IV
"Coitada da dona Mercedes."
Luís lia a edição de O Comércio do Porto que acabara de chegar aos Correios e Telégrafos de Vinhais e o comentário de António, o rapaz que estava ao balcão, fê-lo erguer a cabeça.
"Quem?"
"É uma senhora que eu conheço numa aldeia aqui perto", explicou António. "Ela vive de um pombal e está aflita porque anda para aí uma epidemia a matar-lhe os pombos todos."
O assunto despertou a atenção do veterinário.
"Uma epidemia?"
"Sim, coitada." O rapaz fitou-o com um fogacho de esperança a tremeluzir-lhe nos olhos. "O
senhor doutor era capaz de lá ir ver aquilo, era?"
"Claro que sim, Tónio. É o meu trabalho." Pousou o jornal sobre o balcão. "Onde fica esse pombal?"
"No Montezinho", disse António, pegando numa caneta e fazendo um rabisco numa folha quadriculada. "Eu mostro-lhe o sítio."
Luís partiu na manhã seguinte para a aldeia do Montezinho. A consulta fazia, com efeito, parte das suas obrigações. Os passeios purificadores pelas florestas transmontanas não passavam de fugazes interlúdios na atarefada vida de veterinário de província, de quem se esperava que resolvesse todos os problemas da região. Para além das responsabilidades inerentes ao seu cargo público, Luís exercia também a profissão no âmbito privado, ajudando pastores e agricultores a manterem gado e rebanhos saudáveis a troco de pequenas quantias ou de ofertas menores, como galinhas e patos, que Joana, cujo dom para a culinária se revelava a cada refeição, transformava em pratos suculentos.
O veterinário de Vinhais chegou naquele dia ao pombal de onde viera o pedido de socorro e deu com a proprietária em estado de pânico.
"Aiche, sô'dotor! Estou farta de gaitar! Sem os meus pombinhos, fico derruída, valha-me Deus.
O que vai ser de mim e dos meus meninos, Senhor?"
A mulher deitava as mãos à cabeça e depressa se tornou claro que o caso não era para menos. O
pombal constituía a sua principal fonte de receita e o facto de os pássaros se encontrarem doentes era para ela uma catástrofe. Os pombos forneciam alimento e também excrementos, muito apreciados em Trás-os-Montes como fertilizantes, pelo que a sua morte iminente ameaçava lançá-la na ruína, facto particularmente grave dado que se tratava de uma viúva com dois filhos.
"Tenha calma, minha senhora", disse, tentando controlar a corrente de ansiedade que jorrava daquela mulher. "Vamos lá ver isso. Onde é o pombal?"
"Por aqui, sô'dotor. Por aqui."
O veterinário amarrou Relâmpago a um castanheiro e encaminhou-se para o pombal, uma casota de xisto caiado de branco e em forma de ferradura, situado no meio de um olival. Luís espreitou pela porta e viu as aves deitadas no chão enquanto os ninhos construídos nos buracos das paredes se encontravam abandonados. Alguns pombos esvoaçavam no interior, dois ou três entravam e saíam por orifícios abertos no telhado, mas a maior parte agonizava pelo chão.
"Quantos já morreram?", perguntou o veterinário à angustiada viúva.
"Uns vinte, sô'dotor. Tive de os botar num furoco, ali ao pé de uma cornalheira. Ah, bem m'eu finto da minha desgraça, Jesus!"
Luís voltou a passar os olhos pelo interior do pombal, sentindo o odor fétido que dali era exalado.
"Traga-me um balde de água, se faz favor", pediu.
Foi então que reparou no cão.
Era um rafeiro castanho que acompanhava a situação com ar apreensivo; parecia perceber tudo o que se passava e aparentava até sentir o afogo da patroa. Quando o veterinário lhe pediu o balde de água, a viúva olhou para o cão e apenas precisou de pronunciar uma palavra.
"Vai."
Luís viu o cão dar meia volta e correr em direcção à casa da proprietária, uma velha construção em pedra com varandas de madeira, à maneira tradicional da região. Quando chegou à casa, o rafeiro agarrou num balde com os dentes e deslizou encosta abaixo com o recipiente assim transportado, chocalhando e tilintando pelo chão; lá no fundo, junto a um fio de água que descia célere pelo monte, meneou a cabeça de
modo a fazer com que a água entrasse no balde, após o que se pôs a subir a encosta, desta feita em direcção ao pombal, arrastando com tenacidade o recipiente a transbordar de água.
Chegou ofegante e depositou com alívio o pesado balde aos pés do veterinário estupefacto.
"Este cão é seu?"
A viúva sorriu, orgulhosa.
"É sim, sô'dotor. É esperto, não é? Uma espantação! Até esmilha, credo! Ainda por cima, é falgoseiro." Os olhos brilharam-lhe. "Fui eu que o treinei, sabe?"
"Como se chama ele?"
"Nilo."
"E isto é tudo do treino?"
"Ah, não. O treino ajuda, mas aqui o meu Nilo é espabila-do que se farta!" Fez um gesto em direcção à casa. "Tenho para ali um outro molosso que é o contrário. Um mogengo de primeira. Por mais que o treine, não dá nada. Passa o dia a fazer mofo, até me mete ranço." Com o indicador sob o olho, como quem diz que o outro cão não a enganava, acrescentou: "Está cheio de manhas, mas eu já o manquei."
Luís dedicou uma semana inteira àquele pombal. Todos os dias saía de casa pela manhã e cavalgava com Relâmpago até ao Montezinho, onde passava horas com os pombos doentes. Tanto se aplicou que apenas morreram mais cinco aves; as restantes começaram em breve a dar sinais de melhoras e alguns dias depois já todas esvoaçavam pelo pombal, exalando saúde e arrulhando com alegria.
"Sô'dotor", disse por fim a viúva, no dia da última visita do veterinário. "Nem sei como pagar-lhe."
"Oh, não faz mal."
"O que quiser, sô'dotor. O que quiser. Não tenho cunfres, o dinheiro faz-me falta para os meus meninos, mas ofereço--lhe o que pedir."
"Deixe estar. Faço-lhe isto a nome de palhas."
"A nome de palhas, não, que eu não sou nenhuma pedinte, valha-me Deus. Onde é que já se viu? Tenho de lhe pagar, antão não é? Quer uma dezena dos meus pombinhos, ora quer?"
"Pombos?", riu-se Luís. "O que faria eu com os seus pombos?"
"Oh, tanta coisa. O sô'dotor é lambiteiro, qu'eu bem sei. A sua senhora podia-lhe fazer uns esturgidinhos..."
"Ah, não! Esturgido de pombo, não!" Ergueu a sobrancelha, como quem acabou de ter uma ideia. "Sabe do que gostaria eu?"
"Diga, sô'dotor."
O veterinário olhou para o rafeiro, que parecia vigiar o pombal.
"De ficar com o seu cão."
A viúva quase deu um salto.
"O Nilo, sô'dotor?"
O cão ergueu a cabeça e as orelhas ao ouvir o seu nome e mirou a patroa, atento.
"Sim, o M/o."
"Mas... não me posso quitar do Nilo."
"Ainda lhe pago por cima", insistiu. "Dou-lhe um malmu-de de azeite e cinquenta escudos."
A viúva hesitou.
"Não... não pode ser, sô'dotor..."
"Ah", exclamou Luís, escondendo a decepção, quase envergonhado por ter feito a proposta. "Eu compreendo. Então não me dê nada, deixe estar. Dá-me uns pombos da próxima, está bem?"
O veterinário ergueu-se da cadeira, pôs o chapéu na cabeça e deu meia volta, dirigindo-se ao seu cavalo. A mulher vacilou, indecisa; foi apenas um instante, porque de imediato se levantou.
"Espere, sô'dotor."
Luís estacou junto a Relâmpago e mirou-a, expectante.
"O que é?"
"Leve Mo"
"Ah, não. Deixe estar."
"Leve-o."