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JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS

Ao sair da farmácia sentiu uma mão a agarrá-la no braço e teve um sobressalto.

"Preciso de falar contigo."

Era Luís.

"Ai, Luís, que susto!", exclamou, pousando a mão no peito sobressaltado. "O que estás aqui a fazer?"

"Temos de conversar."

Amélia olhou em redor, aflita.

"Não pode ser aqui, à frente de toda a gente. Vão comentar."

"Eu sei, mas tenho urgência em falar contigo."

A amante indicou com a cabeça a grande igreja do outro lado da rua, mesmo no meio da praça.


"Vamos ali à Misericórdia, estamos mais tranquilos."

Cruzaram a estreita Rua Serpa Pinto aparentando o ar mais natural do mundo. Para reforçar essa aparência, Luís indicou o embrulho que Amélia tinha nas mãos e entabulou conversa.

"O que é isso?"

"São as aspirinas e o xarope que me receitaste. Fui agora à farmácia aviar a receita."

"Tens tido dores de cabeça?"

"Ainda esta manhã."

"Então toma as aspirinas depois de comeres alguma coisa. E os pesadelos?"

"O costume. Esta noite sonhei que me tinham atirado para os calabouços e que não conseguia andar na cela porque havia ratazanas por toda a parte."

"Usa o xarope para isso."

Amélia tirou o frasquinho do embrulho.

"Não sabia que havia medicamentos para os pesadelos."

Luís pegou no frasco e abanou-o, como se assim conseguisse testar o líquido no interior.

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"Na verdade, nem sei se isto funciona. Mas recebemos no quartel uns jornais do Brasil que dizem que o Bromil serve para tudo, desde a sífilis até aos pesadelos."

"Estás a brincar. Resulta mesmo?"

O alferes veterinário devolveu o frasco de xarope.

"Não há nada como experimentar, não é?"

Entraram na velha igreja seiscentista da Misericórdia e de imediato se calaram, sentindo a imponência do santuário. O interior apresentava-se cheio de luz e ricamente decorado, com uma vasta abóbada de pedra em caixotões trabalhados e pilastras toscanas a sustentar um entablamento classicista. Era talvez a mais bonita das muitas igrejas existentes em Penafiel.

"Tens a certeza de que este é um bom sítio para falarmos?", sussurrou Luís, sentindo as palavras retinir pela igreja.

Amélia indicou as bancadas vazias.

"Não vês que não está aqui ninguém?" Ajoelhou-se, juntou as mãos em oração e murmurou:

"Faz de conta que estamos a rezar."

Luís achou boa ideia e imitou-a, ajoelhando-se e começando a fingir que rezava.

"Ligou-me o teu marido", disse ele, soprando as palavras como se rogasse perdão ao Senhor.

"Disse-me que o comandante quer falar comigo e com ele."

"Sobre quê?"

"Não sei. Mas estou preocupado."

"Porquê? Pode ser um assunto qualquer do quartel."

"Lá poder, pode. Mas é a primeira vez que o comandante me convoca para uma reunião. E logo com o teu marido também presente."

"Achas que apanharam o Chico?"


"Não sei. Talvez."

Amélia quase gemeu.

"Ai meu Deus, Virgem Santíssima! Isto não pode estar a acontecer!"

"Tem calma, isto sou eu apenas a especular."

"Como é que te soou o Mário?"

"Normal. Mas ele também não sabe qual o assunto da reunião."

Amélia benzeu-se, embora dessa vez não tenha sido a fingir.

"Queira Deus que esteja tudo bem. E agora, o que fazemos?"

"A reunião é às três. Vamos esperar para ver o que o comandante tem a dizer."

A amante olhou para ele, subitamente irritada.

"Se não sabes ainda do que se trata, porque me vieste aqui desinquietar?", protestou, erguendo ligeiramente a voz. "Já sabes que eu ando com os nervos à flor da pele..."

"Desculpa", apressou-se ele a dizer, tentando acalmá-la. "É que a convocatória pôs-me nervoso e eu próprio precisava de desabafar com alguém."

Calaram-se um momento.

"Bem, não há-de ser nada", devolveu ela por fim, de novo a sussurrar. "Andamos os dois nervosos com a possibilidade de o Chico ser apanhado. Vais ver que não há-de ser nada."

"És capaz de ter razão." Chegou-se um pouco mais a ela. "Tenho saudades tuas."

"Eu também", devolveu a amante. "Tenho muitas saudades. Muitas, muitas."

"Não podemos continuar a viver assim."

Amélia afastou-se, fazendo um esforço por manter a distância.

"Não temos alternativas, Luís. Não podemos voltar a fazer aquilo que fizemos em Castelo de Paiva. Nunca mais."

"Não consigo estar longe de ti."

"Tens de conseguir. Lembra-te que eu sou casada e tu também és casado, ainda por cima com a minha irmã. A nossa loucura em Castelo de Paiva provocou uma desgraça. Não podemos deixar que uma coisa dessas volte a acontecer. Se o Tino nos descobriu logo à segunda vez, a Joana também vai descobrir e o Mário também acabará por descobrir."

"Fugimos."

"Já te disse que não pode ser. E os meus filhos? Como poderei eu viver sem estar com eles?"

"Levamo-los connosco."

"Estás doido? Queres passar a vida toda com medo de ser preso?"

"Preso? Que eu saiba, não vou quebrar nenhuma lei."

"Mas vou eu. Não sabes que a lei agora diz que o homem é o chefe de família e que a mulher lhe deve obediência? Isto quer dizer que o Mário manda em mim. Se lhe desobedecer, estou a cometer um crime." Deixou escapar um suspiro. "Além do mais, se fugíssemos, que iria eu fazer? Ia esconder-me num sítio qualquer com os miúdos?"

"Podias trabalhar..."

"Isso é que era bom! Não sei se sabes, mas preciso de autorização do meu marido para poder trabalhar. Achas que, se eu fugisse e levasse as crianças comigo, ele me dava autorização para trabalhar?"


Sentindo-se apanhado numa ratoeira e sem ver como sair dela, Luís desistiu de argumentar. A lei fazia dela uma refém do marido.

"Porra para isto."

Respirou fundo e ergueu-se. Doíam-lhe os joelhos e as costas devido à posição em que estivera, mas isso não era nada comparado com a angústia que o agrilhoava. Precisava de se sentir livre e aquela igreja parecia-lhe um túmulo. Sem dizer mais uma palavra, sem sequer voltar a olhar para Amélia, virou as costas e foi-se embora.

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