IX

O vulto procurou esgueirar-se por entre os fiéis, mas era demasiado corpulento para ser capaz de efectuar movimentos ágeis; parecia um gorila a tentar deambular por entre um canteiro de flores.

Apesar dos seus melhores esforços, a verdade é que Francisco Latino não conseguiu abrir caminho com a subtileza aconselhável, acabando por empurrar quase toda a gente que lhe apareceu pela frente. Ao cabo de alguns esforços falhados desistiu de tentar a delicadeza e assumiu-se como um paquiderme em progressão.

"Ai", gemeu uma senhora de negro que empurrara brutalmente pelas costas.

"Cuidado", implorou um velho, levando com um ombro maciço na cabeça.

"Credo!"

Alheio às queixas que ia deixando como um rasto, Francisco rompeu por entre os crentes que acompanhavam a missa em pé, numa das alas da grande Igreja do Sameiro, e só parou quando chegou aos bancos e ficou com a vista desimpedida para as primeiras filas. O padre fazia a homilia, a voz a ecoar cavada pelo santuário, e a atenção do intruso deslizou pelas cabeças alinhadas lado a lado até se fixar numa nuca que se encontrava a meio da terceira fila.

"Senhora", sussurrou.

A guerra civil tinha acabado e Francisco aproveitara uma licença na Legião e metera-se no comboio para visitar o seu país. Partira em segredo, nunca assumindo a sua verdadeira identidade; mantinha sempre presente que poderia ainda ser procurado pela justiça portuguesa e sabia que todo o cuidado era pouco. Além do mais, é preciso não o esquecer, Francisco Rodrigues morrera no momento em que se alistara na Legião; naquele momento chamava-se Francisco Latino e a última coisa que queria era ressuscitar o passado.

Nesta viagem da saudade, a sua prioridade era rever a família. Não se tratava, é certo, verdadeiramente de uma família. Francisco sabia que fora adoptado e apenas dona Beatriz o fizera sentir-se de facto desejado; não lhe dera educação, era uma realidade, mas talvez isso se devesse mais à natural relutância de Francisco em estudar do que à vontade da mãe adoptiva de usar os seus consideráveis músculos para a ajudar nos trabalhos pesados de casa ou da loja. Ou pelo menos era isso o que ele gostava de pensar.

Quando dona Beatriz morreu, o rapaz ficou entregue à irmã mais velha, apesar de a relação entre ambos nunca ter sido muito estreita. Beatriz era a sua verdadeira família, Amélia uma pobre substituta. Mas era o que tinha. À outra irmã, Joana, poucas vezes lhe pusera os olhos em cima, até porque a rapariga cedo fora para casa do padrinho e apenas após a morte da mãe se haviam aproximado, já em Penafiel.

Vendo Amélia sentada na terceira fila, Francisco suspirou. A irmã adoptiva não estava à altura de dona Beatriz, sabia-o. Mas era o mais próximo que tinha do conceito de família.

Como ele ansiava por uma família! Toda a sua infância se concentrava agora naquela mulher. Se ela o enjeitasse, nada mais lhe restaria no mundo.

Alheia aos olhos que a espreitavam lá atrás, Amélia virou a cara para a direita e inclinou-se para o lado, subitamente ocupada com algo que Francisco não descortinava no local onde se encontrava. Intrigado, mudou de posição e, já com um melhor ângulo de visão, percebeu que a irmã adoptiva ajeitava a roupa de uma criança muito pequena, devia ter uns dois anos. Pelos vistos, era um novo filho. Nos lugares ao lado dela sentavam-se as outras crianças, que ele já conhecia, embora estivessem agora maiores. As duas meninas pareciam--lhe diferentes, mais alongadas, mas conseguiu reconhecer António, o mais velho, já um rapazinho muito bem aperaltado, franzino e tenro. Um copinho de leite, pensou com um sorriso velhaco; não daria para legionário.

Quando a missa acabou e os fiéis dispersaram, Francisco seguiu a irmã a uma distância prudente na descida pelo jardim do Sameiro e só se deu a ver já a uns passos de casa dela.

"Senhora", chamou. "Senhora."

Amélia olhou para trás e quase se assustou ao reconhecê-lo.

"Chico!"

"Como está, senhora?"

A irmã olhou em redor, quase aflita, preocupada com a possibilidade de serem vistos.

Na verdade, muita gente olhava. A missa tinha acabado e a multidão descia ainda pela rua.

"O que estás aqui a fazer?" Deu meia volta e dirigiu-se apressadamente à porta de casa com a chave na mão. "Anda, vamos entrar."

Abriu a porta e quase empurrou Francisco para dentro. Depois ajudou os filhos e fechou a porta.

Já tranquilizada por estarem resguardados da curiosidade alheia, pousou os olhos no irmão adoptivo e estudou-o dos pés à cabeça.

"Meu Deus!", exclamou. "Estás ainda mais forte! Como é possível?" Abraçou-o. "Graças a Deus que te vejo de saúde. Tenho andado tão ralada, nem imaginas!" Afastou-se e olhou-o nos olhos, como se buscasse confirmação. "Estás bem, não estás?"

"Sim, senhora."

"Como... como tens feito tu para fugir à... enfim, tu sabes."

"Fui para Espanha, senhora. Tenho vivido em Espanha."

Amélia considerou a revelação por um instante e logo um sorriso se lhe desenhou nos lábios.

"Esperto", disse, colando-lhe o indicador à testa. "Afinal tu és esperto. Com que então em Espanha?" Riu-se. "Aí é que ninguém te encontra. Diabo do rapaz que me saiu mais esperto do que eu pensava. A mãe é que ficaria orgulhosa."

Ao ouvir a referência a dona Beatriz, o rosto duro de Francisco abriu-se num sorriso quase infantil.

"Pois, lá eles não me apanham."

"Mas tens vivido de quê? As coisas em Espanha não têm andado nada boas..."

"Fui para a tropa, senhora."

Amélia colou a mão à boca, quase assustada.

"Para a tropa? Estiveste na guerra?"

"Sim, senhora."

Ela voltou a examiná-lo de alto a baixo, desta vez à procura de alguma anomalia, de qualquer sinal de que estivesse estropiado, de algo que o denunciasse como eventual vítima.

"E... e estás bem? Não te aconteceu nada?"

Pousou a mão ao fundo das costas, indicando o local onde havia sido baleado em Badajoz.

"Fui atingido aqui na anca por duas balas. Mas não custou nada, agora estou bem."

"Ah, coitado! Foste ferido!"


"Sim, mas não há problema", insistiu ele. "Para matar um homem é preciso atingi-lo na cabeça.

Se for no corpo é mais difícil acabar com ele."

Amélia pegou Francisco pelo braço e puxou-o, encaminhando-se pelo corredor para as escadas.

"Dispenso esses pormenores", disse. "Anda daí, vem comer alguma coisa." Pegou no filho mais pequeno e puxou-o para o colo. "O Mário foi visitar a irmã, que está doente, e só deve voltar depois do almoço."

"O senhor capitão está bem?"

"Sim, vai andando. Mas vai ser um problema quando ele te vir."

"Porquê, senhora?"

Iam já a meio das escadas, Amélia a arrebanhar as crianças e com o mais pequeno nos braços, quando parou e olhou para trás.

"Chico, tu mataste-lhe o caseiro", disse, muito séria. "Isso é coisa que não se esquece."

De facto, o capitão Branco não esquecera. Quando ao início da tarde entrou em casa e deu com Francisco sentado na sala, estacou por um longo momento no topo das escadas, o rosto pálido, o corpo crispado, os olhos a dançarem entre os dois irmãos.

"O que está ele aqui a fazer?", perguntou, muito tenso.

Francisco e Amélia puseram-se de pé, na expectativa.

"Veio visitar-me."

O marido permaneceu um instante calado, a avaliar a inesperada situação.

"Ele matou o Tino", disse enfim. "Eu conheço o Tino desde criança. A família dele foi viver para a nossa quinta no tempo dos meus pais. Eu não posso ter o assassino do Tino em minha casa. Na verdade, tenho até o dever de o denunciar à polícia."

"O Chico é meu irmão."

"Adoptivo."

"Não interessa. A minha mãe acolheu-o na família. Não posso entregar o Chico à polícia, isso está fora de questão."

"Eu compreendo", cedeu o capitão. "Mas ele não pode ficar na nossa casa. Uma coisa dessas não é aceitável."

"Eu já me vou embora", disse Francisco, pegando no casaco.

O dono da casa lançou-lhe um olhar irritado.

"Vais, sim senhor", disse, fitando-o com uma expressão penetrante. "Mas antes explica-me uma coisa que eu ainda não percebi: porque mataste o Tino? Que mal te fez ele para merecer que lhe torcesses o pescoço como fazias às galinhas?"

O visitante baixou a cabeça, sem resposta. Na verdade, tinha uma resposta, mas não podia dá-la. Percebendo o dilema, a irmã veio em seu socorro.

"Foi um acidente."

"Um acidente?" O capitão ergueu a voz, quase alterado. "O Tino tinha o pescoço partido, Amélia! Ninguém parte o pescoço a alguém por... por acidente! Além do mais, mesmo que fosse um acidente, há uma coisa que não está explicada: por que motivo se agarrou o teu irmão ao pescoço do Tino?"


Era uma boa pergunta.

"Foi para me defender", disse a mulher.

O capitão fez um esgar de perplexidade.

"Defender? Defender de quê? Que história é essa?"

Amélia percebeu que tinha entrado no pior caminho possível: o das explicações com a introdução de dados novos. Quanto mais respostas desse, mais perguntas suscitaria. Mas o facto é que embarcara já naquele rumo e tratava-se de um caminho sem retorno. Abrira pistas que teria de fechar, sob pena de suscitar desconfianças. Percebeu que precisava de ser convincente e coerente, e sobretudo de sair daquele terreno minado o mais depressa possível.

"Ele defendeu-me do Tino."

"Mas o que te fez o Tino?"

A mulher não queria difamar a vítima, mas tomou consciência de que não tinha agora qualquer alternativa.

"Ele queria dar-se a... a certas liberdades comigo", mentiu.

"O quê?"

"Pois, foi isso. O Chico defendeu-me e a coisa correu mal."

O capitão cravou os olhos na mulher, atónito.

"O Tino queria dar-se a liberdades contigo?"

Amélia fugiu com o olhar, descendo-o para o soalho da sala; não conseguia mentir a olhar nos olhos, pelo que preferiu simular vergonha.

"Sim."

O marido abanou a cabeça.

"Não acredito. O Tino não faria isso."

"Então não acredites", retorquiu ela com um encolher de ombros.

O capitão comprimiu os lábios.

"E porque não me contaste essa história logo? Por que razão só agora me dizes isso?"

Ding dong.

O toque na campainha veio em socorro de Amélia.

"É o senhor Cunha com o mel", disse o capitão, voltando a cabeça para trás. "O

António! Vai lá abrir a porta!"

O filho mais velho desceu as escadas num tropel, vindo do piso superior, e continuou até ao rés-do-chão.

A interrupção acalmou um pouco o capitão. Puxou de uma cadeira e sentou-se com um suspiro.

"Ainda não percebi por que motivo não me contaste na altura que o Tino tinha sido incorrecto contigo", murmurou em tom fatigado, retomando o fio à meada. "Se bem me lembro, disseste à polícia que não estavas presente quando o Tino morreu. Como é que agora me dizes o contrário?"

A pausa oferecida pelo toque da campainha dera a Amélia o tempo necessário para improvisar uma explicação plausível.

"Foi para não angustiar ainda mais a família dele. Já viste o que sentiriam se eu dissesse isso naquele momento? Achei melhor calar-me, não adiantava nada estar a manchar a me-mória do Tino. O que estava feito estava feito. Já não tinha remédio."

O capitão voltou a respirar fundo.

"Tens razão", rendeu-se. "Se calhar fizeste bem. Mas devias ter-me contado pelo menos a mim."

A mulher quase suspirou de alívio. Fora complicado, mas tinha conseguido escapar ao campo minado.

"O meu capitão dá licença?"

A voz veio das escadas e os três olharam naquela direcção. Um homem fardado encarava-os da ombreira da porta e as cabeças de dois outros emergiram das escadas. Eram polícias e os dois de trás vinham armados com caçadeiras.

O capitão levantou-se, surpreendido.

"Faz favor?"

"Eu sou o tenente Lopes, meu capitão", disse, fazendo continência. O olhar do polícia desviou-se para Francisco, que

assumira uma postura de alerta. "Recebemos na esquadra a denúncia de um cidadão que disse ter visto um foragido à justiça a entrar na sua casa. Como deve compreender, estamos aqui no cumprimento do dever e viemos dar ordem de prisão ao suspeito em causa."

Todos os olhos pousaram acto contínuo em Francisco. O legionário encarou os polícias, avaliando a situação. Poderia saltar em frente e dar cabo deles, mas era provável que levasse com um tiro de caçadeira a um metro de distância. Era capaz de doer, considerou, eliminando de imediato essa hipótese. A alternativa era entregar-se.

Ou fugir.

"É melhor ir com eles", aconselhou o capitão, preocupado em evitar um confronto violento em sua casa e diante da mulher e dos filhos.

Francisco recuou um passo e outro ainda, sempre a encarar os recém-chegados, o corpo tenso à espera da explosão, a mente a fervilhar em busca de uma saída.

Os polícias avançaram, as caçadeiras em riste.

"Tenha calma", disse o tenente, adiantando-se aos outros. "Acompanhe-nos à esquadra, se faz favor."

Mas Francisco tomara a sua decisão e não estava disposto a entregar-se. Não fugira de Portugal, não se alistara na Legião Estrangeira, não sobrevivera a uma guerra sangrenta para se render assim, sem mais nem menos, como um cobarde. Não, isso ele não faria.

O tenente chegou-se ao pé de Francisco para consumar a prisão, mas, com um movimento rápido, viu-se agarrado pela cabeça e pelo tronco e virado ao contrário, preso naqueles braços poderosos como se o tivessem de repente metido num colete-de-forças, o rosto voltado para os seus subordinados.


"Quietos!", rugiu Francisco, transfigurando-se. Já não era o submisso e dócil irmão adoptivo de Amélia, mas o temível legionário e o frio assassino de Tino. "Nem mais um passo!"

O capitão Branco ainda considerou por instantes a possibilidade de intervir, mas de imediato percebeu que a sua prioridade era proteger a mulher e os filhos. Amélia acompanhava o confronto com uma expressão horrorizada, o filho de dois anos abraçado à perna, e o marido agarrou-se a ambos e puxou-os para o corredor, afastando-os do local do confronto.

O assunto ficou entregue aos guardas, que não sabiam o que fazer. Tinham as caçadeiras apontadas, embora na mira tivesse deixado de estar Francisco e aparecesse nesse momento o seu superior hierárquico, cujo corpo era usado como um escudo. O legionário tentou tirar a pistola da cintura do refém, mas o homem debateu-se e a arma tombou no chão. O tenente tinha o tronco e os braços imobilizados por aqueles braços possantes e duros como aço, mas com um movimento da perna direita conseguiu pontapear a pistola para a frente.

"Assim é pior", disse o tenente Lopes, tentando tirar vantagem do efeito de a arma estar agora fora do alcance do seu captor. "É melhor o senhor acompanhar-nos à esquadra. Vai ver que tudo se resolverá a bem, não é preciso nada disto."

Francisco não era tolo e ignorou as palavras conciliadoras; era já demasiado vivido para ir naquele conto. Vendo-se sem hipóteses de alcançar a pistola, readaptou-se à situação. Sempre a prender o tenente e a usá-lo como escudo, recuou devagar até as costas tocarem na porta traseira da casa. Nesse instante, ergueu o tenente e lançou-o contra os outros dois polícias, como se o guarda não passasse de um fardo de palha, e virou-se bruscamente, abriu a porta e saltou pelas escadas a grande velocidade, quase se estatelando no quintal.

"Alto!"

O fugitivo reequilibrou-se e correu como um desvairado pelo rectângulo de terreno, por entre as macieiras e a horta, os ramos de verdura fustigando-o na cara mas sempre correndo como se estivesse a fazer uma carga, como se se lançasse de novo sobre as Puertas de la Trinidad, como se gritasse "viva a morte!", só que agora não corria em direcção a ela. Fugia dela.

Paw.

Um tiro rasgou o ar, mas Francisco não ouviu o silvo da bala. Deviam ter disparado para o ar, presumiu. Pela experiência sabia que quando se ouve o disparo é porque não se foi atingido e quando se é atingido nem se ouve o disparo, a bala é mais rápida que o som, primeiro ocorre o impacto, depois é que se ouve a detonação.

Sempre a correr, arrependeu-se de não ter tentado recuperar a pistola do tenente, lamentou não ter com ele a velha metralhadora da Legião. Ah, o que a Hotchkiss não faria àqueles imbecis!

Chegou ao muro do fundo do quintal e abriu o pequeno portão salpicado de ferrugem. O ferro chiou de preguiça. Quando pôs o pé na rua, no entanto, imobilizou-se.

"Onde vais, malandro?"

Em redor tinha três caçadeiras apontadas para ele; uma à esquerda, na descida da rua, outra em frente, a terceira à direita, na subida. Atrás ficava o muro e ouvia já os passos dos primeiros polícias a cruzarem o quintal. Estava encurralado.

Devagar, percebendo que já não dispunha de opções, endireitou-se e ergueu os braços.

Havia sido apanhado.


Com a testa alagada de suor, Luís inspeccionou o carabelho da adega. O Verão tinha chegado, quente e abafado, e a fechadura de madeira da porta que dava para o compartimento dos vinhos parecia ter apodrecido. Toda a zona entre Bragança e a fronteira galega, o espaço selvagem onde se encerrava Vinhais, tornara-se conhecida por Terra Fria, mas o ar estival revelava-se a brutal excepção. A amplitude térmica era de tal modo radical que, devido à dilatação, nem os carabelhos se aguentavam.

O veterinário endireitou-se, esfregou o queixo e ponderou o problema.

"O Nilo", disse, dirigindo-se ao cão que o observava com curiosidade. O rafeiro ergueu as orelhas, imediatamente alerta. "Vai à cozinha buscar a caixa das ferramentas." O cão fez um movimento com a cabeça e ganiu de mansinho, como que a pedir um esclarecimento. "A caixa de ferramentas", quase soletrou Luís. Mostrou com as mãos o tamanho da caixa e depois fez o gesto de martelar. "Ferramentas."

Nilo arregalou os olhos, como se tivesse entendido, e partiu em velocidade.

"O sô'tor", chamou uma voz.

Luís voltou a cabeça e viu o serra-cancelas aproximar-se.

"Olá, Ti Manei. Então?"

O pastor tirou o chapéu, respirou fundo e limpou a transpiração.

"Puf! Vai um calor do arco-da-velha. Nossa Senhora!"

"Lá diz o povo, Ti Manei", sorriu Luís. "Aqui em Trás-os-Montes, nove meses de Inverno e três de inferno."

"Antão não é, sô'tor?"

Luís limpou as mãos ao rabo das calças.

"Como vão as coisas consigo?"

O serra-cancelas mirou o veterinário, cabisbaixo.

"Aiche! Vão mal, sô'tor."

"Então, Ti Manei?"

"É a minha vaca mais gorda, sô'tor. A Rosinha. Recusa-se a comer."

"Ena, homem! Será que se decidiu a fazer dieta, a esperta-lhona? Se calhar tem um boi na mira e quer pôr-se bonita, hã?"

"Não brinque, sô'tor. O caso é sério."

"Não se aflija, homem. Onde está o seu gado?"

"Anda no monte, sô'tor. Botei as ovelhas acarradas à sombra, por causa do calor, mas elas só querem ceibar-se."

"E a vaca também?"

"Não, sô'tor. Ela anda muito murchita, coitadinha, assim toda afinhada, até faz espécie.

Ademais, o abarro está-lhe a sair a modos que aguado. O aspeito dela não é nada bô, de maneira que a deixei deitada ao lameiro, no repouso."


"Hmm, está bem. Vou só arranjar aqui este carabelho e depois já lá vou vê-la, está bem?"

O homem hesitou.

"Já agora, sô'tor. Eu não queria ceranganhar, mas também não ando lá muito católico."

"Então?"

O serra-cancelas assentou a mão na região lombar e esboçou um esgar dorido.

"Tenho aqui uma moléstia nas costas e mal consigo andar no cangaço. Até parece que me aboncaram, caramba! Será que o sô'tor me poderia também botar os olhos nisto?"

Luís ergueu as sobrancelhas.

"Calculo que você saiba que eu sou veterinário..." O rosto abriu-se num sorriso. "Bem, suponho que não faz mal. Se vou a sua casa ver a vaca, também o posso ver a si, que diabo.

Sempre despacho dois animais de uma só vez."

"Deus lhe pague, sô'tor", agradeceu o serra-cancelas, voltando a pôr o chapéu na cabeça.

Ia despedir-se mas bateu com a palma da mão na testa; havia algo mais para dizer. "O

sô'tor, óquaisque já não m'alembrava, c'um catano! O Toino dos Correios passou por mim há bocadinho, estava eu a abantar para aqui, e pôs-se à cumbersa comigo. Pediu-me para lhe dizer que tem lá uma cartita para si."

"Uma carta nos Correios para mim?"

"Sim, sô'tor. Chegou à pela manhã."

Luís decidiu alterar o plano que havia traçado; tinha curiosidade de ler a carta, podiam ser novidades dos Cerejais ou, o que seria ainda mais importante, notícias de Penafiel.

Desde que viera para Vinhais que alimentava um sentimento ambivalente: queria esquecer Amélia mas receava que ela o esquecesse. Sabia que não havia futuro para eles, embora mantivesse uma esperança secreta; ansiava por ir a Penafiel vê-la, mas temia fazê-lo e, das duas vezes que Joana lá fora

em visita, decidira não a acompanhar. Amélia dera à luz mais um filho e custava-lhe ver aquele novo fruto do casamento, sobretudo porque fora produzido já depois de a ter reencontrado.

"É a cara chapada do Mário", dissera-lhe Joana com um sorriso inocente quando viera de Penafiel logo após o nascimento da criança.

Isso doera.

Na verdade, Luís não sabia o que queria. Ou melhor, sabia. Sabia que queria Amélia, sempre quisera e sempre ia querer. O problema é que ela estava fora do seu alcance, a mente dizia-lhe que para sempre, o coração respondia-lhe que por enquanto. Desorientado por aquele conflito interior, refugiava-se no trabalho e convencia-se a si mesmo de que atrás do tempo viria uma resposta.

E se a resposta viesse na carta que o Ti Manei lhe anunciara? Quando chegava correio, Luís mal continha a ansiedade, tão grandes eram as suas expectativas de uma novidade de Penafiel que, como um maravilhoso passe de mágica, tudo viesse a mudar. Mas seguia-se a inevitável decepção. Ou as cartas não eram de Penafiel, ou se eram não passavam de missivas de Amélia para Joana, que se mostravam desapontadoramente mundanas; davam-lhe notícias da terra, dos filhos e de pouco mais.

Talvez a única coisa de facto reveladora fosse a fórmula que a sua antiga namorada usava para a despedida; escrevia "dá um beijo muito afectuoso ao teu marido" e Luís sabia que aquelas palavras lacónicas encobriam um ardor ferido e amordaçado.

Com um gesto impaciente, atirou o martelo para a caixa das ferramentas e resolveu deixar o conserto do carabelho para mais tarde; a fechadura da adega podia decerto esperar mais uma hora.

Saber que correio seria aquele que o serra-cancelas lhe anunciara parecia-lhe bem mais importante naquele momento.

Deixou a caixa trazida por Nilo junto à porta, aguardando o seu regresso para retomar o trabalho, e subiu ao quarto.

"Joana, vou aos correios", anunciou, abrindo a gaveta à procura de roupa limpa.

"Chegou uma carta."

Sentada à mesinha de costura, a mulher pregava os botões de uma camisa de Verão.

"Levas o Nilo?"

"Sim."

"Mas eu preciso dele para ir à mercearia buscar umas alheiras."

"Eu vou lá."

Mudou de camisa, fez sinal ao cão de que o seguisse e desceu até ao centro da vila.

O empregado dos Correios, António, estava sentado ao balcão a separar encomendas quando viu o veterinário e o seu inseparável cachorro entrarem.

"Ora viva!"

"Olá, senhor doutor", cumprimentou António, voltando-se para um cacifo onde se encontrava correspondência amontoada. "O Ti Manei falou consigo, ora é?"

"Sim, homem. Tem aí uma carta para mim?"

O empregado tirou um envelope do molho e analisou o espaço do remetente.

"Tenho, senhor doutor." Estendeu-lhe a carta. "Aqui está."

Com um gesto sôfrego, Luís pegou no sobrescrito e, a esperança a encher-lhe de novo o peito, reconheceu o traço nervoso de Amélia impresso na textura lisa do papel.

"Você é um barbino, Toino", repreendeu-o amigavelmente. "Eu já lhe tinha pedido que me entregasse imediatamente

em casa todo o correio de Penafiel. É por causa da minha mulher. Sabe como é, anda sempre com saudades da irmã..."

"Eu sei, senhor doutor. Mas esta manhã recebi muita coisa e acredite que não tive tempo, tenho andado todo afergulhado. Até tive de levar um telegrama ao senhor doutor Leite, veja lá."

As cartas de Amélia eram sempre endereçadas à irmã. Dessa vez, porém, e ao passar uma segunda vez com os olhos pelo sobrescrito, Luís reparou que Amélia também escrevera o seu nome.

Para: Joana e Luís Afonso.

"Mas que raio!...", admirou-se.

"Está tudo bem, senhor doutor?"

Absorvido nos seus pensamentos, Luís resmungou uma resposta distraída e saiu da estação telégrafo-postal na dúvida sobre se deveria ou não abrir de imediato o envelope. O facto de o seu nome lá constar era uma indicação de que o conteúdo lhe dizia directamente respeito. Mas o que seria? Apossou-se dele um nervoso miudinho, feito de desejo e esperança e ansiedade. Talvez a carta lhe desbravasse novos caminhos para Amélia, embora o mais provável fosse isso não acontecer. Receava a decepção, mais uma na longa lista. A hesitação prolongou-se até ao fim da rua, que percorreu em diálogo consigo mesmo, abro não abro?, mas ao entrar na mercearia tomou enfim a decisão.

Ia abrir.

Quando chegou a casa pousou pesadamente a cesta com as compras no chão e sentou-se no cadeirão diante da mesinha de costura, o corpo esvaziando-se como um saco furado. Ainda às voltas com os botões da camisa, Joana ergueu a cabeça para olhar o marido e suspendeu o movimento da agulha, algures entre intrigada e alarmada.

"Então, Luís? O que tens?"

Já se habituara ao ar distantemente melancólico do marido, mas não era melancolia o que lhe lia nos olhos nesse momento. Era desânimo, era inquietação, era qualquer coisa pesada que logo a inquietou.

"Fala, homem! Estás a assustar-me! O que se passa?"

Luís meteu a mão no bolso e tirou um envelope dobrado, que estendeu à mulher.

"Lê."

Joana fixou os olhos no sobrescrito e pôs a mão no peito ao ver a letra do remetente, o alarme disparando-lhe no coração.

"Ai Jesus! O que é?" Olhava a carta que o marido lhe estendia, mas tinha medo de pegar nela.

"Aconteceu alguma coisa à minha irmã?"

"É o teu irmão."

"Qual irmão?"

"Não tens um irmão?"

"Ah, estás a falar do Chico?" A admiração de Joana era genuína; sabia que Francisco era o seu irmão adoptivo, claro, mas raramente o via como tal. "O que se passa? O que lhe aconteceu?"

Luís voltou a agitar o envelope que mantinha estendido na direcção da mulher.

"Lê."

Os dedos já a tremerem, Joana pegou por fim na carta.

"Morreu?"

"Foi apanhado."

"Mas está bem?"

"Foi apanhado, Joana. A polícia prendeu-o em Penafiel."

A mulher quase suspirou de alívio e desdobrou de imediato a carta que ainda momentos antes receara.

"Credo, Luís!", protestou, lançando um olhar ressentido na direcção do marido.


"Pregaste-me cá um susto! Chiça! Pensei que tinha acontecido qualquer coisa de muito grave..."

"O teu irmão foi preso. Não achas que isso é muito grave?"

"É melhor do que estar morto", retorquiu ela, colando os olhos às primeiras linhas da missiva. "Agora ao menos sabemos onde ele está. Ademais, não te esqueças que ele matou o Tino. Tem de ser punido, não achas?"

Surpreendido com a reacção da mulher, Luís ficou sem saber o que dizer. A detenção de Francisco era uma notícia desastrosa, mas a verdade é que só ele e Amélia conheciam a verdadeira amplitude daquele desastre. Para toda a gente, incluindo Joana, o que estava em causa era apenas a captura de um assassino. Para os dois amantes, porém, tratava-se de uma caixa de Pandora prestes a abrir-se. Se Francisco começasse a falar, a relação amorosa entre os dois tornar-se-ia inevitavelmente conhecida. Seria uma catástrofe!

A mente fervilhava-lhe em busca de saídas para aquele problema. Que deveria fazer? Ao reordenar os pensamentos, tornou-se evidente que a grande prioridade era convencer Francisco a manter-se calado. Mas como assegurá-lo? Olhou para a mulher e, no ardor da sua ansiedade, viu uma oportunidade. Teria de ser pela compaixão. Francisco teria de perceber que, se falasse, arrastaria toda a família para uma tragédia de dimensões incomensuráveis. E a melhor maneira de perceber isso era ver a família, sentir as irmãs junto dele, perceber que elas o ajudavam naquele momento difícil.

"Talvez seja melhor ires a Penafiel."

"Para quê?"

"Para o veres, claro. Afinal, ele é teu irmão e precisa de ti."

Joana considerou por instantes a ideia e dobrou a camisa que havia remendado.

"Tens razão", disse, pondo-se de pé. "Vou ver a que horas é amanhã a caminheta para Bragança." Desapareceu no quarto, onde se começaram a ouvir as gavetas a serem abertas.

"Tu também vens?"

"Receio que a minha presença seja contraproducente."

"Porquê?"

"Para ser sincero, acho que o Chico não simpatizou comigo."

A mulher espreitou da porta do quarto.

"Ora! Ele nunca simpatiza com ninguém..."

Luís ergueu-se do cadeirão, foi buscar as botas para montar e assobiou na direcção de Nilo, chamando-o para um passeio.

"Ele precisa da família, Joana", disse num tom final. "Quem tem de estar com ele és tu e a tua irmã."

E saiu de casa.

A carta incendiara-lhe o dia. Estava convencido de que a detenção de Francisco teria consequências e precisava de ficar sozinho para melhor ponderar a nova situação.

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