XV
A maior ironia do casamento foi o facto de ter aproximado Luís de Amélia. Acabou por ser uma evolução de certo modo natural, considerando que aconteceu por via dos cônjuges.
Com frequência Joana queria estar com a irmã, mas por vezes era o próprio capitão Branco que insistia em convidar o seu camarada de armas. O facto é que o casal Afonso se tornou visita habitual na casa dos Branco e os dois antigos namorados passaram a encontrar-se com uma assiduidade quase embaraçosa.
Perante o inopinado evoluir da situação, nos primeiros dias Amélia esforçou-se por se manter longe da vista de Luís, invocando uma multiplicidade de pretextos: ou tinha de orientar a criada ou precisava de tratar dos filhos ou havia que ir ao mercado ou então era outra coisa qualquer. A irmã acompanhava-a, mas Amélia tinha o cuidado de manter os homens afastados.
Este distanciamento deixou Luís perturbado. Sempre que ia à casa do Sameiro sentia uma excitação surda pela perspectiva
de ver Amélia, mas uma vez lá sobrevinha a decepção. Quase nunca a via e começou a perceber que a invisibilidade da dona da casa era propositada e tinha a ver consigo. Seria possível que a sua presença lhe repugnasse? Mais do que desconfortável, essa possibilidade deixava-o triste. Para fugir ao isolamento, Luís refugiou-se na companhia do capitão, o que, aliás, parecia natural, sendo ambos camaradas no mesmo quartel. Foi assim que o visitante foi conhecendo melhor o seu rival secreto.
Mário Branco revelou-se-lhe um homem metódico e exigente, daqueles que nunca esquecem os seus deveres. Quando as visitas se prolongavam pela noite e o casal Afonso acabava por pernoitar em casa dos Branco, antes de se deitar o capitão pedia licença aos convidados e descia até ao escritório. Verificava junto à porta de entrada os gastos de electricidade desse dia e registava-os depois num livrinho preto pousado na escrivaninha. A luz de um candeeiro cujo clarão azulado tingia de sombras as paredes forradas a papel, anotava aí todos os gastos da família, mesmo os que poderiam parecer mais insignificantes. Luís percebeu que isso lhe estava na massa do sangue, era algo que emergia da sua natureza de homem disciplinado.
Ao fim de várias noites dormidas naquela casa, Luís descobriu que o capitão saía rumo ao quartel todas as manhãs à mesma hora, com o inacreditável pormenor de o fazer rigorosamente no mesmo minuto. Tão surpreendido ficou com esta constatação que comentou o assunto com a mulher.
"Isso é coisa famosa aqui em Penafiel", observou Joana, com um risinho discreto. "Ele toma sempre o mesmo itinerário. Desce aqui a rua, chega à Praça do Município e mete pela Rua Direita, onde está o jornal. Pois sabes o que faz o doutor Tomás Ferreira quando o vê passar?"
"Quem?"
"O doutor Ferreira. O director do nosso semanário, o Tempo. Estás a ver quem é?"
"Ah, sim. O que faz ele?"
"Acerta a hora!"
"Estás a brincar."
"A sério", garantiu ela. "O homem confia mais na hora de passagem do Mário à frente do jornal do que no próprio relógio!"
Apesar da relutância surda de Amélia, os casais passaram gradualmente a despender mais tempo juntos. As desculpas para a ausência da dona da casa tinham um limite para lá do qual se tornaria estranho o seu comportamento. Foi assim que a resistência da antiga namorada se foi a par e passo desmoronando, até ao dia em que o marido, durante um jantar na companhia do casal Afonso, deu inadvertidamente o passo decisivo. "Vocês já repararam como o tempo melhorou?" "É a Primavera, meu capitão", observou Luís. "O sol já espreita."
"Pois é", suspirou o anfitrião, saboreando um trago de branco verde. "Este fim-de-semana vamos para a quinta. Querem vir?" "Onde?"
"A nossa quinta, ali em Castelo de Paiva." "Não sabia que vocês tinham uma quinta."
"Temos duas até. Uma é a Quinta de Pousada e a outra é a Quinta de Vales. Mas olhe que são coisas rústicas, não têm nada de especial."
"Ah, pois não!", exclamou Amélia com um sorriso irónico. "Pois foi graças a essas duas coisas rústicas que conquistaste a minha mãe."
"Que queres dizer com isso?", admirou-se o capitão Branco. "Eu casei contigo, não foi com a tua mãe."
"Eu cá me entendo."
Fez-se um silêncio breve. Surpreendido, Luís percebeu de imediato o alcance da inesperada observação de Amélia; era como se a antiga namorada lhe tivesse lançado uma mensagem velada, lembrando-lhe que o seu casamento não fora inteiramente livre. Aquelas palavras contrastavam frontalmente com o comportamento que Amélia adoptara desde que ele se tornara visita frequente da casa, pelo que as escutou com um indisfarçável sentimento de alívio. Era como se uma luz de esperança se tivesse acendido na desesperança em que se perdia.
O capitão, porém, não entendera o comentário da mulher e olhava-a com uma expressão interrogativa. Sentindo que era necessário desviar-lhe a atenção do assunto, Luís tratou de relançar a conversa.
"O meu capitão anda a comprar propriedades?"
"Não, claro que não."
"Então como tem essas quintas?"
Mário Branco indicou com o polegar um retrato pousado na estante; tratava-se de uma fotografia antiga onde se via um casal já idoso, ele em pé de gravata negra e bigode branco, ela sentada com um grande vestido escuro, a imagem granulada já a desbotar-se com o tempo.
"Herdei-as dos meus pais, que eram pessoas abastadas e tinham muitos terrenos nesta região.
Quando eles faleceram, algumas foram para os meus irmãos e duas vieram para mim. Este sábado vamos para uma dessas propriedades, a Quinta de Pousada, ali em Castelo de Paiva." Inclinou a cabeça para os hóspedes. "Se vocês quiserem ser nossos convidados, teríamos muito gosto."
"Ah, Luís, vale a pena!", intercedeu Joana. "A quinta é uma maravilha, vais ver."
Luís lançou um olhar de relance a Amélia, tentando adivinhar-lhe a reacção à perspectiva de passar dois ou três dias com ele num espaço tão recluso. A antiga namorada manteve o rosto fechado, quase impenetrável, mas um leve movimento dos belos olhos dourados deu ao alferes o reconfortante sinal que procurava.
"Muito bem", decidiu naquele instante. "Contem connosco."
Cruzaram o Douro na estreita ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, terra assim chamada por ser justamente o local onde o Douro e o Tâmega confluíam. Do alto da ponte admiraram as duas estradas de água a convergir à esquerda, a união de ambas a formar um vigoroso caudal que passava por baixo da ponte e se perdia no horizonte à direita, em direcção ao Porto.
Uma vez na outra margem subiram a encosta pela estrada serpenteada, de um lado a verdura em socalcos, do outro a paisagem aberta para o grande rio. Mário ia ao volante, com Luís ao lado e as mulheres atrás, apertadas com as três crianças. Na borda da estrada apareciam esporadicamente casas de pedra ou muros rústicos, como megalitos embrenhados na verdura, até que, já lá no alto, o automóvel largou o caminho principal e meteu por um trilho que o conduziu a um portão estreito.
"Chegámos!", anunciou o capitão.
Para lá do portão, Luís deparou-se com um terreno inclinado pela encosta verde e castanha do monte, a vasta correnteza prateada do Douro a mover-se lá em baixo, enérgica quando vista de perto, plácida àquela distância. Toda a
propriedade estava coberta de vinhas, à excepção da grande casa de pedra assente em forma de L e do belo espigueiro mesmo em frente.
A chegada dos proprietários e dos convidados desencadeou um frenesim na quinta. Viam-se crianças a correr de um lado para o outro e da confusão emergiu um vulto corpulento.
"Chico!", guinchou Joana.
As duas irmãs foram ter com ele e Luís ficou a observá-los com sentimentos contraditórios; aquele rapaz era supostamente irmão delas, mas sabia que não se tratava de um irmão verdadeiro, antes de uma criança abandonada que a mãe das raparigas adoptara. Mais do que isso, aquele moço de feições grotescas tinha-se revelado uma espécie de homem de mão de dona Beatriz, como Luís descobrira à sua própria custa. Duvidava que alguma vez se viesse a habituar à presença de Francisco. A vantagem, pensou, é que aquela figura era quase invisível.
"Luís!", chamou a mulher. "Deixa-me apresentar-te o meu irmão."
Quase contrariado, o marido aproximou-se.
"Já o conheço", disse, estendendo o braço ao rapaz. "Então, Chico?"
"Olá."
Apertaram as mãos e Francisco virou a cara, fitando o rio lá em baixo.
"Sempre salamurdo, hem? Falar não é contigo..."
O cunhado não respondeu. Luís mirou-o com atenção e estudou-lhe as linhas goriláceas do rosto, tentando decidir se o rapaz era calado ou imbecil. Inclinou-se para a imbecilidade.
"Anda, vou mostrar-te a casa", disse Joana, puxando-o pelo braço.
Afastaram-se ambos em direcção à casa de pedra. Tratava-se de um edifício de campo, de aspecto rústico e frio, decerto desaconselhável para o Inverno. Com a chegada do tempo mais ameno, porém, constituía uma interessante fuga da rotina em Penafiel.
"O que está o gajo aqui a fazer?", perguntou Luís quando ficaram a sós.
"Quem? O Chico?"
"Sim. Não pôs os pés no nosso casamento mas vejo-o agora aqui. Vamos ter de o aturar?"
Joana respirou fundo.
"Ele é um pouco... como direi? Um pouco..."
"Abrutalhado?"
"... especial."
"Especial em quê?"
"Enfim, tem um feitio muito seu, não se dá com as pessoas. A minha mãe gostava dele, apesar de ser um rapaz pouco sociável. Mas tem muita força física, sabes? Além disso, era-lhe fiel. Fiel como um cão, estás a ver o género?"
"Pois, isso percebi eu."
Joana franziu o sobrolho.
"Já o conhecias?"
"Quer dizer... vi-o em casa da tua irmã, só isso. O que está ele agora aqui a fazer?"
"O Chico vive nas propriedades da Amélia... ou melhor, do Mário. Gosta da vida rude do campo e de trabalhos pesados. Como a minha irmã o acolheu, transferiu para ela aquela fidelidade canina que tinha em relação à minha mãe." Olhou para o marido. "Mas porquê?
Isso incomoda-te?"
"Não, não é isso. Acho-o é um pouco estranho, percebes? Deixa-me assim meio inquieto, não sei bem explicar."
"Porquê? É por falar pouco?"
Luís encolheu os ombros.
"Sei lá", disse. "Nem interessa."
A mão esquerda de Francisco agarrou a galinha pelo pescoço e com a direita o rapaz torceu-lhe a cabeça e matou-a. Luís estava sentado nos degraus e observou a cena com desconforto. Aquele bruto matava um animal com a mesma indiferença com que bebia um copo de água.
"Venha daí", disse uma voz. "Vou mostrar-lhe a propriedade."
Era o capitão Branco, que, igualmente incomodado com os modos embrutecidos do cunhado, o veio puxar para um passeio para conhecer a Quinta de Pousada. Meteram ambos pelas vinhas e desceram os socalcos da encosta até chegarem junto de um homem de pele gasta e trigueira que se encontrava acocorado a inspeccionar as uvas.
"Então, Tino? Como vai isso?"
O homem ergueu-se, surpreendido, e limpou as mãos às calças.
"Oh, senhor capitão! Não sabia que vossa senhoria cá vinha hoje."
"É a Primavera", disse o proprietário, apontando para a luz que jorrava da abertura azul entre os flocos brancos de nuvens. "O Sol põe-se a espreitar e eu cá estou."
"Bons olhos o vejam, senhor capitão. O tempo está a ficar melhorzinho, graças a Deus."
O capitão olhou para o seu convidado, que vinha atrás.
"Este é o nosso caseiro, o Constantino Latino", apresentou-o a Luís. "Chamamos-lhe Tino."
Virou o rosto para o homem e piscou-lhe o olho. "Mas não sei se você tem muito tino."
O caseiro soltou uma risada gutural, exibindo uma dentadura esburacada e apodrecida.
"Faz-se o que se pode, senhor capitão. A minha patroa bem se queixa do meu juízo."
O proprietário apontou para as vinhas.
"Então e as uvas? Vamos ter uma boa vindima este ano?"
"Se Deus quiser, senhor capitão. A chuva foi boa. Queira Deus que o sol ajude agora."
Luís acocorou-se para espreitar as uvas.
"São vermelhas", constatou, passando os dedos por um cacho escondido pelas folhas verde-esmeraldas. "Vocês fazem tinto, é?"
"O melhor de Castelo de Paiva."
"Lá está o meu capitão a exagerar...", sorriu o alferes veterinário.
Mário Branco fez um sinal ao caseiro.
"Se bem o conheço, Tino, você não larga a pinga. Tem aí alguma coisa para mostrar aqui ao nosso alferes, que pelos vistos desconfia das minhas palavras?"
O caseiro retirou um copo e duas garrafas de um cesto pousado junto a um pé de vinha.
"Está aqui, senhor capitão."
O proprietário despejou um dedo de tinto no copo e estendeu-o ao convidado.
"Ora experimente."
Luís pegou no copo e saboreou o vinho.
"Agh!", gemeu involuntariamente, sentindo os pelos eriçarem-se-lhe e a pele arrepiar-se.
"Brrr..."
O capitão e o caseiro riram-se.
"Então? Não gostou?"
"Confesso que não", admitiu Luís. Depois da careta que fizera, não era possível esconder a verdade. "É... sei lá, um pouco azedo."
"É raspado", corrigiu o capitão.
"Sei lá o que é. Mas, se isto é o melhor da região..."
"E porque você não está habituado a estes néctares." Arrancou o copo da mão de Luís e engoliu o que restava. "Aaah!" Depois de o esvaziar, ergueu a garrafa e admirou o líquido escuro que bailava no interior. "Para quem gosta de tinto verde, este é de excelente qualidade." Agarrou na outra garrafa, despejou uns golos e voltou a estender o copo ao convidado. "Agora experimente este."
Com ar desconfiado, Luís estudou o líquido amarelo-esver-deado que balouçava no copo e, quase a medo, experimentou um trago. Era totalmente diferente; tinha um paladar fino, melífluo, e deslizava suavemente pela língua.
"Hmm, é bom!"
"E verde branco", disse o capitão, apontando para o outro lado da encosta. "É feito com aquelas uvas ali. Apanham muito sol e ficam adocicadas. Dão este vinho magnífico."
"É tudo produzido aqui na quinta?"
"Sim. Aqui o Tino e a família, mais o Chico, fazem a vindima, pisam a fruta, colocam tudo nuns lagares que temos para ali e depois metem o vinho em pipas. E um trabalho dos diabos. As uvas que sobram são vendidas à Quinta da Aveleda."
Sentiram movimento atrás e viram Amélia a aproximar-se.
"Meninos!", chamou. "O almoço está na mesa."
Vinha radiosa, com o cabelo a brilhar ao sol e as faces coradas. Ao vê-la assim, tão bela e apetitosa, Luís sentiu inesperadamente a volúpia despertar dentro de si. Já não era apenas a paixão platónica da juventude que o atraía, embora ainda endeusasse a primeira namorada como se ela fosse um anjo; mas agora alimentava-o também o desejo mais visceral e lascivo da carne. Amélia não era apenas a deusa idealizada da adolescência; a seus olhos tornara-se uma fêmea carnal.
Vendo-a ali no meio das vinhas, tomou consciência nesse instante de que já possuíra muitas mulheres na sua vida, mas nunca aquela que verdadeiramente amava. A constatação deixou-o assombrado. Como era possível que nunca tivesse amado aquela que verdadeiramente amava? E
como poderia viver tranquilo quando a via tão perto e a sabia tão definitivamente para além do seu alcance?
"Viver é sofrer", murmurou, ecoando uma velha frase dos tempos da faculdade.
"Como?", perguntou Mário Branco, que caminhava já em direcção ao casarão.
Luís fez um gesto largo e melancólico que abarcou a quinta.
"Não há dúvida que o meu capitão é um homem de sorte", disse, desviando o pensamento. "Sabe porventura o que tem aqui?"
"O quê?"
"O paraíso."
E os seus olhos pousaram em Amélia.
XVI
"No próximo sábado voltamos cá e ficamos uma semana inteira."
Amélia contemplava da janela um dos jornaleiros a juntar palha para as mulas e as palavras do marido deixaram-na petrificada.
"O quê? Uma semana inteira?"
"Sim. Vamos começar os preparativos para as vindimas e eu tenho de andar por cá."
"Tu estás doido?"
O capitão Branco possuía duas quintas e, com a chegada da Primavera, os fins-de-semana passaram a ser vividos alternadamente em cada uma delas. Umas vezes iam para a Quinta de Pousada, outras seguiam para uma propriedade ainda maior, a Quinta de Vales, situada em Cadeado, Paços de Sousa.
Foi em Vales que pernoitaram nesse dia. A propriedade era dominada por uma enorme casa de forma circular, com um
pátio no meio; parte do solar ficara reservada aos aposentos dos proprietários, onde o casal se encontrava agora, e o resto estava dividido por lagares, adegas e cortes de gado, ou entregue às várias famílias de caseiros e a outros homens que trabalhavam a terra, entre eles os jornaleiros, encarregados dos jardins e que ajudavam nas vindimas e noutras tarefas pontualmente necessárias, e os moços, rapazes incumbidos das ceifas, de tratarem do gado e de levarem a cabo todo o tipo de trabalhos pesados que a manutenção da propriedade requeria.
Trabalho era coisa que não faltava por ali, uma vez que a quinta, para além das vinhas e de toda a cadeia de produção de vinho, dispunha ainda de campos de milho e de centeio, para além de outros produtos agrícolas. Daí que o capitão Branco optasse com mais frequência por vir para aqui.
Dizia que precisava de seguir os trabalhos, mas a verdade é que apreciava o labor do campo.
O problema é que Amélia gostava mais da tranquilidade que encontrava na outra propriedade e a escolha tornou-se objecto de acaloradas discussões entre o casal. As divergências não eram muito graves enquanto se tratava de ir a um lado ou outro num mero fim-de-semana, mas naquele momento o capitão punha uma hipótese diferente. O que estava agora em questão era instalarem-se na Quinta de Vales durante uma semana inteira, possibilidade que deixou a mulher fora de si.
"Não posso deixar de vir a Vales", argumentou ele, tentando parecer razoável. "Há muito trabalho para fazer e eu preciso de estar cá para coordenar as coisas. Senão, já se sabe como é: patrão fora, dia santo na loja."
"Eu é que não tenho culpa", insistiu Amélia. "Saio da cidade justamente para ficar tranquila, mas aqui em Vales isso é impossível. Se é para andar no meio da confusão, mais vale ficar em Penafiel."
"O que queres que eu te faça?", perguntou o marido, abrindo os braços num gesto de impotência. "O trabalho tem de ser feito..."
A mulher apontou lá para fora, indicando o jornaleiro que retirava palha de uma carroça.
"Para ti este trabalho é diversão, mas para mim é um verdadeiro suplício. Ainda se fosse um fim-de-semana, vá lá, aguentava. Mas... uma semana inteira?"
O capitão Branco sentou-se na cama e ficou a tamborilar com os dedos na mesinha-de-cabeceira, matutando no assunto. Ele queria vir para Vales, ela não. Podia forçá-la, claro, mas depois teria de a aturar. Como resolver o problema?
"Ouve, vamos fazer assim", disse, confrontado com a solução óbvia. "Eu tenho mesmo de vir para Vales toda a semana, isto não pode ficar entregue aos caseiros. Mas, se não queres vir, então fica em Penafiel."
Amélia inclinou a cabeça e curvou a boca, numa expressão de desagrado.
"Então tu vens para o campo divertir-te e deixas-me abandonada em Penafiel?"
Ele fitou-a, baralhado.
"Não é isso que tu queres?"
"O quê? Ficar em Penafiel? Claro que não! Prefiro ir para Pousada."
"Então porque não vais?"
"Sozinha?"
"Com os miúdos, claro."
"Eu quero ficar tranquila, Mário, mas não planeio tornar-me uma eremita. Já viste o aborrecido que é eu e os miúdos sozinhos em Pousada? Morríamos de tédio!"
"Está lá o teu irmão."
"Ah, sim! Há-de valer-me de grande coisa, falador como ele é. Fico a vê-lo a torcer o pescoço às galinhas ou a degolar os porcos. Está-se mesmo a ver que vai ser divertido..."
O capitão coçou o queixo, absorto no problema.
"E porque não levas a tua irmã?"
"Já sabes que ela não vai sem o marido."
"Então ela que leve o marido."
"Leve o marido como? O Luís está no quartel a tratar da bicharada. Sabes muito bem que ele não se pode ausentar assim sem mais nem menos."
Os dedos do capitão voltaram a deslizar pensativamente pelo queixo.
"Eu trato disso", disse ele. "Há em Castelo de Paiva umas tarefas que requerem o trabalho de um veterinário e eu vou ver se arranjo maneira de o dispensarem do quartel por uma semana. Além do mais, ele precisa de treinar o cavalo que apadrinhou lá no quartel."
"É essa a tua ideia? A Joana e o Luís irem comigo para Pousada?"
"Sim", confirmou o marido, com esperança de ter encontrado a solução para o problema.
"Tenho a certeza de que eles não se importam nada e eu fico com as mãos livres para vir a Vales tratar do que é preciso. Parece-te bem assim?"
Amélia sorriu pela primeira vez nesse dia.
"É perfeito."
Logo que na semana seguinte chegaram à Quinta de Pousada, Luís percebeu que algo havia mudado em Amélia. O distanciamento que a antiga namorada cultivava desde que ele começara a frequentar a sua casa parecia ter dado lugar a uma subtil aproximação. Não era uma postura directa ou óbvia,
mas uma maneira de estar, um estado de espírito, uma disposição de certo modo insinuante.
Apercebeu-se da mudança logo no primeiro dia em Pousada, quando estava sentado nas escadas do casarão a admirar o espigueiro. Sentiu uma presença à esquerda e virou rapidamente a cara, surpreendendo-a a mirá-lo. Logo que se viu descoberta, Amélia afastou os olhos e simulou indiferença. O incidente repetiu-se mais duas vezes, sempre com ela a procurar disfarçar o seu interesse. Mas disfarçava mal e, à medida que o tempo ia passando, tornou-se gradualmente claro que, naquele ambiente em que todos viviam perto uns dos outros, Amélia sentia crescentes dificuldades em reprimir os sentimentos.
Passaram assim os dois primeiros dias, entregues a este jogo de olhares dissimulados. Mas os acontecimentos precipitaram-se ao pequeno-almoço do terceiro dia.
"Estou farta de estar aqui fechada", queixou-se Joana enquanto barrava compota numa tosta. "E
que tal se descêssemos até ao rio?"
"Sim!", concordaram em coro as duas crianças mais velhas, as bocas lambuzadas.
"Eu não posso", avisou logo Luís. "O Relâmpago precisa de treino e vou aproveitar a manhã para trabalhar com ele."
"Eu não posso ir", disse Amélia, olhando de relance para a loiça suja. "Há aqui coisas para fazer."
"Oh, mãe!", implorou o filho mais velho, puxando-lhe o braço. "Anda lá. Vamos ver os peixinhos."
"Já disse que não posso ir." Fez sinal à irmã. "Porque não vão vocês com a tia?"
"Podemos, tia?"
Joana encolheu os ombros.
"Porque não?"
Partiram dez minutos depois e deixaram Amélia e Luís inopinadamente sós. Ou talvez aquele momento inesperado não fosse tão inesperado quanto isso. Desde que o capitão o convidara para ir passar aquela semana a Pousada que Luís alimentava o secreto desejo de se apanhar a sós com Amélia. É certo que sempre pensara que, quando isso acontecesse, o desejo se dissolveria em fantasia e a realidade acabaria por se impor, mas logo que se viu na quinta percebeu que não seria assim. Se alguma coisa acontecera nesses três dias fora apenas o intensificar do desejo por Amélia.
Era como se o corpo tivesse tomado conta da mente. Amava-a, sem dúvida. Amava-a com uma força redobrada, amava-a ainda mais do que nos dias em que com ela passeava a caminho do liceu de Bragança. Mas agora havia algo mais. Queria-a. Desejava-a acima de tudo e sentia que o desejo era recíproco.
Naquele instante, todavia, duvidou. Talvez estivesse a confundir as coisas; talvez a fome o fizesse alucinar. Talvez o desejo por ela lhe fizesse ver nela um desejo que se calhar ela não tinha.
"Ajudas-me a fazer as camas?"
A pergunta foi feita em tom casual, mas teve um efeito eléctrico em Luís. Nunca Amélia lhe tinha pedido que a ajudasse a fazer a lida da casa. Mas pedira agora. Era como um convite implícito a passarem juntos aqueles momentos em que os outros se tinham ausentado. Tão depressa suspeitou do pedido como logo abanou a cabeça. Que disparate, concluiu de imediato. Lá estava ele a ver o que não existia. Amélia precisava de ajuda porque não tinha a irmã ali e deixara a empregada em Penafiel. Tão simples quanto isso.
"Não ajudas?", admirou-se ela ao vê-lo a abanar a cabeça.
"Claro que ajudo", prontificou-se Luís, levantando-se da mesa da copa. "Começamos por qual?"
"Pela minha."
Amélia certificou-se de que a bebé dormia no berço e levou-o pelo corredor até ao quarto principal da casa. Entraram no compartimento e Luís viu a cama de casal desfeita. Amélia inclinou-se, pegou nos lençóis que estavam aos pés da cama e puxou-os para a frente, esticando-os sobre o colchão. Luís ajudou-a a alisar os lençóis e acompanhou-a no mesmo movimento até aos pés da cama para apanhar o cobertor.
Esticaram a manta e ficaram os dois pendentes para a frente, um de um lado da cama e o outro do outro, as cabeças convergindo até quase se tocarem. Luís cheirou-lhe o aroma a lavanda e sentiu a frescura suave dos lençóis a deslizar-lhe pelos dedos. Sem perceber como, constatou que as calças já mal lhe disfarçavam a erecção. Pararam o movimento, os cabelos muito próximos, cada um sentindo a respiração do outro. Luís ergueu a cabeça e viu-a a olhar para ele com aqueles grandes olhos de caramelo muito abertos. O peito inchava-lhe e desinchava-lhe, como se ela estivesse ofegante.
Permaneceram dois longos segundos assim paralisados, os olhos de um mergulhados nos do outro, os lábios abrindo-se devagar como pétalas molhadas ao sol, os corações a palpitar e palpitar e palpitar. Luís experimentou uma leve tontura e sentiu o controlo fugir-lhe e o instinto apossar-se dele.
"Hmmmm."
Caíram um sobre o outro com um gemido e colaram os lábios quentes e trémulos. Começaram devagar, quase delicadamente, a medo até, mas logo as bocas impacientes se puseram a devorar, sôfregas, as línguas húmidas deglutindo-se com voracidade, as mãos sedentas a agarrar a carne do outro, o calor a crescer e a transformar-se em ardor e depois em brasa, os corpos tão quentes e tão esfaimados e tão gulosos que se desnudaram às cegas, quase rasgando as roupas em gestos bruscos e impacientes, tão agitados e desesperados que se lamberam sem parar enquanto apalpavam e sentiam e despiam.
Num acesso de consciência, Amélia voltou-se para a porta e trancou-a. Depois encostou-se à madeira e olhou-o, afogueada e selvagem. O momento de controlo racional foi efémero, pois o corpo logo se tornou uma besta entregue aos sentidos. Incapaz de se conter mais, agarrou-se a ele e perdeu-se naquele corpo de homem. Lambeu-o na boca, ávida e molhada, como se o quisesse devorar. Luís largou-lhe os lábios e deslizou para os seios, gordos e arrebitados. Apertou os mamilos cor-de-rosa, tão largos que enchiam toda a ponta dos peitos, e abocanhou-os com gula. Ela deixou-o, a cabeça descaída para trás, as madeixas douradas e onduladas a tombarem-lhe no rosto, o corpo derramando-se em prazer, mas depois descolou-se e ajoelhou-se sobre o ventre dele para o saborear também ela.
"Pára!", gemeu ele, sentindo-se à beira do descontrolo. "Pára!"
Amélia parou e olhou-o. Agarrou-o pela cintura e puxou-o para ela, as pernas abrindo-se e enrodilhando-se nele. Os corpos começaram a nadar um no outro, primeiro devagar e depois num ritmo frenético, eléctricos já, ele com força, ela com fome, ambos gemendo ao ritmo do movimento, a cama a martelar a parede, ela sentindo-o a enchê-la, ele sentindo-a a derreter-se. Era como se os dois corpos se tivessem tornado um, ferro duro em lava incandescente, as batidas sincronizadas, o ritmo intensificando-se a cada pancada, sempre mais depressa, mais depressa, depressa, depressa, depressa, depressa.
XVII
A lágrima brotou do canto do olho e escorreu pelo rosto num ziguezague hesitante, aqui apressando-se, ali parando. Amélia passou as costas da mão pela face e espalhou a bátega de remorso pela bochecha corada.
"O que fizemos nós?", soluçou, a voz embargada. "Meu Deus, o que fizemos nós?"
Luís inclinou-se sobre ela e afagou-lhe o cabelo ondulado, tentando reconfortá-la.
"Chiu...", soprou, meigo. "Pronto, pronto."
"E agora? O que será de nós?"
"Nada."
"Nada, como? Tu tens a noção do que fizemos?"
O amante assentiu com a cabeça.
"Fizemos o que nos mandou o coração."
Amélia arregalou os olhos, como se o enunciado do acto fosse ainda mais horrível do que o próprio acto.
"Tu estás doido? Nós... nós cometemos adultério! Meu Deus! Cometemos adultério! Eu
"Chiu..."
"... eu sou uma adúltera. Traí o meu marido!" Fungou. "Pior..."
"Pronto, pronto."
"... do que isso, traí a minha irmã! A minha própria irmã!" Escondeu a cara nas mãos e os soluços tornaram-se quase contínuos. "Como pude eu fazer isto? A minha própria irmã! Meu Deus!
Meu Deus! Que coisa horrível!"
Começou a chorar baixinho e Luís abraçou-a, procurando ajudá-la a controlar-se. Depois beijou-a na testa e nos cabelos e colou-lhe os lábios a uma orelha.
"Tem calma, meu amor", segredou-lhe. "Está tudo bem. Tem calma. Eu estou aqui e não vai acontecer nada."
O choro tornara-se um gemido contínuo, mas Amélia fez um esforço, engoliu em seco, fungou e o gemido parou, transformando-se numa sequência de soluços que com o tempo se foram tornando cada vez mais espaçados.
"E agora?", perguntou logo que assumiu maior controlo de si própria. "O que fazemos? O que vai ser de nós?"
"Nada, meu amor. Nós não fizemos nada de grave."
"Nós cometemos adultério, Luís!", repetiu ela, obcecada com a ideia. "Eu traí o meu marido e a minha irmã! O que pode haver de mais grave que isso?"
Luís pousou-lhe o indicador nos lábios, como se a mandasse calar.
"Chiu... nós não traímos ninguém."
"Traímos, sim. É horrível!"
"Nós não traímos. Nós fomos traídos, o que é bem diferente. Nós fomos traídos pela tua mãe quando ela te forçou a casar com o... com o teu marido. Ela é que nos traiu, entendeste?"
Amélia fez que sim com a cabeça, mas nada disse.
"O amor que nos juntou hoje é o amor que nos alimenta há anos. Eu estou apaixonado por ti e tu estás apaixonada por mim. Não há nada que possamos fazer, é mais forte do que nós. Qual é o crime que duas pessoas apaixonadas cometem quando se amam? Nenhum. A traição não foi cometida por nós, foi cometida sobre nós. Tu não devias estar casada com o teu marido, eu não devia estar casado com a tua irmã. Nós devíamos era estar casados um com o outro, entendes? Se a tua mãe não se tivesse metido onde não era chamada, seria isso o que acabaria por acontecer. Nós casar-nos-íamos."
"Mas não casámos, Luís. Nós estamos casados com outras pessoas e agora nada pode mudar isso."
"Eu sei."
"Então o que fazemos?"
Luís pegou na mão dela e colou-a ao peito, comprimindo-a para que ela sentisse melhor as batidas do coração.
"Podemos não estar casados perante a lei, mas estamos casados perante nós próprios. Percebes?
A tua mãe roubou-nos tudo, mas não roubou o que sentimos um pelo outro. Os nossos corpos podem estar entregues a outros, mas a minha alma pertence-te e a tua alma pertence-me. Não há nada a fazer. Mesmo que o quiséssemos, não existe coisa alguma que possa alterar isso. Nós pertencemos um ao outro. Temos de aceitar o nosso destino."
"Sim, mas... e agora? O que fazemos?"
O amante olhou para a janela, como se a resposta estivesse para além dela.
"Porque não fugirmos?"
"Estás doido?"
"Sim, vamos fugir!"
"Então e os meus filhos? Então e a minha irmã? Então e o Mário? Achas que algum deles merece isso?" Amélia estremeceu.
"Além do mais, seria incapaz de me separar dos meus filhos. Isso está totalmente fora de questão."
Luís suspirou.
"Tens razão."
Um grande soluço pareceu quase estrangular Amélia.
"O que vai ser de nós, meu Deus? Como poderemos estar ao pé um do outro à frente... deles?"
Olhou-o. "Temos de deixar de nos ver."
"O que estás para aí a dizer?"
"Não nos podemos ver mais."
"Eras capaz disso?"
"Tem de ser, Luís. Não nos podemos ver um ao outro. Se estivermos juntos..."
"Tu eras mesmo capaz disso?
Ela calou-se por um momento, considerando essa possibilidade. Depois abanou a cabeça, os olhos quase desesperados.
"Não. Nunca."
Luís beijou-a com ternura na testa.
"Nem eu."
"Então o que fazemos?"
"Teremos de viver em segredo."
Amélia olhou-o interrogativamente.
"O que queres dizer com isso?"
"Aos olhos do mundo estamos casados com outros, aos nossos olhos estaremos casados um com o outro."
"O quê?"
"Seremos marido e mulher em segredo."
"Queres dizer... queres dizer que seremos amantes?"
"Vês alguma alternativa?"
"Nós? Amantes?" Pronunciou a palavra como se ela fosse maldita. "Mas isso é horrível!"
"Vês alguma alternativa?"
Ela manteve os olhos muito fixos nele, como se tentasse lê-lo, mas depois de um longo instante pestanejou e acabou por baixá-los, devagar, em rendição.
"Não."
"Então é o que seremos."
Os olhares entre Luís e Amélia tornaram-se diferentes, culpados quando Joana se encontrava presente, cúmplices quando se cruzavam a sós. Passaram a viver num desassossego miudinho, acossados por uma ambivalência dilacerante: temiam que alguém se apercebesse de algo, ansiavam por um novo ensejo de se juntarem em segredo. Começaram por tentar ser pacientes e aguardar tranquilamente a ocasião propícia, mas ela não surgiu de imediato e depressa ficaram inquietos.
Onde num momento prevalecia a paciência, passou a dominar a inquietação. Já em desespero, na manhã seguinte Luís tentou a todo o custo criar uma oportunidade.
"Ó António", disse, interpelando o filho mais velho de Amélia. "Gostaste ontem de ir ao rio?"
"Sim."
"Querias voltar?"
"Queria."
Luís olhou para a mulher.
"Se calhar fazia-vos bem dar o mesmo passeio, Joana. Os miúdos gostam e..."
"Ai, hoje não. Descer até ao rio foi agradável, mas a subida... ufa, custou-me muito."
"Olha que te fazia bem", insistiu o marido. "O ar é óptimo e vieste com magníficas cores."
"Pois, mas é uma grande estafa." Franziu o sobrolho. "Olha lá, porque nao vais tu?
A tentativa não resultou, mas Luís não se deu por vencido. Ao almoço, e enquanto saboreava um copo de verde branco caseiro, lançou uma nova sugestão: e que tal Joana levar as crianças a ver como se fazia leite e queijo? Havia uma vacaria ali em Castelo de Paiva, a uns quilómetros da Quinta de Pousada, e decerto que seria uma tarde bem passada.
Luís insistiu na sugestão, mas a mulher recusou liminarmente a ideia, alegando que queria passar a tarde a ler.
No primeiro instante em que, por momentos, Amélia o apanhou a sós na cozinha, logo depois do almoço, não escapou a uma repreensão.
"Tu estás maluco?", murmurou ela com muita intensidade, os olhos carregados.
"O que foi?"
"Tens de parar com essas sugestões despropositadas", disse Amélia, desviando a atenção para a porta de modo a assegurar-se de que ninguém vinha aí. "Se continuares a tentar mandá-la embora, ela vai acabar por perceber."
"Não percebe nada."
A amante apontou-lhe o dedo, como se o estivesse a avisar.
"A minha irmã pode ainda ser nova, mas não é parva. A partir de agora, bico calado, ouviste?"
Era evidente que Amélia tinha razão, mas não era isso que lhe resolvia o problema.
Desejava-a ardentemente e as coisas eram agravadas por aquela situação de se encontrar tão próximo e tão distante dela. Luís estava a ficar desesperado; sentia absoluta necessidade de estar a sós com a mulher que amava, mas não via modo de aparecer uma nova oportunidade. Assim não poderia ser, concluiu, já cego pelo desejo. Se não conseguia chegar a ela de uma maneira, teria de ser de outra. Aquela semana na Quinta de Pousada acabaria em breve e
talvez tão cedo não dispusessem de uma oportunidade como aquela.
Na noite do quarto para o quinto dia, quando todos dormiam a sono solto, levantou-se cuidadosamente da cama, deslizou em silêncio pelo corredor e entrou com muito cuidado no quarto de Amélia.
"És tu, Luís?"
Era a voz da amante. Amélia estava acordada e soergueu-se na cama, apoiada nos cotovelos.
"Chiu."
Luís debruçou-se sobre ela muito devagar, quase com medo de que a sua respiração fosse audível por toda a casa, e bei-jou-a com paixão. Depois envolveu-se no cobertor, deitou-se ao seu lado e mergulhou-lhe no corpo, mas de imediato imobilizaram-se os dois. A cama chiava muito, cada movimento era um guincho e decerto que todos haviam sido despertados pela chinfrineira aguda das molas e pelo ranger dorido da madeira.
Aguardaram um instante, a respiração suspensa, os dois muito alerta, quase a ouvirem os próprios corações, os olhos vidrados, ambos a tentarem detectar algum movimento na casa. Nada aconteceu, porém. Tudo permanecia calmo. Tranquilizado, Luís debruçou-se de novo sobre Amélia para a beijar, mas a cama voltou a chiar.
"Porra!", praguejou muito baixinho. "Isto faz uma barulheira inacreditável!"
"Não pode ser mais devagar?"
Luís tentou movimentar-se com maior cuidado, movendo o corpo muito lentamente, mas os guinchos recomeçaram; parecia que a cama fazia de propósito.
"E agora?", perguntou ele, percebendo que era impossível não fazer barulho. "O que fazemos?"
Amélia ficou um instante calada, a avaliar as opções.
"E se fôssemos lá para baixo?"
A sugestão deixou Luís espantado. A casa tinha dois pisos, é certo, mas só aquele onde eles se encontravam, o primeiro, era habitável.
"Como assim?"
"Vamos lá para baixo."
"Mas lá em baixo não há nada."
"Há o curral."
Atravessaram com muito cuidado o corredor, evitando as partes do soalho que rangiam, e abriram a porta exterior. O gelo da noite húmida envolveu-lhes os corpos num abraço arrepiante. A tremer de frio, desceram as escadas e, uma vez cá em baixo, meteram-se no curral, situado mesmo por baixo da cozinha. Chamavam-lhe curral, mas na verdade era mais uma pocilga e um galinheiro, uma vez que ali só havia porcos e galinhas. Pairava no ar um forte cheiro a animais e os suínos, sentindo o movimento, puseram-se a grunhir; mas ao menos estavam longe do piso residencial da casa e, pormenor igualmente relevante, o espaço apresentava-se relativamente quente.
Escolheram um canto onde era guardada a palha e deitaram-se ali, envolvendo-se um no outro.
Ainda tiritavam de frio, mas o calor dos corpos apertados foi crescendo ao ritmo dos beijos e das carícias e logo Amélia começou a sentir os lábios a arder. Tremiam ainda, mas já de antecipação, os corpos famintos, a carne voraz, os sentidos despertos. Luís lambeu-lhe a boca, os ouvidos, o ventre, lambeu-a com gula e avidez; tentou adiar o momento o mais possível até que se tornou impossível adiar mais e, com os gestos bruscos dos possessos, virou-lhe o corpo, assentou-a de gatas e entrou nela.
Os gemidos de Amélia irromperam pelo curral, misturados com o grunhido dos suínos; os porcos agitavam-se de um lado da cerca, os amantes bailavam do outro lado, animais uns e outros.
As mãos dela agarravam-se à madeira enquanto o corpo balouçava ao ritmo das pancadas de Luís, ele arfando e ela vagindo. Sentindo aproximar-se o ponto para além do qual não se conseguiria controlar mais, Luís interrompeu os movimentos e recuou.
Foi o suficiente para recuperar algum controlo. Já mais recomposto, deitou-se de costas sobre a palha e fez-lhe sinal de que se sentasse em cima dele. Amélia obedeceu e montou-o, enterrando-se com um suspiro. Começou a subir e a descer, primeiro devagar, depois mais depressa, os gemidos acompanhando o ritmo dos movimentos.
"Quem está aí?"
Os amantes paralisaram, horrorizados.
Olharam em redor, atarantados, procurando identificar a direcção de onde vinha a voz. Viram um clarão azulado cair-lhes em cima e uma mão a segurar um candeeiro a petróleo. A luz bruxuleante bailava como um pêndulo, projectando sombras em movimento pelo curral e banhando de perfil os traços rudes e gastos de um homem que os observava embasbacado, o canto dos olhos sulcado de rugas, os dentes apodrecidos intervalados por buracos negros.
Era Tino, o caseiro.
XVIII
O corpo compacto e grosseiro de Francisco cruzou a ombreira da porta da copa e imobilizou-se diante da mesa do pequeno-almoço. Luís parecia alheado de tudo, os olhos fixos para além da janela, perdidos num horizonte longínquo. Joana afadigava-se a dar de comer aos sobrinhos, parecia uma andorinha a esvoaçar no meio das crias.
"A Amélia?", perguntou Francisco.
"Ainda não se levantou", esclareceu a irmã, remexendo energicamente o copo de leite.
"Porquê?"
"Está mal disposta." Pegou no copo e estendeu-o à pequena Rosinha. "Anda, já tirei as natas. Podes beber."
Francisco deu meia-volta e desapareceu no corredor.
As crianças na copa agitavam-se, inquietas; queriam ir lá para fora brincar e o pequeno-almoço era um ritual que as enervava. A mãe conseguia mantê-las sob controlo, mas, sem Amélia ali, as coisas eram diferentes. A tia exercia menos
autoridade e os pequenos aproveitavam para montar na copa um verdadeiro circo.
" Luís, podias ajudar", queixou-se Joana, incapaz de dar resposta a todas aquelas solicitações.
O marido parecia vidrado na janela, entregue aos seus pensamentos, e estremeceu ao perceber-se interpelado.
"Hã?"
"Olha lá, estás a dormir ou quê? Ajuda-me! Isto está um pandemónio, valha-me Deus."
"Que queres que eu faça?"
A mulher indicou o sobrinho mais velho, que dava saltos frenéticos e guinchava como um cabrito junto à porta da cozinha.
"Então não vês o estado em que se encontra o António? Olha para aquilo! O diabo do rapaz foi ali às natas e despejou-as na cabeça!"
Luís observou a criança e constatou que, de facto, tinha uma pasta branca a pingar-lhe dos cabelos.
"Caramba, que porcaria!" Levantou-se, foi buscar um pano e esfregou-o na cabeça do pequeno.
"O António, o que é isto?"
"É neve! É neve!"
"Qual neve, qual carapuça! É uma nojeira, é o que é!"
"Eu quero neeeeeeve!"
"Vá, juizinho."
Pegou no pequeno e, apesar da resistência que ele mostrou, obrigou-o a sentar-se à mesinha da copa. Cortou uma fatia de regueifa e barrou-a com manteiga, entregando-a a António.
"Vamos, come!"
"Não quero!"
"Come, António."
"Não queeeeero!"
"Ó meu grandessíssimo teimoso!", rugiu, já impaciente. "Ou tu comes isto tudo, ou então..."
"Senhor Luís."
Luís virou a cabeça para trás e viu Francisco de novo parado à porta, dessa vez com os olhos postos nele. Aquela pose surpreendeu-o. Que se lembrasse, era a primeira vez que o troglodita lhe dirigia palavra por iniciativa própria.
"Sim?"
"A Amélia pede que o senhor vá lá ao quarto."
Luís franziu o sobrolho, olhou de relance para Joana, que continuava às voltas com o leite da pequerrucha, levantou-se e saiu da copa com Francisco no encalço. Percorreram ambos o corredor até chegarem diante do quarto de Amélia. Luís deu três toques leves na madeira e a voz de Amélia mandou-os entrar.
"Querias falar comigo?"
Com os olhos vermelhos de fadiga, Amélia mirou o amante e o irmão adoptivo e fez-lhes sinal de que se instalassem aos pés da cama.
"Fechem a porta e sentem-se aqui", ordenou.
Os dois homens obedeceram e acomodaram-se na cama, a porta do quarto já trancada.
"O que se passa?", perguntou Luís.
Amélia suspirou.
"Acho que não precisamos de fingir ao pé do Chico."
"O que queres dizer com isso?"
"O Chico é a única pessoa que sabe que namorámos em Bragança. Não te esqueças de que ele estava lá e assistiu a tudo."
Luís estreitou os lábios.
"Como poderia eu esquecer?", perguntou com sarcasmo, espreitando Francisco de soslaio. "E então?"
"Ele é uma pessoa de confiança."
O amante coçou a cabeça, indeciso.
"Achas mesmo?"
"Desde a morte da minha mãe que o Chico me é muito dedicado. Como te disse, ele sabe que fomos namorados e, como vês, nunca contou a ninguém. Isso prova alguma coisa, não prova?"
Luís assentiu.
"Está bem, é de confiança. Mas por que razão estás a metê--lo nisto?"
Amélia olhou para o irmão adoptivo.
"Conta-lhe, Chico."
O brutamontes pigarreou, desconfortável. Estava mais habituado a ouvir do que a falar.
"A pela manhã passei pelo Tino."
"E então?"
Francisco engoliu em seco.
"Disse que não tarda nada o patrão vai correr-nos a todos daqui para fora."
A frase atingiu Luís com brutalidade. A realidade impunha-se de um modo cru e não havia maneira de lhe escapar. Desde a noite anterior que ele e Amélia viviam numa aflição, tentando adivinhar quais as intenções do caseiro depois de os ter visto juntos no curral. Sabiam que a denúncia constituía uma forte probabilidade, mas enquanto permanecia uma mera hipótese era uma coisa. O cenário que se desenhava agora diante deles, porém, já não era uma simples probabilidade, tornara-se algo mais do que isso. Transformara-se em certeza.
"Ele explicou porquê?"
"Eu perguntei-lhe."
"E ele?"
Os olhos de Francisco saltaram para a irmã adoptiva.
"Riu-se e disse: «Pergunta à tua maninha.»"