IX
A porta abriu-se e, com cara de poucos amigos, o professor Marques fez-lhes com a cabeça sinal de que entrassem. Amélia respirou fundo e assumiu a dianteira, resignada; tinha as pernas fracas de pavor, embora estivesse decidida a enfrentar o que fosse preciso. Cruzou a porta e mal entrou sentiu o cheiro a naftalina e o ambiente opressivo e escuro do gabinete, mas fez um esforço para controlar os nervos e não se deixou intimidar mais do que já estava.
Ergueu os olhos e viu o reitor sentado à secretária, gordo, a gravata negra e fina a estreitar-lhe o pescoço anafado, o colete a lutar por se manter apertado. Tornava-se evidente que aquele fato era pequeno de mais para tão grande corpanzil; o reitor parecia acreditar que uma roupa de número mais baixo conseguiria miraculosamente reduzir a imensidão da gordura que lhe tolhia os movimentos.
"Dá licença, senhor reitor?", murmurou Amélia, temerosa.
Atrás, Maria das Dores mostrava-se ainda mais intimidada e nem uma palavra conseguiu pronunciar.
"Hmpf", assentiu o reitor.
Fez-lhes sinal com os dedos sapudos de que se aproximassem. O professor Marques ficara lá fora, deixando-as sozinhas com o que lhes parecia ser um monstro horrendo. Amélia acercou-se da secretária de carvalho e Maria das Dores fez o mesmo, mas mais devagar, quase a arrastar-se pelo soalho frio; as duas trepidavam de medo, embora Amélia conseguisse ocultar melhor o tremor que lhe percorria o corpo e o terror que lhe insensibilizava as pernas. A sua adversária era porém menos controlada e as mãos agitavam-se-lhe desalmadamente; parecia em estado febril ou submetida aos rigores do gelo das serras.
O reitor ficou um instante a contemplá-las. Os olhos negros, pequenos e húmidos, traíam uma expressão astuta e cruel e saltitavam de uma para a outra, como se as medissem, avaliando-as em pormenor, urdindo em silêncio a ira punitiva. Amélia evitou cruzar o olhar com o dele e baixou os olhos. Com a atenção sempre pregada no chão, Maria das Dores soluçou e fungou.
"Com que então as meninas pensam que o liceu é uma arena de touros", disse por fim o reitor.
Tinha uma voz macia, quase um sopro. Noutras circunstâncias achá-la-iam bonita, mas ali parecia-lhes traiçoeira, o tom tenro insinuando ameaças invisíveis. Era como a brisa suave que precede as tempestades brutais; parece doce mas é amarga, tal como a rosa que atrai com as cores vivas das pétalas e trai com os espinhos que as folhas ocultam.
"Então? Perderam o pio? Não dizem nada?"
Mantiveram-se as duas caladas, sem saber o que fazer ou dizer. Intuíam que qualquer palavra poderia desencadear o pior, pelo que o mais sensato lhes pareceu o silêncio.
O reitor pegou numas fichas que tinha pousadas sobre a secretária e leu-as com lentidão intencional, quase a soletrar.
"Maria das Dores Carvalho Diniz", disse. Ergueu os olhos e fitou-as. "Quem é?"
Ambas continuaram caladas.
"Quem é?", rugiu com inesperada violência.
As raparigas deram um salto de susto, como se aquela pergunta fosse uma violenta bofetada; a voz branda transformara-se num feroz rugido. Maria das Dores começou a chorar copiosamente.
"É você?", perguntou ele, o tom assertivo mas agora menos violento, dirigindo-se a Maria das Dores.
Sem parar de gemer, a morena fez que sim com a cabeça.
"Então cale-se!", ordenou com rispidez. "Não quero aqui carpideiras!"
Intimidada, a rapariga quase susteve a respiração e o choro voltou a ser um gemido mal contido.
Com um arrulhar de aprazimento, o reitor voltou a atenção para a outra ficha.
"Ana Amélia Rodrigues de Campos." Ergueu a cabeça e fitou Amélia. "É você?"
"Sim", assentiu ela, a voz reduzida a um fio.
Os olhos miúdos do reitor estreitaram-se, perscrutadores.
"Ana Amélia? Porque não Maria Amélia? Todas as raparigas são Marias. Por que razão há-de a menina ser diferente?"
Amélia encolheu os ombros, impotente.
"Foram os meus pais que assim decidiram..."
O reitor afagou o queixo, fitando-a com desconfiança.
"Estou a ver que os seus pais não são bons católicos." Inclinou-se para a frente. "Serão lefrains?"
A rapariga não entendeu a palavra e manteve-se silenciosa. O reitor torceu os lábios e demorou-se a fitá-la e a estudar a ficha; depois a sua atenção voltou-se para Maria das Dores e os olhinhos negros puseram-se a saltitar entre as duas, mas sem que o responsável pelo liceu pronunciasse uma palavra.
Para combater o nervosismo, Amélia atreveu-se a olhar em redor. Atrás do reitor pendurava-se um retrato do general Carmona, de farda de gala e expressão sempre austera.
A janela do gabinete estava corrida, com cortinados carmesim; era sobretudo isso que conferia um ar lúgubre ao local, uma vez que a luz do dia não passava de um ténue clarão que penetrava pelas frinchas, fazendo com que as sombras parecessem espectros a despontar pelos cantos. Havia algumas estantes de livros e uma enorme mesa com várias cadeiras junto a uma parede do gabinete, certamente a mesa de reuniões.
"Quero que me façam um favor", disse o reitor de novo em tom macio, rompendo o silêncio pesado. "Fazem?"
Ambas disseram que sim com a cabeça, quase com fervor. Fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que se soltasse a ira que adivinhavam mal contida.
"Muito bem", exclamou ele. "Quero que me expliquem o que se passou no corredor."
As duas baixaram a cabeça, sem saber o que dizer. O que se passara era evidente para todos.
"Então?"
"Zangámo-nos", disse Amélia, timidamente.
"A sério?", perguntou ele, uma ponta de sarcasmo a trair-lhe a intenção do questionário.
"Zangaram-se, foi?" O tom roçava a teatralidade. Claramente, zombava delas. "Ai as marotas! Então e porquê?"
Mantiveram-se caladas. O modo como os comentários foram proferidos e a pergunta formulada tornara evidente que o reitor estava a tirar prazer daquela situação; sendo assim, pressentiram que nada ganhariam com explicações, a não ser talvez mais chacota.
"Quem é que começou?"
Silêncio.
"Mau! Perderam o pio? Não dizem nada?"
Mais silêncio.
O reitor suspirou pesadamente, como quem exprime um profundo desagrado. Empurrou a cadeira para trás com grande espalhafato, ergueu-se com enorme esforço e fez sinal com a cabeça em direcção à mesa de reuniões.
"Vão para ali", ordenou.
As duas raparigas obedeceram de imediato, sem perceber bem onde queria ele chegar. Pelo canto do olho viram-no inclinar-se diante da secretária, abrir uma gaveta, retirar de lá um objecto indefinido, aproximar-se com esse objecto na mão e arregaçar as mangas.
"Deitem-se sobre a mesa e levantem as saias."
Olharam-no, surpreendidas.
"Perdão?"
Acto contínuo, observaram o objecto que lhe bailava nas mãos e reconheceram-no. Um bastão.
O reitor tinha um bastão nas mãos e observava-as com um sorriso sem humor. O coração pulou-lhes no peito, descontrolado, e, o horror a turvar-lhes a visão, perceberam enfim o que lhes ia acontecer.
Iam ser sovadas.
"Deitem-se sobre a mesa!", vociferou o reitor, agastado por ter de repetir a ordem. "Vamos!"
"Mas... mas o senhor reitor não pode fazer isso", gaguejou Amélia, sem tirar os olhos do bastão.
"Nós não somos nenhumas..."
"Cale-se!", gritou o reitor. Parecia já fora de si. "Cale-se! Onde é que já se viu umas catraias como vocês dizerem-me a mim, a mim!, o que posso ou não posso fazer? Hã? Onde é que já se viu isto?" Apontou com fúria para a mesa. "Deitem-se
- imediatamente! Vão aprender que aqui há regras! Neste liceu não admito a bandalheira!
Deitem-se!"
Encurraladas, aterrorizadas, não querendo acreditar sequer no que lhes acontecia, interrogando-se sobre como tinham podido descer àquele ponto, obedeceram maquinalmente à ordem sem se atreverem a questionar mais nada e, de saias levantadas e as mãos assentes na madeira fria da grande mesa, expuseram as nádegas ao reitor.
Seguiu-se uma breve pausa. Ouviram-no a arfar pesadamente, como se procurasse domar a ira e controlar a besta que o possuía antes de a libertar de novo. Logo Amélia ouviu o zumbido soprado do bastão a cortar o ar, escutou a estalada a soar-lhe na pele, sentiu as nádegas incendiarem-se e gritou de dor e de humilhação.
A porta do quarto mantinha-se fechada desde que Amélia viera do liceu e dona Beatriz Rodrigues, Campos por um casamento que nem a morte desfaria, começava já a preocupar-se; não era hábito a filha isolar-se assim quando vinha do liceu, e muito menos ostentar aquele rosto fechado que lhe vislumbrara de fugida antes de ela se trancar no quarto.
"O bijou, o que tens tu?"
A filha não respondeu e dona Beatriz, estranhando o comportamento esquivo, bateu à porta do quarto. Amélia manteve-se silenciosa e a mãe, intrigada, sem saber o que pensar, encostou o ouvido à madeira; pareceu-lhe ouvir fungar e distinguiu um gemido baixo e abafado. Franziu o sobrolho, inquieta.
"Estás a chorar?", perguntou. "O que aconteceu, bijou}"
O gemido parou. Dona Beatriz bateu com insistência na Porta, algures entre preocupada e intrigada.
"Passa-se alguma coisa? Vamos, diz à mamã..."
Como Amélia insistia em não responder, dona Beatriz decidiu mudar de táctica.
Deixaria as coisas correrem e, quando a filha se destrancasse do quarto, trataria de apurar o que se passava. Não devia ser coisa grave, raciocinou, pois se o fosse já algo se saberia; era com certeza assunto de rapariga, nestas idades já se sabe como elas são, a filha tinha-se zangado com uma amiga ou não lhe havia corrido bem um qualquer exercício na escola.
Enfim, a seu tempo tudo se esclareceria; aquele arrufo não constituía decerto motivo para grandes ralações.
Procurando expulsar momentaneamente a filha do pensamento, dona Beatriz dirigiu-se à sala e foi acender a lareira. Mandou Francisco ao quintal buscar lenha e, quando ele voltou com a cesta cheia, deitou as achas no buraco enegrecido, acrescentou alguma carumba e lançou-lhe lume. A chama nasceu pequena, amarela e violácea, mas logo se espalhou, exalando uma quentura agradável que de imediato lhe aqueceu as palmas das mãos.
"Ó Amélia!"
A voz de rapariga era distante e vinha da rua. Dona Beatriz endireitou-se, interrogando-se se ouvira bem.
"Amélia!"
Definitivamente, alguém chamava pela filha.
"Quer que eu vá ver, senhora?", perguntou Francisco.
"Não, eu vou lá", disse ela. "Tu vais limpar o quintal."
Dona Beatriz saiu da sala em passo célere e foi à varanda do seu quarto, situada na parte da frente da casa. Abriu a portinhola de vidro e espreitou para a rua. Lá em baixo encontravam-se duas raparigas de bata escolar, as cabeças erguidas para a varanda.
"O que é? Que quereis?"
"A Amelinha, como vai?", perguntou uma delas, abraçando os cadernos ao peito.
"Botou-se no quarto. Porquê?"
"Ela está bem?"
Ali havia gato, percebeu dona Beatriz, relacionando as coisas. Não era normal a filha fechar-se no quarto e muito menos as amigas do liceu virem-lhe bater à porta a perguntar se ela se encontrava bem. Se queriam saber se Amélia ia bem é porque presumiam que podia estar mal. Mas mal de quê, santo Deus?
"Não, não anda muito bem", disse. "O que se passa?"
As raparigas mostraram-se desconcertadas com a pergunta.
"Ela não lhe contou?"
"Contou o quê? O que se passa?"
Lá em baixo, as duas entreolharam-se, algo embaraçadas.
"O que se passa?", insistiu dona Beatriz, a voz muito firme. "Que aconteceu?"
Uma delas levantou a cabeça e ganhou coragem.
"Foi o... o badigo."
"Qual badigo?"
"O... o gordo. O reitor."
"O que fez ele?"
"A Amélia e a Maria das Dores foram levadas ao gabinete dele."
Dona Beatriz arregalou os olhos com um ar surpreendido. Tudo aquilo era absoluta novidade para si.
"Ai sim? A Amélia foi ao gabinete do reitor? Porquê?"
"Nós achámos que era para lhes passar um batibardo. Ele tem fama de ser mau como o Facadas."
"Passaram um batibardo à Amélia? Mas o que fez a minha filha para merecer uma descompostura?"
As duas raparigas lá em baixo hesitaram, sem saber se deviam responder à pergunta.
"O badigo não lhes passou batibardo nenhum", disse uma delas, contornando a questão.
"Então?" "Deu-lhes uma trepa!"
A espera foi impaciente, mas à hora do jantar já a noite caíra e apenas as lamparinas a óleo iluminavam dois ou três cantos da casa com a sua luz amarela e tremelicante; dona Beatriz lá sentiu a porta do quarto da filha destrancar-se e ouviu-lhe os passos ressoarem pelo soalho encerado. A mãe permaneceu no seu lugar, junto à lareira crepitante, as pernas cobertas por um cobertor de lã e as mãos inquietas a tecerem uma renda com um complicado desenho geométrico. Parecia concentrada na renda, mas a mente fervilhava-lhe de ideias e de dúvidas. O reitor dera uma trepa na filha? O que raio fizera ela para merecer tal tratamento? E era possível bater em alunos tão grandes?
"Rai's t'a parta o diabo!", remoeu, sem notar que transformava os pensamentos em palavras. "Que confusão para ali vai!"
Suspirou e deu um nó mais complicado na renda, a luz quente da lareira a dançar-lhe no corpo e no soalho, parecia que sombras fantasmagóricas lhe enchiam a sala. Ai se o seu Raul ainda por cá andasse! Maldita guerra, amaldiçoados gases que lhe tinham levado o homem! Que saudades sentia dele! Todos os dias pensava no Raul, que tanta falta fazia naquela casa. Precisava dele para si, para o seu aconchego, para as suas necessidades, para o seu corpo, para a sua tranquilidade, mas também precisava dele para as filhas. Isto de as meninas crescerem sem pai não lhe parecia nada bom. Como era difícil educar duas raparigas sem o pulso forte de um varão por perto! Francisco já se ia fazendo homenzinho, mas não era a mesma coisa; não passava de um monte desmiolado de músculos, para estas coisas não servia! Sabia que, sem Raul a seu lado, que Deus o tivesse na Sua infinita misericórdia, teria de fazer o papel de mãe e de pai. Se apenas um desses papéis já era difícil de desempenhar, imagine-se os dois ao mesmo tempo. E agora, pensou com fatalismo, chegara uma daquelas horas em que tinha de juntar forças e fazer o mais difícil: o papel de pai.
Sentiu a filha entrar na sala.
"Anda cá, Ana Amélia", ordenou com severidade, sem tirar os olhos da renda. "Bota-te aqui ao borralho."
A rapariga aproximou-se com passos ligeiros e parou diante de dona Beatriz, as pernas iluminadas pelo estrepitar nervoso da lareira, parecia que espectros se agigantavam no soalho.
"Sim, mamã?"
Dona Beatriz deu mais um nó complicado na renda.
"Então?", perguntou logo que o nó ficou pronto, mas sempre com os olhos fixos na renda. "Que se passa?"
"Nada, mamã."
Mais um nó.
"Vieram cá as tuas colegas. Queriam saber se estavas bem."
"Sim."
"Sim, o quê?"
"Estou bem."
Outro nó.
"Então por que razão te fechaste no quarto?"
Silêncio.
"Diz lá. Por que razão te fechaste no quarto?"
A rapariga encolheu os ombros.
"Apeteceu-me."
Dona Beatriz parou enfim de tricotar e ergueu a cabeça, fitando pela primeira vez os olhos inchados e avermelhados da filha.
"Olha lá, estás a brincar comigo?"
Amélia fitou o soalho, sem nada dizer.
"Diz-me, estás a brincar comigo?", insistiu a mãe, elevando pela primeira vez a voz.
"Não."
"Então faz o favor de me explicar imediatamente por que razão te fechaste no quarto!"
A filha permaneceu calada. Conhecendo-a e sentindo que por aquela via seria difícil arrancar dela alguma coisa, dona Beatriz decidiu mudar de ângulo. Precisava de ser arguta.
"As tuas amigas dizem que foste levada ao reitor. É verdade?"
Amaldiçoando as colegas em silêncio, a rapariga assentiu.
"É."
"E é verdade que ele te bateu?"
"Sim."
"A ti e à tua colega?"
Amélia calou-se.
"Em quem bateu ele?"
"Nas duas." Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto pálido e o lábio inferior começou a tremer. "Mas mais em mim."
A filha pôs-se a chorar baixinho, humilhada, e dona Beatriz carregou as sobrancelhas, atónita.
"Mais em ti? Que fizeste tu para merecer isso?"
Amélia fungou, tentando controlar-se.
"Nada."
"Mau! Nada não foi, de certeza." A mãe inclinou-se para a fitar bem nos olhos. "Por que razão bateu ele mais em ti?"
"Não sei, mamã." Gemeu baixinho. "Danou-se por eu não me chamar Maria."
"Che!", exclamou dona Beatriz. "Pode lá ser! O homem não te ia dar umas lapadas só por não te chamares Maria..."
"Mas deu!", insistiu a filha, indignada por a mãe pôr em dúvida a sua palavra em assunto tão sério. "Ele disse que as católicas são todas Marias e que se eu não era Maria é porque era uma...
uma latraim... ou alefrim... enfim, uma coisa dessas." Mordeu o lábio. "Nem sei o que isso quer dizer..."
Dona Beatriz estreitou as pálpebras, intrigada. Só conhecia uma palavra que rimava com aquela.
"Terá sido lefraim?"
"Isso."
A mãe estremeceu, chocada.
"Valha-me Deus!"'
"O que foi, mamã? O que quer dizer isso?"
"É uma expressão do Rebordelo", explicou. "Ele chamou-te judia." Meditou um pouco, perplexa com aquela revelação. "Rai's t'a parta o diabo!", murmurou para si mesma. Fixou os olhos na filha.
"O reitor convocou-te ao gabinete para te dar umas lapadas só porque eras uma lefraim?"
Amélia abanou a cabeça.
"Não. Chamou-me isso só depois de ver na ficha que eu não tinha Maria no nome."
"Então por que diabo te chamou ele ao gabinete?"
"Não foi ele que me chamou. Levaram-me a ele."
"E porquê, valha-me Deus?"
A filha calou-se.
"Diz lá: porque te levaram ao reitor?"
"Porque me zanguei com uma colega", sussurrou, quase inaudível.
"Discutiste com uma colega?"
"Sim."
"Foste levada ao reitor apenas por teres discutido com uma colega?" Dona Beatriz abanou a cabeça e contraiu o nariz, numa expressão céptica. "Não acredito. Alguma coisa mais deves ter feito."
"Zangámo-nos."
A mãe inclinou a cabeça.
"Andaram à bulha?"
"Sim."
Dona Beatriz endireitou-se. Estava explicado. A filha envolvera-se num conflito com uma colega e fora levada ao reitor, que as punira. A primeira parte parecia-lhe relativamente clara, a segunda nem tanto. Que ela soubesse, Amélia já não estava com idade de ser sovada no liceu. E
aquela conversa de o reitor observar que ela não se chamava Maria, de dizer que ela era uma lefraim e de lhe ter batido mais do que à colega tinha muito que se lhe dissesse, ai tinha, tinha.
Precisava de tirar tudo aquilo a limpo. Claro, era sempre possível que houvesse mais alguma coisa que a filha não lhe tivesse revelado; a bem dizer, isso até se lhe afigurava muito natural. As coisas não batiam certo naquela história toda. A começar por duas raparigas se terem envolvido à pancada, o que não lhe parecia nada normal. Ainda se fossem rapazes, enfim, já se sabe como eles são, bastava olhar para o bruto do Francisco. Mas... raparigas?
"Porque andaram vocês à bulha?"
"Ela estava a fazer pouco de mim."
"Como? O que dizia ela?"
"Dizia que..." Hesitou, percebendo nesse instante onde aquela conversa a iria inevitavelmente conduzir. "Enfim... fez pouco de mim."
"Isso já eu entendi", afirmou dona Beatriz, consciente pela hesitação da filha de que acabara de tocar num ponto crucial. "Mas o que te disse ela? Conta lá."
A rapariga fez um ar comprometido.
"Nada."
"Ana Amélia!", cortou dona Beatriz de súbito, a voz rompendo como um trovão. A filha deu um salto de susto, apanhada de surpresa pela violência da interpelação. "Fazes favor de me dizer imediatamente o que te disse a tua colega!"
Amélia baixou os olhos e manteve-se muda.
"Vou tirar este assunto a limpo", avisou a mãe, erguendo o dedo em jeito de aviso. "Ou dizes agora tudo o que se passou ou saio já à rua e vou a casa das tuas amiguinhas saber o que aconteceu!
E podes ter a certeza que saberei tudo, ou eu não me chame Maria Beatriz Rodrigues de Campos!"
A filha olhou-a, alarmada. Bem capaz disso era ela, percebeu com mal disfarçado horror. E seria desastroso que a mãe tomasse conhecimento de tudo pela boca daquelas alcoviteiras; elas se encarregariam de expor o caso da forma mais maldosa e sórdida que lhes fosse possível. Isso Amélia não podia de modo algum permitir.
"Então?", insistiu dona Beatriz. "Dizes-me por que razão se puseram as duas à bulha ou vou ter de perguntar às tuas amiguinhas?"
Amélia quase se encolheu toda.
"Foi por causa de um amigo."
Ah!, pensou dona Beatriz, as peças do puzzle a encaixarem por fim. Um rapaz! Que estúpida fora em não ter percebido mais cedo! Claro que tinha de haver um rapaz na conversa, pois então!
Observou pela primeira vez a filha com olhos atentos de mulher. Amélia tinha o cabelo castanho-claro ondulado com madeixas douradas, olhos cor de caramelo, um rosto perfeito, ° corpo a encher-se no peito e no rabo, a cintura estreita realçando-lhe as curvas de fêmea voluptuosa.
Parecia mesmo
uma daquelas actrizes americanas. Tinha de se render à evidência: a sua filha já não era a criança inocente que sempre vira, o anjo celestial que irradiava pureza virginal; tornara-se uma mulherzinha apetecível, ainda virgem decerto, mas uma maçã suculenta e pronta a ser mordida, objecto seguro de cobiça pecaminosa. Claro que os rapazes se interessavam por ela! E era evidente que ela se interessava pelos rapazes, afinal estava em idade disso.
Ah, como pudera ser tão cega?
"Um amigo, dizes tu? E quem é ele?"
"É... é lá do liceu."
"Como se chama?"
"Luís."
Fechando o rosto, dona Beatriz baixou os olhos e retomou a renda que deixara pousada no regaço. A lareira crepitava sem cessar e os estalidos da lenha a arder enchiam a sala escura.
"Hásde-mo trazer cá no domingo", ordenou a mãe. "Quero conhecê-lo."
Foi só na manhã seguinte, quando se encontrou com Amélia na habitual esquina da rua, que Luís soube do sucedido na véspera com as colegas e o reitor.
"Aquele... aquele porcho, aquele bestoiro", ruminou furiosamente, os músculos dos maxilares a contraírem-se de irritação. "Sabes o que lhe vou fazer?"
"Tem calma, Luís."
"Vou montar-lhe uma espera e dar-lhe umas valentes mur-raças!" Deu um soco no ar, como se o reitor estivesse diante dele. "Ai vou, vou!" Mais uns socos. "Vou desfazê-lo, vou reduzi-lo a fanicos, vou..."
"Não vais nada."
"Espera e verás!" Estreitou os olhos, tentando conter a fúria. "O lafardo! O tinhoso! O cara de trampa! Até mete ranço!" Mirou Amélia. "Quem pensa ele que é?"
A rapariga olhou em redor, preocupada com a atenção que o namorado atraía. Luís elevara a voz e alguns transeuntes miravam-nos já com interessada curiosidade, interrogando-se sobre se estaria iminente alguma altercação entre os dois.
"Pronto, pronto", disse ela, pegando-lhe no braço e procurando acalmá-lo. "Já passou, não interessa."
"Como, não interessa?", espantou-se Luís. "Então aquele javardo atreve-se a pôr-te a mão em cima e tu dizes que não interessa?"
"Não me pôs a mão. Pôs o bastão."
"Não desconverses: Ele bateu-te! Quem pensa ele que é? Como se atreveu?"
"A minha mãe vai falar com ele."
"Eu é que vou falar com ele." Exibiu o punho fechado. "Falar, não. Vou é partir-lhe aquele focinho de porco! Vou... vou desfazer-lhe aquela tromba de suíno!"
Atravessaram a rua, tomando cuidado para evitar uma carroça de lenha puxada por duas mulas.
Amélia deixou-o praguejar durante algum tempo, sabia que ele precisava de libertar a irritação; era como se fervesse por dentro e o melhor que havia a fazer era deixar a fúria descarregar-se pelas palavras. Enquanto batesse no ar não batia em ninguém; enquanto praguejasse sozinho não haveria quem se sentisse insultado.
Quando o rapaz se calou, ela respirou fundo para ganhar coragem e concluir a conversa.
"Ainda não te contei o pior", disse Amélia.
"O quê? Há pior?"
"Há."
Luís rolou os olhos. Que mais viria aí?
"Diz lá."
"Tive de falar de ti à minha mãe."
Ele conteve-se, subitamente muito atento.
"A sério?"
"Teve de ser. Ela quis saber por que razão a Maria das Dores se meteu comigo."
O rapaz considerou aquela informação e sentiu a curiosidade crescer; ora ali estava uma novidade interessante.
"E então? O que disse ela?"
"Quer conhecer-te."
Luís sorriu, encantado com a ideia.
"Ai é? Mas isso parece-me óptimo!"
"Não sei."
"Porquê? Qual é o problema?"
Amélia manteve os olhos presos na calçada, olhando o empedrado mas vendo o futuro desenrolar-se diante de si, como se o passeio encerrasse o oráculo do seu destino.
"Tu não conheces a minha mãe."