I

A luz do clarão rubro-amarelado da fogueira que estalava no chão, os ponteiros pareciam alfinetes incandescentes, os mais grossos imóveis lá no alto, como se estivessem incrustados no mecanismo, o mais fino a rodar num tiquetaque nervoso, escalando os pontinhos num inexorável movimento ritmado. Quando o ponteiro mais fino se juntou aos restantes no pico do círculo e assinalou enfim a meia-noite, Juanito ergueu o copo de vinho tinto, o vidro sujo a cintilar como cristal no lampejo bailante do fogo ateado a seus pés, e abriu-se num sorriso.

"Feliz ano nuevo, Paço!"

"Não me chames Paço, já te disse mil vezes!", resmungou Francisco. "Da próxima levas uma chapadona."

"Ay! Mira, que sensible!"

O espanhol esvaziou o copo de um só golo. Fios cor de sangue escuro escorreram-lhe pelos cantos da boca e atravessaram os pelos aloirados da barba até se juntarem no queixo pontiagudo. Dali o vinho começou a pingar; eram gotas grossas, gordas, suculentas. Pousou o copo, respirou fundo, sentiu o ardor do álcool aquecer-lhe o peito, arrotou e limpou a boca e o queixo à manga do casaco imundo.

"Entonces? Não celebras o ano novo?"

Francisco encolheu os ombros.

"Para quê? É um dia como outro qualquer!"

"Mas entrámos agora em 1939, bombre!"

"E depois?"

Juanito rolou os olhos e fez uma careta de enfado.

"Ay, cofio!", suspirou, baixando-se para pegar na garrafa verde-escura que repousava junto a um saco de areia. "Vocês, os Portugueses, são mesmo uns tristonhos!" Voltou a encher o copo. "Nunca vi coisa assim, madre miai"

"Mas o que queres tu celebrar, meu grande maricas? O que tem 1939 assim de tão especial?"

"Bueno, 1939 vai ser o ano da paz, wof" Pousou a garrafa. "Vamos acabar com os rojos e teremos a paz em Espanha e a paz no mundo." Pegou de novo no copo e mirou o companheiro.

"Salud!"

O português esfregou os olhos. Sentia-se com falta de paciência e as celebrações do ano novo pareciam-lhe um ritual sem sentido, criado com o único objectivo de o enervar. Para ele, o português sisudo, o homem que não gostava de festas, aquela noite era exactamente igual a todas as outras, não via diferenças; o ar permanecia gelado e a treva dominava tudo, uma sombra igual à de qualquer outra noite de Inverno.

Esticou o pescoço e olhou lá para baixo, tentando destrinçar as águas azuladas do rio Segre.

Escutava na perfeição o gorgulhar fresco e cristalino das correntes, mas àquela hora as águas fluíam negras, pretas como o vinho ardente que bailava no copo de Juanito.

Os dois legionários encontravam-se de plantão na margem esquerda do Segre, com ordens para guardarem uma ponte conquistada uma semana antes pela Divisão Littorio, uma das quatro divisões italianas agora empenhadas na guerra. Já não integravam a IV Bandera, mas a VII Bandera, e a Legião já não se chamava Tercio de Extrangeros, mas Legión Extran-gera, o que, aliás, lhes parecia fazer muito mais sentido e correspondia a uma velha aspiração do seu corpo de mercenários.

A mudança de regimento tinha sido um produto do ferimento sofrido por Francisco em Badajoz, quando um franco--atirador lhe alojara uma bala na bacia. Passou dois meses no hospital e mais quatro meses em convalescença, o suficiente para perder o resto da campanha da Columna Madrid.

Falhou a épica libertação do Alcazar de Toledo e a grande batalha pela capital, mas, feitas as contas, concluiu não ter perdido nada de especial. Afinal o duelo por Madrid terminara num empate, sem que nenhum dos lados se conseguisse impor ao outro. Os nacionalistas tinham ficado a cercar a cidade e os republicanos barricados lá dentro, um fiasco no qual felizmente não estivera envolvido.

Fora quando ainda se encontrava no hospital de Badajoz que o primeiro novo regimento da Legião, a VII Bandera, tinha sido criado, depois de se ter aberto um banderín central de engacbe em Talavera. Os elementos desta nova bandera foram recrutados nesse banderín e enquadrados por legionários mais experientes, todos eles homens das outras banderas que haviam sido feridos e, ainda no hospital, acabaram por ser transferidos para a VIL Fora o caso de Francisco.

Quando lhe deram a notícia da transferência compulsiva Para o novo regimento, a única coisa que pediu, deitado na

cama da enfermaria com a anca toda ligada, arrancou um sorriso ao sargento Gomez.

"Transfiram-me também aquele maricas."

"Quem?"

"O pandeiro do Juanito."

"Quem? O Juan Escoso?"

"Sim, esse cabrão."

"Mas vais ter muitos novos companeros na VII Bandera, hombre! Olha, estão a chegar agora muitos portugueses, os Mariachos, e..."

"Os Viriatos."

"Isso, uh... os Viriachos... de modo que eles vão ser colocados em todas as banderas." Bateu-lhe no ombro. "Não estás contente? Vais ter compatriotas a combater ao teu lado, carayl"

"Quero lá saber."

"Hombre, mas não queres ter novos amigos portugueses?"

"Eu quero é o pandeiro do Juanito, porra."

Quando Francisco regressou à Legião, na Primavera de 1937, foi já para ingressar promovido a legionário de primeira classe na 27.a companhia da VII Bandera, para onde também fora transferido Juanito. A unidade defendia as relativamente calmas linhas da frente Madrid-Toledo e a tranquilidade apenas seria interrompida em Fevereiro. Nessa altura, o regimento integrou as cinco brigadas nacionalistas que atacaram a estrada de Valência e cruzaram o rio Jarama, enfrentando forte oposição republicana.

A batalha do Jarama revelou-se a mais violenta do ano e a VII Bandera foi a unidade nacionalista mais sacrificada, sofrendo mais de uma centena de baixas, incluindo a de Juanito, atingido no antebraço por um estilhaço de granada. As perdas acabaram por ser tantas que, pelo final do mês, o regimento

teve de ser substituído e Francisco regressou à relativa apatia da tranquila linha Madrid-Toledo, o sítio ideal para lamber feridas e restabelecer forças.

As coisas só voltaram a aquecer no ano que agora acabara, quando a VII Bandera fora sucessivamente envolvida nas batalhas de Teruel, Aragão, do Levante e do Ebro, sempre com os nacionalistas a acabarem por impor a sua força. Com 1938 a terminar, o inimigo encontrava-se reduzido a Madrid, à Catalunha e a Valência. Sentindo a vitória à distância de um derradeiro empurrão, as forças nacionalistas iniciaram, apenas uma semana antes, a campanha da Catalunha, empenhando trezentos mil homens contra cento e quarenta mil republicanos. Francisco estava convencido de que vencer a guerra se tornara nesta altura uma mera questão de tempo.

Algumas coisas tinham entretanto mudado na Legião Estrangeira. O corpo já não se limitava às seis banderas do início da guerra, tendo sido alargado para dezoito regimentos. Mas, apesar do aumento significativo de efectivos, Francisco apercebeu-se de que a influência da sua força no conjunto das operações nacionalistas foi diminuindo com o tempo. Tomou gradualmente consciência de que isso se devia ao aparecimento de um novo exército nacionalista, formado por voluntários e homens recrutados à força. Quando o conflito eclodiu, em 1936, os nacionalistas quase só dependiam dos legionários e dos marroquinos. Mas agora, três anos volvidos, já não era bem assim. Por outro lado, as operações iniciais provocaram muitas baixas às depauperadas fileiras de legionários, eliminando os homens mais experientes e bem treinados. Francisco e Juanito tornaram-se raridades; tinham apenas vinte e um anos de idade e já eram veteranos.

Apesar disso, a Legião Estrangeira permaneceu uma tropa de choque, usada nas situações mais difíceis. O comando

parecia encontrar-lhe utilidade nos confrontos renhidos, mas Francisco tinha noção de que essas missões lhes eram atribuídas também para cultivar a lenda da Legião; era preciso cimentar essa mística, a mística dos legionários, e, por arrastamento, a mística de Francisco Franco, o antigo comandante da Legião Estrangeira, o agora chefe supremo das forças nacionalistas, el jefe, a encarnação espanhola de il Duce e do Fúhrer, o homem providencial que travaria o comunismo e salvaria a Espanha e o catolicismo. El Caudillo.


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