofreguidão, a gula tornada fome; eram pétalas açucaradas, gomos deliciosos que se abriam como uma flor diante do Sol. O dia fez-se noite e ambos se perderam para lá do horizonte, num paraíso de sensações e sentimentos, afogados um no outro, derretendo-se num amor incandescente. Era como se nada mais existisse no mundo; apenas havia o outro e aquele instante em que os lábios se colaram e os dois se fundiram num só.
O primeiro beijo.
VIII
"Acho que andam a pairar de nós", observou Amélia duas semanas mais tarde, logo que deu com Luís à sua espera na esquina da rua para a acompanhar no habitual percurso enamorado até ao liceu.
O rapaz lançou um olhar inquieto pelo passeio que ela percorrera, como se tentasse descortinar se alguém a seguira.
"Quem? A tua mãe?"
"As minhas colegas."
Luís sorriu de alívio.
"Ah, essas requeijiteiras?" Encolheu os ombros, indiferente. "Estou-me bem ralando."
"Mas não estou eu."
Puseram-se os dois a caminhar rua fora, ziguezagueando por entre as poças de água abertas pela chuva que caíra durante a noite, ele de mãos mergulhadas nos bolsos para aquecer os dedos gelados, ela de luvas brancas de lã macia.
Desde que tinham começado o namorico que Luís não voltara a beijar Amélia; não era por falta de tentativas, mas Por pudor dela. A rapariga evitava-lhe os lábios e a intimidade; dizia que não era chegado o momento e que precisavam de ter cuidado, que ela era uma rapariga de bem, que não queria que alguém a tomasse por uma chasqueta. Resignado, Luís percebeu que não lhe restavam senão as conversas e os poemas recitados no passeio até ao liceu. O namoro tornara-se
platónico, feito de palavras e de olhares e de desejos e pouco mais.
Então andas preocupada com as tuas colegas", disse ele, retomando o tema que a atormentava. "O que aconteceu?"
Foi ontem, no final da aula de Francês. Reparei que as minhas amigas se juntaram em grupinho aos murmúrios e lançavam espreitadelas vigilantes para todo o lado, como se tivessem medo de ser ouvidas."
Essas parvas estão sempre assim, aos segredinhos..."
Pois é. Aquilo é tão normal que eu pensei isso, achei que eram as palermices do costume."
Quais palermices? "
Sei lá. Pensei que estavam a comentar o ar janota do professor de Francês ou o penteado da Milú, essas coisas. Mas ontem notei que se botavam a olhar para mim enquanto coscuvilhavam umas para as outras e mais inquieta fiquei quando elas se calaram à minha passagem."
E qual é o problema?"
O Luís, é óbvio que estavam a falar de mim!" Que te importa isso?" "Ora, não gosto!
"E)deixa-as tagarelar à vontade." Estendeu o braço e procurou-lhe a mão. "Anda cá, lindona."
Mas Amélia afastou-se.
"Temos de ter cuidado, Luís. Já há falatório."
O rapaz soltou uma gargalhada e abriu muito os olhos, numa expressão de indiferença.
"E depois?"
"Para ti pode não ter importância nenhuma. Achas tudo engraçado, não achas? Vocês, os rapazes, são todos iguais! Olha que para mim isto é tudo muito aborrecido, ouviste? Ando toda arreliada!"
"Deixa-as falar, querida. Cão que ladra não morde."
"Isso é o que tu pensas", protestou ela. "Lembra-te que elas não são cães. São cadelas."
"É tudo o mesmo."
"Não é não. Além do mais, nesta terra a mordidela está no ladrar. Tenho de zelar pela minha reputação."
"Ora! O que te interessa a ti o que essas belfurinheiras dizem?"
"Não são elas que importam, Luís. É a minha reputação que está em jogo. É preciso que elas parem com o falatório."
"Ai é? E como tencionas convencê-las a calarem-se?"
Amélia ficou a observar o piso húmido da manhã, matutando no problema. Boa pergunta. Como calá-las? Era realmente preciso pôr cobro à situação antes que as coisas se descontrolassem. Talvez se impusessem medidas radicais, considerou, mas logo repensou o assunto: teria coragem para as tomar?
"Se calhar devíamos passar a ver-nos menos", disse, a voz muito baixa. Como se a afirmação lhe tivesse dado uma súbita força e resolução, fez nesse momento tenção de cruzar a rua. "É melhor começarmos agora." Apontou para o outro lado. "Eu vou daquele lado do passeio e tu vais deste.
Assim não nos vêem juntos."
"Estás louca?"
parou a meio da rua, voltou-se para o namorado, abriu os braços e arregalou os olhos interrogativamente. Então diz-me: como é que as calamos?" Nao ligues, Amelinha." Luís aproximou-se, segurou-a pelos onbros e fitou-a nos olhos. "Ouve o que te digo: deixa essas alcoviteiras tagarelarem à vontade. Daqui a uns dias já se calam
, vais ver.
Mas não se calaram. Dos comentários em surdina, as raparigas da turma passaram aos gracejos. A liderar a má língua estava Maria das Dores, a mais insolente da classe, uma espigadota:a morena muito temida entre as moças do liceu pela língua afiada e pelos modos atrevidos.
depois dos primeiros gracejos abafados por risadinhas tontas, maria das Dores notou no intervalo de uma aula que Amélia esquadrinhava o corredor do liceu com o olhar. Depois de lançar um sinal cúmplice às amigas, a morena destacou-se do grupo e atirou em tom de escárnio a primeira piada em voz alta.
Então? Andas à procura do teu cão-d'água?" sucederam-se os risinhos infantis e Amélia congelou, parando um momento para pensar no que deveria dizer ou fazer. Jesus dizeres transmontanos, um cão-d'água é um rapaz que persegue uma rapariga para namorar. Não se tratava de uma laracha grave, considerou, pelo que se fez despercebida e deixou passar. No entanto, não deixava de ser sintomático que os chistes já lhe fossem lançados para serem ouvidos.
Nada disse ao namorado, mas, numa manhã da semana seguinte, Maria das Dores aproximou-se com ar de gozo perante o olhar do grupinho do costume e observou a bata branca de Amélia como se estivesse a contemplar um deslumbrante vestido de baile.
"Então, Amelinha? Hoje vens toda bem posta!"
Amélia hesitou, pressentindo uma provocação.
"Eu?", admirou-se, defensiva, baixando os olhos para a bata que trazia vestida. "Venho como de costume..."
"Mas muito bem tratadinha, a bata passada que é um primor."
"Que tens tu a ver com isso?"
"Nada, nada." Risinhos lá atrás. "Isso são decerto cuidados para o teu galaripo."
Mais risinhos do grupo.
"Que galaripo? Do que estás tu a falar?"
Maria das Dores aguçou a expressão maliciosa, satisfeita por ter batido no ponto certo.
"Ora esta! Estás com o pocho, é? Que maus humores vêm a ser esses?"
"Não são maus humores nenhuns. O que eu não percebo é onde queres tu chegar..."
"Não percebes, ora não?"
"Não, não percebo!"
Maria das Dores pôs as mãos à cintura e fez um esgar de rapariga sabida.
"Não te faças de inês-d'orta! Eu sei muito bem dos teus segredinhos."
"Quais segredinhos?"
"Essas tuas conversinhas com o teu cão-d'água. Ele anda à cagadinha, à espera do momento oportuno para te ferrar o dente. E tu a dares-lhe trela..."
"Não digas tontices."
"Chama-lhe tontices, chama-lhe." Torceu o nariz. "Por que razão não se arreda ele de ao pé de ti?"
"Ora, somos amigos. O que tem isso?"
"Amigos, hem? Hmm... cá para mim estás-te a pilar pelo teu janota, é o que; é, esse ailila emproado com quem tu agora andas."
"O Luís não é nenhum ailila!"
"À certa!", riu-se a outra, olhando para as amigas a solicitar uma reacção cúmplice.
Sucederam-se os habituais risinhos e Maria das Dores voltou a fitar Amélia. "Olha lá, se queres que te diga está-me cá a parecer que se calhar vocês já foram mais longe do que deviam..."
"Que queres dizer com isso?"
"Foram ou não foram?"
"Diz lá, o que queres dizer com isso?"
Maria das Dores cravou-lhe o olhar como quem quer medir a reacção à sua pergunta.
"Ele não te desvirginou?"
Amélia nem queria acreditar no atrevimento da colega.
"O quê?! O quê?!"
"Tu percebes muito bem."
Tremendo de fúria e de vergonha, a rapariga chegou a duvidar do que escutara.
"O que é que tu disseste?"
"Estou a perguntar-te se não te tornaste amásia dele."
Pab!
Foi como se a mão direita adquirisse vontade própria, libertando-se do (corpo de Amélia e comportando-se como se tivesse vida autómoma. A bofetada reverberou pelo corredor do liceu com fragor. Num instante estava Maria das Dores a sorrir-lhe com ar zombeteiro, no momento seguinte viu Maria das Dores com ;a face descaída para a direita, a bochecha esquerda subitamente ruborizada, os cabelos num desalinho, Amélia a sentir a palma da mão arder com a força da inopinada estalada. Foi tudo estranhamente rápido e lento, brusca a bofetada, vagarosa a sequência de acontecimentos que se seguiram ao estalo, o olhar pasmado de Maria das Dores, o ar boquiaberto das colegas atrás dela, o pasmo que se apossou da própria Amélia ao ver a mão adquirir inesperada vida para defender o seu bom nome.
Fez-se silêncio.
Perante a expectativa geral, Maria das Dores endireitou-se e, após uma breve pausa em que as respirações ficaram suspensas, soltou um grito e atirou-se a Amélia.
"Cala-te!"
Seguiu-se um bruá, Amélia sentiu as mãos da adversária puxarem-lhe os cabelos, viu tudo a andar à roda, agarrou em Maria das Dores e puxou-a também, as duas engalfinhadas uma na outra, o pandemónio instalou-se em redor, na confusão Amélia enxergava pernas, braços, chão e tecto, ouviam-se gritos, sentiu o corpo ser atirado para um lado e para o outro, tudo se sucedia numa sequência caótica, meu Deus o que é isto?, não se percebia já o que era direita e esquerda e cimo e baixo, no meio da barafunda interrogou-se sobre o que estava ali a fazer, que loucura era aquela, o que lhe passara pela cabeça, como escapar daquela tremenda confusão.
"Mas o que vem a ser isto?"
A voz de homem, ressoando como um trovão, impôs-se sobre a balbúrdia e, como por encanto, instalou o silêncio no corredor. As mãos que agarravam Amélia desapareceram de imediato e ela recuperou o sentido de equilíbrio. Levantou os olhos e, por entre a neblina difusa das suas próprias lágrimas, ainda algo atordoada com o inesperado da situação, vislumbrou o professor Marques de braços estendidos a separá-la da adversária. Maria das Dores, com os cabelos desgrenhados e a face enrubescida como um pimento, ofegava profusamente.
Num gesto quase instintivo, Amélia procurou os vidros do corredor para além da multidão que a rodeava e viu-se nos reflexos tão desconchavada quanto a outra. Mas foi uma mirada breve, quase de relance, pois logo uma mão poderosa lhe segurou o braço esquerdo e a puxou com brusquidão.
"Vamos ao reitor", ordenou o professor Marques. "Onde é que já se viu as meninas deste liceu comportarem-se desta maneira?"
Prendendo cada uma delas com uma mão, o docente de Matemática arrastou-as pelo corredor. Um burburinho excitado cresceu entre os alunos que se foram apinhando no local, substituindo a algazarra e o súbito silêncio de alguns momentos antes. O professor sentiu a animação aumentar em seu redor e, irritado, voltou a cara para os mirones que atulhavam a passagem.
"Para onde é que estão a olhar? Hã? Aqui não há nada para ver. Vamos, tudo para as salas! Andor!"
O professor Marques levou as duas alunas em lágrimas arrependidas para a porta do gabinete do reitor. Mandou-as aguardar ali, bateu à porta e desapareceu para além dela.
As duas permaneceram de pé, cabisbaixas, ainda a fungarem e a reprimirem os soluços, ansiosas por saírem daquele temido lugar, nervosas por saberem que não o podiam fazer.
Receavam o que lhes iria suceder. A reputação do reitor era terrível; diziam que ele fazia trinta por uma linha por dá cá aquela palha e o medo adensou-se quando ouviram o desabafo espontâneo de um rapazinho que por elas passou.
"Estais quilhadas;."