V

O caudal líquido deslizava vigoroso pelo vale, a corrente de um tom de prata cristalino, o espelho de água a reflectir as nuvens baixas que deslizavam em silêncio ao sabor da brisa.

"£/ Llobregatr, gritou uma voz no camião da frente. "Chegámos ao Llobregat!"

Os homens do camião onde seguia Francisco ergueram-se de imediato e viraram os olhos para a dianteira, tentando vislumbrar a maravilha que era anunciada com tanta excitação.

"O que se passa?", perguntou o português, empurrando os seus camaradas para ganhar um melhor ponto de observação no camião. "Chegámos onde?"

"Chegámos ao Llobregat", disse Juanito, esforçando-se também ele por espreitar lá para a frente.

"A obra do gato?"

"Llobregat!"

"O que é isso?"

"É um rio, hombrer Rolou os olhos. "Ay, madre mia, vocês os Portugueses não sabem nada de nada!"

Francisco fixou a atenção no caudal de água que cortava o vale ao pé da estrada.


"E o que tem este rio de especial?"

"Barcelona, Paço!", gritou o amigo quase em êxtase. "Barcelona fica já a seguir!"

A informação incendiou os olhos do legionário português. Tinha pressa de acabar com a guerra e voltar para os braços de Rosa, e fora essa pressa que o levara às posições de vanguarda nas colunas do regimento. O legionário português via-se nesse instante entre os primeiros a atingir o rio Llobregat e a voltar-se em direcção a Barcelona. Poderia haver melhor notícia?

Por essa altura, a guerra apresentava-se, porém, algo diferente da que conhecera quase três anos antes. As valorosas e destemidas cargas de infantaria, de baioneta calada e aos berros de " Viva la muerte!", não passavam já de resquícios da memória, substituídas pelas modernas barragens de artilharia e pelos pesados bombardeamentos da aviação. O soldado inimigo deixara de ter um rosto, tornara-se invisível, transfor-mara-se numa abstracção.

Depois de inspeccionarem as margens do Llobregat, os legionários foram instalar-se em Montblanc, que havia caído pouco tempo antes. Que contraste com os combates renhidos do início da guerra, quando ficavam dias para tomar uma simples igreja, como acontecera em Almendralejo!

Agora tudo parecia rolar com facilidade.

Uma vez acomodado no boleto que lhe fora destinado, Francisco recebeu ordens para fazer o turno de sentinela às muralhas medievais da povoação. Não era um trabalho que apreciasse, mas o tempo morto permitia-lhe reflectir sobre as suas experiências, e as últimas deixavam-no algo desconcertado. Enquanto vigiava o horizonte não pôde deixar de estranhar as mudanças na forma de conduzir as operações. Parecia-lhe mesmo que a guerra já não era matança crua, já não era carne, nem sangue, nem fúria, já não eram lágrimas nem dor; era luz e era cor, transformara-se num espantoso espectáculo feérico que enchia de fulgor a linha onde o céu se colava à terra.

Ao cair da noite, sentado junto ao portão de Sant Jordi, viu o horizonte incendiar-se com o clarão escarlate e azulado da fornalha de guerra. Eram os canhões a bater as posições inimigas numa erupção de chamas e ferro, uma deslumbrante visão de luz acompanhada pelo ribombar remoto das detonações, estampidos surdos que estralejavam à distância. Lampejos sanguíneos denunciavam incêndios, Barcelona ardia sob a chuva de granadas que cruzava os céus, uma tempestade de ferro uivava com silvos sinistros e explodia com fragor ao tombar na cidade sitiada.

"Para a semana estaremos lá", observou Juanito.

Mas foi ainda mais depressa do que isso.

O camião onde seguiam Francisco e Juanito cruzou o rio Llobregat a 25 de Janeiro, integrado numa coluna que progredia com cautela. Apesar da prudência, a força nacionalista quase não encontrou resistência. Apenas uma estrada deserta.

"Estranho, isto", observou Francisco, desconfiado. "Os gajos não combatem?"

A coluna prosseguiu devagar, como se esperasse uma emboscada ao virar da esquina, mas não encontrou obstáculos até se deparar com as primeiras casas.

"Alto!", ordenou o coronel Fuentes, que seguia atrás e ultrapassou a coluna para inspeccionar o início do perímetro de Barcelona.


A coluna imobilizou-se e os motores foram todos desligados. Os oficiais subiram aos camiões e, de pé no tejadilho, perscrutaram o horizonte urbano com binóculos, tentando detectar sinais de qualquer armadilha. Ficaram por ali duas dezenas de minutos à procura de vultos suspeitos ou de posições fortificadas, mas nada conseguiram vislumbrar de anormal. Como tudo permanecia calmo, tomaram uma decisão.

"Vamonos", disse o coronel, descendo do camião e, com a mão esquerda, fazendo ao motorista um gesto para avançar.

Os roncos dos motores rasgaram o sossego e os camiões retomaram a marcha. Avançavam devagar, sempre à espera de uma surpresa, mas não havia sinais de resistência. Sentados na carga dos veículos, os homens viram em silêncio o casario dos arredores de Barcelona desfilar em torno deles, as ruas desertas, as persianas fechadas, o lixo a acumular-se por toda a parte.

Grossas nuvens negras rolavam para o céu e enchiam o firmamento; era a gasolina dos postos da Campsa que ardia, incendiada pelos republicanos em fuga.

Cata-cata-cata-cata-cata.

Uma súbita erupção de tiroteio obrigou a coluna a imobilizar-se.

"Porra!", resmungou Francisco, encolhendo-se no assento. "Estava a ver que os tipos não faziam nada..."

"Oitava companhia!", gritou o sargento Gomez. "Descer!"

Uma companhia de legionários apeou-se e seguiu imediatamente para o local de onde vinha o tricotar dos disparos. De imediato o tiroteio recrudesceu de intensidade e, depois de atingir um pico de fúria, pontuado por duas grandes detonações, logo se calou, como se alguém tivesse amordaçado o cano das armas.

Instantes mais tarde, a companhia retomou a sua posição na coluna, os soldados a rirem e a festejarem o último triunfo.

"Eram duas ametralladoras rojas", gritou o sargento Go-mez, regressado daquele foco de combate. "Vamonos."

Barcelona caiu assim, com um leve empurrão, como se estivesse apenas protegida por uma muralha de papel. Caiu após uma tímida defesa, quase simbólica; não passaram de uns quantos tiros disparados por uma mão-cheia de resistentes mais teimosos. Teimosos, mas não demasiado. Os restantes, aqueles que perfaziam o grosso da força republicana na Catalunha, haviam deixado já de acreditar em milagres e escapavam-se agora em direcção à fronteira, em busca de refúgio na vizinha França. Deixaram atrás deles uma Barcelona deserta, temerosa, moribunda, entregue ao inimigo, abandonada às pilhagens, cheirando a podre, a tremer de medo, à espera do pior.

Ao fim da tarde, deambulando por entre aquelas ruas desertas e largadas ao invasor, Francisco viu o silêncio absoluto ser timidamente quebrado. Primeiro uma voz e depois outra e outra ainda.

Aos poucos, de forma hesitante, mas gradual, as ruas por onde os legionários passavam foram recebendo homens, mulheres, crianças. De início era um punhado inseguro, depois o punhado cresceu e ganhou atrevimento, chegaram mais e mais pessoas, a certa altura a longa avenida das Les Rambles encheu-se de carros e de festa, de buzinadelas e de vozes; eram os nacionalistas que sempre se haviam mantido calados na Catalunha e que, em catarse, saboreavam o seu triunfo.

"Arriba Espana!", gritavam desordenadamente.

Na euforia da vitória, três civis abraçaram Francisco e algumas mulheres beijaram os legionários, mas o português

constatou que nenhuma se aproximava dele. Também não queria aquelas cabras, pensou com desdém; Rosa valia por elas e por muitas mais.

A certa altura, o grupo de populares em festa cresceu muito, cresceu tanto que se tornou uma vaga, depois uma maré, era já um rio a transbordar na Placa de Catalunya; viam-se lágrimas nos rostos e bandeiras rubro-douradas a esvoaçar sobre as cabeças, estendiam-se milhares de mãos no ar, ouviam-se sucessivas aclamações, gritos, vivas, agitavam-se lenços brancos, davam-se abraços, escutavam-se exacerbados arriba Espana!, a loucura envolvia os combatentes, tragava-os na mole humana, engolia-os numa inesperada vaga de arrebatado nacionalismo em terra até aí republicana.

Apesar da noite de folia e álcool, Francisco mal teve tempo de saborear a conquista de Barcelona, pois a VII Bandera recebeu imediatamente ordens para se dirigir aos Pirenéus e dar caça aos republicanos em fuga. A progressão para norte revelou-se, no entanto, inesperadamente difícil, não por causa do inimigo, mas devido a outro tipo de obstáculos.

"É só tralha!", observou o português.

Ao percorrerem o caminho, os legionários depararam-se com a estrada pejada de entulho e destroços. O estorvo era tanto que foi preciso ir procedendo a limpezas à medida que se avançava.

Os soldados tiveram de se apear e atirar todo o lixo para as bermas; viam-se uniformes, carros a muares, carroças, cavalos mortos, automóveis avariados, pilhas de papéis, tábuas, pneus, móveis partidos, detritos de toda a espécie empilhados por onde quer que os olhos se voltassem.

O som de explosões irrompeu mais à frente, na estrada, quando os batedores se aproximaram de Gerona. Estabeleceu-se a confusão, o que é, o que não é, chamou-se a aviação, 461

empurraram-se as peças de artilharia para a dianteira e as forças nacionalistas começaram a despejar ferro e fogo sobre o casario da povoação catalã. Os legionários foram espalhados pelos campos em redor, com Francisco e Juanito a montarem um ninho de metralhadora por entre duas vistosas azinheiras, num promontório de giestas com vista para os acessos a Gerona e ao rio Onyar.

"Mas estes gajos estão ali a fazer o quê?", interrogou-se Francisco, enquanto contemplava o povoado do outro lado do rio. "Ainda julgam que vão ganhar a guerra?"

"Não, Paço. Estão a ganhar tempo."

"A ganhar tempo? Para quê?"

"Para que os outros consigam fugir, hombre, não percebes? Os tipos deixaram homens e artilharia aqui em Gerona para nos travar e darem tempo ao resto dos rojos de escaparem para França."

"Ah." Francisco coçou a barba rala que lhe crescia no queixo. "E os Franceses vão deixá-los entrar?"

Juanito riu-se.

"Sei lá! Se não deixarem, esses cohos estão todos tramados!"

Permaneceram uma semana inteira naquele promontório arborizado, Gerona a seus pés.

Instalaram uma tenda atrás de uma azinheira e era ali que resistiam ao frio e à chuva do desagradável Inverno catalão. Para compensar, o rancho melhorou um pouco, à custa dos enchidos que encontraram escondidos numa casa de agricultores das redondezas; dia e noite refastelaram-se com butifarras e llangonissetas, que acompanhavam com batatas ou fideus, uma espécie de massa comum na região, tudo abundantemente regado com vinhos de Alella que pilharam de uma adega abandonada.

Os bombardeamentos de Gerona tornaram-se uma constante ao longo daqueles dias; os incêndios no povoado constituíam

mesmo a única atracção na vida de Francisco e Juanito naquele promontório para onde ambos pareciam ter sido desterrados. Até que, corria o dia 4 de Fevereiro, as forças nacionalistas decidiram forçar os acontecimentos e procederam a um vigoroso bombardeamento com bombas incendiárias.

Gerona transformou-se num vulcão, o solo tremia sob o impacto das detonações, o ar reverberava, viam-se chamas por toda a parte, ardia o velho bairro judeu de El Call, ardiam os edifícios na Placa Sant Feliu, na Placa Catedral, no Carrer Ballesteries, por toda a parte lavrava um fogo infernal. Os blindados e os soldados nacionalistas carregaram pela estrada, lá pela esquerda.

Vistos do promontório das azinheiras, máquinas e homens pareciam baratas e formigas a convergir para o rio e a mergulhar na fornalha de guerra.

Gerona caiu nesse dia.

Dali até aos Pirenéus foi um passo. A resistência dos republicanos fora quebrada, o último bastião ultrapassado.

Uma bandeira francesa içada num poste distante, o pano sacudindo ao sabor do vento forte do entardecer, assinalou a chegada do camião de legionários ao destino.

"La Junquera", anunciou Juanito.

Francisco olhou para a balbúrdia em redor.

"O que é isto?"

O espanhol apontou para a tricolor para lá do arame farpado.

"Corâo, então não vês ali a bandeira francesa?"

"Sim."

"É a fronteira, carayV

Os legionários foram despejados do camião e o português hesitou diante da indescritível confusão estabelecida na estrada. Um cenário de verdadeiro caos revelava a dimensão da fuga de meio milhão de pessoas para aquela zona, muitas delas autorizadas pelos Franceses a atravessar a fronteira.

Mal se conseguia caminhar junto àquele sector, tão pejado se apresentava o caminho de obstáculos; eram cavalos esventrados, tanques destruídos, automóveis carbonizados, carroças amontoadas, tendas desfeitas, lixo acumulado, ratos com as tripas a secar ao sol, entulho, imundice, os restos da miséria humana abandonados na loucura cega da fuga.

O sargento Gomez apontou para a cordilheira que rasgava o céu em redor.

"Atenção, legionários!", chamou. "Há muitos rojos a tentar passar a fronteira pelos Pirenéus.

Recebemos ordem para ficarmos à espera deles naquele monte."

Um murmúrio impaciente cresceu no grupo.

"Estão com medo?", perguntou o sargento com uma ponta de sarcasmo na voz.

"Nós somos legionários, meu sargento", protestou Francisco, sempre desejoso de acção. "Ficar num monte à espera que os comunistas apareçam é coisa para gente amaricada, como os requetés e os falangistas. Com tanto monte por aí, o mais certo é não se passar nada."

"Fiquem descansados que os rojos vêm ter connosco."

"Mas como sabemos isso, meu sargento?"

"A cavalaria está a tratar do assunto. Os nossos homens andam numa azáfama atrás dos rojos, ali para os lados de Requens, e vão tentar empurrá-los para nós."

Os legionários alinharam em pares na estrada, preparando--se para marchar até aos pontos de emboscada. O sargento Gomez percorreu o grupo, como se o estivesse a inspeccionar, e parou junto a Francisco e Juanito.

"És tu o impaciente, hem?", disse, encostando-se ao português.

"Sou legionário, meu sargento."

"Caluda! Vem para aqui." Apontou para Juanito, que se encontrava ao lado. "E tu também."

O par abandonou a fila e pôs-se em sentido diante do sargento. Gomez apontou para o arame farpado ao fundo da estrada.

"Estão a ver a fronteira? Sigam até lá e apresentem-se ao graduado que está a controlar o trabalho dos prisioneiros."

"Mas... não vamos com o resto dos camaradas para o monte?"

"Não discutas a minha ordem!", gritou o sargento. "Cumpre-a!"

Os dois legionários fizeram continência e encaminharam-se para a linha de fronteira. Quando chegaram à curta estrada para onde foram destacados, esperava-os um espectáculo inaudito. Aquele trecho de cinco quilómetros de asfalto parecia um verdadeiro cemitério de carros, um depósito de ferro--velho aberto no meio de uma imensa lixeira; o entulho era tanto que se tornava difícil caminhar por ali.

No ar pairava um fedor ácido a podre e alguns pneus ardiam devagar, erguendo rolos de fumo negro que se abraçavam como serpentes. Francisco e Juanito apresentaram-se diante do graduado e ficaram incumbidos de orientar o trabalho dos presos. Os republicanos aprisionados, agora armados de pás e carrinhos, procuravam desobstruir o acesso à fronteira.

O trabalho era aborrecido e por várias vezes o português perscrutou os Pirenéus, arrependido por ter questionado a ordem de se emboscarem ali.


"Trabalha, cabrão!", exclamou, dando um primeiro pontapé a um preso que demorou um pouco mais a erguer um pedaço de sucata.

O pontapé soube-lhe bem, era uma forma de descarregar a frustração. Seguiram-se outros e outros ainda.

"Andem, mulas! Mais genica nisso!"

Por vezes, entre duas ordens gritadas ou uma coronhada desferida a um prisioneiro mais lento, Francisco espreitava para o outro lado do arame, para o posto de Perthus, em cujo mastro tremulava a bandeira tricolor. Por detrás dos soldados franceses, o legionário vislumbrava uma multidão andrajosa, os rostos congelados voltados para cá, as expressões carregadas de melancolia, os olhos a chisparem de saudade pela Catalunha que haviam deixado para sempre.

Sempre imaginara que seria uma alegria ver o inimigo assim vergado. Mas, agora que esse momento chegara, constatou com surpresa que não era isso o que sentia. A verdade, a estranha verdade, é que não sentia nada. Nada.

A não ser tédio.

"Trabalhem, pandeiros!"

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