II

Os enjoos de Joana começaram ao segundo dia de 1939. Viviam nessa altura numa velha casa rústica de dois andares, erguida com blocos de xisto e coberta de colmo. Em cima existia um quarto, uma sala e a cozinha, onde o escano servia de assento e mesa; em baixo ficava a adega, o cortelho dos porcos e o celeiro, vazio pois o casal não planeava dedicar-se à agricultura.

Nessa tarde fria de Janeiro, Luís chegou a casa e deu com a mulher estendida no sofá, pálida como leite, um lenço amarelo pousado na cabeça, as cortinas fechadas para a protegerem da luz.

"Joana, o que tens tu?", perguntou ele, preocupado.

"Nada, nada."

Luís aproximou-se e ajoelhou-se diante do sofá, a mão a acariciar a fronte da mulher.

"Nada, não. Pareces debilitada."


"Não é nada, já te disse. São só uns enjoos."

"Uns enjoos? Que tipo de enjoos?"

"Sei lá! São uns enjoos. Sinto-me infareada. Deixa-me estar aqui, não me arrelies. Eu já me ponho boa."

Luís afagou o queixo e observou-a, pensativo. Os olhos desceram-lhe do rosto para os seios, avaliando-os, e depois mais para baixo.

"Estarás grávida?"

A hipótese fez Joana abraçar o ventre num gesto instintivo de protecção.

"Tu achas, Luís?", perguntou.

Fitaram-se mutuamente, esperando contra a esperança.

"Bem... os enjoos são um sintoma de gravidez." Baixou o olhar de novo para o ventre dela e assumiu uma expressão interrogativa. "Há quanto tempo não... enfim..."

"Há dois meses. Mas isso não quer dizer nada, sabes que eu sou muito irregular."

O marido ergueu-se e deu-lhe a mão.

"Anda, vamos ao Fernando."

O veterinário ajudou a mulher a descer as escadas de pedra e acomodou-a entre almofadas e uma grossa manta na carroça que guardava à porta do celeiro. Foi buscar Relâmpago, o cavalo que o capitão Branco arranjara maneira de lhe ser vendido, e atrelou-o à carroça.

Com dois estalidos e um "uga!" veemente, convenceu o belo cavalo a pôr-se em marcha e a carroça começou a rodar aos solavancos pelo caminho de pedras e poças e lama. Já daquela forma tinha por várias vezes percorrido a estrada sinuosa que bordejava as margens escarpadas do Baceiro e do Tuela, atravessando os prados alcatifados de verdura entre Vinhais e Bragança para transportar animais doentes ou rações especiais. Dessa vez, porém, a carga era a própria mulher e o filho que talvez ela lhe trouxesse.

O delegado de saúde preparava-se para sair do hospital civil quando Relâmpago se imobilizou à porta das urgências e Luís saltou da carroça.

"Olá, Fernando, dás-me aqui uma ajudinha?"

"O que se passa?"

O veterinário dirigiu-se para a traseira da carroça.

"É a Joana", disse, estendendo o braço para ajudar a mulher a descer. "Acho que está grávida."

O doutor Fernando Leite era o seu velho amigo da Escola Superior de Veterinária. Depois de terminar o curso de Veterinária havia concluído que o que queria mesmo era ser médico, pelo que pedira equivalências e terminara Medicina no Porto. Uma vez completado o curso, fora de imediato colocado como delegado de saúde de Vinhais, uma terriola acima de Bragança, perto da fronteira galega, onde viera encontrar Luís, que tinha ido ocupar o lugar de veterinário quando ali chegara três anos antes, vindo de Penafiel.

O médico conduziu o casal pelos corredores ainda a cheirarem a novo do hospital acabado de construir, sempre a espreitar a paciente pelo canto do olho.

"É verdade que o senhor doutor se vai embora no final do ano?", perguntou Joana, que não se habituara a tratar o velho amigo do marido por tu nem pelo nome próprio.

"Verdadíssimo!", retorquiu o médico. "Fui promovido e vou dirigir o Hospital de Bragança."

"Isso é que é uma ascensão rápida", observou Luís. "Já viste, Fernando? Terminaste o curso há dois anos, foste colocado aqui em Vinhais e... pimba!, já estás de malas aviadas para ser director de um hospital!"

"Tens razão, tenho sorte."

"Sorte?", exclamou Joana. "Isto é um azar, senhor doutor!"

"Não diga isso! Ser director do Hospital de Bragança é uma grande honra..."

"Pois sim, mas quem me fará o parto?"

"Calma", pediu Fernando, forçando um sorriso. "Cada coisa a seu tempo. Primeiro temos de ver se está mesmo grávida. Não devemos vender a pele do urso antes de o termos morto."

O médico levou-os ao seu gabinete, um compartimento arejado com janelas em duas paredes e um cartaz pregado atrás da secretária a exibir o interior do corpo humano. Deitou Joana numa marquesa e auscultou-lhe o ventre. Efectuou ainda mais alguns testes antes de a mandar erguer-se e convidá-los a sentarem-se diante da sua secretária.

"É como eu pensava", avisou. "Falso alarme."

Um esgar de decepção perpassou pelos dois rostos que fitavam o delegado de saúde.

"A Joana não está grávida?"

"Lamento muito."

Luís encostou-se à cadeira e deixou cair a cabeça para trás, desanimado.

"Oh, não."

"Eu sei que vocês têm tentado ter filhos", disse Fernando. "Mas mantenho o diagnóstico que fiz no ano passado. A Joana tem um problema que a impede de conceber."

"E não há nada que possamos fazer?"

"Nada."

A súbita saída de Penafiel convencera Luís de que era altura de dar um novo rumo à sua vida.

Amélia estava-lhe entranhada na carne, mas, se não podia tê-la, tentaria esquecê-la. A melhor rota de fuga pareceu-lhe ser Joana, pelo que decidira investir no casamento. Tinha deixado de acreditar nele antes mesmo de dizer "sim", devido ao inesperado reencontro com a sua velha paixão do liceu. Mas as coisas haviam mudado de novo. Precisava de apagar Amélia da memória e Joana teria de ser a borracha.

Tentaram gerar filhos, na esperança de que as crianças lhes trouxessem a alegria que manifestamente lhes faltava. Passavam manhãs inteiras entre os lençóis e chegaram a tomar as mais variadas mezinhas, umas para o dotarem de força, outras para a tornarem mais fértil, mas, por mais que se esforçassem, não havia modo de conseguirem resultados. Joana não emprenhava.

O diagnóstico do delegado de saúde tinha, por isso, a ressonância de uma sentença.


Tentaram e não conseguiram. Aquela manhã de enjoos foi a última de esperanças e a primeira de certezas. Não haveria filhos. Sem eles e sem Amélia, a vida de Luís parecia decorrer num deserto, sem rumo nem sentido, entregue ao mero desfiar vagabundo dos dias.

Em busca de um propósito que o guiasse na vida, o novo veterinário da vila entregou-se então com abandono à natureza. Começou a deambular durante horas com Relâmpago pelo Parque de Montezinho, como se procurasse na floresta o propósito que lhe faltava entre os homens. Tinha ali a ilusão de um retorno à pureza inicial da condição humana.

Sempre que deambulava pelo bosque enchia os pulmões com o ar puro e perfumado dos carvalhos, dos pinheiros, dos freixos e dos vidoeiros que cobriam o horizonte de verde, e mergulhava no terreno xistoso do vasto e sereno parque, onde as urzes e giestas do cume das serras eram rasgadas por vales atravessados pelos rios, sinuosos e agitados, que traçavam sulcos por entre salgueiros e amieiros, cursos de água frios e transparentes que ia percorrendo com a sua montada em busca do sabor límpido e revigorante do Rabaçal ou do Tuela.

Descobriu que o local era perfeito para quem dedicava a vida aos animais. Nos seus longos passeios pela floresta, Luís deparou-se amiúde com a vida selvagem que ela ocultava. Por entre os ramos de um carvalho situado a meia encosta detectou um ninho de águias-reais e passou a incluir o local no seu roteiro semanal. Vezes sem conta viu o caminho ser cruzado por lebres, veados, javalis e corços; junto aos riachos encontrou lontras, martas, toupeiras de água e até uma víbora cornuda que enervou Relâmpago.

A floresta derramava uma vitalidade serena, como a de uma besta adormecida, traiçoeira ao despertar. Luís descobriu-o quando, certa vez, desmontou junto ao rio Baceiro e se deparou com uma alcateia de lobos ibéricos, de pêlo castanho-avermelhado e ferozes pupilas oblíquas. Ao ver os lobos, Relâmpago assustou-se, empinou o corpo, apoiando-o sobre as patas traseiras enquanto relinchava de pavor, e deu meia volta, fazendo tenção de fugir a galope. Luís conseguiu segurar a correia do cavalo e prendê-la a um salgueiro o tempo suficiente para montar o animal. Tudo isto se revelara, porém, desnecessário, uma vez que os lobos tinham passado ao largo e ignorado as presas potenciais; ou a fome não era muita ou Luís lhes parecera temível.

III

O tenente Gutierrez apareceu numa camioneta, cinco dias depois da solitária passagem do ano na ponte sobre o Segre, e fez sinal aos dois legionários de que montassem na carga.

"Vamonos", gritou.

Francisco e Juanito pegaram na mochila e nas armas e aproximaram-se da camioneta.

"Vamos embora?"

"Si."


"E quem nos vem substituir, meu tenente?"

"Ninguém."

"Ninguém como? Fica a ponte abandonada?"

"Já não é preciso guardá-la", devolveu o oficial com um sorriso. "Tomámos Borjas Blancas e os rojos estão em debandada. Vamonos!"

Chegaram perto da nova zona da frente ao fim da manhã. A estrada enchera-se de refugiados.

Eram velhos, mulheres e crianças que passavam para cá envoltos em trapos andrajosos, de ar abatido, o corpo extenuado, carregando as roupas e móveis e comida em carroças e mulas e muares; tudo o que tinham podido tirar de casa fora, na urgência da partida, embrulhado em lençóis e cobertores, e era com os poucos haveres que lhe restavam que aquela massa humana, curvada e miserável, se arrastava penosamente ao longo da estrada lamacenta.

Atrás das filas de gente, as colunas de fumo riscavam o horizonte como vulcões activos, os fios negros de fuligem a ziguezaguearem na vertical até se fundirem no tecto branco--cinza das nuvens; ouviam-se detonações longínquas, o tique-taque remoto do tricotar das metralhadoras, os estampidos fracos do ocasional tiroteio, o enervante zumbido dos aviões no seu bailado celeste.

Eram as notas da estranha sinfonia dos homens em fúria, a raivosa cacofonia de morte e destruição que abalava aquele dia cinzento e triste de Inverno na Catalunha.

Passaram pelos escombros de Borjas Blancas, a povoação totalmente devastada pelos combates dos últimos dias; viam-se paredes retalhadas, telhados derrubados, crateras cavadas na rua, automóveis carbonizados. Cruzaram em silêncio o casario esventrado e seguiram em frente, na direcção de Castellnou de Seana. Juntaram-se a mais colunas; havia legionários e regulares a marchar na estrada ou transportados em camiões, alguns a cantar, a maior parte a dormitar.

Francisco inclinou-se na borda da carga da camioneta, a cabeça quase a entrar pela janela lateral dianteira, e espreitou o tenente Gutierrez.

"Meu tenente, fomos nós quem tomou isto?"

"Claro."

"A VII Bandera?"

"Não, não foi a Legião, hombre. Foram as Flechas."


"Os Italianos?"

O tenente fez um trejeito irritado.

"Italianos e Espanhóis, hombre." Abanou a mão, como quem não está com disposição para conversar. "Agora vá, não me incomodes."

Francisco endireitou-se na carga. As Flechas Negras, as Flechas Azuis e as Flechas Verdes eram divisões italianas, embora incluíssem soldados espanhóis enquadrados por oficiais italianos, facto que as forças nacionalistas, embaladas na rivalidade entre tropas de nacionalidades diferentes, não se cansavam de sublinhar sempre que as Flechas registavam um êxito.

"Porra", praguejou o português, olhando para Juanito. "Agora são os italianos quem combate."

"Joder."

Francisco fungou e cuspiu para a margem da estrada.

"Já não confiam na Legião, caraças. Tudo por causa destes putos novos, uns pandeiros a combater. Com uns mariconços assim, já ninguém quer a Legião para a porrada."

"Isto já não é o que era, caray!"

"Lembras-te do assalto a Badajoz? Ah, aquilo é que foi uma coisa em grande, hem? A malta a carregar a peito descoberto sobre a porta da Trinidad sob uma chuva de balas."

Suspirou. "Estes maricas que agora andam na Legião não têm tomates para fazer uma coisa dessas, caraças. Até já precisamos dos macarrões para nos ajudarem..."

"Que importa!", devolveu Juanito. "Já estou farto disto..."

"Não interessa! A Legião é a Legião! Nós somos os piores gajos que por aqui andam, ouviste? Não há tipos mais maus nem mais brutos do que nós, porra! Se estes putos novos, estes meninos da mamã, se eles não arreganham as beiças e mostram os dentes, qualquer dia as pessoas cruzam-se com um

legionário na rua e... e não se borram de medo!" Deu uma palmada no joelho. "Porra, isso não pode ser!" "Cofio! Estás cada vez mais louco, Paço!" "Não me chames Paço. Estou a avisar-te..."

O tenente Gutierrez largou-os perto de Bellpuig, onde se juntaram à sua unidade. Decorriam os preparativos para o ataque à povoação e era preciso o apoio das metralhadoras.

Francisco foi destacado para um campo de milho, onde alguns milicianos se tinham entrincheirado para travar o avanço dos nacionalistas. O português passou a tarde toda a metralhar os redutos republicanos cavados na terra, mas, ao anoitecer, e depois de uma carga dos legionários, os combates cessaram. Os milicianos sobreviventes foram arrebanhados e atirados para o curral de uma casa de campo das redondezas, tendo Francisco recebido ordens para os guardar.

Ali ficou para além do crepúsculo. Já noite cerrada, viu um vulto aproximar-se com uma lanterna na mão. Pegou na Mauser de sentinela e apontou-a à figura sombria.

"Alto! Quem vem lá?"

"Soy yo, hombre."

O clarão da lanterna deixou-lhe adivinhar o rosto macilento do oficial que nessa manhã o fora buscar à ponte do rio Segre.

"Ah, meu tenente!"

Endireitou-se e fez continência. O tenente Gutierrez cum-primentou-o com um aceno da cabeça e olhou para a porta do curral.

"Bueno, vou fazer a triagem."

"Sim, meu tenente", devolveu Francisco, destrancando o ferrolho e abrindo a porta.

O oficial fez menção de entrar, mas hesitou e parou. Inclinou-se para o lado e murmurou à sentinela portuguesa.

"Prepara-te, hem?"


"Preparo-me para quê, meu tenente?"

"Vou identificar os patriotas que foram obrigados a lutar pelos rojos e os duvidosos. Os outros ficam contigo, entendes?"

"Ficam aqui no curral?"

"Sim, bombre. Para tratares deles."

"Ah." Fez um ar intrigado. "E o que devo fazer com eles, meu tenente?"

"Ora, ora", riu-se Gutierrez. "Fuzila-os, claro."

O oficial deu-lhe uma palmada nas costas, virou a lanterna para a frente e entrou-no curral.

Por mais que Francisco se admirasse, a verdade é que não foi chamado a participar em nenhuma grande batalha no avanço das colunas nacionalistas pela Catalunha. Tudo o que encontrava pela frente não passava de escaramuças, recontros na estrada ou no campo, operações de limpeza, bombardeamentos de povoações, tiroteios esporádicos e assaltos de baioneta a pequenos redutos de milicianos.

"Já viste isto?", chegou a dizer a Juanito quando as operações se aproximaram de Bellpuig.

"Ainda não nos chamaram para fazer nada de jeito!"

"Mejor ast, no?"

"É melhor para maricôncios como tu, porra. Eu cá aborreço-me de morte."

Francisco limpava a sua velha Hotcbkiss; o óleo faltava-lhe e recorria agora à sua própria saliva.

"Para que andas tu sempre a limpar a ametralladora, bombre?"

"Ora! Para estar operacional."

"Mas tu próprio o disseste: já não nos metem em grandes operações."

O rosto do brutamontes português abriu-se num sorriso grotesco e os olhos cintilaram-lhe.

"Há sempre os fuzilamentos."

Em poucos dias os legionários ultrapassaram Bellpuig e chegaram a Montblanc, cruzaram o rio Ebro e entraram em Tarragona, tocando no Mediterrâneo. Não havia dúvidas, a resistência republicana desmoronava-se como um baralho de cartas; bastavam pequenos empurrões e era logo desbaratada.

Uma das grandes vantagens destes avanços, na perspectiva de Francisco, era o acesso a mulheres novas; havia muitas viúvas de rojos por toda a parte. Mas já nem estas violações, a que antes se dedicava com afinco nas pausas dos combates, o satisfaziam.

A culpa era de Rosa.

Durante um ano, o português habituara-se a possuir à força as namoradas e mulheres dos republicanos presos ou abatidos, até ao dia em que, em Getafe, nos arredores de Madrid, se cruzou com Rosa Fuentes, uma mulher morena e roliça, na casa dos vinte anos, viúva de um operário fuzilado três meses antes por milicianos da Falange. Francisco apanhou-a na rua, à noite, e arrastou-a à força para o seu boleto, onde a violou da forma habitual, com ameaças e estaladas, a receita do costume para as amansar e fazer cooperar.

Na noite seguinte, porém, quando regressava do turno, o legionário deu com a mesma mulher à sua espera à porta da casinha do boleto.

"Então?", admirou-se. "Não te chegou ontem?"

A mulher baixou a cabeça e quase fez beicinho.

"Não sejas bruto."

Francisco riu-se.

"Está bem, podes ficar descansada que hoje não me apetece nova dose. Mas, diz-me, o que estás aqui a fazer?"

"Chamo-me Rosa."

"Hmm... Rosa, é? O que estás aqui a fazer, Rosa?"

Ela soergueu os olhos e mirou-o com uma expressão de desafio.

"Não me queres?"

Francisco hesitou, surpreendido, mas apenas por um instante. Julgando compreender, soltou uma gargalhada.

"Precisas de dinheiro?" Abanou a cabeça. "Estás com azar, espanholita. Já te disse que hoje não estou para aí virado, venho muito cansado. Além do mais, já não pago por mulheres, sabes? Pego no que há por aí e sirvo-me."

Rosa fez um ar ofendido.

"Quem te falou em dinheiro? Achas que sou alguma puta?"

O português hesitou, desconcertado.

"Não queres dinheiro? Então o que queres tu?"

Rosa deixou a pergunta pairar no ar por momentos, como se esperasse que o silêncio respondesse por ela. Mas, pela cara de Francisco, era evidente que ele não tinha entendido, tornava-se necessário explicar-lho.

"Não me desejas?", insistiu, quase num sussurro inaudível.

"Desculpa?"

Ela endireitou o rosto bolachudo e cravou os olhos nele.

"Escolhi-te a ti, tonto."

Foi a primeira mulher que se entregou a Francisco de livre vontade. Até ali, o legionário habituara-se a pagar pelo sexo ou a forçar a mulher de um rojo que por azar se cruzasse com ele na fua. Nunca lhe tinha ocorrido que havia mulheres que se lhe

poderiam oferecer voluntariamente. Sabia que algumas o faziam, claro; tinha o exemplo de Amélia em relação a Luís, mas acreditava que só o faziam aos outros, não a ele. Não imaginava que o pudessem fazer a ele, que se oferecessem a ele, a ele, a ele que era tão feio e tão bruto e tão mau, a ele, o enjeitado, a besta, o gorila. O monstro.

E, no entanto, ali estava ela, a ardente Rosa Fuentes, abraçando-o com intensidade, acariciando-lhe as costas, bei-jando-lhe os lábios, digladiando-se com a língua, abrindo-lhe o calor do ventre, mergulhando a boca na sua erecção, cheia de iniciativa, submetendo-se-lhe com prazer, suspirando e gemendo, soltando ais e obscenidades em castelhano, vagindo descontroladamente no auge da entrega.


Com o tempo foi-se habituando a Rosa. A espanhola instalou-se no seu quarto de Getafe e tratou dele. Limpava-lhe a roupa, arrumava-lhe o quarto, preparava-lhe uma paella ou um pollo frito; não era boa cozinheira, é certo, ora ali estava um ponto em que as portuguesas batiam qualquer espanhola; mas, para quem se habituara ao insonso rancho da Legião, aquelas paellas de Rosa sabiam-lhe a cozido à portuguesa, aqueles pollos fritos equiparavam-se às melhores feijoadas que comera em Trás-os-Montes.

De modo que, assim amancebado, passou a violar menos viúvas de rojos e, nas raras vezes que o fazia, algo que só acontecia quando se cruzava com o que designava por "gado de primeira qualidade", já não as arrastava para o boleto, onde Rosa o esperava agora, mas tinha o cuidado elementar de resolver o assunto no pinhal mais próximo.

Não encontrou em Tarragona mulher que o satisfizesse. Violou duas, é verdade, mas, depois da experiência de Rosa, as coisas deixaram de ser iguais. Francisco constatou que o sexo forçado não era a mesma coisa, mesmo que a mulher

fosse mais desejável, mais voluptuosa do que Rosa. Começou a sentir falta das carícias voluntárias, dos beijos apaixonados, dos suspiros e dos gemidos, dos gritos e dos abraços, dos arranhões; em suma, começou a sentir a falta de Rosa. Nunca imaginara que alguma vez pudesse ter saudades de uma mulher, para além da mãe que o acolhera em Bragança; no entanto, ali estava ele, dois meses volvidos, sessenta dias depois de ter deixado Rosa em Getafe para partir em direcção à Catalunha, ali estava ele a suspirar pela sua Rosa, a roliça, inflamada, fogosa Rosa.

Passou a ter pressa, a desejar que a campanha terminasse depressa, que os comunistas enfrentassem já a derrota e que em breve lhe fosse concedida autorização para regressar a Madrid, a Getafe, aos braços quentes e impetuosos da mulher ardente que deixara para trás.

"Já estou como tu", acabou por confessar a Juanito. "Tomara que esta merda acabe num instante.

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