XI

Um toque na porta do gabinete interrompeu a redacção do ofício por parte do graduado de serviço. O tenente Lopes praguejou e levantou os olhos na direcção da entrada.

"Entre."

O ajudante abriu a porta com suavidade e fez continência.

"O meu tenente dá licença?"

"Vocês não sabem que eu estou a trabalhar?", perguntou o tenente, sem esconder a irritação. "O que é agora?"

"Está aqui um senhor para si."

O graduado ajeitou o gesso no braço esquerdo e debruçou-se sobre a secretária para retomar a escrita.

"Ele que espere."

O ajudante manteve-se colado à porta, como se tivesse medo de sair.

"É o senhor inspector Silva..."

"Ele que espere, já disse."

"... da PVDE."

O tenente imobilizou a mão e ergueu as sobrancelhas espessas, de repente muito alerta.

Tinha estampada na cara a expressão de um menino mal comportado a quem os pais haviam apanhado em flagrante. Teria ouvido bem?

"Da... da Polícia de Vigilância?"

"Sim. Veio de Lisboa e..."

"Ele que entre!"

O ajudante desapareceu e o tenente pôs-se de pé, sem saber o que fazer. Não era todos os dias que se recebia um inspector da PVDE. Mirou-se no reflexo da vitrina da estante com os livros, para se assegurar de que estava apresentável. Tinha a camisa desabotoada e ligeiramente desfraldada, o que de imediato corrigiu. Certificou-se de que o distintivo com o emblema da PSP e o seu nome se encontrava pregado em conformidade com os regulamentos. O seu braço esquerdo continuava ao peito, como um destroço ali abandonado, mas quanto a isso nada podia fazer.

Um homem baixo de cabelo negro reluzente entrou no gabinete com ar de quem tinha pouco tempo a perder.

"O cavalheiro é que é o responsável por esta chafarica?", disparou.

O tenente pôs-se muito hirto e fez continência.

"Senhor inspector, é uma honra tê-lo por cá. Eu sou o graduado de serviço e não sabia que..."

"Onde está ele?"

O graduado olhou para o homem da PVDE, desconcertado.

"Como?"

"Onde está o tipo que vocês prenderam?"

"Qual deles?"

"O que veio de Espanha, homem!"

Os olhos do tenente Lopes dançaram de um lado para o outro, tentando perceber o que se passava. O inspector viera

de Lisboa de propósito para falar com o matulão que haviam detido na semana anterior?

"O senhor inspector está a referir-se ao indivíduo da Legião Estrangeira?"

"Sim, esse mesmo. Onde está ele?"

O graduado tirou da gaveta um molho de chaves longas, tão grandes que pareciam gazuas para abrir castelos, e fez um gesto em direcção à porta, convidando o homem da PVDE a sair à sua frente.

"Queira vir comigo, senhor inspector. Eu levo-o à cela."

Abandonaram o gabinete e meteram pelo corredor, rumo à ala onde os presos eram mantidos provisoriamente. O tenente caminhava à frente, as chaves a tilintarem-lhe no cinto como moedas num mealheiro, o braço engessado preso ao peito.

"O que lhe aconteceu?", perguntou o inspector, lançando um olhar para o braço.

"Foi o preso", devolveu o tenente, mal-humorado com a referência ao ferimento. "Ele resistiu à ordem de prisão e partiu-me um osso. Um outro camarada meu ficou com o sobrolho aberto."

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE. "Deve ter sido uma tourada!"

"Nem imagina."

"Espero ao menos que vocês o tenham deixado em condições de falar."

"Perdão?"

"Bem... suponho que lhe tenham dado uma sova de caixão à cova, não?"

O tenente suspirou.

"Ninguém dá nenhuma sova a um homem destes."

"Porquê?"

O graduado abriu uma porta e assomaram aos calabouços da cadeia municipal.

"O senhor inspector já vai ver."

Os calabouços revelaram-se húmidos e escuros, com um forte hálito a podre; era o cocktail putrefacto do odor a mofo misturado ao fedor ácido da urina e das fezes. Uma claridade ténue desenhava silhuetas fantasmagóricas no chão e nas paredes, as formas banhadas por um anélito de luz. Devido à diferença de luminosidade, o inspector levou alguns segundos a adaptar-se à penumbra; conseguia ver as grades e as janelinhas pequenas e ainda uns vultos difusos sentados nas celas, mas não distinguia feições.

O graduado imobilizou-se diante de uma cela e agarrou uma grade da porta, abanando-a para a fazer retinir como um sino.

"É aqui", anunciou.

O inspector estreitou os olhos e esforçou-se por destrinçar o interior. Distinguiu um vulto volumoso sentado numa esteira ao canto. O vulto tornou-se ainda maior quando se levantou para encarar os recém-chegados.

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE, impressionado com o corpanzil do suspeito.

"É este o nosso homem?"


"Chama-se Francisco Rodrigues, senhor inspector."

"Eu sei muito bem como ele se chama. Pode abrir a porta?"

O pedido deixou o graduado desconcertado.

"O senhor inspector quer libertá-lo?"

"Não, homem. Quero é entrar."

Sem questionar a ordem, que manifestamente considerava bizarra e até perigosa, em virtude do perfil violento do recluso, o tenente pegou no molho e, à meia-luz, os olhos colados

às chaves para as ver melhor, procurou aquela que correspondia à fechadura da cela.

Encontrou-a, encaixou-a na enorme fechadura da porta e rodou-a para abrir.

Clank.

O inspector entrou na cela e virou-se para o graduado, as grades agora a separá-los.

"Tranque a porta e vá-se embora."

"Mas, senhor inspector, isso não é..."

"Vá-se embora!", cortou o homem da PVDE com impaciência. "Eu chamo-o quando terminar."

Sem se atrever sequer a resmungar, o graduado trancou a porta e afastou-se, os passos a reboar pelo corredor até se sumirem, deixando os calabouços entregues aos reclusos e ao recém-chegado.

O inspector girou a cabeça em redor, os olhos já adaptados à penumbra. Um dos presos começou a cantarolar, desafinado, e outros puseram-se a tagarelar. Do tecto pingavam gotas de água que tombavam em poças com um clac metálico. Um sopro de aragem traçava um rasto de pó desde a janelinha; parecia o rendilhado de uma galáxia a flutuar à meia-luz da eternidade. As celas estavam nuas, despojadas, apenas decoradas por uma esteira suja e por um balde imundo; os corpos transpirados dos presos languesciam ao longo das esteiras e sobre os baldes zumbiam furiosamente varejeiras, num festim de detritos e imundice.

"O cavalheiro é o legionário?", perguntou, dirigindo-se ao vulto maciço que o olhava em silêncio do canto da cela.

A massa de homem deu dois passos e ficou frente ao inspector. A diferença de estatura e de volume de corpos tornou a cena bizarra; era como se um gorila olhasse para um chimpanzé.

Quem e você?

O inspector estendeu o braço.

"Chamo-me Aniceto Silva e sou inspector da PVDE." Apertaram as mãos. "Presumo que saiba o que é a PVDE..."

Francisco abanou a cabeça.

"Não."

"Chama-se Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e serve para combater os comunistas e os espiões." Olhou em volta da cela. "Oiça, não há aí nenhum sítio onde nos possamos sentar?"

O prisioneiro indicou a esteira.

"Só se for ali." Girou o dedo noutra direcção e apontou para o balde. "Ou ali."

As moscas zuniam em fúria sobre o balde e o recluso sorriu .com desdém. O inspector espreitou o recipiente com um esgar de repulsa e dirigiu-se à esteira, evitando os pequenos charcos que a humidade gotejante semeara pelo chão.

"Isto é perfeitamente nojento", observou.

Verificou se a extremidade da esteira que escolhera para se sentar estava limpa e acomodou-se com mil cautelas.

Francisco encolheu os ombros e sentou-se também.

"Já vi pior", disse o legionário. "Quando fiz a recruta em Dar Riffien, os tipos puseram-me um dia inteiro mergulhado nos esgotos. E uma vez no Jarama apanhei na cara com as tripas de um camarada esfrangalhado por uma bala de canhão." Indicou o balde com a cabeça. "Depois de se passar por trampas dessas, isto não é nada."

"O cavalheiro fez a guerra toda?"

"Quase toda. Fiz a Andaluzia, fiz Badajoz, estive em Madrid, andei no Jarama, fiz a conquista de Barcelona, fui até à fronteira..."

O inspector assobiou, impressionado.

"Ena... isso é um curriculum e peras." Estudou Francisco com atenção. "Matou muitos comunistas?"

Os olhos do legionário brilharam.

"Muitos", confirmou. "O inferno está cheio de filhos da puta que mandei para lá."

O inspector soltou uma gargalhada e inclinou-se para a frente, batendo na perna do legionário em sinal de aprovação.

"O cavalheiro é cá dos meus!"

Francisco arreganhou um sobrolho desconfiado.

"Pois sim", disse, no tom céptico de quem já viveu muito. "Mas a verdade é que estou aqui enjaulado como se não passasse de um animal."

O homem da PVDE tirou um maço de cigarros do bolso de trás das calças.

"Pois é justamente sobre isso que lhe quero falar", disse. Estendeu o maço na direcção do prisioneiro. "Vai um cigarrinho?"

Francisco aceitou o cigarro, que o inspector alumiou com os dedos amarelecidos de nicotina. Em breve havia duas pontas rubras de luz a dançar na escuridão e uma nuvem de fumo cinzenta tornou-se branca ao ascender diante da janela; o aroma acre parecia perfume na pestilência nauseabunda dos calabouços.

"O senhor pode tirar-me daqui?", quis saber Francisco, as palavras saindo-lhe cautelosas, como mãos a tactearem o caminho.

"Posso", confirmou o inspector. "Mas primeiro preciso que me conte o que se passou em Castelo de Paiva."

O prisioneiro hesitou, cauteloso, e perscrutou melhor o seu interlocutor. Seria aquilo uma armadilha? Não conhecia o homem de parte alguma, aparecia-lhe ali todo simpatia e cheio de salamaleques, chamava-lhe cavalheiro, sentava-se

com ele, dizia-se um grande manda-chuva, oferecia-lhe um cigarro... e depois queria arrancar-lhe uma confissão.

Não, nesse truque não cairia ele.

"Não sei."

"Oh, não me venha com essa! Então o cavalheiro não sabe o que se passou em Castelo de Paiva?"

O homem da PVDE aguardou um momento pela resposta, mas Francisco manteve-se calado. O inspector era um polícia experiente em interrogatórios e sabia que teria de ser subtil para extrair do prisioneiro o que queria dele. Os assaltos directos teriam de ser intercalados por formas mais insidiosas de actuar.

"Oiça, eu vou ser sincero consigo", disse, exalando duas baforadas de fumo pelo nariz, como um dragão pachorrento. "Como lhe disse, sou inspector da PVDE. A minha missão é combater os comunistas e os inimigos da nossa pátria, não é desvendar casos de delito comum. Isso é para a Judiciária." Apontou para o seu interlocutor. "Eu olho para si e o que vejo? Vejo um patriota, vejo um herói, vejo um homem disposto a dar a vida para acabar com a terrível ameaça do comunismo à nossa civilização. O que o cavalheiro fez e o que o cavalheiro faz é, não duvide!, digno da maior admiração." Pôs a mão no peito. "E olhe que é com a maior sinceridade que o digo: o cavalheiro é mesmo digno de admiração! Um exemplo para a nossa juventude!" Indicou a cela com um gesto furtivo. "Faz algum sentido a pátria ter o cavalheiro aqui trancado? Não faz. Mas também Cristo teve de passar pela cruz antes de atingir a redenção, não é verdade?" Fitou Francisco nos olhos. "O cavalheiro está a entender o que estou a tentar dizer-lhe?"

O legionário abanou a cabeça, baralhado.

"Não muito bem."

O inspector respirou fundo. O homem era um calhau, percebeu.

"O que lhe quero dizer é que me estou a marimbar para o que se passou em... em... como é que se chama a terriola onde o outro gajo se finou?"

"Castelo de Paiva."

"Isso. Não tenho nada a ver com a investigação ao que ali se passou, nem me apetece meter-me nisso."

"Então porque me faz perguntas sobre... sobre o que aconteceu?"

"Porque há um processo que está a decorrer. Porque o processo se encontra em fase de instrução e o cavalheiro vai ser acusado de homicídio. Porque, quando isto chegar ao tribunal, o cavalheiro será inapelavelmente condenado por ter morto um homem." Ergueu o dedo, solene. "E só há uma pessoa que pode travar tudo isso."

"Quem?"


"Eu."

O inspector largou mais uma baforada lenta, as volutas de fumo a rolarem como anéis, enlaçando-se umas nas outras até se perderem difusamente na sombra e acenderem de novo ao passar pelo hálito de luz que a janela expirava.

"O que pode o senhor fazer por mim?"

"Posso e quero tirá-lo daqui. Não faz para mim nenhum sentido que um cavalheiro como o senhor se encontre nesta situação por causa de um incidente infeliz que ocorreu há uns anos." Fez uma careta. "O problema é convencer o Ministério Público a retirar a queixa que impende sobre si. É que, bem vê, existe em toda esta história um homem assassinado. E, havendo um homem assassinado, há necessariamente um

assassino. Como ocorreu um crime público, é preciso dar-lhe solução. Está a ver onde eu quero chegar?"

"Não."

O homem da PVDE não se surpreendeu. As subtilezas não eram, definitivamente, o ponto forte do legionário.

"O que eu quero dizer é que, para o libertar, preciso de arranjar um assassino, percebeu?

Não precisa de ser o cavalheiro, pode ser qualquer outra pessoa."

"Ah, já entendi", exclamou Francisco, o rosto iluminando-se. "Então... faça isso. Por mim, maravilha!"

"Mas qual é a outra pessoa que se pode acusar?"

"Não tem aí um comunista qualquer?"

O inspector abanou a cabeça.

"Não funciona assim", disse. "Tem de ser um suspeito credível, alguém que possa verosimilmente ter cometido o crime."

"Oh."

Fez-se silêncio. O agente fez deslizar o pé pelo chão húmido de cimento, à espera que o prisioneiro avançasse com uma sugestão. Mas Francisco permanecia calado, manifestamente sem ideias para resolver o problema.

Era preciso dar mais um empurrão.

"Oiça, quando o crime ocorreu, o cavalheiro estava sozinho?"

"Bem... não. Estava lá o Tino."

"Quem é o Tino?"

"É o... o morto."

"Não foi isso o que perguntei", insistiu o inspector, revirando os olhos. "O que eu quero saber é se havia nas redondezas mais alguém para além de vocês os dois."

Francisco manteve-se calado e desviou o olhar. Ao ver esta reacção, o inspector quase sorriu. Tornara-se claro que existia

ali de facto matéria a explorar; era só uma questão de esperar pelo momento certo e desferir então o golpe de misericórdia.

Tirou umas folhas do bolso e desdobrou-as.

"Aqui o relatório da GNR fala na presença do senhor alferes veterinário Luís Afonso, e de mais outras pessoas." Fixou os olhos em duas linhas do relatório. "A senhora dona Joana Afonso, a senhora dona Amélia Branco e respectivos filhos." Fitou Francisco. "Confirma?"

Sem dizer palavra, o prisioneiro assentiu com um movimento afirmativo da cabeça.

"Em bom rigor, qualquer destas pessoas pode ter cometido esse crime. Estavam todas presentes na mesma quinta. Está a entender onde eu quero chegar?"

Francisco voltou a assentir com a cabeça.

"Claro que me parece fora de questão que as senhoras ou as crianças tenham cometido um crime tão hediondo. Além do mais, e mesmo que quisessem, nem teriam força para partir o pescoço à vítima." Soergueu a sobrancelha. "Mas já este alferes veterinário Luís Afonso parece-me um caso diferente." Cravou os olhos com intensidade no seu interlocutor. "Não acha?"

O prisioneiro manteve-se calado.

"O cavalheiro porventura simpatiza com este senhor alferes veterinário?"

Francisco encolheu os ombros e esboçou um esgar de indiferença.

"Então qual é o problema?", persistiu o inspector, tentando forçar a nota neste ponto decisivo.

"Ele é marido da minha irmã."

O agente da PVDE inclinou-se para a frente e assumiu uma postura de conspirador.

"Temos informações de que este sujeito desenvolve actividades contrárias ao interesse da nação", murmurou, como se estivesse a desvendar um segredo de Estado. "Poderá mesmo ser um comunista." Deixou a última palavra fazer efeito na mente do seu interlocutor. "Por que razão está o cavalheiro a defender tal verme? Não é evidente para toda a gente que é ele o verdadeiro assassino? Ser marido da sua irmã não é um inconveniente para que a verdade saia cá para fora: é mesmo uma vantagem. Pois se o homem é comunista, então o cavalheiro está até a prestar um serviço inestimável à senhora sua irmã ao livrá-la de um sujeito com ideias tão nefastas, não lhe parece?"

O silêncio abateu-se sobre a cela. As gotas de água continuavam a lacrimejar ritmadamente sobre as poças abertas no chão, clac, clic, clac, e o rumor desordenado das conversas sussurradas nas restantes celas prosseguia aos tropeções, ora agora recrudescia, ora agora amainava.

"Repare", porfiou o inspector, avançando para desferir a estocada final. "Se o assassino for o cavalheiro, o que acontecerá? Um grande patriota irá para a cadeia por homicídio.

Mas, se o crime foi cometido pelo outro, o patriota ficará livre para sempre e, ainda por cima, ajuda a retirar um perigoso comunista da circulação. Qual é a dúvida?"

Os olhos de Francisco cristalizaram-se num ponto indefinido da sombra, a mente intensamente ocupada no processamento de todas as ideias que lhe acabavam de ser sopradas. A opção era realmente essa: ou ia ele para a cadeia ou quem ia era aquele presumido, o marido infiel de Joana, o porco que uma vez quase esganara dona Beatriz, o cabrão que realmente o metera naquela confusão. Sim, era preciso não esquecer que tudo aquilo começara porque o marialva se atrevera a meter-se com a filha da dona Beatriz! Não fosse isso e o Tino a esta

A VIDA NUM SOPRO

hora ainda estaria vivo. Não fosse isso e ele próprio, Francisco, não teria sido obrigado a fugir! Não havia dúvida, o culpado era aquele.... aquele comunista!

O prisioneiro olhou por fim para o inspector da PVDE e suspirou.

"Muito bem", disse. "Vou contar-lhe tudo."

XII

A vaca mostrava-se realmente murcha, quase apagada. Estava deitada no lameiro no meio da palha, os olhos mortiços e uma baba branca a escorrer-lhe dos cantos da boca. O

veterinário molhou o indicador na baba e aproximou-a do nariz para a cheirar; não gostou do odor. Pôs-lhe o polegar sobre a órbita esquerda e puxou-lhe a pálpebra para cima, analisando-lhe o branco do olho.

"A Rosinha vai finar-se, sô'tor?"

O serra-cancelas seguia a consulta com muita atenção, quase como se o bovino fosse um membro da família.

"Tenha calma, Ti Manei", devolveu-lhe Luís, já ocupado com a parte de baixo do olho.

"Ai, arreceio tanto por ela, valha-me Deus. Ando mesmo ralado de a ver com este aspeito assacrado, tadinha. Isto não é nada bô. Ela era tão abalofada, o sô'tor havia de ver!

Agora, ó, botou-se-me assim afinhada." Cerrou a fronha, numa expressão inquisitiva. "O

sô'tor acha que a Rosinha tem os pordentros arruinados?"

"Vamos ver, vamos ver." Procurou em redor. "Oiça lá, você tem aí uma amostra das fezes?"

"O quê, sô'tor?"

"O abarro. Onde está o abarro dela?"

"Botei-o lá fora, sô'tor. Vou buscar."

O homem levantou-se e saiu do estábulo. O veterinário permaneceu ajoelhado diante da vaca, procurando sintomas adicionais que confirmassem o diagnóstico que já ia formando na mente.

"Sô'tor!"

A voz vinha da entrada e Luís nem voltou a cabeça, tão concentrado se encontrava na avaliação do estado da vaca.

"O que é, Ti Manei? Não encontrou o abarro?"

"Está aqui um carro oficial."

O veterinário olhou por fim para trás, intrigado com a informação.


"Que carro oficial? Do que está você a falar, homem?"

"É um carro oficial, sô'tor." Fez um sinal para trás "Deve ser o senhor presidente do Conselho a convidá-lo para ministro, c'um caneco."

"À certa!", exclamou Luís. "Então vá lá ver o que lhe querem, eu espero pelo abarro."

"Mas não sou eu que eles querem, sô'tor. É o senhor."

"Eu?", admirou-se o veterinário. "Mas quem é?"

"É um home-de-recibo todo bem apessoado q'anda p'rá'li à escogita. Demandou por si."

Com uma expressão intrigada no rosto, Luís ergueu-se e veio à porta do estábulo. Viu um automóvel negro no caminho de terra e reconheceu no interior o rosto anafado do meritíssimo doutor Machado, o eminente juiz da terra, voz conservadora e parceiro das grandes jogatanas de domingo na sala de chá da Pensão Alves.

"Por aqui, senhor doutor juiz?", cumprimentou, limpando as mãos à bata enquanto se aproximava do recém-chegado.

Ao vê-lo, o doutor Machado abriu a porta do automóvel e apeou-se com esforço.

"Ah, doutor Afonso, finalmente que o encontro."

"Então? O que se passa?"

O rosto do juiz pareceu toldar-se por uma névoa de chumbo. Mergulhou a mão sapuda no casaco e extraiu uma folha.

"Recebi de manhã este ofício de Lisboa a seu respeito."

O doutor Machado calou-se; parecia manifestamente embaraçado. Os olhos do veterinário pousaram no documento que o vento sacudia nas mãos do juiz.

"E então?"

"É do Ministério do Interior." Hesitou e carregou as sobrancelhas, interrogativo. "O doutor, diga-me lá: o senhor tem-se metido em sarilhos?"

"Do que está o senhor doutor juiz a falar? Que ofício é esse?"

"Estão a pedir que intime o senhor doutor a apresentar-se em Lisboa para prestar esclarecimentos."

"Esclarecimentos de quê?"

"Pois... é isso que me faz espécie. O senhor doutor envolveu-se em alguma situação... enfim, menos clara, digamos assim?"

Luís mordeu o lábio, sem saber para onde exactamente a conversa se dirigia mas pressentindo o seu rumo.

"O que diz a carta, senhor doutor juiz?"

O doutor Machado estendeu-lhe o documento.

"O ofício não revela nada", disse. "Ora veja."

O veterinário pegou na carta e passou os olhos pelo cabeçalho. Tinha timbrado o escudo português e era do Ministério do Interior. Em letra dactilografada numa fita já muito gasta, requeria a sua excelência, o senhor doutor juiz Alberto Machado, digníssimo magistrado em Vinhais, que intimasse o senhor doutor Luís António Afonso, médico veterinário na mesma vila, a apresentar-se no dia 15 de Agosto, pelas 11 horas, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, a fim de prestar os esclarecimentos tidos por convenientes. O ofício terminava com o tradicional "a bem da Nação" e tinha por baixo uma assinatura ilegível.

"Que esclarecimentos são estes?", perguntou Luís, devolvendo a carta ao juiz.

"Só sei o que li aqui. Os senhores do ministério solicitam a sua presença em Lisboa. Quanto ao resto, nada sei." Os olhos do juiz tornaram-se perscrutadores. "O senhor não se tem envolvido em confusões, pois não?"

"O senhor doutor juiz, a minha vida é toda ela uma confusão." Baixou os olhos para a carta que o doutor Machado mantinha nas mãos. "Diga-me uma coisa: e se eu não quiser ir?"

"O senhor doutor tem mesmo de ir."

"Sim, mas e se eu não quiser?"

O doutor Machado mudou de perna de apoio, claramente pouco à vontade.

"Não se meta nisso, doutor Afonso. Olhe que eles até estão a ser simpáticos ao solicitar-lhe que se apresente voluntariamente. Se eu fosse a si ia lá, prestava os esclarecimentos devidos e voltava.

Se o senhor doutor não fez nada, não tem nada a temer, não é verdade?"

"Pois, mas se eles querem mesmo falar comigo, que venham cá. Agora eu sou algum moço de recados que esteja aqui às ordens de suas senhorias de Lisboa?"

"Não faça isso, doutor. Vá e resolva o assunto, vai ver que é melhor."

"É melhor, porquê? Então eu é que tenho a maçada e eu é que entro com as despesas e isso é melhor? Melhor para quem?"

"Faça o que eu lhe digo: vá."

"Mas porquê? O que me acontece se não for?"

"Se o doutor não for, eles vão ficar melindrados e... enfim, irão adoptar medidas menos agradáveis."

"Ai sim? Tais como?"

O juiz passou com as costas da mão pela testa, para limpar a transpiração, e respirou fundo.

"Mandam prendê-lo."

"Mandam-te prender?"

A reacção de Joana foi de absoluta estupefacção quando Luís lhe reproduziu a conversa dessa manhã junto ao estábulo do Ti Manei.

"Foi o que o juiz disse."

"Mas porquê? O que fizeste tu?"

O marido afagou o queixo, quase incapaz de conter a ansiedade. Queria discutir o assunto que verdadeiramente o atormentava e todas as suas ramificações, mas não o podia fazer, não com Joana. Quanto muito, poderia apenas aflorar a questão.

"Deve ser por causa do teu irmão."

"Quem? O Chico?"

"Sim, claro. Não te esqueças de que estávamos na quinta quando o teu irmão partiu o pescoço ao caseiro."

"Também eu lá estava e que eu saiba ninguém me convocou para prestar quaisquer esclarecimentos."


Luís calou-se, reprimindo os seus pensamentos. Ao contrário da mulher, ele tinha testemunhado o crime. Mas isso Joana não sabia. A versão que ele e Amélia na altura haviam concertado fora que se tinham deparado com o cadáver ao sair lá para fora. O problema, claro, é que isso só era sustentável enquanto Francisco se mantivesse calado. Mas com ele detido em Penafiel não havia modo de saber se o rapaz ia ou não dar com a língua nos dentes.

"Que tipo de pessoa é o teu irmão?", perguntou de chofre, quase a despropósito.

"O Chico? Se queres que te diga não sei bem. Como sabes, não me dava muito com ele.

Porquê?"

"Achas que ele era menino para andar a inventar coisas contra outras pessoas?"

Joana ficou a olhar para o marido, como se tivesse acabado de cair em si. Ficou um longo instante ali especada, avaliando se aquela linha de pensamento fazia algum sentido.

"Pensas que o Chico ia dizer que tu o ajudaste a matar o Tino?", perguntou ela muito devagar.

"É uma hipótese."

A mulher permaneceu uns segundos em silêncio, equacionando a possibilidade.

"Não me parece", afirmou enfim.

"Pois, mas o facto é que o Ministério do Interior quer falar comigo."

"Está bem", assentiu ela. "Mas daí até ele te acusar de alguma coisa... não me parece."

"Porque dizes isso? Afinal, e como tu própria já reconheceste, não te davas assim tão bem com ele quanto isso..."

"Eu não o conhecia, é verdade, mas conhecia-o a minha mãe."

"E então?"

"Ela costumava dizer que o Chico era mais fiel do que um cão." Desfocou os olhos, como se tivesse alterado o centro da sua atenção. "Uma vez a minha mãe deu-lhe uma trepa por ele ter devorado uma lata inteira de bolachas Maria que ela guardava lá em casa. Com a mão ainda a doer de tanto lhe bater, agarrou-o pela orelha e levou-o para a mercearia, supostamente para ir buscar mais uma lata, mas na verdade para o humilhar em público.

Acontece que um labrego qualquer os viu a passar na rua e mandou uma piadinha ordinária à minha mãe, do género: eu, com uma mãezinha dessas, fazia--lhe isto e aquilo. Pois o Chico ouviu-o e não descansou enquanto não o moeu de pancada; teve de ser a minha mãe a arrastá-lo dali. E isto, nota, poucos minutos depois de ter sido sovado por ela!"

Um sentimento de alívio assentou aveludadamente em Luís, que se descontraiu um pouco.

"Fidelidade canina, portanto."

"Isso."

Com uma expressão subitamente determinada, Joana levantou-se do lugar e dirigiu-se à escrivaninha do marido.

"Onde vais?"

"Vou começar a preparar as coisas para a tua partida."

"Calma!", disse ele. "A viagem é só na próxima semana, que diabo. Temos tempo!"


Ignorando o argumento, a mulher abriu uma gaveta da escrivaninha e retirou do interior duas folhas densamente preenchidas. Observando-as à distância, Luís percebeu que eram as tabelas de horários da camioneta de Bragança e dos comboios para o Porto e para Lisboa.

"A próxima semana é já daqui a três dias, Luís."

A ansiedade consumiu o veterinário nos três dias de espera pela partida para Lisboa.

Fingiu-se despreocupado e evitou alterar a rotina, mas a verdade é que a sua mente não largava o assunto. Acordava mais cedo a pensar no que lhe quereria o Ministério do Interior, desempenhava todas as suas funções com o problema a martelar-lhe a mente e ia deitar-se sempre com a cabeça na mesma coisa. Até em sonhos o tema lhe aparecia.

Como não era capaz de viver assim, sempre obcecado com o mesmo assunto, começou a convencer-se de que o mais provável era a montanha ir parir um rato. Se Francisco tivesse proferido declarações comprometedoras, raciocinou, inevitavelmente arrastaria a irmã consigo. Ora, e atendendo ao perfil de fidelidade canina que Joana descrevera, isso não parecia provável. Além do mais, era preciso ter em conta a forma como ele mesmo havia sido interpelado. Caso o assunto estivesse relacionado com a morte do caseiro em Castelo de Paiva, o contacto não seria evidentemente feito pelo Ministério do Interior, mas pela Polícia Judiciária. E, se existissem realmente suspeitas de cumplicidade no homicídio, não lhe pediriam que fosse a Lisboa prestar esclarecimentos; viriam antes detê-lo na sua própria casa.

Este raciocínio foi-o deixando mais tranquilo, mas por outro lado criava um novo enigma. Se o Ministério do Interior não o queria ouvir sobre o crime de Castelo de Paiva, então qual seria a razão da sua convocatória? Que raio de esclarecimentos eram aqueles que lhe seriam solicitados? Foi como se tivesse saído do forno a escaldar para a panela a ferver. Se o motivo da convocatória não era a morte do caseiro, haveria de ser outra coisa qualquer. O facto é que o Ministério do Interior queria interrogá-lo e, por mais que tentasse tranquilizar-se e dissesse a si mesmo que não aconteceria nada de especial e que correria tudo bem, essa realidade permanecia incontornável.

Estava Luís em casa ainda mergulhado nos becos sem saída do problema quando Nilo assomou à porta e ganiu baixinho, fazendo sinal em direcção às escadas exteriores.

"O que é, Nilo? Vem aí alguém?"

O cão baixou a cabeça em assentimento e o dono levantou-se para espreitar lá para fora. Viu a figura ossuda do advogado da terra, o doutor Garcia, a bufar transpiração enquanto escalava os degraus.

"Ora viva, caro amigo!", acolheu-o. "Por cá?"

Ao chegar à porta de entrada, o advogado respirou fundo.

"Ufa!", expeliu, afogueado, desapertando o nó da gravata às cornucópias azuis. "Hoje está um calor do arco-da-velha, rais t'a parta o diabo!" Apertou a mão ao anfitrião. "O senhor doutor não terá por aí uma aguinha?"

"Entre", convidou-o Luís, fazendo sinal ao advogado de que passasse à frente. "Já lhe vou buscar um copo."


"Eu preciso é de uma garrafa."

O visitante instalou-se numa poltrona da sala e Luís foi à cozinha buscar a água. Voltou instantes depois com uma garrafa de litro e meio, que o doutor Garcia quase esvaziou de uma assentada.

"Aaaaah! Maravilha!", suspirou o advogado ao pousar a garrafa na mesinha ao lado da poltrona.

"Agora sei o que sentem os camelos depois de atravessarem o deserto, c'um caneco!"

Luís acomodou-se na poltrona ao lado.

"Então o que o trás por cá?"

"É a sua viagem, meu caro."

"O que tem ela?"

"O doutor Machado falou-me da sua convocatória e eu decidi vir aqui para lhe oferecer os meus serviços."

"Ah, muito obrigado. Espero não vir a precisar deles. Afinal isto é apenas um pedido para prestar esclarecimentos, nada mais. Se fosse coisa grave, decerto não vinha uma carta nestes termos, conforme aliás o próprio doutor Machado fez questão de me dizer."

O advogado esboçou uma careta.

"Pois, mas não sei se será assim tão simples."

Luís ergueu o sobrolho, subitamente inquieto.

"Porque diz isso?"

O doutor Garcia passou a palma da mão pela cara, como se tentasse limpar os últimos vestígios de suor, mas era evidente que procurava reordenar os pensamentos para melhor expor o que ali o trouxera.

"Oiça, o doutor Machado falou-me no assunto logo que o ofício chegou de Lisboa e eu confesso que não prestei grande atenção porque também raciocinei nos mesmos moldes. Se fosse coisa grave, tinha com certeza vindo uma ordem pior." Entrelaçou os dedos. "Mas esta manhã, no tribunal, o assunto voltou à baila e o doutor Machado, já nem sei porquê, mostrou-me o ofício." Fez um estalido com a língua. "Quando o li... olhe, caiu-me o coração aos pés."

Luís, que na sua poltrona se esforçava por aparentar a maior tranquilidade, descruzou a perna e inclinou-se na direcção do visitante, o alarme a perpassar-lhe pela face.

"Porquê? O que tem a carta de especial?

O advogado coçou a cabeça, como se estivesse indeciso.

"Não sei como lhe diga isto", titubeou, a tactear o caminho. "A verdade é que aquele ofício está-

me a fazer espécie."

"A si e a mim. Isto do Ministério do Interior querer fazer-me perguntas é enervante, realmente.

Estou farto de matar a cabeça para tentar perceber o que diabo me querem eles, mas, por mais voltas que dê, a verdade é que não encontro respostas."

"O senhor doutor leu a carta?"

"O juiz mostrou-ma."

"Não notou lá nada de estranho?"

"Quer dizer, para além da estranheza de eu ser convocado para prestar esclarecimentos sobre um assunto que desconheço, não. Porquê?"


O doutor Garcia meteu a mão ao bolso e extraiu um bloco de apontamentos com linhas azuis. Folheou-o rapidamente até se fixar numa página rabiscada a negro.

"Eu tomei a liberdade de copiar o teor do texto." Apontou para uma linha. "O que me está a fazer espécie é isto que vem aqui. Ora veja."

Luís espreitou a linha. O dedo do advogado indicava o endereço contido na carta.

"A Rua António Maria Cardoso? O que tem?"

O doutor Garcia respirou fundo, retirando daquela morada todo o significado contido no ofício.

"Esta morada não é a do Ministério do Interior, doutor", revelou. "Mas nesta rua encontra-se uma entidade tutelada pelo ministério e é ela quem o está verdadeiramente a interpelar. Não está a ver quem é?"

"Eu não."

"É a pevide."

"Quem?"

O advogado pestanejou, como se até pronunciar aquelas siglas fosse penoso.

"A PVDE."

XIII

Aquela zona de Lisboa era-lhe muito familiar dos seus tempos de estudante. Fora aqui no São Luiz que devorara fitas e mais fitas de Marlene Dietrich e May McAvoy, procurando sempre nesta última o rosto melancólico de Amélia; fora acolá na Bertrand que passara horas a folhear livros, desde romances até sebentas, sempre em busca da última novidade; e fora ali na Brazileira que, com um café e uns bolinhos na mesa, tivera os seus múltiplos flirts de estudante, espreitara poemas de poetas quase desconhecidos ou se digladiara ferozmente com o seu amigo Fernando em torno dos méritos e deméritos do regime.

Voltava agora ao mesmo local, embora o espírito fosse desta feita bem diferente. Já não encarnava o estudante invencível que acreditava ser capaz de mudar o mundo, mas o cidadão reprimido e quebrado e que já só queria levar uma vida recatada e conformada, sem problemas nem ambições, procurando viver os dias sem se fazer notado, transportando a

desilusão como um animal carrega o fardo, aceitando a situação com a resignação de um mártir diante do sacrifício.

O espírito com que percorria o Chiado cristalizava-se no discreto edifício que lhe apareceu em frente ao dobrar a esquina. De um lado resplandecia a arrojada fachada do cinema São Luiz, do outro a bandeira verde com o planeta a proclamar "Ordem e Progresso" assinalava a embaixada do Brasil, e no meio, quase como uma excrescência emparedada em tão nobre vizinhança, plantava-se a sede da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. No topo da esquina, pregada a uma parede, uma tabuleta de azulejo assinava a Rua António Maria Cardoso.

Fazendo um esforço para controlar as batidas cardíacas, Luís respirou fundo e cruzou a rua.

"Venho aqui por causa de uma convocatória", anunciou na recepção.

O recepcionista, um homem calvo no topo da cabeça e com tufos de cabelos atrás das orelhas, abriu um enorme livro.

"Nome?"

"Luís Afonso, veterinário."

O dedo roído do recepcionista deslizou pelo livro até se imobilizar numa linha.

"Ah, está aqui. Tem aí o seu bilhete de identidade?"

Sem dizer uma palavra, Luís extraiu o documento do bolso e entregou-o. O homem registou o número e o nome, guardou o bilhete de identidade numa caixinha de madeira e estendeu um crachá ao visitante.

"Ponha isto ao peito", ordenou. Apontou para as escadas. "Suba até ao segundo andar e vire na primeira porta à direita."

Luís assentiu e, com a mesma vontade de um condenado que segue para o cadafalso, pregou obedientemente o crachá à

camisa e escalou as escadas. Alguns homens subiam e desciam, mas não parecia haver muita azáfama no edifício; dava a impressão de que tudo aquilo não passava de mais uma repartição pública.

Ao chegar ao segundo andar viu uma porta à direita e bateu, seguindo as instruções que o recepcionista lhe dera. Um homem com ar carrancudo mandou-o sentar-se e desapareceu, deixando-o sozinho. A salinha tinha uma janela que se abria para um pátio interior, mas não se atreveu a espreitar; pareceu-lhe melhor seguir à risca as ordens. Se o mandavam sentar-se permaneceria sentado.

O homem reapareceu alguns minutos depois e, com um grunhido e um gesto da cabeça, mandou-o segui-lo. O indivíduo meteu pelo corredor e parou diante de outra porta. Deu dois toques ligeiros com as costas da mão.

"Entre", ordenou uma voz.

O homem abriu a porta e fez sinal a Luís de que passasse. O visitante cruzou a entrada e deparou-se com a figura minúscula e aprumada de Aniceto Silva sentada a uma enorme secretária de madeira a rabiscar uns papéis. A porta fechou-se atrás de Luís, deixando-o a sós com o inspector.

"Sente-se", ordenou o homem da PVDE sem levantar os olhos.

Luís acomodou-se na cadeira diante da secretária e aguardou em silêncio. Havia um retrato de Salazar e outro de Carmona na parede atrás do inspector, e um mapa de Portugal na parede ao lado. Uma pequena bandeira portuguesa ornava a secretária, onde se destacavam resmas de papéis muito bem ordenadas. Da janela do gabinete vinha um hálito de claridade e lá em baixo passavam automóveis e transeuntes, percorrendo a António Maria Cardoso num bulício rotineiro.


A Luís tudo aquilo parecia bizarramente normal, o que conferia um estranho toque de irrealidade à cena. Ouvia lá fora o roncar de motores e buzinadelas pontuais, mas no gabinete o som dominante era o da caneta do inspector a deslizar pela superfície rugosa do papel.

Com um garatujo rápido, semelhante ao das assinaturas nervosas, Aniceto Silva concluiu a redacção. Pousou a caneta sobre o tinteiro, fez dois buracos na folha e inseriu-a numa pasta, que guardou numa pequena estante junto à secretária.

"Então sempre nos voltamos a ver, hem?", perguntou, encarando finalmente o visitante.

"É a primeira vez que nos visita aqui nas nossas humildes instalações, presumo."

"Sim."

"Se tudo correr bem e o cavalheiro tiver juizinho, não será a última."

Luís cerrou as sobrancelhas, estranhando o comentário.

"O que quer o senhor dizer com isso?"

O inspector abriu uma gaveta e extraiu do interior uma pasta cinzento-clara.

"Já vai perceber." Abriu a pasta e começou a folhear os papéis no seu interior. "O

cavalheiro sabe o que isto é?"

"Não faço a mínima ideia."

"É o seu dossier." Seleccionou um documento. "Este é o auto de informação sobre si."

Acenou com a folha. "Está a ver?"

Era um papel magenta, com texto dactilografado a negro e os nomes em maiúsculas a vermelho já desbotado. Com o documento nas mãos do inspector era difícil perceber o seu teor, mas mesmo assim conseguiu ler a palavra informação no topo e logo em baixo o seu nome, Luís António Afonso.

"Posso ler?"

O inspector esboçou um sorriso ardiloso.

"Isso queria o cavalheiro!", ciciou. "Mas eu leio-lhe o essencial, fique descansado." Endireitou a folha e passou os olhos pelo texto. "Diz aqui que Rui Lopes da Silva, membro do chamado «p. c.

p.» com o pseudónimo de «Victor», confessou ter sido ajudado por um estudante a escapar de uma acção de desestabilização no Instituto Superior de Medicina Veterinária, em 1935. Um inquérito permitiu identificar o referido estudante como sendo o senhor Luís António Afonso. Mais apurou o inquérito que o referido estudante era conhecido no referido instituto pelas suas opiniões contra a situação, embora não se lhe conhecessem quaisquer acções em concreto, razão pela qual se determinou não haver lugar a procedimentos nesta fase." Levantou os olhos do auto e fitou Luís.

"Um fala-barato, portanto." O sorriso ardiloso regressou-lhe ao rosto antes de se voltar a concentrar no texto. "No ano seguinte, o nome do mesmo sujeito é referido em autos do processo-crime número 1598/36, respeitante ao homicídio do senhor Constantino Latino em Castelo de Paiva. O

alferes veterinário Luís António Afonso aparece aqui como testemunha num caso em que as suspeitas incidem sobre o senhor Francisco Rodrigues, entretanto desaparecido." O inspector fez um estalido com a língua, como se esgravatasse comida entre os dentes, e os olhos desceram ainda mais no texto. "A última referência é recente. O senhor doutor médico veterinário Luís António Afonso foi ouvido em lugar público da vila de Vinhais a dizer, e passo a citar..." Hesitou, aproximando os olhos da folha para ler melhor a citação. "«No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura»." Levantou os olhos com uma expressão desdenhosa. "Portanto, por aqui se vê que o cavalheiro pensa que o seu molosso é mais qualificado para governar do que o senhor presidente do Conselho."

Luís quase se engasgou. Tentou situar a conversa e lembrou-se que, de facto, havia dito qualquer coisa naquele sentido durante uma das habituais picardias políticas à mesa de jogo entre dois dos seus parceiros, o doutor Garcia e o doutor Machado.

"Filho da puta do juiz", murmurou entre dentes ao concluir que o doutor Machado era a fonte da informação.

"Como diz?"

"Nada."

"Desculpe, mas o cavalheiro disse alguma coisa, que eu bem ouvi."

Luís suspirou.

"Estava a falar com os meus botões", explicou. "O que eu quero dizer é que essa frase tem um contexto."

"Ah, pois. Com certeza que tem. O contexto é vilipendiar a obra do regime!"

"O contexto emerge de uma conversa em privado. É preciso conhecer toda a conversa para perceber o sentido em que eu fiz essa afirmação."

Os dedos do inspector dançaram entre os papéis, extraindo mais um documento do molho que se encontrava na pasta.

"O contexto está aqui." Acenou com a folha, sem deixar Luís perceber o que nela se encontrava escrito. "É um sumário dessa conversa." Passou os olhos pelas anotações. "Conversa instrutiva, sem dúvida."

"Esse juiz é um cabrão", rosnou Luís, odiando o doutor Machado com todas as forças.

"Pelo contrário, é um homem com muito tino."

O veterinário controlou-se e reprimiu-se a si mesmo. Não estava ali para dizer o que pensava, mas porque fora convocado. Mais valia calar-se e ter daí em diante mais cuidado com tudo o que dizia e fazia em público.

"Foi para me ler o meu dossier que o senhor me convocou aqui a Lisboa?", perguntou, tentando ir direito ao assunto.

O inspector soltou uma gargalhada.

"O cavalheiro está com pressa, hem?" Ajeitou a resma, alinhando as folhas em bloco, e colocou-as dentro da pasta. "Muito bem, vamos ao que interessa. Eu mostrei-lhe um extracto do seu dossier para que o cavalheiro tivesse a perfeita noção de que o trazemos debaixo de olho. Não tem dúvidas sobre isso, pois não?"

"Nenhumas."

"Ainda bem." Arrumou a pasta ao lado. "O cavalheiro deve recordar-se que nos encontrámos pela primeira vez ali no Parque Mayer, estava o cavalheiro agarrado a uma meretriz." Calou-se para ver se o seu interlocutor reagia, mas Luís manteve-se silencioso, escudando-se numa expressão impenetrável. "Mais tarde, quando eu conduzia um inquérito àquela palhaçada ocorrida no Instituto Superior de Medicina Veterinária, apercebi-me, através de conversas, de que o estudante que teria ajudado um dos delinquentes a escapar era justamente o mesmo cavalheiro que eu surpreendera em posições indecorosas no Parque Mayer." Juntou a ponta dos dedos das duas mãos e encostou-lhes o queixo, assumindo uma postura judiciosa. "Seria fácil, como é evidente, deitar-lhe a mão de imediato e fazer-lhe pagar bem cara a afronta que teve a desfaçatez de me fazer na ocasião em que travámos conhecimento." O tom de voz tornou-se magnânimo. "Porém, não fui por esse caminho. Em vez disso, e como competente polícia que, sem falsas modéstias, me considero ser, de imediato lhe tracei um determinado perfil psicológico, percebendo que o cavalheiro um dia ainda me poderia vir a ser útil." Arreganhou os lábios. "Esse dia chegou."

"O que quer o senhor de mim?"

"O cavalheiro encaixa-se como uma luva nas nossas necessidades operacionais. Como lhe disse há pouco, não passa de um fala-barato, um pretenso intelectual que arrota interjeições contra o regime que o alimenta, mas que, na hora da verdade, está quieto que nem o rato que é. De modo que..."

"Não lhe admito que se refira a mim nesses termos."

"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", rosnou o inspector sem levantar a voz. "E, se for minimamente esperto, vai ouvir até ao fim o que tenho para dizer. E é se quer sair daqui inteiro."

A conversa assumia tonalidades veladamente brutais, implícitas nas palavras e sobretudo no tom. Intuindo que era contraproducente reagir às provocações, Luís fez um esforço e manteve-se calado. O que lhe interessava a ele o que aquele cretino pensava ou não de si? Deixasse-o falar...

Sentindo que o seu interlocutor se encontrava plenamente dominado, o inspector retomou a exposição.

"No meu modo de ver as coisas, o cavalheiro pode ser-nos de extrema utilidade. Diz umas coisas contra o regime, o que o deixará decerto bem visto entre os comunistas e os revira-lhistas, mas nada fez de concreto que ponha realmente em causa o Estado Novo, pelo que não está à margem da lei. Assim postas as coisas, encontra-se numa excelente posição para nós, se é que entende o que eu quero dizer..."

A frase ficou a flutuar no ar, extraindo de Luís uma opaca expressão de incompreensão.

"Não, não estou a entender."

O inspector tamborilou com os dedos na pasta cinzenta-clara que continha todo o dossier de Luís.

"O cavalheiro reparou em quão completas são as informações aqui contidas?"

"Sim."

"Sabe como as coligimos?"

"A meterem o nariz na minha vida."

O homem da PVDE sorriu.


"É uma maneira de pôr as coisas", disse. "Na verdade, toda a informação na nossa polícia é recolhida através de fontes múltiplas: escutas telefónicas, intercepção de correio, vigilância de suspeitos e interrogatórios. O problema é que os prevaricadores estão cientes das cautelas que precisam de ter quando falam ao telefone ou escrevem uma carta ou vão a qualquer sítio. E num interrogatório, sobretudo quando é usada alguma severidade, têm tendência a dizer o que pensam que nós queremos saber e não necessariamente o que de facto aconteceu. Daí que eu acredite mais num outro tipo de fonte, uma fonte humana.

Como costumo dizer, para haver uma informação é preciso haver um informador. A grande dificuldade é recrutar as pessoas certas."

Luís olhou para o polícia com uma expressão incrédula.

"A PVDE quer recrutar-me como informador?"

"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", retomou Aniceto Silva, contornando a pergunta.

"Nós temos muita gente que se oferece para ser informadora. O problema é que grande parte não serve para essa função, uma vez que as suas opiniões a favor do regime são mais ou menos públicas. O cavalheiro acha que um comunista fala à vontade quando está diante de uma pessoa que já fez afirmações a elogiar Salazar? É óbvio que essas pessoas, por muito boa vontade que tenham, não servem. O que nós precisamos mesmo é de gente de quem os suspeitos não desconfiem, de indivíduos que ao longo da vida tenham proferido declarações contra a situação." Deu uma palmada enfática na secretária. "Esses é que são os bons informadores!"

"O senhor deve estar a brincar comigo..."

O inspector torceu a boca.

"O cavalheiro acha-me com cara de brincalhão?", perguntou. "Receio que isto seja uma coisa muito séria." Voltou-se para o mapa de Portugal pregado na parede. "Sabe, a maior parte da nossa actividade decorre em Lisboa, como é evidente. Mas há muita coisa que se passa na província, porque é aí que muitos agentes subversivos se refugiam na convicção de que nas zonas rurais se encontram menos expostos. Daí que tenhamos necessidade de uma rede de informadores a operar nos meios mais pequenos, como acontece neste caso." Indicou o Norte de Trás-os-Montes.

"Precisamos do cavalheiro para nos ajudar a recolher informações sobre o que se passa em Vinhais e em particular sobre um sujeito que nós consideramos suspeito e andamos a vigiar."

"Quem?"

O inspector pegou numa outra pasta e tirou uma fotografia do interior, que pousou sobre a mesa voltada para o seu interlocutor.

"Este."

Luís reconheceu um dos seus parceiros de jogatanas na sala de chá da Pensão Alves.

"O doutor Garcia?"

"O cavalheiro já deve ter reparado que este advogado exibe uma verborreia acirrada contra a situação", disse Aniceto Silva, devolvendo a fotografia à pasta. "O que talvez não saiba é que este sujeito tem ligações a uma organização secreta e terrorista denominada Frente de Acção Popular, vulgo FAP. Pensamos até que ele está envolvido na elaboração de um panfleto clandestino e subversivo que procura propagar ideias antipatrióticas. Precisamos que uma pessoa da confiança do doutor Garcia nos informe sobre as suas actividades e, se possível, sobre as actividades desta dita Frente de Acção Popular."

O veterinário fez um gesto na direcção da pasta com o seu dossier.

"Precisam de mim para isso? Então e o bufo que vos andou a dar informações sobre mim?

Porque não o usam a ele?"

"A nossa andorinha vai mudar de ninho."

"Não percebo."

"O informador que temos em Vinhais vai ser transferido."

"O juiz Machado vai sair de Vinhais?"

"Quem lhe disse que era o juiz Machado?"

"Não é o juiz Machado?"

"Claro que não! Esse não passa de um tonto, coitado. Voluntarioso, é verdade, mas um tonto.

Além do mais, não se cansa de elogiar a situação. Quem seria o reviralhista ou comunista que confiaria nele?"

O veterinário manteve os olhos cravados no polícia, a mente a fervilhar de ideias. O informador não era o juiz Machado? Então quem era? O doutor Garcia também não podia ser, uma vez que se tratava do suspeito a vigiar. Além do mais, o informador ia pelos vistos ser transferido e, que Luís soubesse, nenhum destes dois planeava mudar-se para qualquer parte. Estreitou os olhos, tentando lembrar-se se haveria alguém que ia sair de Vinhais. Bem, para chefiar o Hospital de Bragança ia o... o....

"O Fernando?"

O inspector recostou-se na cadeira e manteve o olhar fixo no seu interlocutor.

"Não tenho liberdade para identificar o nosso homem, nem isso interessa para o caso. O facto é que..."

"O Fernando?", repetiu Luís, atónito com a conclusão a que de repente chegara. "É ele o... o... o informador?" Custava-lhe acreditar, o seu velho amigo da faculdade andava a dar informações à PVDE, era ele o bufo! "Mas como é isto possível?"

"A identidade do nosso informador não é para aqui chamada", insistiu o inspector. "O

que interessa é que vamos precisar de si para nos informar de qualquer actividade subversiva que ocorra na sua área de actuação." Tirou uma caneta da camisa e começou a garatujar um papel. "O seu nome de código vai ser Alberto. Enviar-nos-á três cartas mensais a relatar o que viu e ouviu. Se achar que uma situação requer a nossa intervenção rápida, telefone-me para este número aqui e diga para virmos buscar a encomenda, código para efectuarmos uma detenção. Para cobrir as suas despesas, receberá uma boa maquia.

São quinhentos escudos por mês." Levantou os olhos do papel. "Nada mau, hem?"

Sentado diante da secretária do polícia e já refeito do choque, Luís cruzou os braços e carregou as sobrancelhas.

"Desculpe, mas há aqui um engano. Eu não vou fazer nada disso. Aliás, nem consigo perceber onde foi o senhor buscar a ideia de que eu aceitaria um trabalho destes, que vai contra todas as minhas convicções. Eu não sou da situação e nunca serei um informador da polícia de vigilância. Eu sou, e serei sempre, um médico veterinário."

"Claro que é um médico veterinário. E um médico veterinário que nos vai dar informações sobre quaisquer actividades suspeitas do sujeito que está encarregado de vigiar."

"Já lhe disse que nunca farei isso."

O inspector inclinou-se sobre a secretária, apoiou os cotovelos nela e olhou fixamente para o veterinário, numa postura de firmeza e intransigência.

"E eu estou a dizer-lhe que fará."

"Mas onde diabo foi o senhor buscar essa ideia? Como é possível que acredite que eu aceitarei ser informador da PVDE?"

"O cavalheiro não tem alternativa."

"O que quer dizer com isso?" "Se não aceitar, irá apodrecer na cadeia." "O

quê?"

"Prometo-lhe muitos anos atrás das grades." "O senhor deve estar a brincar..." "Vai para a cadeia." "Mas... porquê? Qual é a acusação?" Aniceto Silva manteve os olhos fixos, sem pestanejar, como se fossem adagas cravadas em Luís. "Homicídio."

XIV

Nunca como nesse instante o sentimento de irrealidade se abatera tão brutal e friamente sobre Luís. A palavra que acabara de escutar ecoava-lhe na mente como um disco riscado no gramofone. Parecia-lhe que o inspector a repetia vezes sem conta ao seu ouvido,

"homicídio", "homicídio", "homicídio", pronunciada sempre no mesmo tom glacial.

Estava sozinho no gabinete e mal se apercebia disso. Registara vagamente a saída do inspector Aniceto Silva para ir buscar não sabia bem o quê, mas a confusão na sua cabeça era de tal ordem que sentia dificuldade em concentrar-se. Tudo o que sabia, tudo o que preenchia a sua mente, era a palavra "homicídio". O que significava que seria obrigado a fazer uma escolha: ou se tornava informador ou seria punido. A opção parecia simples, mas revelava-se terrivelmente complicada. E, no meio de tudo aquilo, o mais surreal era que havia sido traído pelo Fernando, o seu velho amigo da faculdade. Realmente, nunca se conhecem verdadeiramente as pessoas,

pensou. Era verdade que ele sempre fora das direitas, mas denunciar um amigo? De facto, quando achamos que...

"Presumo que já se conheçam."

A voz do inspector rompeu a cadeia de pensamentos de Luís. Com um sobressalto, olhou em direcção da porta e viu Aniceto Silva convidar alguém a entrar. Um vulto colossal assomou ao gabinete e imobilizou-se a olhar para Luís.


"Chico!"

Já não era um rapagão, mas um homenzarrão, de barba rala e olhar vivido. Vinha acompanhado por um outro homem à civil, presumivelmente um agente da PVDE, e manteve os olhos baços pousados com indiferença no veterinário.

"Reconhece-o?", perguntou o inspector, dirigindo-se a Francisco mas com o dedo a apontar para Luís.

"Sim", assentiu Francisco.

"Foi ele que matou o senhor Constantino Latino?"

"Foi."

"De certeza?"

"Absoluta."

A voz nem vacilou e Luís observava-o boquiaberto, incapaz de pronunciar uma sílaba que fosse, estarrecido com a enormidade do que acabava de ouvir.

"Muito obrigado, senhor Francisco, pelo seu precioso testemunho", disse o inspector, quase deferente. "O Amaro acompanha-o até à saída."

O segundo homem à civil puxou Francisco pelo braço e ambos desapareceram para além da porta, que se fechou de imediato. Com movimentos ligeiros, o inspector contornou a secretária e sentou-se na sua poltrona, sempre seguido pelo olhar atónito de Luís.

"O cavalheiro está esclarecido?"

O veterinário permaneceu mais um instante com ar embasbacado.

"Mas... isto é... é absurdo", balbuciou, tentando reordenar os pensamentos. "O que o Chico disse não é verdade. É uma mentira hedionda."

O polícia esboçou uma expressão trocista.

"Estou quase a chorar por si", gracejou. "Acho que nem vou dormir esta noite."

"Mas o senhor tem de acreditar em mim! Eu não matei ninguém!"

"Claro que acredito em si! Acredito em si e acredito em Maomé!"

"Mas juro-lhe que estou a dizer a verdade!"

"Claro que jura", riu-se. "Na hora do aperto, todos juram o que quer que seja. Até culpam a mãezinha se for preciso!"

Luís sacudiu a cabeça, como se tentasse expulsar a nuvem que lhe toldava o pensamento. Assim não iria lá. Vendo as coisas com maior lucidez, tornava-se evidente que o inspector não ia acreditar nele, fossem quais fossem as circunstâncias. Não lhe convinha.

Endireitou o corpo e fez um esforço para controlar os nervos; não era o momento adequado para fraquejar.

"Há uma testemunha", disse, preparando-se para puxar do ás que trazia guardado na manga.

"Claro que há", disse o inspector. "Chama-se Francisco Rodrigues e acabámos de o ouvir identificar o assassino do senhor Constantino Latino."

"Não estou a falar no Chico", corrigiu Luís. "Há uma terceira testemunha. E uma pessoa que poderá dizer quem está a falar verdade e quem está a mentir: se eu, se o Chico."


O homem da PVDE dedilhou a madeira da secretária como um pianista a percorrer um teclado.

"O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"

"Peço desculpa!", exclamou Luís, surpreendido com a falta de surpresa manifestada pelo polícia perante a revelação que acabara de fazer. "Pois se lhe estou a dizer que existe uma outra testemunha dos eventos. Não acha que isso é pertinente para o apuramento dos factos?"

"Volto a perguntar-lhe", insistiu Aniceto Silva, a voz pausada e tensa, como se lhe desse sinal de que havia ali uma armadilha. "O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"

Luís hesitou, desconcertado com a firmeza daquele tom.

"Tenho alguma alternativa?"

"O cavalheiro lá sabe da sua vida. Mas, se invocar uma nova testemunha, teremos de a ir interrogar, está a entender?"

"Sim..."

"E quando a formos interrogar iremos fazer-lhe muitas perguntas. Uma delas diz respeito a certas actividades no estábulo ou no celeiro da quinta onde decorreram os acontecimentos. Serão perguntas inconvenientes, claro, até porque pode dar-se o caso de a dita testemunha ser casada."

Cravou os olhos no seu interlocutor. "Faço-me entender?"

O veterinário remexeu-se na cadeira, crescentemente desconfortável com as insinuações.

"Não estou a ver onde quer o senhor chegar."

"Claro que está", devolveu Aniceto Silva, sempre no mesmo tom tenso e agreste. "Até se pode dar o caso de o cornudo estar neste momento na paz dos anjos, ignorando em absoluto as actividades nocturnas da sua rica e ardente esposa. Porém, caso tenhamos de a interrogar, decerto essa santa

ignorância se esfumará e o referido sujeito tomará conhecimento de coisas que, para ser sincero, e a bem da harmonia na vida familiar, seria dispensável que viesse a saber." Franziu o sobrolho, para enfatizar a ideia. "Continuo a fazer-me entender?"

Luís estreitou os olhos, sem saber o que responder. O polícia interpretou o silêncio como o assentimento de quem nada queria admitir, mas também não tinha maneira de negar.

"O que me obriga a fazer-lhe uma pergunta: o cavalheiro tem a certeza de que há uma outra testemunha neste caso?"

Uma gota de suor nasceu do cabelo castanho de Luís e deslizou-lhe pelas têmporas. Respirou fundo e recostou-se na cadeira, vencido pela pressão.

"Não."

O inspector sorriu.

"Bem me queria parecer."

Luís sentia-se perdido, mas lançou uma derradeira tentativa, como o náufrago que estica as mãos em direcção à distante bóia, na esperança de que as correntes a arrastem até ele.

"O senhor não se preocupa com a verdade?"

"Claro que preocupo", exclamou Aniceto Silva. "A verdade é que o regime salvou Portugal. A verdade é que urge defender o regime, custe o que custar, porque defender o regime é defender Portugal. O que me interessa a mim se foi o cavalheiro que matou um pobre labrego lá para trás do Sol posto ou se o criminoso foi um qualquer energúmeno desmiolado? O que me interessa isso?"


Colou o polegar ao peito. "A minha única verdade é a defesa do Estado Novo e da pátria. As outras verdades não passam de ferramentas ao serviço da verdade suprema, entendeu?"

Comprimido na sua cadeira, Luís sabia-se perdido. Racionalizou o que já intuíra: o polícia não tinha qualquer interesse em identificar o verdadeiro assassino do caseiro de Castelo de Paiva. Com toda a probabilidade, até tinha consciência de que o veterinário não matara ninguém. Mas isso parecia-lhe manifestamente irrelevante. O crime não passava de um simples instrumento para o sujeitarem a chantagem, uma arma para o dobrarem, um expediente para o vencerem.

E vencido era coisa que ele estava já.

"O que quer de mim?"

-

"Já lhe disse. Preciso de si para substituir o meu informador de Vinhais, que vai ser transferido para outro lugar. Preciso de si para vigiar as actividades subversivas do doutor Garcia."

"E o que acontecerá âo caso de Castelo de Paiva?"

O inspector da PVDE encolheu os ombros.

"O que interessa isso?"

"Interessa-me a mim. O que acontecerá ao caso?"

"Nada."

"Nada como? O que vão fazer do Chico?"

"O senhor Francisco Rodrigues é um homem às direitas e nunca será condenado por uma coisa tão... tão ridícula. Já informámos o Ministério Público de que ocorreu um caso de troca de identidades e de que este senhor não é o homem procurado pelo homicídio do senhor Constantino Latino. Vai, por isso, ser devolvido à liberdade."

"E eu?"

"Se o cavalheiro se portar bem, também não lhe acontecerá nada. Muito pelo contrário, poderá até ser premiado por serviços relevantes prestados à nação."

"E se eu não me portar bem?"

"Nesse caso, temos já em nossa posse uma declaração do senhor Francisco Rodrigues a assegurar que foi o alferes

JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS

veterinário Luís Afonso quem partiu o pescoço ao senhor Constantino Latino, após a vítima ter intercedido em defesa da honra da senhora dona Amélia Branco."

Ao ouvir o nome de Amélia, Luís fuzilou o inspector com os olhos.

"O que quer dizer com isso?"

"Eu? Eu não quero dizer nada!", exclamou num tom sonso. "Quem está a fazer essa afirmação é o senhor Francisco Rodrigues no depoimento que assinou e que, se o cavalheiro se puser com palermices, será apenso ao processo."

"Os senhores vão acusar-me de ter tentado molestar a Amé... a senhora dona Amélia?"

"No caso de o cavalheiro se começar a armar em parvo, eu diria que sim." Abriu os braços e encolheu os ombros, num gesto de impotência. "É preciso um móbil para o crime, não é verdade?

Se o cavalheiro assassinou alguém, o juiz vai querer saber qual o motivo. Ora, se assim é, parece-me que este faz todo o sentido: o cavalheiro tentou molestar a senhora, o caseiro interveio em defesa das virtudes da dita donzela e o cavalheiro, num acesso de fúria, apertou-lhe o gasganete."

Desfraldou um sorriso malicioso. "Parece-me uma maneira elegante de ilibar a senhora de qualquer comportamento menos próprio, não acha?"

Luís baixou a cabeça, sentindo-se cercado por uma barreira de mentiras, meias verdades e obrigações morais. Acontecesse o que acontecesse, não poderia envolver Amélia naquela terrível confusão. As consequências seriam devastadoras.

"Estou a ver", murmurou, derrotado.

Os dedos do inspector tiquetaquearam com impaciência a madeira da secretária.

"Então?", perguntou. "Em que ficamos?"

Encolhido na cadeira, o veterinário não sabia o que dizer.

"Oiça, eu não... não consigo dar-lhe a resposta assim do pé para a mão", tartamudeou. "Dê-me algum tempo."

Aniceto Silva desferiu uma palmada sonora na secretária, como um juiz a martelar a mesa no momento da sentença.

"Tem vinte e quatro horas para me responder!", exclamou, pondo-se de imediato de pé e olhando para a porta. "Amaro!"

A porta do gabinete abriu-se e um homem fez continência.

"O senhor inspector chamou?"

"Leve-me este cavalheiro para o Governo Civil."

"Sim, senhor inspector."

Amaro aproximou-se de Luís, que se levantara e olhava interrogativamente para Aniceto Silva.

"Vou para o Governo Civil fazer o quê?"

O inspector colou o indicador às têmporas.

"Vai pensar."

"Pensar?"

Amaro pegou no braço de Luís e puxou-o em direcção à porta. O veterinário manteve os olhos fixos no inspector da PVDE, que se voltou a sentar na secretária e, antes de regressar aos papéis, lhe lançou uma expressão de desdém.

"Pode ser que uma noite aos quadradinhos o faça ver a razão", disse-lhe. "O cavalheiro está detido."

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