II

O enorme Junkers inclinou-se para a esquerda, barulhento, rodou pesadamente no ar, à procura do vento dianteiro, e estabilizou no enfiamento da estreita faixa de alcatrão. Mas estabilizar é forma de dizer, o aparelho perdia altitude aos solavancos, como se descesse uma montanha invisível, aos saltos, aspirado por buracos de ar, tombando sempre mais e mais ainda.

Francisco Latino sentiu gotas de suor deslizarem-lhe pelas têmporas e os músculos retesarem-se a cada abanão; cerrou os olhos e murmurou um ansioso ave-maria, as palavras mais sentidas na parte final da oração, quando entoou o "rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte".

Considerava-se um homem destemido, capaz de afrontar tudo e enfrentar todos, já o provara inúmeras vezes ao longo dos seus curtos e turbulentos dezanove anos de vida, mas aquilo, ah!, aquilo parecia-lhe loucura a mais, meter-se numa caixa fechada e voar sobre as nuvens como um pássaro afigurava-se-lhe

uma aventura demente, coisa de doidos. Onde é que já se vira alguém meter-se assim num caixão com asas?

Uma brutal sacudidela, acompanhada por um guincho estridente, anunciou-lhe que o avião tocara no solo. Apertou a almofada do assento diante de si com as grossas mãos, como se assim se conseguisse salvar, como se da sua enorme força dependesse a segurança da máquina. Mas as coisas pareceram acalmar; o JU-52 assentou por completo na pista e perdeu velocidade, ao ponto de quase parar.

Uma erupção de aplausos estalou dentro do avião.

"Viva la Légion!" , gritou uma voz.

"Vivaaaaa!", devolveu o coro.

Os homens da 12.a companhia abandonaram em fila o Junkers da Lufthansa e Francisco foi dos últimos a sair. Sentiu o ar quente e seco do Sul de Espanha a bater-lhe na face. Corria o dia 27 de Julho de 1936 quando cruzou a porta do aparelho e desceu as escadas, ainda mal refeito das emoções do voo. Mas o calor não o impressionava; no fim de contas acabara de deixar Tetuán, e aí, mesmo às portas do grande deserto do Sara, é que se sabia o que era calor a sério, calor daqueles que seca a boca e deixa um homem prostrado, calor que mata e não amola apenas.


Pisou a pista da base de Tablada e seguiu a fila com a mochila às costas; os homens guiados por oficiais caminhavam para um hangar em busca de sombra e água fresca, mas alguns paravam pelo caminho e urinavam no alcatrão. Francisco passou por eles e só parou quando chegou ao hangar e deitou a mochila ao chão.

"Entonces, Paço?", disse-lhe um militar aloirado, de olhos ver-de-garrafa e um sorriso traquina a bailar-lhe no rosto. "Qué tal?"

"Qué tal o quê, ó merdoso?", rosnou Francisco. "Já te disse que não me chames Paço, ouviste?"

"Ay, carayl Entonces como te llamo, hombre?"

"Chico, já te disse mil vezes."

"Paço es mejor."

"Olha lá, Juanito, Paço é para espanhol. Eu sou português."

"Qué mal tiene Paço? El comandante Franco se llama Paço, no?"

"Quero lá saber!"

"Paço esta bien."

"O paneleiro, presta bem atenção." Ergueu o dedo, como quem faz um derradeiro aviso. "Na minha terra, Francisco dá Chico, percebes? Não dá Paço porra nenhuma, hã? Portanto, acaba lá com essa merda de me chamares Paço."

"Si, Paço."

"Cabrão!"

Francisco esticou o enorme braço e fez um movimento em gancho, tentando apanhar Juanito, mas o espanhol antecipou-se, ágil e rápido, e escapuliu-se com uma gargalhada. Juanito escondeu-se atrás de um grupo de militares e espreitou por entre eles com ar trocista.

"Paço! Paço!"

O português era um homem largo e forte, um verdadeiro Neanderthal, o corpo peludo e musculado, mas com os membros curtos; tinha a cabeça pequena, o cabelo cortado à escovinha, maciças arcadas supraciliares e olhos negros miúdos encovados no rosto. Sabia que em força não havia quem o batesse, mas em velocidade era diferente. Juanito tinha-se escapado e nem foi atrás dele para o apanhar; não o conseguiria se tentasse. Em vez disso, acomodou a mochila contra a parede e sentou-se no chão, as largas costas assentes sobre ela.

Um burburinho nervoso enchia o hangar. Viam-se militares por toda a parte, uns a conversar, outros estendidos no chão

ou encostados às paredes, enquanto lá ao fundo os mecânicos se afadigavam em torno do motor dianteiro do único avião estacionado no local; o aparelho exibia na carlinga umas divisas bizarras, pareciam dois raios paralelos.

"Que avião é aquele?", perguntou Francisco a um homem que descansava à sua direita.

"Es un Savoia 81."

"Um quê?"

"Un Savoia 81. Es italiano. Acabo de llegar de Milano, emprestado por Mussolini." O

legionário riu-se. "Pêro me parece que ya veyo con problemas, no?" Fez um gesto de desdém em direcção ao trimotor rodeado de mecânicos. "Mira. Solo nos mandan la mierda."

"Mas aquele em que viemos era diferente."

"Ah, pêro ese era de los alemanes. El tio Adolfo manda todo que es bueno, no?"

Francisco acomodou-se no seu lugar e fechou os olhos. Sabia que não dispunha de muito tempo para descansar e queria aproveitar todos os minutos que lhe concediam. Contudo, não conseguiu adormecer e, ao fim de uns quinze minutos, sentiu alguém encostar-se do seu lado esquerdo. Abriu os olhos e reconheceu Juanito.

"Hola, Paço."

"Cala-te com isso, paneleiro."

Juanito não respondeu. Pegou no cantil de alumínio, protegido por uma cobertura verde-azeitona, e bebeu um golo. Depois estendeu-o ao português.

"Quieres?"

"Não."

O espanhol enroscou a tampa e guardou o cantil junto à anca direita. Encostou-se à sua mochila e ficou a mirar o Savoia italiano.

"Ay, madre miar, suspirou. "Estive a falar com um tipo da V Bandera que veio cá. Disse-me que Sevilha está controlada e que começaram agora a ocupar o maior número possível de povoações, de preferência ao longo da fronteira com o teu país. Acho que os mandaram ontem tomar um povoado qualquer, chama-se Utrera ou Utreta ou lá o que é. Conquistaram a povoação num instante e deram cabo dos rojos que tentavam fugir pela carretera de Jerez de La Frontera. Foi tudo despachado a tiro de metralhadora."

Francisco encolheu os ombros, indiferente.

"Bom proveito."

O camião progredia aos solavancos e Francisco saltitava no assento de madeira, emparedado pelos homens da 12.a companhia. Juanito dormitava encostado ao seu ombro esquerdo, os lábios entreabertos e um fio de saliva a escorrer-lhe da boca. À direita, a cabeça apoiada no cano da sua metralhadora, estava o sargento Gomez, e mesmo em frente, os olhos perdidos na lona do camião, sentava-se Murillo, o italiano folgazão cuja jovialidade era vencida pela monotonia da viagem.

"Che ore sono?", quis saber Murillo.

Francisco consultou o relógio.

"Cinco da tarde. Já aqui estamos fechados há quatro horas."

"Quattro ore? Madona!", exclamou o italiano, rolando os olhos azuis. "Che viaggio!"

"Vá lá, não te armes em maricas. Já deve faltar pouco para chegarmos."

"Mi dispiace, non capisco."

"Capiscas, capiscas. Se eu te capisco, tu também me capiscas, ou não é assim?"

O italiano não respondeu. Recostou-se no assento e fechou os olhos. Francisco percorreu o rosto dos homens que com ele seguiam no camião de transporte de tropas e percebeu que estavam todos demasiado cansados. Não tinham dormido na noite anterior devido aos preparativos para a viagem que o capitão Fuentes repentinamente lhes anunciara. Voaram do Norte de África nessa mesma manhã e, pouco depois de chegarem a Sevilha, foram metidos no camião para ajudarem a "limpar"

um bairro da cidade, até ali nas mãos dos rojos. A operação revelou-se tranquila, uma vez que os legionários de outra unidade tinham já feito o essencial, pelo que acabaram depressa o trabalho e viram-se de novo atirados para o camião. Estavam finalmente a fazer aquilo para que haviam sido treinados, mas, ao cabo de tantas horas de viagem, já ninguém parecia especialmente excitado com a perspectiva de entrar em combate.

Francisco fungou e escarrou lá para fora. O camião erguia uma nuvem de poeira no seu encalço, ocultando os camiões que seguiam atrás. Murillo tinha razão, pensou o português. A viagem estava a tornar-se demasiado longa. Com um pouco de sorte, considerou, ainda lhes dariam umas horas de descanso antes de voltarem a entrar em acção. Mas talvez não o fizessem; afinal eles eram a ralé, os piores dos piores, os mais brutos da criação, e provavelmente ninguém se preocuparia com questões tão insignificantes como o cansaço.

A verdade é que a piores viagens já ele se submetera. De olhos fixos na nuvem de pó que se levantava atrás do camião, Francisco reviu a sua vida desde o momento fatídico que tudo mudara, o instante em que matara Tino com as suas próprias mãos em Castelo de Paiva. Tratou-se de um momento de viragem na sua vida porque foi nessa altura que se tornou um animal acossado.

Saltitando ao ritmo dos solavancos do

camião, passou na mente as imagens da aventura que foi a fuga à GNR. Depois de sair da Quinta de Pousada, meteu-se pelos montes, atravessou o rio e refugiou-se sob a giesta de uma grosseira cabana do vale do Sousa, mas a guarda começou a rondar o local e fora obrigado a mudar-se para Trás-os-Montes. O cerco apertou-se de novo e viu-se forçado a descer para Castelo Branco.

Descobriu que afinal o seu nome também estava referenciado pela polícia de toda aquela região, pelo que, após algumas semanas a saltitar daqui para ali, roubando comida e assaltando viajantes, sentiu-se cansado de tanto fugir e decidiu cruzar a fronteira.

Começou a deambular por Espanha. Voltou aos assaltos e aos roubos, era a única maneira que tinha de comer para viver, e depressa acabou com a Guardiã Civil no encalço. Foi nessa altura que as conversas com outros vagabundos lhe revelaram a existência de uma organização militar onde, dizia-se, se aceitavam recrutas sem perguntas nem documentos, e ainda era oferecido um prémio de quinhentas pesetas por uma comissão de cinco anos e quase quatro pesetas mensais de soldo, mais uma gratificação anual de mil e quinhentas pesetas.

Um paraíso.

Francisco dirigiu-se à localidade mais próxima, que no caso foi Salamanca. Perguntou por um posto de recrutamento e, quando o encontrou, nem hesitou. Entrou lá dentro e quis saber se tudo o que lhe haviam dito era verdadeiro, se ninguém fazia perguntas e até lhe pagavam um soldo.

Responderam-lhe que sim. Satisfeito por ouvir a confirmação, logo anunciou que se queria inscrever.

"Como te llamas?", perguntou o graduado que lhe preencheu os documentos.

Francisco hesitou. Depois do "Francisco" ainda esteve para dizer o nome da família que o adoptara e com o qual se


baptizara, "Rodrigues". A boca ainda tinha formado o "Ro...", mas conteve-se a tempo; apesar de a inteligência não ser um dos seus principais atributos, percebeu nesse instante que começaria ali uma vida nova e precisava de um novo nome. Mais do que isso, precisava de um nome limpo. Limpo.

Lembrou-se do Tino, do Constantino Latino que assassinara semanas antes com as suas próprias mãos, e achou que seria boa ideia ressuscitar o morto. Era uma forma de desfazer o que havia feito e talvez assim conseguisse um perdão dos céus.

"Latino."

"Francisco Latino?"

"Isso."

Rabiscou desajeitadamente uma cruz nos papéis que lhe estenderam e foi cumprimentado pelos homens do posto de recrutamento, que lhe ofereceram um copo de Rioja para assinalar o momento.

Se soubesse ler teria logo decorado o nome da organização na qual acabara de se inscrever. O topo do papel de inscrição ostentava um logótipo e três palavras castelhanas. Tercio de Extranjeros.

A Legião Estrangeira.

III

Esperaram algum tempo sentados numa velha e dura cadeira de madeira, o sol forte da tarde a jorrar pela janela, transformando a salinha que servia de antecâmara ao gabinete do comandante num verdadeiro forno. O Verão ia adiantado e o calor apertava naquele dia de Agosto de 1936, fazendo da sala uma estufa abafada, como se os seus ocupantes estivessem a banhos.

O coronel Silvério tinha ido almoçar a casa e estava atrasado; é certo que a falta de pontualidade era desaprovada pela etiqueta militar, mas o facto é que a violação dessa etiqueta constituía uma prerrogativa que alguns superiores hierárquicos gostavam de chamar a si.

"Acha isto normal?", quis saber Luís, rodando a cabeça num irreprimível tique nervoso.

A convocatória enervara-o e via naquele atraso mais um mau augúrio. Seria possível que o coronel se encontrasse naquele momento na polícia? Teria Francisco sido mesmo capturado? Estaria a demora relacionada com trâmites policiais ou judiciais? A espera deixava-o inquieto para além do suportável. Com toda aquela ansiedade, não conseguia ficar quieto na cadeira; mexia os braços e as pernas sem cessar, dobrando-os e esticando-os, os pés quase a dançarem no soalho, as mãos ocupadas com tudo e com nada.

"Tenha calma, homem", pediu o capitão Branco, impressionado com tamanho desassossego.

"Ele já aparece."

"Mas não acha estranho todo este atraso? Já estamos aqui há quase meia hora, que diabo! Deve estar a passar-se qualquer coisa..."

"Que coisa?"

"Não sei. Qualquer coisa, sei lá."

"Não se apoquente, o nosso comandante é mesmo assim."

"Meia hora de espera?" Luís pôs-se de pé, já incapaz de conter o nervosismo. "Não, não é normal."

"Oiça, Luís, por que razão está assim tão nervoso?", perguntou o capitão. "Passa-se alguma coisa?"

"Não, nada. É só que estranhei esta convocatória. Não acho normal o nosso comandante querer falar comigo. Ainda por cima chega atrasado..."

"Você não roubou nada, pois não?"

"Que eu saiba, não."

"Então está preocupado com quê?" Baixou a voz, para não ser escutado. "Você não sabe que o nosso comandante não é uma pessoa pontual? Ele até costuma dizer que os subordinados foram feitos para esperar..."

"O meu capitão tem a certeza?"

"Claro. Eu próprio já o ouvi dizer isso."

As palavras do capitão Branco acalmaram momentaneamente Luís, que voltou a sentar-se.

Tinha de controlar os nervos, pensou. Estivesse ou não ansioso, isso não impedia que o que tivesse de acontecer acontecesse. Além do mais, se Francisco tivesse sido capturado, tal já se saberia. Ou não?

O alferes Boavida entrou na antecâmara e interrompeu o vicioso e obsessivo ciclo de maus augúrios.

"Vem aí o nosso coronel", anunciou.

A chegada do comandante do regimento foi precedida pelo som de passos apressados a aproximarem-se, traque, traque, trunque, trunque, até que a porta se abriu com fragor e o coronel Silvério entrou de rompante na antecâmara, como se uma súbita tempestade ali tivesse desabado.

Com um salto, Luís e o capitão Branco ergueram-se da cadeira e fizeram continência ao mesmo tempo, os movimentos coordenados, como se tivessem ensaiado a saudação.

"Meu comandante."

O coronel acenou com a cabeça, fazendo sinal aos subordinados de que o seguissem.

"Ah, meus senhores", disse, abrindo a porta do seu gabinete. "Venham daí, temos de conversar."

O tom tranquilizou de imediato o alferes veterinário. Se fosse caso de polícia, o comandante teria falado de outro modo e provavelmente viria acompanhado da polícia militar ou civil. Foi como se um peso lhe tivesse saído do peito, embora se mantivesse em alerta. Fosse qual fosse o assunto, decidiu, convinha ser prudente na conversa. Meteu na cabeça que o importante era ouvir e não falar, não se fosse dar o caso de dizer algo que atraísse desnecessariamente as atenções sobre si.

O comandante do regimento era um indivíduo baixo, de cabelos brancos a escassearem no topo da testa e uma barriguinha que traía a natureza indolente de homem pachorrento e amigo do bom garfo. No gabinete ostentava as bandeiras portuguesa e do regimento instaladas por trás da secretária, mesmo ao lado de uma enorme fotografia a preto e branco com o rosto seráfico de Salazar. Contudo, e ao contrário do que era habitual quando despachava com subordinados, o coronel optou por se sentar no sofá, convidando os dois subalternos a fazerem o mesmo.


"Fumam?", perguntou Silvério, exibindo um maço de cigarros logo que se acomodou.

"Agora não, meu comandante", disse o capitão, secundado pelo alferes. "Obrigado."

Silvério acendeu um cigarro e soltou uma nuvem cinzenta de fumo.

"Gosto sempre do meu cigarrinho depois do almoço", comentou com ar descontraído. "Os senhores não?"

"Eu prefiro o meu café, meu comandante."

Luís permaneceu calado, deixando o capitão Branco fazer as despesas da conversa e limitando-se a emitir um grunhido enquanto fazia sim e não com a cabeça.

"Querem que eu peça um café?"

"Não, não. Já tomámos ao almoço, meu comandante. Obrigado."

O coronel aspirou o cigarro e inclinou-se para a frente, assinalando que o curto interlúdio para a conversa de circunstância tinha terminado. Chegara a altura de ir direito ao assunto.

"Meus senhores, chamei-vos aqui por causa de uma missão delicada que vos vou confiar."

Mirou o cigarro que lhe ardia entre os dedos amarelados de nicotina como se procurasse palavras para introduzir o tema. Ergueu por fim os olhos e fixou os subordinados. "Como sabem, houve no mês passado um levantamento militar em Espanha e aquilo vai

para lá uma enorme confusão, com os tipos todos aos tiros uns aos outros."

Fez uma pausa, como querendo confirmar que as suas palavras não traziam novidade nenhuma aos seus interlocutores, esforço decerto escusado, uma vez que por essa altura não devia haver adulto em Portugal que não soubesse que a guerra civil eclodira em Espanha.

Mesmo assim, e confrontado com aquele silêncio interrogativo do seu superior hierárquico, Mário Branco sentiu-se na obrigação de corresponder.

"Temos ouvido as notícias, meu comandante."

Luís continuou calado. Não era um oficial de carreira, mas um médico veterinário, pelo que não percebia bem o seu papel naquela conversa.

"E qual a vossa opinião?", quis saber o comandante.

Os dois homens remexeram-se no sofá, pouco à vontade. Não ignoravam a simpatia com que o regime encarava a revolta em Espanha e sabiam que um alinhamento errado poderia trazer-lhes problemas. As cautelas eram maiores da parte de Luís, devido ao seu menor estatuto no quartel, mas também por causa das opiniões antagónicas que nutria em relação à ditadura e sobretudo pelo facto de estar determinado a manter-se o mais invisível possível. Olhou por isso para Mário Branco, como que a pedir-lhe que respondesse por ele.

"Meu comandante, acho que se está a passar agora em Espanha o que aconteceu em Portugal em 1926", começou o capitão por dizer. "Os Espanhóis cansaram-se da bagunça republicana e querem pôr ordem na casa, só isso. Não nos podemos esquecer do que foram aqueles tempos de anarquia no nosso país, com a carestia de vida, a fome que havia por toda a parte, a violência, a indisciplina a todos os níveis da

sociedade, incluindo nos quartéis. Enfim, o caos. Não se lembra o meu comandante que, em apenas cinco anos, tivemos uma série de governos?"


"Dezoito."

"Pois, está a ver. E ao longo dos dezasseis anos de república houve também uns dezoito golpes de estado e revoluções."

"Foram mais", corrigiu o comandante. "Foram dezoito governos e vinte e dois golpes e revoluções. Contei-os todos, um a um. Vinte e dois golpes e revoluções, veja só!" Indicou com a cabeça a enorme fotografia de Salazar pregada à parede, por detrás da secretária. "Se não fosse aquele senhor ali, não sei não. Portugal não se punha direito."

"Pode ter a certeza disso, meu comandante. A diferença entre nós e os Espanhóis é que a nossa transição da bagunça para a ordem foi relativamente pacífica e a deles não está a ser."

O coronel Silvério aspirou de novo o cigarro que lhe bailava entre os dedos e inclinou-se para a frente, sinalizando que queria ser ele a dirigir a conversa dali para a frente.

"Há uma outra diferença, capitão", observou por entre o fumo, respeitando mais uma pausa, dessa feita com um certo ar de melodrama. "A nossa revolução de 1926 não teve impacto nenhum em Espanha. Nós ficámos com a ditadura e progredimos. Mas eles não foram influenciados pelo nosso rumo e caminharam em sentido contrário, pondo fim à monarquia e instituindo a democracia parlamentar, que abriu a porta a toda esta confusão. Primeiro ganharam as esquerdas, depois as direitas, e agora as esquerdas outra vez. O problema é que o que se está a passar em Espanha poderá ter um profundo impacto aqui em Portugal."

"O que quer dizer com isso, meu comandante? Não estou a entender..."

"Sabe, capitão, desde que foi instituída a república em Espanha que a gentinha do reviralho, que deixou de ter espaço aqui para as suas intrigas mesquinhas, resolveu fugir para lá. Encontraram entre os Espanhóis o espaço ideal para alimentar as suas conspirações da treta contra o regime. Isso seria para rir, não se desse o caso de esses idiotas encartados terem começado a ser usados pelos comunistas espanhóis para fomentar o grande plano de Moscovo de uma Península Ibérica vermelha. Os bolchevistas querem expandir o comunismo internacional e estão a encorajar os Espanhóis a abocanhar Portugal. Ora os palermas do reviralho que fugiram para Espanha aceitaram transformar-se em instrumentos dessa política expansionista dos vermelhos, tornando-se assim verdadeiros traidores à pátria."

Até aí sempre calado, Luís não conseguiu resistir nesse ponto e deu consigo a meter-se na conversa.

"Mas o meu comandante acha mesmo que os Espanhóis nos querem invadir? Não lhe parece que isso é um bocado conversa do... enfim, do regime?"

Silvério esboçou um gesto de impaciência.

"O alferes, não seja ingénuo! Então não sabe que a estratégia dos bolchevistas passa pela internacionalização do comunismo?"

"Mas quais bolchevistas, meu comandante?", insistiu Luís. "É verdade que a república tem comunistas, mas também tem socialistas, libertários e anarquistas."

"E então?"

"Bem, que eu saiba os socialistas, os libertários e os anarquistas não são bolchevistas."

"Não lêem Marx?"

"Sim, é verdade..."


"Então são marxistas! Socialistas, comunistas, anarquistas, libertários, sindicalistas... são tudo designações diferentes para

a mesma coisa! O que eles querem é subverter a ordem social, ou tem dúvidas?"

O alferes veterinário sentiu que não poderia ir longe de mais. Já questionar a ameaça do reviralho e a imagem que o regime dava dos republicanos espanhóis fora uma temeridade.

"Não, claro que não."

"Podem usar nomes diferentes, mas no fundo são todos comunistas." Ergueu o dedo indicador.

"E, se os comunistas assumiram o poder em Espanha, pode ter a certeza de que foram incumbidos por Estaline de o expandir. Eles querem repúblicas soviéticas por toda a parte. Olhe para a China!

Não sabe que os comunistas decretaram para lá a República Soviética de Jiangxi? A Espanha é a próxima peça do dominó. E agora diga-me lá: para onde é que a Espanha pode expandir o comunismo, hã? Para a França? Para o mar?" Abanou a cabeça, veemente. "Não!" Apontou para o chão com um movimento enérgico. "Para aqui! Para Portugal! Eles querem criar a União das Repúblicas Socialistas Ibéricas!"

Luís calou-se, intimidado com o tom peremptório do comandante. Mas o capitão Branco, mais à vontade e com outro estatuto, não hesitou em contra-argumentar.

"A Inglaterra nunca o permitiria, meu comandante", disse. "A nossa aliança com os Ingleses é a garantia de que os vermelhos espanhóis não se atreverão a incomodar-nos."

"Não vejo porquê."

"Porque os Ingleses, sendo nossos aliados, não vão deixar."

"Isso não é um obstáculo intransponível para os Espanhóis."

"Desculpe, meu comandante, não sei se será bem assim."

"Ai não? Então como será?"

A pergunta atrapalhou o capitão. A aliança com Inglaterra era um assunto elementar, sobretudo para um oficial do

exército, uma vez que se tratava de matéria abordada na Escola do Exército.

"Bem... tem a ver com os nossos posicionamentos estratégicos", disse, como se expusesse uma evidência. "Como o meu comandante muito bem sabe, a independência de Portugal assenta na ideia de que o país tem de viver de costas voltadas para a Espanha e de rosto virado para o mar. E o que está no mar? A Inglaterra. Os Ingleses ajudam-nos porque não querem uma Península Ibérica unida, seria uma ameaça demasiado grande. Nós ajudamo-los porque queremos continuar independentes.

Não vejo como possam os Espanhóis quebrar esta aliança."

O coronel Silvério deitou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

"O coronel, você está a ensinar o pai-nosso ao vigário?", perguntou. "Eu sei isso muito bem e os Espanhóis também sabem. E evidente que a nossa aliança com a Inglaterra resulta de uma convergência de interesses. Esses interesses mantêm-se."

"Então o meu comandante está a dar-me razão."

"No que diz respeito às vontades de Portugal e de Inglaterra, sim. O problema é que há interesses que colidem com os nossos e esses interesses estão a desenvolver um plano muito subtil contra nós."

"Está a falar de quê?"

"Estou a falar de Moscovo e de Madrid. A ideia dos bolchevistas é, primeiro, instalarem comunistas em Portugal e só depois criarem a grande Ibéria vermelha. Com um governo comunista português a aceitar a integração do país numa federação de Repúblicas Socialistas Ibéricas, os Ingleses nada poderão fazer."

"O meu comandante acha que é para aí que as coisas apontam?"

"Como é evidente", confirmou Silvério. "Mas nós vamos jogar na antecipação."

"O que quer dizer com isso?", admirou-se o capitão. "O que podemos fazer?"

"Podemos ajudar o exército espanhol, caro capitão."

Mário Branco arregalou os olhos, alarmado.

"Ajudar o... o exército espanhol, meu comandante? Mas nós vamos meter-nos nessa guerra?"

O coronel Silvério riu-se com gosto.

"Não no sentido em que está a pensar, capitão", exclamou com ar bem disposto. Recostou-se no sofá, um sorriso a bailar-lhe nos lábios. "Vamos ajudar o exército espanhol a derrotar os comunistas de Madrid, mas vamos fazê-lo em segredo."

"E podemos, meu comandante?"

"Se o vamos fazer, é porque podemos, não acha?"

"A minha dúvida refere-se às questões legais", explicou o capitão. "Uma ajuda ao exército espanhol não vai contra o Acordo de Não-Intervenção?"

O oficial referia-se ao plano proposto pela França de nenhum país ajudar qualquer das partes em conflito em Espanha. A ideia foi inicialmente aprovada por um conjunto de países, incluindo a Grã-

Bretanha e os Estados Unidos, mais três outros que aderiram com relutância, a União Soviética, a Alemanha e a Itália. Pressionado pelo consenso alargado, Portugal deu o acordo de princípio, mas foi atrasando a formalização dessa posição.

"Que eu saiba, ainda não assinámos o acordo."

"Mas diz-se que vamos assinar, meu comandante", observou o capitão, bem informado por O

Comércio do Porto.

"Oh, diz-se tanta coisa! Os Russos também assinaram o plano e é só vê-los a enviarem armas para os comunistas

espanhóis. Os Alemães e os Italianos também assinaram o acordo e já estão a ajudar o exército espanhol."

"Mas o que vão dizer os Ingleses quando perceberem que nós estamos a violar o acordo?"

"Não dizem nada! Foram eles quem teve a ideia deste esquema todo!"

"Não estou a entender, meu coronel. Se os Ingleses apoiam o Acordo de Não-Intervenção, é evidente que o vão fazer respeitar e que..."

O comandante ergueu a mão para o travar.

"Os Ingleses não vão fazer nada", interrompeu-o. "Eles estão assustados com a confusão que vai em Espanha, uma vez que os seus interesses se encontram seriamente ameaçados. E sabe de onde vem a principal ameaça? Dos comunistas e dos anarquistas. Vocês acham que os bifes gostam destas frentes populares que aparecem para aí como cogumelos a anunciar revoluções sociais? E

pensam que eles têm algum interesse em ver aparecer na Europa ocidental uma União das Repúblicas Socialistas Ibéricas? Claro que não! Se fosse criada aqui uma União Socialista Ibérica, isso poderia contaminar toda esta parte do continente. Já basta a que existe na Rússia!"

"Mas, se é assim, por que razão não ajudam os Ingleses directamente o exército espanhol?"

"E muito complicado. O problema dos bifes é que estão atados por uma catrefada de compromissos internacionais e pela simpatia de parte da sua opinião pública pelos republicanos."

Encolheu os ombros. "Isso significa que não podem actuar abertamente, mas precisam que alguém faça o trabalho sujo por eles. E quem é esse alguém, digam lá?"

"Nós?"

O comandante abriu as palmas das mãos e sorriu.

"Claro!", exclamou. "Reparem que, como pequena potência, Portugal pode servir de intermediário de uma grande potência, resolvendo assuntos de enorme melindre. Digamos que somos uma espécie de... de agentes dos Ingleses, estão a ver?"

"Hmm..."

"Aliás, se repararem, esta treta do Acordo de Não Intervenção não saiu da cabeça dos Franceses, mas dos Ingleses."

"Não foi isso que veio nos jornais."

O comandante tirou uma pequena maçã amarela do cesto de fruta que se encontrava pousado na mesinha do candeeiro.

"Os jornais apenas mostram a bonita superfície desta maçã, não o interior podre", disse, exibindo a peça de fruta. "Se bem se lembram, quando o exército espanhol se revoltou, os Franceses começaram a enviar equipamento militar para os vermelhos, através dos Pirenéus. Ora os Ingleses, que queriam cortar a ajuda aos vermelhos para facilitar o êxito da revolta, avisaram os Franceses de que teriam de fechar a fronteira. A Inglaterra disse que, se a França continuasse a ajudar os comunistas e, por causa disso, viesse a entrar em guerra com a Alemanha, se sentiria desobrigada de ajudar os Franceses. O Blum, em Paris, quando ouviu isto ficou borrado de medo, pois claro, e fechou mesmo a fronteira. Mas, como os bolchevistas franceses e os sindicatos se puseram a protestar, ele inventou esta xaropada do Acordo de Não-Intervenção para se safar do engulho."

"Estou a ver", assentiu o capitão.

O coronel Silvério aspirou o cigarro pela última vez e esmagou-o no cinzeiro que se encontrava na mesa ao lado do sofá. Deixou sair o fumo pela boca e pelas narinas e pigarreou, como se estivesse a indicar que por fim iria direito ao assunto.

"Ora bem, meus caros", começou por dizer. "Eu queria ouvir a vossa opinião e explicar-vos todas estas coisas porque vou incumbir-vos de uma missão muito delicada." Afinou a voz, como se estivesse rouco, e ergueu dois dedos. "Na verdade, são duas missões." Apontou para o capitão. "A primeira é consigo." Pegou nuns papéis que tinha pousado sobre a mesa. "Foram emitidas ordens de Lisboa para serem criadas duas organizações especiais. Uma é a Legião Portuguesa, dependente dos ministérios do Interior e da Guerra e que se destina a criar uma milícia paramilitar, organizada à maneira da Legião Estrangeira espanhola, com batalhões, terços, lanças, secções e quinas, para fazer frente a eventuais focos de contestação interna dos comunistas e reviralhistas que queiram aproveitar os maus ventos que vêm de Espanha."

"Se me permite, meu comandante, isso parece-me uma coisa inspirada no Mussolini. Não sei se me agrada..."

O coronel Silvério suspirou.

"A bem dizer, nem a mim me agrada. Acho esta força paramilitar uma ideia concebida pelos fascistas, e aproveitada pelo regime, para nos manter nos quartéis e para mostrar que não precisam de nós na manutenção da ordem nas ruas." Encolheu os ombros. "Mas, enfim, ordens são ordens, não é verdade? De qualquer modo, esta força nada tem a ver consigo, fique descansado." Fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas. "A segunda organização, no entanto, é diferente. Já ouviu falar na Mocidade Portuguesa?"

"Claro que sim. E uma nova organização de escuteiros, não é verdade?"

"De certo modo, mas com uma componente política. A Mocidade Portuguesa vai abranger toda a juventude, incluindo a que não anda na escola. O regime quer estimular o exercício físico, as actividades de grupo, o amor à pátria, o

sentido de ordem, disciplina, respeito... essas coisas. A ideia é mudar a mentalidade do povo, está a ver? Queremos acabar com a desorganização, o caos, a falta de solidariedade, o desregramento e esta coisa muito portuguesa de falar muito e fazer pouco." Fez um gesto enfático com a mão, quase galvanizado. "Vamos pôr fim ao português da bandalheira e criar o português novo, moderno, solidário, respeitador, patriota."

"Assim dito, meu comandante, parece uma ideia interessante."

O coronel Silvério sorriu, satisfeito com a sua tirada, e apontou o dedo ao subordinado.

"Ainda bem que acha isso, porque será você quem vai organizar e chefiar o núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa."

"Eu?", admirou-se o capitão Branco. "Não haverá outra pessoa que possa fazer isso?"

"Você é um organizador nato e esta missão assenta-lhe que nem uma luva." Depois olhou para Luís. "A segunda missão envolve-vos aos dois. É uma coisa estritamente confidencial e nem sequer às vossas famílias podem falar disso, entendido?"

Os dois subordinados assentiram. O coronel levantou-se e dirigiu-se a um mapa de Portugal pregado na parede.

"Ora bem, em algumas áreas raianas estamos a montar operações de apoio ao exército espanhol", disse, indicando a linha de fronteira. "Coisa secreta, bem entendido. Algumas destas operações envolvem a recepção e o alojamento de fugitivos espanhóis, muitos dos quais precisam de assistência médica. Daí que o exército esteja a incluir médicos nas unidades encarregadas de ajudar os espanhóis." Indicou Luís. "Pois é aí que você entra.

Recebi esta manhã ordens para contribuir com uma companhia que integre um médico.

Mas, como sabe, o problema é que perdemos o doutor Maurício e o Porto ainda não nos enviou um substituto. Logo, terá de ser você a fazer o lugar."

"Não há problema", devolveu Luís. "Para onde vamos nós, meu comandante?"

O coronel Silvério indicou no mapa o ponto da fronteira em Valença.

"Aqui para o Minho, junto à fronteira galega." Olhou para o outro oficial. "O nosso capitão também irá para chefiar a nossa companhia."

Mário Branco fixou a atenção no mapa.

"Será uma operação da nossa exclusiva responsabilidade, meu comandante?"

"Claro que não. Vocês irão articular-se com o regimento de Viana do Castelo, que também enviou uma unidade para Valença." O coronel Silvério voltou a sentar-se e pegou no cigarro que tinha deixado pousado no cinzeiro. "Preparem-se para uma missão complicada."

"Porque diz isso, meu comandante?"

Com intencional lentidão, o responsável pelo regimento cruzou as pernas, inspirou fundo o cigarro e exalou uma densa nuvem de fumo cinza que rodou pelo ar em rolos, como anéis etéreos em metamorfose.

"É possível que alguns refugiados sejam comunistas."

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