XI
Os portões das cavalariças estavam entreabertos quando o capitão Branco se aproximou, o cachimbo espetado na boca, as botas salpicadas de lama. O veterinário encontrava-se ajoelhado sobre a palha e analisava as patas de Relâmpago; cheirava a cavalo e a estrume na estrebaria, mas o fedor não parecia incomodá-lo. O recém-chegado apoiou os cotovelos nos portões e tossiu muito alto, mais para sinalizar a sua presença do que a pedido dos pulmões.
"Meu capitão", admirou-se Luís, virando o rosto logo que ouviu a tosse. "Já voltou?"
"Não, ainda lá estou", disse com ironia. "Claro que voltei."
O veterinário ergueu-se e contorceu o tronco, para aliviar a dor provocada pela posição em que tratava dos animais.
"E como anda Lisboa?"
"Na mesma. O Norte trabalha e Lisboa diverte-se, como de costume."
"E o meu capitão? Divertiu-se?"
"Trabalhei."
"Mau. Não me diga que nem foi ao Parque Mayer..."
O capitão riu-se.
"Sou trabalhador, mas não sou parvo. Claro que fui ao Parque Mayer, então não havia de ir?"
"E então? Qual é a grande sensação do momento?"
"É o Arre, Burro! Mete as estrelas todas no Variedades, parece uma constelação! A Beatriz Costa, a Hermínia Silva, o António Silva e o Vasco Santana... está lá tudo!"
"Ena, é mesmo um elenco de luxo. De quem gostou mais?"
"De todos. De todos." Hesitou. "Bem, a grande figura continua a ser a Beatriz Costa, não é verdade? Que grande artista!"
"É, não é? Ela faz de quê agora?"
"De saloia, mas muito refilona, está a ver o género? Só lhe digo, é um estrondo!"
"Essa miúda é muito talentosa. Tem Lisboa aos pés."
Mário Branco soltou uma baforada aromática.
"E ela com Lisboa e você com Penafiel."
A observação surpreendeu Luís.
"Eu, meu capitão?"
"Sim, você. Bastou eu dar um salto a Lisboa e o alferes pôs-se logo a fazer das suas, hem?"
"Como diz, meu capitão?"
O oficial apontou-lhe o cachimbo fumegante.
"Então você não vai casar, homem?"
"O meu capitão já sabe?"
"Eu sei tudo. O meu dever é saber. A única coisa que ainda não sei é quando é que vossa excelência planeava dar-me a novidade. Ou ia casar sem dizer nada a ninguém?"
"Mas eu não lhe podia dar a notícia, meu capitão. O meu capitão não estava cá."
"Eu sei, mas... caramba, você é mesmo rápido. Mal virei costas, arranjou noiva e... pimba!, já vai dar o nó na próxima semana! Parabéns, homem! A Joana é uma rapariga e peras, hem?"
"O meu capitão conhece-a?"
"À Joana? Claro que conheço! Aliás, tenho obrigação, não é verdade? Afinal é minha cunhada."
"A sério?"
"É verdade, homem. Penafiel é terra pequena, o que pensa você? Aqui todos se conhecem e todos têm relação com todos."
O veterinário coçou a cabeça.
"Pois, estou a ver."
O capitão abriu os braços, efusivo.
"Venham daí esses o'ssos." Puxou o alferes veterinário para si. "Vamos ser da mesma família, que diabo!"
Luís caiu algo desconcertado nos braços de Mário Branco, ainda apanhado de surpresa pela inesperada relação familiar entre o capitão e a namorada. Ainda bem que nunca inquirira sobre Joana junto do superior hierárquico, pensou com alívio. Poderia ter sido embaraçoso.
"Você tem de ir lá a casa", disse o capitão quando se apartaram. "Isto é uma vergonha, a Joana vai casar e ninguém sabe com quem. A família tem de o conhecer."
"Estou às suas ordens."
"O casamento é de amanhã a oito, não é verdade?"
"Sim, é no sábado da próxima semana."
"Eu gostava de o levar este fim-de-semana, mas uma das minhas pequenas está engripada, não pode ser. Temos de lhe dar uns dias para se restabelecer. Que tal quarta-feira?"
"Quarta não posso, meu capitão. Vou passar o dia na feira de Amarante. Devo chegar tarde e a cheirar a gado."
"Não pode adiar isso?"
"Adiar a feira?"
O capitão reconsiderou.
"Tem razão, não pode ser", disse, fazendo um esforço para reconstituir mentalmente a sua agenda. "Quinta-feira não posso eu, já tenho um jantar com o doutor Reis. Só se for na sexta."
"Mas isso é a véspera do casamento, meu capitão."
"Pois é, mas não vejo alternativas. Ou tem melhor sugestão?"
"Não, não tenho."
"Então fica combinado. Jantar na sexta-feira em minha casa."
"Devo levar a Joana?"
O capitão assumiu uma expressão indignada e pôs as mãos à ilharga.
"O homem, você quer atrair azar à sua casa?" Ergueu o indicador, sentencioso. "Na véspera do casamento, nem pensar em pôr os olhos na moça, ouviu? Dá má sorte! Você vai sozinho e a minha patroa prepara-lhe um repasto de que nunca mais se esquecerá!"
Luís riu-se e voltou para junto de Relâmpago.
"Sempre quero ver isso."
Primeiro esticou o braço para fora e com a mão sentiu a temperatura; depois dona Maria desceu os degraus da composição e esperou que o cavalheiro atrás dela lhe trouxesse a mala. O homem tremia com o esforço, mas lá conseguiu pousar o malão no cais e, com um rápido movimento do chapéu, despediu-se da senhora que em má hora lhe pedira ajuda para tirar a bagagem.
Quando Luís chegou ao pé da tia e a cumprimentou, ela respondeu com um sorriso luminoso.
"Belo tempo aqui em Penafiel, hem?", observou, vendo o sol espreitar por entre os flocos de nuvens. "Quando saí de Alfândega à pela manhã estava uma bufarra que só visto. Até marcejava um bocadinho."
"Pois, o tempo aqui é mais ameno, sempre estamos mais perto da costa", concordou ele.
Inclinou-se para a mala pousada ao lado da tia. "Dá-me licença?"
"Tem cuidado que trago aí umas porcelanas para oferecer à noiva. Vê lá se as arruinas."
Luís agarrou o malão e teve dificuldades em erguê-lo, de tão pesado que estava.
"Argh", gemeu, o rosto ruborescendo como um pimentão, o corpo a inclinar-se para o outro lado numa tentativa de contrabalançar aquele peso. "'Chiça, o que trás aqui? Chumbo?"
"São as minhas coisinhas", devolveu a tia Maria com indiferença. Era daquelas mulheres que achavam que os homens tinham sido feitos para carregar as tralhas das senhoras. "Onde vamos?"
"Ali!", apontou ele, indicando um automóvel estacionado ao pé da estação.
A tia observou a viatura e ergueu o sobrolho, intrigada.
"Olha lá, Luís. Tu agora tens uma carripana?"
O sobrinho bufava como uma máquina a vapor, esforçan-do-se por carregar a bagagem até ao automóvel.
"Não é minha", conseguiu dizer por entre duas arfadas valentes. "É do exército."
"Ai Jesus! Não me digas que traz uns canhões lá dentro!"
"Não tia." Mais um esforço. "É uma viatura de serviço." Estava quase a chegar. "Venha."
O malão era realmente pesado, mas o oficial miliciano lá conseguiu arrastá-lo até junto do automóvel e, depois de mais um esforço titânico, atirou-o para a bagageira.
"Ufa!", soprou, aliviado, o coração aos saltos e o peito ofegante. "A tia dá cabo de mim!"
"Não vejo porquê. O caseiro carregou-me a mala até à estação sem dificuldade nenhuma."
"Mas eu não sou o caseiro." Indicou o malão. "Para que trouxe tanta coisa? A tia só cá vai ficar três dias..."
"Não interessa. Uma senhora tem de andar sempre apresentável, sobretudo numa ocasião destas.
O que iriam dizer os teus sogros se me vissem toda escanzelada? Lá vem esta pingúrria, é o que diriam! Lá vem a tia da parvónia! Ainda me chamavam benairo!" Abanou a cabeça com ênfase.
"Não, nessas figuras não me apanham! Vou aparecer toda pimpona e fazer um vistaço, vais ver!"
Luís ajudou a tia Maria a instalar-se no automóvel e assumiu o lugar do condutor.
"Ninguém se preocupa com os trapos."
"A certa!", exclamou ela. "Os teus sogros haveriam de comentar, o que pensas tu?"
"Eu não vou ter sogros, tia", disse ele, ligando o motor. "A Joana é órfã."
"Lamento ouvir isso. Mas há-de ter família, não é verdade?"
"Com certeza. Tem dois irmãos e tem o padrinho, com quem vive há alguns anos."
"Gente distinta, sem dúvida."
O carro arrancou, subindo a estrada em direcção à cidade.
"Suponho que sim. O padrinho é juiz."
"Ah, então ainda é menina para receber uma herdança jeitosa! E os irmãos?"
"Vamos conhecê-los hoje. Fomos convidados para jantar em casa do capitão Branco, que é o meu chefe no quartel. Ele prometeu-me um repasto opíparo."
"Acho bem. Eu até nem sou gulaimas, como bem sabes, mas venho com uma galgueira que só visto."
Deixou a tia Maria na Pensão Morais e, enquanto ela descansava e se preparava para o jantar, deu um salto à lavandaria do quartel para ir buscar a farda de gala que o capitão Branco lhe emprestara para o casamento. A farda vinha aprumadinha e guardou-a no quarto, onde essa noite dormiria pela última vez. O compartimento estava já quase nu; havia apenas uma mala de roupa pousada sobre a cama. Pegou na mala e voltou a sair; tinha ainda uns pormenores para tratar.
Foi até à Praça Municipal e estacionou junto ao Café da Sociedade. Levou a mala pela Avenida Sacadura Cabral e meteu num edifício à esquerda, onde subiu até ao primeiro andar. Cruzou a porta e assomou ao apartamento que havia alugado; seria ali que iria viver com Joana. O apartamento já se encontrava parcialmente mobilado e Luís abriu a mala e guardou as roupas nas gavetas e no guarda-fatos.
Depois desceu até ao Café da Sociedade e entrou para encomendar umas doçuras. Decidiu-se pela especialidade da terra.
"Um pão-de-ló, se faz favor."
Com o embrulho na mão, atravessou a praça a pé e foi até à Foto Anthony, numa ruela diante do Colégio do Carmo, encomendar o serviço de um fotógrafo para a cerimónia.
"O senhor capitão Branco já veio falar comigo", revelou--lhe o senhor António Guimarães, dono do estabelecimento. "Eu próprio lá estarei para tirar os clichés."
"Bom, o senhor não precisa de se incomodar, pode mandar um funcionário..."
O homem pareceu empertigar-se.
"Tratando-se do matrimónio de uma senhora familiar do senhor capitão Mário Branco, eu próprio lá estarei!", declarou ele com grande convicção. "Não faltava mais nada."
Quando Luís terminou as suas voltas eram já seis e meia da tarde. Tinha combinado às sete em casa do capitão, pelo que seguiu direito para a Pensão Morais.
A tia aguardava-o numa cadeira, junto à recepção. Vinha com um grande vestido amarelo-claro e branco, cheio de rendilhados, e exalava um aroma perfumado.
"Ena, tia! Está muito jeitosa!"
Ela ergueu-se e sorriu, virando a cabeça para baixo para admirar o vestido.
"Estou, não estou? Venho toda adengada, ora venho?"
"Adengadíssima! Está muito chie, sim senhora!"
"De mim, ninguém dirá que sou uma pingúrria, ou eu não me chame Maria Afonso!"
"Ah, claro que não. Se houver por aqui algum solteirão de jeito, acho até que lhe vai fazer o sete..."
A tia deu com a língua um estalido desagradado.
"Vá, juizinho! Deixa-te de boldreguices! Vamos mas é andando! Marche!"
Levou-a até ao automóvel e desfilaram pela Avenida Sacadura Cabral. Penafiel era uma cidade pequena, quase exclusivamente erguida ao longo dessa artéria; bastava percorrê-la para chegar a qualquer parte, tudo girava em torno do eixo central. Depois de passarem pela Praça do Município viraram à direita e subiram em direcção ao ponto mais alto da povoação.
"A tua moça vai lá estar?", perguntou a tia, os olhos perdidos nas fachadas que emparedavam a rua.
"Quem? A Joana? Não. Anda ocupada com o enxoval. A tia só a vai ver amanhã, na igreja."
Um edifício enorme, com torres e cúpulas vistosas, erguia--se da verdura de um parque bem arranjado e coroava o monte como um castelo. Seguindo as instruções que o capitão previamente lhe dera, Luís estacionou logo ali. Saíram do carro e começaram a procurar o número da porta, mas dona Maria não tirava os olhos da fortaleza.
"O que é aquilo?"
"É o Sameiro."
"Sim, mas para que serve?"
"É uma igreja, tia."
A transmontana estacou para apreciar o edifício.
"A sério? Olha que não parece nada uma igreja."
"É porque tem traça francesa. O Sameiro foi construído à maneira do Sacré-Coeur de Paris."
"De Paris? Ena, isto é chie a valer. Vais casar ali?"
"Não, vai ser noutra igreja."
"Também francesa?"
O sobrinho riu-se.
"Não. É a Igreja Matriz. Coisa antiga."
"Se queres que te diga, acho bem. Como diz o Toninho, há que defender o que é nosso. Os Franceses que fiquem lá com as suas igrejas, que nós já cá temos as nossas, bem bonitas, por sinal.
Não precisamos de andar a imitar os outros. As nossas igrejas são locais de culto, sítios de devoção, santuários de fé." Indicou o Sameiro com o polegar. "Não são castelos como este... este... sei lá como se chama isto. Onde é que já se viu uma igreja assim, valha-me Deus? Parece um quartel--
general!"
Alheio ao solilóquio da tia, Luís tirou do bolso o papel que o capitão lhe dera com a anotação da morada e foi espreitando o número das portas, à procura da casa da família Branco.
"É aqui!", exclamou.
Parou diante de uma fachada estreita de três pisos e tocou à campainha. Ouviu o trrrrrrrrrim do outro lado e escutou o som de passos a aproximarem-se.
"Ora viva!"
O capitão Branco veio acolhê-los à porta. Depois de percorrerem um corredor estreito, levou-os por uma escada que rodava em caracol para a direita. Havia um certo odor a mosto dentro da casa; eram decerto as garrafas de vinho arrumadas ao lado da escada.
A fragrância mudou no primeiro andar; deixou de cheirar a vinho e o aroma tornou-se quente e suculento.
"Hmm, que bom!", exclamou dona Maria, que não comia desde essa manhã. "É um esturgidinho?"
"Como?"
"Um esturgido", insistiu ela, usando a expressão transmontana. "Um... um refogado."
"Não, não", corrigiu o capitão. "Vamos ter um belo assadinho."
"E dos valentes, pelo cheiro."
"Ah, sim! Disso pode estar certa! A minha patroa tem um dedo para a cozinha que só visto."
"Bem me cheira, bem me cheira!"
Atravessaram a sala de jantar, ocupada por uma longa mesa muito bem arranjada, os pratos, os copos e os talheres assentes numa toalha de renda branca.
Um vulto emergiu de repente da penumbra, à esquerda.
"Ora aqui está a minha mulher."
O vulto feminino cumprimentou dona Maria e virou-se para Luís. A sala estava escura e o alferes veterinário teve dificuldade em distinguir-lhe as feições.
"Olá, Luís."
A voz, um pouco rouca e estranhamente familiar, atingiu-o como um raio. A porta da cozinha abriu-se nesse instante e deixou a luz jorrar sobre aquela sombra difusa, revelando-lhe os traços delicados da face. Luís arregalou os olhos, incrédulo, vendo mas não querendo acreditar.
Era Amélia.
XII
Foi com gestos maquinais e a mente a revolver-se num turbilhão atordoante de pensamentos que Luís sobreviveu a todo o jantar. As pessoas falavam em torno dele como se fossem estranhas; as conversas não passavam de mero ruído de fundo, de um rumor distante no mar de perplexidades em que se sentia naufragar.
Mas que raio estava Amélia ali a fazer? Era ela a irmã de Joana? Caramba, isso explicava as semelhanças entre as duas! As linhas do rosto, a suavidade dos traços, os olhos garços e melancólicos, as expressões nostálgicas, a maneira de sorrir, o leve toque a May McAvoy.
Nenhuma daquelas parecenças era afinal um acaso! Amélia era a irmã de Joana! Mas como diabo não percebera isso antes? Como fora possível que nunca se tivessem cruzado, que nunca Joana lhe tivesse falado em pormenor da irmã, que nunca ele se apercebesse da inacreditável coincidência?
"Não achas, Luís?"
Olhou atarantado para a tia, que parecia esperar uma resposta.
"Hã?"
"A quinta dos Cerejais. Não achas que ela também podia ser adaptada para o vinho, como aqui a quinta do capitão?"
"Ah, sim. Claro. Sem dúvida."
A tia voltou-se para o anfitrião e a conversa transformou-se de novo num rumor distante. Luís fixou os olhos em Amélia, que parecia tentar evitá-lo e procurava fixar o marido enquanto falava. O
coração apertou-se-lhe. Era ela a mulher do capitão Branco? Mas que loucura vinha a ser aquela?
Como fora possível nunca a ter visto antes? Era verdade que o capitão sempre se mostrara um homem reservado, mas, que diabo, podia-se até ter dado o caso de sccruzar com o casal na rua ou vê-lo na missa. Houvera tantas oportunidades para se aperceber do que se passava, como raio uma coisa daquelas lhe havia escapado?
"... não é?"
Viu a tia de novo calada a olhá-lo, como se aguardasse nova resposta.
"Hã? O quê?"
Dona Maria apertou os lábios, impaciente.
"Olha lá, estás a ouvir o que eu estou a dizer?"
"Eu? Bem... sim, claro."
"Então o que achas?"
Luís embatucou. Olhou para a tia, para o capitão e para Amélia, sem saber o que dizer.
"Será que pode repetir a pergunta?"
Dona Maria suspirou.
"Bem, já vi que não estás a prestar atenção nenhuma ao que eu estou para aqui a dizer."
"Estou, estou", insistiu ele, contrariando o que era evidente. "O que se passa é que... que..."
Buscou desesperadamente
um álibi convincente. "Tenho uma brutal dor de cabeça." Acto contínuo, pôs a mão na testa e os olhos tornaram-se-lhe mortiços. "Ui! Dói-me mesmo a cabeça..."
"Ah, coitadinho! Quando é que isso começou?"
"Foi há bocado. Sabe o que é, fiquei muito tempo sem comer."
"Não seja por isso", atalhou o capitão, empurrando uma travessa de cabrito na sua direcção. "Dê-lhe com força, homem! Arrefinfe-lhe!"
"Não, obrigado. Já comi muito e agora esta dor vai passar depressa."
"Bem, então a Amélia vai-lhe preparar uma tisana especial para as enxaquecas. Vais, querida?"
Querida? O uso da palavra deixou Luís chocado. Ela agora era a querida do... do... do outro?
"Claro que sim", disse a mulher, levantando-se de imediato.
"Não, não", exclamou Luís, erguendo a mão para a travar. "Espere. Não é preciso."
"Olhe que uma tisaninha fazia-lhe bem."
"Deixe estar, eu estou bem. Se ficar caladinho, isto passa. É sempre assim. Não precisa de se incomodar, já estou habituado a estas dores de cabeça. É coisa passageira, desaparece depois de eu comer, vai ver."
A tia e o capitão retomaram a conversa; Luís tinha a impressão de que falavam de terras e de cultivo, mas os pensamentos arrastaram-no de novo para Amélia. Será que ela também havia sido apanhada de surpresa por vê-lo ali? Cravou os olhos nela, perscrutando-a. Não, dava-lhe a impressão de que não. Vendo bem, ela lançara-lhe um Olá, Luís! muito revelador; não fora um cumprimento surpreendido, lançado por alguém submerso em espanto, mas uma saudação resignada, como se soubesse o que aí vinha. Agora que Luís pensava nisso, pôs-se a escutar mentalmente o som da voz a saudá-lo quando entrara na sala. O Olá Luís! passou consecutivamente na sua cabeça, como um disco riscado no gramofone.
Foi então que se apercebeu de que aquelas palavras, e sobretudo o tom resignado em que haviam sido proferidas, exprimiam uma conformada e imensa tristeza.
"Olá, mãaaaae!"
A voz infantil interrompeu a conversa e duas crianças apareceram na sala a correr. Um rapazinho pequeno agarrou-se às pernas do capitão Branco, que com uma gargalhada o puxou para o colo, enquanto uma menina ainda mais nova saltitou para os braços de Amélia.
"Então, meninos?", perguntou o capitão. "Já vieram?"
"Simmm!"
Luís observava a cena embasbacado. Amélia era mãe! Com o choque de a encontrar ali nem se lembrara que o capitão lhe dissera que tinha filhos. Amélia era mãe! Foi nesse instante que caiu totalmente em si e tomou consciência da irreversibilidade da situação em que ela se encontrava.
Amélia casara e não fora com ele; tinha filhos e não eram seus. Como diabo acontecera tudo aquilo? Que mal fizera ele para estar a ser confrontado com aquela realidade inultrapassável?
Amélia era dele! Como fora possível que o tivessem espoliado daquele modo?
"Onde está o tio Chico?", perguntou Amélia à menina que se abraçava a ela.
"Vem ali!"
Um rapaz entroncado, de costas largas e corpo de gorila, o rosto a exibir grandes arcadas supraciliares, entrou na sala com um grande cesto na mão.
"Então, Chico? Tão cedo?"
"Foram os meninos, senhora. Queriam vir para casa."
Evitando encarar Luís, Amélia voltou-se para dona Maria.
"É o meu irmão Francisco", anunciou. "Ficou com as crianças em casa da minha sogra."
"A ideia era elas deixarem-nos jantar em paz", explicou o capitão Branco. Fez cócegas ao filho. "Mas acho que as tréguas já acabaram, não é seus marotos?"
Dona Maria olhava embevecida para as crianças.
"Ai que lindos meninos! Vocês têm dois filhos maravilhosos, não há dúvida."
"Três", corrigiu o capitão.
Francisco pousou o cesto no chão e afastou uma rendinha, revelando um bebé a dormir.
"É a Lourdinhas", disse Amélia. "Vai fazer um ano."
"Ai que querida! E os outros?"
"O António, quantos anos tens?", perguntou o capitão ao rapazinho sentado ao seu colo.
A criança exibiu a palma da mão aberta.
"Cinco."
"E a Rosinha tem três", acrescentou o pai.
Por mais que tentasse esconder o espanto, Luís tudo observava de boca aberta. Eram três filhos e o mais velho tinha cinco anos. Ora a última vez que vira Amélia fora no início de 1930, fazia por aquela altura seis anos. Isto queria dizer que fora logo no ano seguinte que ela tivera um filho de outro. De outro. E, depois disso, pelos vistos nunca mais parara!
Sentiu uma fúria surda crescer-lhe no peito. Ela nunca mais tinha parado com o outro!
Deixara a mãe afastá-la de Luís, casara com o capitão Branco e, não contente com tudo isso, desatara a parir filhos! Como pudera ela fazer-lhe aquilo? Como era possível que Amélia lhe tivesse sido tão infiel?
"E este rapaz?", perguntou dona Maria, apontando para o adolescente abrutalhado que permanecia em pé. "A senhora disse que é o seu irmão?"
"O Chico? Sim, é... é o meu irmão."
"Seu e da Joana?"
"Sim. Somos os três irmãos."
A atenção de Luís foi desviada para o rapaz de cabelo curto e pequenos olhos negros. Tinha um rosto que lhe era familiar. Atónito, os olhos arregalados de estupefacção, percebeu enfim quem ele era. A face alargara e alongara, o corpo tornara-se ainda maior e mais compacto, mas aqueles olhos e aquela expressão vazia não enganavam, não havia dúvidas de quem se tratava. Era o bastardo abandonado em bebé numa igreja de Bragança! Era o filho adoptivo de dona Beatriz! Era o fedelho que com apenas doze anos lhe dera uma tareia quando daquele derradeiro confronto com a mãe de Amélia!
"Bem, o mal está feito!", exclamou o capitão Branco, batendo com a palma da mão no joelho.
"Se não dormem com a avó, dormem aqui. E é já."
"Oh, não!", protestou o pequeno António.
"Oh, sim!", devolveu o pai, que logo ergueu a cabeça para Francisco. "Dormes cá?"
"Não, senhor", disse o brutamontes, torcendo os dedos entrelaçados. "Vou dormir à quinta."
O capitão ergueu-se da mesa.
"Se me dão licença, vou então deitar os pequenos."
"Ai, senhor capitão", disse dona Maria. "Se calhar é melhor irmos andando. Já se vai fazendo tarde."
"Que disparate!", cortou o anfitrião. "Ainda nem nove horas são! Antes das dez não sai ninguém desta casa."
"Mas, senhor capitão..."
"Não há mas nem meio mas", atalhou ele, num tom que não admitia discussões. "Vou só pôr as crianças a dormir e já volto, está bem?" Olhou de relance para a mulher. "Vens, querida?"
Amélia entregou-lhe a menina que se aninhava ao seu colo.
"Vai tu. Eu fico aqui com os convidados."
A tia Maria ergueu-se, prestável.
"Eu ajudo-o, senhor capitão."
"Não é preciso", disse ele. "Já estou habituado a adormecer as crianças." Fez um sinal na direcção da empregada, uma mulher pequena e silenciosa que se aproximava da mesa.
"Além do mais, a Manelinha ajuda-me."
"Eu insisto", disse a tia Maria. "Adoro crianças e o senhor não me vai roubar o prazer de ajudar uma delas a adormecer,
pois não?"
"Por amor de Deus, não seja por isso. Venha daí!"
Metamorfoseando-se subitamente, a sala de jantar esvaziou-se. Num instante era uma algazarra infernal, no momento seguinte instalara-se a tranquilidade. O capitão e a tia Maria desapareceram com as três crianças e a criada, enquanto Francisco se despedia e saía discretamente de casa.
Na sala apenas se escutava o estrepitar nervoso e reconfortante da lareira; as chamas projectavam sombras dançantes pelos cantos e no ar flutuava o aroma quente da lenha a arder.
Foi então que o olhar de Luís se prendeu no de Amélia.
XIII
Amélia deixou escapar um suspiro.
"Sou uma péssima mãe", disse, preenchendo o embaraçoso silêncio que se instalara entre ela e Luís. Indicou com a cabeça a porta da sala, por onde todos tinham acabado de sair. "Ele é que trata dos miúdos. Conta-lhes histórias, canta-lhes napolitanas, brinca com eles." Novo suspiro. "Eu não tenho paciência nenhuma. Nenhuma, nenhuma, nenhuma."
O silêncio voltou, pontuado pelo incansável estralejar da lareira no seu labor cálido. Luís manteve os olhos fixos na antiga namorada, a mente vazia e o coração cheio, sem nada falar e com tudo para dizer, as palavras a expirarem-lhe na garganta.
"O que nos aconteceu?"
Foi apenas o que conseguiu dizer, mas a pergunta encerrava tudo. Amélia baixou os olhos e sorriu o sorriso dos tristes, o rosto derramando-se numa expressão melancólica.
"Aconteceu-nos a vida."
A lareira estalou, como se quisesse argumentar.
"Mas como foi possível ter sucedido o que sucedeu?" Baixou a cabeça. "A bem dizer, nem percebo bem o que nos aconteceu..."
"Foi a minha mãe."
"Eu sei que foi a tua mãe. Mas porquê?"
Amélia encolheu os ombros.
"Cismou contigo. Achava que tu eras um parolo de Alfândega, que não sabias o que querias, que ainda davas em veterinário e eu acabaria numa casa cheia de pulgas e percevejos... enfim, essa lengalenga toda."
Luís contraiu o rosto, incrédulo.
"Mas tudo isto foi porque eu lhe disse que queria ser veterinário? Um veterinário é um médico, não é um cangalheiro. Que eu saiba, tenho uma profissão de prestígio. Como pôde ela criar todo este problema só por causa disso?"
A anfitriã mordeu o lábio inferior, pensativa.
"Tens razão", concedeu, após reflectir um instante. "Vendo bem as coisas, aquela conversa do veterinário-não-presta não passava de uma desculpa que ela inventou às três pancadas. O facto é que a minha mãe não queria que eu casasse contigo, ponto final."
"Mas porquê?"
"Acho que ela tinha outras ideias."
"Que ideias?"
Amélia respirou fundo, como se lhe custasse abordar o assunto.
"É um pouco difícil de explicar."
"Julgo merecer que tentes."
Era uma boa razão para tentar explicar o inexplicável, raciocinou ela. Espreitou a porta da sala, para se assegurar de
que ninguém ali estava nem se aproximava, e inclinou-se na direcção de Luís.
"Não sei se percebeste, mas a minha mãe era uma pessoa traumatizada pela morte do meu pai", começou por dizer em voz baixa. "Como te contei uma vez, ele era cabo do exército e faleceu por causa dos gases que inalou lá em França. Foi então que ela cismou que as filhas iriam casar com um oficial. Achava que isso é que era coisa de prestígio. São os militares quem manda no país, costumava dizer. De maneira que primeiro tentou com a Joana. Conhecia muito bem o juiz Brandão, aqui de Penafiel, que se dá muito com militares."
"Aliás, vive ao lado do quartel."
"Nem mais. Quando o juiz ficou viúvo, a minha mãe mandou a Joana parar aqui, a pretexto de o ajudar. A verdadeira ideia, parece-me a mim, era integrá-la no meio militar, na esperança de que surgisse um pretendente."
"E surgiu?"
"Sim, alguns. Mas nenhum tinha pedigree que satisfizesse a minha mãe. Eram todos uns pelintras. Além do mais, a Joana era ainda muito nova, havia tempo."
"E depois?"
"Uma vez viemos aqui a Penafiel visitá-la e, num baile ali no Grémio, conheci o Mário, que na altura era tenente."
"Qual Mário?"
"O meu marido. Apresentou-se como o tenente Mário Branco. A minha mãe viu-me a conversar com ele, foi indagar e descobriu que era um rapaz de boas famílias."
"Quer dizer que já o conhecias antes de mim?"
"Sim, mas isso não significa nada. Namoriscámos um bocadinho, é verdade, mas eu era muito nova. Aquilo foi mais um jogo de adolescentes do que qualquer outra coisa."
"Então como acabaste por casar com ele?"
Amélia voltou a respirar fundo. Era notório que aquela parte era difícil de narrar.
"É muito complicado", disse. "O Mário era de uma família prestigiada aqui na cidade, tinha terras e tudo, e a minha mãe encorajou a coisa. Sempre que vínhamos a Penafiel visitar a Joana, pimba!, ela arranjava maneira de suscitar um encontro entre mim e o Mário.
Ou era um almoço, ou era um piquenique, ou era um baile, ou era isto, ou era aquilo.
Inventava sempre qualquer coisa. De modo que, embora não fôssemos namorados, criou-se uma certa relação entre nós."
"Mas a tua mãe dizia-te mesmo que queria que tu casasses com ele?"
"Não, não era assim tão directa. Na verdade, nem sequer tocava no assunto. Era demasiado esperta para o fazer. Mas o que é facto é que ia criando as oportunidades. Entre mim e o Mário não acontecia nada, mas as sementes estavam lançadas..."
"Até que apareci eu."
Amélia sorriu.
"A minha mãe entrou em pânico quando soube da tua existência."
"Ai sim? Ela disse-te?"
"Claro que não. Já te expliquei que ela era muito esperta. Mas é fácil perceber que vinhas dar cabo daqueles planos todos, não é verdade? Põe-te na posição dela: então andava ela em mil trabalhos a arranjar tudo muito bem arranjadinho e a filha ia apaixonar-se por outro? Tu eras a peça que não encaixava neste esquema grandioso que ela concebeu na sua própria cabeça. Pior ainda, eras a peça que dava totalmente cabo do esquema.
Portanto, a minha mãe começou logo a minar as coisas e a montar um plano de emergência.
Veio cá a Penafiel às escondidas e conversou com o Mário.
Disse-lhe que eu estava apaixonada por ele, mas que, como ele não se decidia, aparecera outro rapaz e a coisa poderia dar para o torto. Logo, e se o Mário estava mesmo interessado, era melhor consumar as coisas o mais rapidamente possível."
"E ele?"
"Estava interessado."
Luís sorriu sem vontade.
"Então não haveria de estar?", observou, admirando-lhe as linhas perfeitas do rosto. Que saudades sentia ele daqueles olhos de ouro! Subitamente fatigado, massajou as têmporas com a ponta dos dedos e abanou a cabeça. "Ou seja, a tua mãe precipitou os acontecimentos."
"E de que maneira! Conversou com o Mário e a família dele nas minhas costas, sempre convencendo-os de que me representava, e até marcou a data de casamento. Foi ao Porto preparar o enxoval e tudo. E eu, inocente e ingénua, não sabia de nada!"
"Isso é incrível."
"E incrível para quem não a conhecia, Luís. A minha mãe, quando se lhe metia uma coisa na cabeça, era capaz de tudo. De tudo."
"Como se viu."
"Até que, na véspera do casamento, deu o golpe que andava há tanto tempo a planear. Quando cheguei a casa, vinda do liceu, deparei-me com o meu quarto vazio. Numa manhã, ela e o Francisco empacotaram todas as minhas coisas e enfiaram-nas numa caminheta para Penafiel. Pergun-tei-lhe o que se passava e ela disse que eu era uma ingrata, que ela se sacrificara por mim e eu, em vez de lhe agradecer, cuspia nela. Perguntei-lhe a que se referia e ela respondeu-me que filha dela não se casaria com um veterinário nem iria
viver numa casa cheia de pulgas. Começámos a discutir e a minha mãe anunciou-me que me punha na rua. Eu não teria mais nenhum lugar para viver, iria para a rua. Pôs-me cheia de medo, como calculas. Fiquei a imaginar-me a viver literalmente na rua."
"Ela não te fazia isso..."
"Luís, já te disse mil vezes: tu não conhecias a minha mãe. Quando se lhe metia uma coisa na cabeça era capaz de tudo."
Ele esboçou um ar incrédulo.
"Tu achas que ela te punha na rua? A tua mãe?"
"Não tenho dúvidas nenhumas."
"Caramba!", exclamou, reconstituindo o rosto de dona Beatriz na mente. Logo que a conhecera percebera que ela era torcida, mas nunca imaginara que chegasse a tais extremos. "Podias ter vindo ter comigo."
"Pensei nisso, mas vi logo que não podia ser."
"Ora essa! Porquê?"
Amélia inclinou a cabeça.
"O Luís, ainda perguntas porquê? O que farias tu se eu te aparecesse à porta da pensão sem nada?"
"Acolhia-te, claro."
"Ai sim? íamos os dois dormir para o teu quarto na pensão?"
Luís percebeu o argumento.
"Pois, tens razão. Não podia ser." Considerou o cenário e pôs-se a imaginar soluções alternativas. "Bem, sempre podia mandar-te para a tia Maria..."
"E eu ia viver para Alfândega?"
"Porque não?"
"E a tua tia? Achas que ela ia mesmo acolher de braços abertos uma desconhecida que lhe aparecia pela frente?" Abanou a cabeça. "Temos de ser realistas, Luís. Tu ainda eras estudante, não tinhas maneira de me sustentar. E eu era muito nova e estava aterrorizada. Já me via a viver na rua e tudo. Nestas circunstâncias, como poderia eu ir contra a vontade da minha mãe?"
Encolheu os ombros. "Não podia."
Luís esfregou o queixo, rendendo-se à evidência. Ela tinha razão.
"Portanto, vieste para Penafiel."
"Chorei toda a viagem. A minha mãe tinha previsto tudo e alugou um automóvel para a viagem.
Se não fosse isso, seria uma cena danada no comboio. Do que ela se livrou!"
"E casaste no dia seguinte."
"Toda a gente pensava que os meus olhos vermelhos eram de chorar de alegria."
Ele observou-a com compaixão.
"Como foi o casamento?"
"Muito duro. Tive de me forçar a sorrir para esconder o que me ia na alma."
"Podias ter feito cara contrariada. Assim toda a gente veria a verdade e talvez não te casasses."
"Não deves ter ouvido o que eu te expliquei, Luís", disse Amélia, abanando a cabeça. "Tu não estás a perceber o que me aconteceria se o Mário já não quisesse casar comigo?"
"Ficarias solteira na mesma."
"Ficava na rua, Luís. A minha mãe já me tinha expulsado de casa! Ou eu casava com o Mário e ficava com ele, ou não me casava e ficava na rua. É tão simples quanto isso."
"Não acredito."
"Que acredites ou não, isso não muda nada. A minha mãe não iria recuar nessa questão. Era para ela um ponto de honra. Por isso eu nunca poderia dar a entender que casava contrariada, entendes?
Se o Mário se apercebesse disso, cancelaria imediatamente o casamento. Seria um desastre para mim! Foi por
isso que fiz por sorrir durante toda a cerimónia. E quando me vinham as lágrimas eu dizia que era de felicidade."
Luís recostou-se na cadeira, absorto nos seus pensamentos. Assim postas as coisas, não havia dúvida de que Amélia não tivera qualquer alternativa. A mãe encurralara-a. Grande cabra! Só tinha pena de não a ter esganado quando teve oportunidade.
"Onde está ela?"
"Quem?"
"A tua mãe, claro."
"Já faleceu, coitada. Foi há dois anos, com uma síncope. Estava na loja, em Bragança, quando caiu redonda no chão. Nem sequer soltou um ai."
Lembrou-se que Joana já lhe tinha contado que a mãe morrera dois anos antes. Não fizera a relação, como é evidente, uma vez que na altura desconhecia que Amélia e Joana eram irmãs e mesmo naquele momento isso parecia-lhe inacreditável.
"Quando é que te apercebeste de que eu estava aqui em Penafiel?"
"Foi através da minha irmã."
"O quê?", espantou-se Luís. "Ela sabe de... de..."
"Não, não sabe nada. Disse-me que tinha um namorado e que ele se chamava Luís Afonso."
Mordeu o lábio. "Ia-me dando um fanico quando ouvi o teu nome, mas ainda pensei que fosse coincidência, sobretudo porque ela me explicou que eras um oficial do exército. Mas depois de a Joana me revelar que eras o veterinário do quartel, logo vi que só podias ser tu. Ela fazia muita questão que eu te conhecesse, mas recusei-me liminarmente. Como compromisso, aceitei ficar no Jardim Público à hora em que vocês por ali iam passar. Foi assim que te vi."
Fez-se silêncio.
"E então?"
"E então, nada. Apeteceu-me morrer, só isso."
Luís fez um sinal com a cabeça, indicando a porta da sala.
"E ele? Sabe que nos conhecemos?"
"Não. Ninguém sabe nada de nada. Não disse a ninguém."
Mais uma pausa. A conversa avançava nesta altura aos solavancos.
"E agora?", perguntou Luís.
"Agora, o quê?"
"O que vamos fazer?"
Amélia encolheu os ombros, resignada.
"Nada."
"Nada como? Não percebeste o que aconteceu? Nós reencontrámo-nos! Podemos recuperar o que nos foi roubado! Temos a possibilidade de..."
"Não sejas tonto", atalhou ela. "Não podemos fazer nada."
Luís agarrou-lhe as mãos e fitou-a com intensidade.
"Estás enganada, Amélia. Não é tarde de mais. Ainda temos a vida à nossa frente. Agora que..."
"Luís."
"... nos reencontrámos, podemos..."
"Luís!"
Ao ouvi-la erguer a voz, ele hesitou.
"O que é?"
Amélia retirou as mãos que o antigo namorado agarrava com ardor.
"Eu sou casada e tenho três filhos. Tu estás noivo e vais casar amanhã com a minha irmã. É
tarde de mais para nós. Percebes? É tarde de mais."
Ele bateu com a palma da mão na mesa, num gesto de rebeldia.
"Não me caso."
"Não sejas parvo."
"Não me caso, já disse."
"E fazes o quê? Deixas a Joana num pranto para quê? Para te casares comigo? Mas eu já estou casada! Tenho três filhos para criar! Para que vais complicar ainda mais as coisas?"
Luís passou a mão pelo cabelo, desorientado. Agora era ele que se sentia encurralado.
"Então que podemos fazer?"
"Nada."
"Nada, como? Como vou aguentar estar no altar a casar com a tua irmã e saber que tu estás ali atrás a ver tudo?"
Amélia apontou-lhe o dedo.
"Vais aguentar como eu aguentei!", exclamou ela. "Vais aguentar com um sorriso nos lábios e vais ser forte porque eu também serei forte! Vais aguentar porque não há alternativa senão aguentares!"
Luís voltou a recostar-se na cadeira e suspirou; o seu corpo parecia um balão a esvaziar-se.
"Estás a pedir-me o impossível. Estás a pedir-me que..."
"Chiu!"
Amélia mandou-o calar-se e voltou a cara para a porta, atenta aos barulhos. Como em resposta, ouviram-se passos e o som murmurado de uma conversa a aproximar-se. Acto contínuo, o capitão Branco e dona Maria entraram na sala, sorridentes.
"Já está", anunciou o oficial. "Os nossos anjinhos dormem o sono dos justos."
"Ai, são tão queridos!", exclamou dona Maria. "A senhora está de parabéns, dona Amélia. Os seus pequenos são realmente um encanto."
Amélia forçou um sorriso.
"Obrigada."
"Então e vocês?", quis saber o capitão, sentando-se à mesa. "Do que têm falado?"
"Oh, disto e daquilo", retorquiu Amélia, olhando de soslaio para Luís. "Nada de especial."
"A minha Amelinha é uma pessoa muito melancólica, alferes", disse Branco. "Por isso, não estranhe."
"Melancólica? A Amélia? Nunca reparei em tal!"
Mal acabou de proferir a frase, Luís quase pôs a mão na boca. Ele e a sua língua enorme!
"Como é que nunca reparaste em tal?", perguntou a tia Maria. "Acabaste de conhecer a dona Amélia..."
"Pois, mas... enfim... nunca esta noite reparei que a... a dona Amélia fosse mefancóhca." Olhou para ela, simulando cerimónia. "O que eu quero dizer é que a senhora me parece perfeitamente normal."
A tia Maria soltou uma gargalhada.
"Então não havia de ser normal?", perguntou. "O Luís, tu hoje estás de todo! Deve ser dessa tua dor de cabeça."
"E do casamento", adiantou logo o capitão. "Não se esqueça que o rapaz casa amanhã. Não há homem que não fique um pouco atrapalhado quando está a vinte e quatro horas de pôr a corda ao pescoço, não é verdade?"
A tia Maria olhou para Luís e tocou no relógio, como quem diz que já se iam fazendo horas.
"Pois é", exclamou ele. "Justamente por causa do casamento, não podemos demorar-nos mais, não é verdade?"
"Oh! Já?", protestou o dono da casa.
"Tem de ser, tem de ser."
"Mas fiquem mais um pouco."
Os dois lados cumpriam o ritual do final dos jantares, os anfitriães insistindo que os convidados ficassem, os convidados
repetindo que tinham de sair para não se imporem. Depois de vigorosas insistências em ambos os sentidos, Luís levantou-se e fez uma vénia na direcção de Amélia e do capitão Branco.
"Minha senhora, meu capitão", disse. "O jantar estava uma delícia e a conversa foi maravilhosa. Mas amanhã vai ser um longo dia e precisamos de nos deitar cedo. Com a vossa licença..."
Ergueram-se todos da mesa numa cacofonia de cadeiras a arrastarem-se pelo soalho. Os donos da casa acompanharam os convidados até à porta, onde, e apesar do frio e da humidade, ainda ficaram mais um minuto a trocar amabilidades. No momento em que se beijaram no rosto em despedida, Amélia soprou duas palavras secretas ao ouvido de Luís.
"Sê forte."
XIV
Apesar do frio, a Igreja Matriz estava apinhada àquela hora da madrugada. As sóbrias fardas militares intrometiam-se entre os exuberantes vestidos e os elegantes fatos domingueiros escolhidos para a ocasião. A sociedade penafidelense comparecera em peso e exibia-se no casamento da protegida do distinto juiz Brandão.
Aperaltado na sua garbosa farda de gala, Luís virou a cabeça quando o burburinho da multidão morreu subitamente, como se a caótica orquestra de vozes obedecesse a um maestro invisível.
Recortadas pela luz difusa da aurora, duas figuras assomaram à porta e começaram a desfilar devagar ao longo da nave central da igreja. Os olhos de todos pousaram na rapariga que o sisudo juiz levava pelos dedos e logo recomeçou o burburinho, mas agora sussurrado; eram os comentários à noiva e ao enxoval. Joana vinha deslumbrante, como todas as noivas em dia de casamento; trazia um vestido branco muito rendilhado, com uma longa saia a deslizar pelo chão e uma pequena coroa cor-de-rosa a florir-lhe os cabelos.
Aguardando-a no altar, o noivo engoliu em seco. Tinha prometido a si mesmo que não olharia uma única vez para Amélia, mas naquele instante não resistiu e espreitou-a de fugida; a sua paixão do liceu estava na fila da frente, o rosto voltado para o corredor central, os olhos presos na irmã, que caminhava para o altar. Luís tentou adivinhar o que sentia, mas Amélia posicionara-se de perfil, o rosto fechado como uma estátua. Era impossível perceber o que lhe ia na cabeça.
Os dois recém-chegados chegaram ao altar e o juiz entregou Joana a Luís. Os noivos e os padrinhos de casamento, o juiz Brandão e a tia Maria, voltaram-se para o pároco, um homem magro já curvado pela idade, e a cerimónia começou.
"Deus criou o ser humano varão e mulher", disse o padre, a voz fraca e sibilante. "Deus abençoou-os dizendo-lhes: crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra. Foi nesse instante que o Senhor instituiu os sagrados laços do matrimónio. E é por isso, meus filhos, que nos reunimos hoje, nesta sagrada Igreja Matriz de São Martinho, para celebrar a união destes dois filhos de Deus, Joana Maria Rodrigues Campos e Luís António Afonso. Deus, que é amor e criou o homem por amor, chama-o agora a amar." Apontou o dedo aos noivos.
"Jesus disse: serão dois numa só carne. Que seja feita a Sua vontade."
"Ámen!", responderam os fiéis em coro.
A cerimónia prolongou-se por uma hora, com os salmos, as leituras, as orações e o sermão. Luís tinha os pés gelados sobre a pedra fria, mas sentia-se anestesiado, quase imune ao desconforto. Passou a cerimónia como se não fosse ele quem ali estava, como se fosse testemunha e não protagonista, como se o espírito se tivesse erguido do corpo e tudo observasse com alheamento.
Os minutos eternizavam-se e no meio do torpor que o invadira ouviu o padre mencionar o nome de Joana e viu-a responder "sim" sem quase entender o significado da palavra.
O estado beatífico de letárgico desprendimento só se esfumou quando, sem perceber como nem porquê, deu consigo no momento mais importante, o instante em que o padre se voltou para ele e lhe fez a mesma pergunta, aquela que todos tinham vindo à igreja ouvir.
"Luís António Afonso", interpelou-o o padre com solenidade, a voz a ganhar a força que até aí não tivera. "Aceitas Joana para amar e acarinhar, para honrar e confortar, na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, até que a morte vos separe?"
O noivo arregalou os olhos, horrorizado, subitamente desperto, sem saber o que fazer, incapaz de se decidir, vacilante, interrogando-se sobre como fora possível ter chegado àquele ponto, àquela pergunta, àquela resposta.
"Sim."
Como se não passasse de um mero espectador, observou a sua própria boca murmurar o "sim"
final como se tivesse vida própria. Parecia que naquele momento a mente alijara responsabilidades e atirara para o corpo o encargo de enunciar os votos matrimoniais; a razão sujeitara-se ao que o coração ainda não aceitara.
"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, declaro--vos marido e mulher."
A fórmula pareceu materializar-se do nada e atingiu-o como um soco no estômago. Estava casado, e não era com Amélia! Pior, Amélia encontrava-se algures lá atrás e assistia a tudo. Como num sonho, o corpo sempre a comportar-se com o automatismo de uma coreografia muito ensaiada, pôs o anel de ouro no dedo de Joana, deixou que ela lhe fizesse o mesmo, afastou o véu de renda branca que ocultava os olhos da mulher e colou-lhe nos lábios um beijo casto e seco.
Foi animada a festa no Café Lima, o estabelecimento da Praça Municipal reservado nesse dia para os convidados dos noivos. Um pianista dedilhava com entusiasmo as canções do momento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos comensais. Um grupo abrira alas e observava os casalinhos a rodopiarem ao ritmo alegre da música, enquanto outros iam petiscando os rissóis, os pastéis de bacalhau, as pernas de frango e os mais diversos aperitivos colocados nos pratinhos ao longo da mesa junto à parede do fundo.
Por várias vezes Luís buscou Amélia com os olhos, mas ela parecia evitá-lo; olhava para aqui e para ali, conversava com este e aquele, observava o pianista ou espreitava um casal a dançar, mas nem uma vez se voltou para o antigo namorado. Inquieto e irrequieto, Luís procurava-lhe um olhar de perdão, uma expressão de compreensão, um gesto de que nada mudara, mas dela apenas extraiu um rosto vazio, uma postura de alheamento, um desinteresse que o magoava. Como podia Amélia mostrar-se tão desapegada? Seria possível que ela já lhe fosse de tal modo distante que assistir ao seu casamento lhe tivesse sido totalmente indiferente?
"Em que pensas, querido?"
A voz fê-lo voltar a si.
"O quê?"
Era Joana, que se sentara ao seu lado e lhe agarrava o braço, terna e calorosa.
"Pareces ter um ar perdido. Estás bem?"
"Ah, sim. Estou bem, claro. Apenas um pouco cansado."
"Espero que não demasiado", adiantou ela, de imediato baixando os olhos e corando.
Admirado com o comentário, Luís olhou-a interrogativamente. Não a imaginava uma criatura com desejos; sempre a vira pura e virginal, talvez porque desde que a conhecera que a encarava como uma nova versão de Amélia. A constatação de que havia carne naquela fêmea despertou-lhe uma inesperada volúpia nas estranhas. A última vez que tivera uma mulher fora em Lisboa. Era verdade que o jantar da véspera e o reencontro com Amélia lhe tinham mostrado que continuava a amar a antiga namorada, mas, que diabo!, ele era homem e um homem era um homem. O
casamento até podia ter sido um disparate e talvez jamais conseguisse superar a paixão por Amélia, mas, se não podia ter o futuro que desejava, podia pelo menos aproveitar o que havia e o que havia era a certeza de que nessa noite ia possuir uma mulher bonita.
Inclinou-se para Joana e beijou-lhe a face.
"Fica descansada", sussurrou. "Vais descobrir que casaste com um touro."
As prendas amontoavam-se a um canto do café, onde o par recém-casado ia deixando os pacotes depois de os receber dos convidados. Estes iam já saindo. A festa fora longa e estava na hora de voltarem para casa. Foi nessa altura que dona Maria decidiu aproximar-se. A tia e madrinha de casamento de Luís vinha com um pequeno embrulho nas mãos, mas não deixou que o sobrinho pegasse nele.
"Isto não é contigo", disse, puxando Joana para um canto. Depois de se certificar de que a atenção de Luís se desviara para outro lado, entregou o embrulho à noiva. "Toma, minha linda. Já te deixei ali umas porcelanas para a vossa casa, mas este é o meu presente de casamento apenas para ti. Espero que gostes."
Joana agarrou o pequeno embrulho e desfez o papel, revelando o objecto que o invólucro adornava.
"Um livro?"
"Não é um livro qualquer", disse a tia Maria, apontando para o título que encaixava o desenho de uma flor branca. "É o Livro das Noivas. Conheces?"
Joana analisou a capa, como se avaliasse o presente.
"Não."
"Foi-me mandado pela tia Paz, do Brasil. Ela disse que é muito bom."
"Ai sim?"
A tia Maria esfregou com os dedos uma rendinha da manga do vestido da noiva.
"Tiveste algum manual a preparar-te para o casamento?"
Joana encolheu os ombros.
"Não... quer dizer, apenas consultei um livro de ménage da condessa de Bassanville."
"É pouco", considerou a tia, batendo com o dedo na capa do livro que acabara de oferecer.
"Considerando que já não tens cá a tua mãe para te aconselhar, esta pode muito bem vir a ser a tua melhor prenda de casamento."
"Ah, muito obrigada."
"Não é para agradecer, é para ler. Este livro pode ser-te muito útil, minha linda. Lembra-te que uma mulher não se deve resignar a ser um objecto de luxo na casa, uma espécie de adorno. Deve ser alguém que ajuda o marido a enfrentar a vida. O Livro das Noivas explica-te como fazer isso."
Pegou no livro e abriu uma das páginas iniciais. "Ora vê o que diz aqui: «Rodeia-o sempre de respeito, de affecto, de dignidade; que o nome d'elle seja para ti um nome puro onde não possa cahir mácula.»"
A rapariga sorriu, condescendente.
"Este livro ensina-me a amar o Luís? Mas eu já o amo..."
"Não, filha. Uma coisa é o amor de namorados, que não se conhecem e se idealizam à distância; outra coisa é a vida
conjugal. O que o livro te ensina é a viver o dia-a-dia com o teu marido."
"Não estou a entender..."
A tia Maria folheou a obra e mostrou um capítulo intitulado "A roupa branca".
"Estás a ver? Como devemos arranjar a roupa? Como conseguir que o linho e o morim cheirem a flores? Como deve ser feita a entrega da roupa às lavadeiras? O livro tem todas as respostas."
Apontou para o parágrafo final do capítulo. "«É na roupa branca», diz aqui, «que mais limpidamente se espelha a bôa administração de uma dona de casa.»"
Joana pegou no livro.
"Ah, muito bem. Realmente, parece útil."
"No Brasil, escreveú-me a tia Paz, está toda a gente a ler este manual. Ele ensina a tratar do marido ou de um filho quando um deles está doente e até mostra como separar os bons livros dos livros nocivos na biblioteca doméstica."
"Quais livros nocivos?"
A tia Maria indicou a sua prenda.
"Bem... é só leres, está tudo aí. Um livro nocivo é um livro que conta histórias pouco morais ou que estragam o bom gosto. As nossas leituras têm de ser sadias, não achas?"
"Com certeza, não há dúvida nenhuma."
"Pois essa é uma leitura sadia, minha filha. Podes ter a certeza. O Livro das Noivas ensina-te a escolher as melhores leituras, a apreciar a boa arte, a saber estar num baile, a escolher as jóias para as ocasiões, a lidar com os pobres e a ser caridosa... enfim, uma série de coisas." Pegou de novo no livro. "Tem aqui algo que me parece muito importante, deixa ca ver." Folheou a obra, à procura do extracto certo. "Aqui está: «Minhas amigas, não vos esqueçaes de que o homem é egoísta e auctoritário e de que para fazêl-o feliz, como vos
cumpre, tendes de renunciar ao doce ócio em que o vosso pensamento se balança e têl-o sempre vigilante e activo.»"
"Oh, o Luís não precisa de cuidados."
Uma voz interrompeu-as.
"Então, Joana? Vamos embora?"
Era Luís que a chamava.
"Já vou, querido." Joana voltou-se para dona Maria. "Tenho ir. Vamos agora para casa."
"Dizes tu que o Luís é diferente?"
"Tenho a certeza", confirmou ela, começando a empilhar todos os presentes numa cesta, para levar para casa. "Egoísta é coisa que ele não é, pode estar certa."
A tia Maria ergueu o dedo justiceiro.
"Isso é o que tu pensas, minha querida", sentenciou. "Não te esqueças do que eu te digo: o meu sobrinho é um homem e os homens são todos iguais."
"Oh, tia, que exagero! Francamente!"
"Eles só pensam neles próprios."
A imagem que o espelho reflectia mostrava-lhe que estava um brinco. Joana ajeitou apenas a alça da camisinha de dormir e suspirou, feliz. Passara o último mês a preparar ao pormenor a toilette da noite de núpcias, bordando com esmerado primor toda a camisinha de dormir. Tinha dado um trabalhão, pensou, mas valera a pena. Não havia qualquer dúvida de que o seu corpo resplandecia sob aquela requintada camisinha bordada, cheia de arremates, nozinhos franceses, pontos margarida e pontos atrás, todos devidamente alinhados, as linhas bem arrematadas e sem criar sombras, o richelieu em linho fino...
"Então, Joana?"
A voz de Luís vinha do quarto e trazia um timbre de impaciente expectativa.
"Já vai, já vai!", retorquiu ela.
Contemplou-se uma última vez ao espelho, admirando a perfeição que lhe cobria o corpo. Que trabalho aquilo lhe dera! Só aquele pormenor do nozinho francês, por exemplo. O cuidado que tivera ao colocar a agulha na frente da linha e ao dar uma volta com ela em torno da agulha; ou ao segurar as laçadas junto ao tecido até a puxar toda para baixo; ou ao escolher o ponto de entrada da agulha no tecido assim tão próximo do ponto de saída. Realmente, estava um primor! E o arremate?
Sim, o que dizer daquele arremate, valha-me Deus? Tivera de passar a linha por dentro de vários pontos, no avesso do tecido, para conseguir tal efeito! E depois ainda passou a trama na diagonal, de modo a obter um avesso perfeito! Jesus, o labor que tinha sido para obter tamanho requinte nos pormenores! Fora um mês daquilo, um mês de tortura às voltas com as agulhas, com as linhas e com todos os nós e pontos, mas... Virgem Maria, valera a pena!
Virou as costas e, vaidosa, lançou um derradeiro olhar apreciativo ao espelho.
Ah, estava mesmo um primor!
Saiu enfim do quarto de banho, resplandecendo como nunca na sua vida. Que lindo! Não tinha dúvidas de que Luís ficaria embasbacado. A riqueza dos pormenores e o esmero do trabalho eram de um chie verdadeiramente de arrasar.
Deslizou pelo quarto e, a transbordar de felicidade, deu dois passos e rodopiou diante do marido, como uma bailarina, exibindo no corpo aquela perfeição da arte de bordar.
"Estou linda?", perguntou.
Luís admirou-a por um breve segundo.
"Perfeita."
Acto contínuo, agarrou-se a ela e, com um movimento brusco e esfaimado, puxou-lhe o delicado vestido de noite,
rasgando-o brutalmente pelas bordas, e atirou-o para o canto do quarto.
O segundo choque veio pouco depois. Ainda combalida com a indiferença do marido pela sua obra-prima, Joana depressa se confrontou com outro problema de grande magnitude. Apesar da ânsia com que ele a envolvera nos seus braços, minutos mais tarde tornou-se penosamente claro que, por algum motivo, Luís não conseguia erguer a sua masculinidade. Persistiram ambos nos abraços e nos beijos ainda durante algum tempo, até não mais ser possível fingir que o que se estava a passar não se estava a passar.
"Eu... não sei o que tenho", balbuciou Luís, embaraçado com o que lhe sucedia, logo a ele que ainda horas antes se gabara de ser um verdadeiro touro. "Isto não... não..."
"Oh, deixa estar", murmurou ela, esforçando-se por esconder a decepção. "Não faz mal."
"Faz, sim", cortou ele, quase zangado. "Não sei o que se passa, isto nunca... enfim, não percebo."
Joana passou-lhe a mão pelo cabelo e acariciou-lhe o rosto, tentando tranquilizá-lo.
"Pronto, tem calma. Estamos um pouco nervosos, só isso." Inclinou a cabeça em direcção à porta. "Porque não vais comer alguma coisa? Vais ver que... que ficas logo melhor."
Ansiando por uma pausa, Luís aceitou a sugestão e foi à cozinha. Era a primeira vez que bloqueava no momento da verdade diante de uma mulher e, ou se enganava muito, ou sabia muito bem qual a origem do problema. Amélia! Só podia ser Amélia! O reencontro da véspera reacendera-lhe a paixão que nunca verdadeiramente se apagara; sabia agora que apenas ardera em lume brando durante os anos em que a julgara perdida. Mas só o acto de a ver já exercera um
poderoso efeito sobre ele. Tinha consciência de que, por mais que tentasse iludir-se, ele era dela e só a ela pertencia. Até o seu corpo parecia revoltar-se perante a imposição de uma outra mulher.
Confiando nos poderes da fruta bíblica, trincou uma maçã. Se a maçã conduzira Adão ao pecado, quem sabe se não poderia fazer o mesmo por ele. Mastigou a peça de fruta com vagar calculado e quando acabou regressou ao quarto e deslizou por entre os lençóis para junto do corpo quente e palpitante de Joana. Tocaram-se e abraçaram-se. Por entre os beijos e as carícias, a virilidade reapossou-se do seu corpo e com ela tomou posse do corpo da mulher.
Amaram-se com abandono, os olhos fechados e os corpos entregues à orgia das sensações. O
que Joana não sabia é que Luís cerrara os olhos para se imaginar com Amélia e que foi com Amélia que ele nessa noite verdadeiramente fez amor.