X
O que traiu o rapaz foi o esgar de medo que deixou transparecer ao cruzar-se na Calle de San Juan com o grupo de legionários. O sargento Gomez reparou nesse olhar furtivo e, desconfiado, parou e fixou a atenção nele.
"Quem és tu, cbavaYf
O rapaz estacou, os olhos arregalados.
"Chamo-me Joaquín."
"O que fazes aqui?"
"Eu? Uh... eu vou... vou a casa da minha mãe."
"És um rojo!"
"Não, não. Sou nacionalista."
"Mentes."
O rapaz olhou para o sargento com uma expressão de súplica.
"Não, sehor. Sou nacionalista." Estendeu o braço e fez a saudação romana. "Arriba Espana!"
"Tira a camisa."
"Não, não. Por favor, eu sou nacionalista."
O sargento voltou-se para Francisco.
"Tira-lhe a camisa."
O português pegou no rapaz como se ele fosse um fardo de palha e rasgou-lhe a camisa suja, de modo a revelar o peito e as costas. No ombro direito era visível uma nódoa negra. Com uma careta de desdém, Gomez apontou para o hematoma.
"O que é isto? Hã?"
O rapaz abanou a cabeça.
"Fui eu que caí das escadas, senor. Juro."
"Mentiroso! Esta é a nódoa provocada pela coronha da espingarda que andaste a usar." Ergueu o dedo, ameaçador. "A espingarda que andaste a usar contra nós, cabrón\"
"Não. Juro, senor. Eu sou nacionalista! Arriba Espana!'''
O sargento deu uma estalada brutal ao rapaz e fez novo sinal a Francisco.
"Vá, leva-o para a Plaza de Toros."
Uma pequena multidão de mulheres formigava junto ao portão da praça de touros, tentando vislumbrar os rostos no grupo de prisioneiros que marchava para o recinto. Ouviam-se gemidos, choros, alguns gritos, era uma ou outra mulher que reconhecia um marido, um filho, um namorado no grupo. Os homens desfilavam, cabisbaixos e silenciosos; a maior parte trazia um mono no corpo, o fato-macaco azul que os identificava irremediavelmente com as milícias populares.
Francisco empurrou o rapaz da Calle de San Juan para o grupo e acompanhou-o até à arena. O
sol batia com força sobre a terra pálida e no ar pairava o omnipresente cheiro a pólvora e madeira queimada. Obedecendo a uma ordem gritada por um tenente, os prisioneiros sentaram-se de cócoras e ficaram a aguardar.
"Monta a metralhadora", ordenou o sargento Gomez a Francisco.
O português instalou-se do outro lado da arena, no sector da praça de touros junto à muralha da cidade, e aparelhou a Hotchkiss a um tripé. Com a ajuda de Juanito, encaixou uma cinta de balas na metralhadora e rodou-a para todos os lados, experimentando a sua maleabilidade. O tripé parecia oleado, não havia problemas.
Terminados os ajustamentos, sentou-se sobre um saco de terra e puxou de um cigarro, no que foi acompanhado por Juanito. Quando davam as primeiras passas, ouviram os sinos da catedral a repicar à distância e, acto contínuo, sentiram um ronco surdo, como o zumbido de abelhas a laborarem. A multidão agitou-se, com as mulheres lá fora a procurarem refúgio junto às carcaças carbonizadas dos camiões das milícias populares. Um burburinho excitado ergueu-se do grupo de prisioneiros, todos com o nariz voltado para o céu. Os legionários olharam também e Francisco viu pontos escuros a cruzarem o vazio azul.
"São rojos", observou Juanito.
Logo a seguir ecoaram detonações na cidade; eram as bombas a explodir, mas os aviões depressa desapareceram e a calma voltou. Enfadado, Francisco atirou o resto do cigarro consumido para o chão e acendeu outro.
O dia prometia ser longo.
Ao longo das horas seguintes, novos prisioneiros chegaram ao local. Formavam já um grupo razoável, talvez uns quinhentos homens. De vez em quando aparecia um oficial e mandava chamar um cativo, que era transportado para o exterior e entregue a alguém; pelos abraços e risos de alegria tornava-se evidente que o homem acabara de ser libertado e largado nas mãos de um familiar. Estas libertações decorriam a conta-gotas e em geral envolviam prisioneiros vestidos à civil.
"Olha-me para aquele tipo", disse Juanito, observando um homem a ser libertado e a abraçar-se à família junto ao portão. "Parece que ganhou El Gordo!"
"Não sei como o comando permite isto", observou Francisco.
"O quê? A libertação destes tipos?"
"Sim. Se andaram a disparar contra nós, têm de ser punidos. Porque estão a libertá-los?"
"Hombre, podem estar inocentes."
O português escarrou para o chão.
"Se lutaram contra nós, são culpados."
"Mas é isso o que eu te estou a dizer, Paço. Devem ter concluído que estes não lutaram e vieram aqui parar por engano."
"Qual engano? Se têm a nódoa negra no ombro, não há qualquer engano."
"Os que estão a ser libertados não têm nódoa nenhuma."
"Como sabes?"
"Disseram-me. Os que são encontrados com nódoa ficam na arena, não têm qualquer hipótese."
Francisco passou os olhos pelo grupo de prisioneiros sentados na terra seca e poeirenta da Plaza de Toros.
"Acho bem."
Ao fim da tarde, já o Sol se ia encostando ao horizonte, um oficial apareceu na arena e aproximou-se do sargento Gomez. Francisco inclinou-se para a frente e tentou escutar a conversa, mas encontravam-se ambos demasiado longe para que se conseguisse entender o que era dito. De qualquer modo, tudo se clarificou de imediato. O sargento fez sinal a um grupo de legionários e estes gritaram ordens aos presos, que se puseram de pé. De seguida, Gomez veio ter com Francisco e Juanito e apontou para o grupo de prisioneiros que aguardava do outro lado da arena.
"Fuzila-os!"
Sem sequer hesitar, Francisco atirou o cigarro para o chão, pisou-o e acomodou-se por trás da metralhadora. Os legionários que guardavam os presos afastaram-se, as Mauser ameaçadoramente voltadas para quem se atrevesse a tentar sair dali, e logo um burburinho de ansiedade percorreu os condenados. O português girou a Hotcbkiss, exercitando a sua maleabilidade, apontou-a para o grupo e, sem esperar nem mais um momento, carregou no gatilho.
Trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá.
Um ladrar raivoso encheu a arena, abafando os gritos de pânico dos prisioneiros, sobrepondo-se aos urros de terror. Numa derradeira pulsão de vida, os condenados tentaram a todo o custo fugir, sair dali, escapar ao fogo mortífero que chovia sobre eles, protegendo-se por trás dos que já tinham caído, atirando-se para as bancadas, procurando escapar à massa humana que tombava sob a sangrenta nuvem de poeira. Mas as rajadas prolongaram-se, implacáveis, certeiras, estenderam-se por longos segundos, um eterno minuto ao fim do qual o cano enrubescido se calou, restabelecendo enfim o silêncio.
O silêncio.
Do amontoado de corpos erguiam-se agora apenas vagos sons de dor, um gemido aqui, um suspiro ali, uma mão que tremia numa convulsão e um pé que se agitava num derradeiro estertor.
Mas só isso.
O oficial voltou a aproximar-se de Gomez e falou com ele. O sargento pegou na pistola e calcorreou vagarosamente o
aglomerado de corpos, por vezes inclinando-se para verificar uma respiração, para sentir um pulso, para escutar um som. Sempre que descobria alguém com vida, apontava a pistola à testa, às têmporas ou à nuca e premia o gatilho.
Paw.
Silêncio.
Paw.
Disparou uma, duas, três vezes, disparou quantas vezes achou necessárias até o trabalho ser dado por concluído.