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O português hesitou um instante, o suficiente para denunciar a culpa, mas logo recuperou o semblante despreocupado e fez um gesto em direcção à cidade.
"Adiante. Vá, despacha-te."
Quando a coluna passou, Francisco foi chamar Juanito e relatou-lhe a conversa do motorista. O
ajudante de munições abandonou o posto para ir informar-se sobre o caso junto do sargento Gomez e voltou uma hora depois com um papel nas mãos.
"É tudo verdade", confirmou, acenando com a folha. "O tenente-coronel Yagúe emitiu esta ordem." Ajeitou o papel e leu-o. "Los actos de crueldad serán severamente castigados", recitou em voz alta. "Las razias y el pillage desprestigian a la unidad que los cometen y desbonran ai Ejército.'" Ergueu a cabeça e olhou para Francisco. "No pueden admitirse."
Um pequeno grupo passou por eles. Eram três legionários da I Bandera e acompanhavam um rapaz novo, de aspecto andrajoso e que caminhava em peúgas. Do outro lado da ponte, os legionários mandaram-no parar, afastaram-se dois passos, apontaram as Mauser e dispararam. O
rapaz tombou no chão com um barulho seco, como um saco, sem uma palavra, sem sequer um ai.
"E isto?", perguntou Francisco, apontando para os legionários que empurravam o corpo para uma vala. "Este fuzilamento vai ser castigado?"
Juanito abanou a cabeça.
"Não, hombre. Este castigo foi ordenado pelo comando."
"Ah! O comando pode ser cruel, mas nós não. É isso?"
"Sim."
O português suspirou.
"Está bem, está bem. Já percebi." Olhou em redor e fez uma careta impaciente. "Estou farto desta merda, sabes? Quando é que saímos daqui?"
"Pois essa é a outra novidade que o sargento me deu."
"Ai sim?"
"Vamos partir, hombre! E desta vez não será para enfrentarmos uma escaramuçazita, não. Cono! Vamos envolver-nos numa coisa maior."
"Que coisa?"
"Uma grande batalha."
Francisco sorriu.
"Aleluia! Vamos para Madrid?"
"Não, hombre. Ainda não."
"Então?"
"Vamos tomar Badajoz."
VII
O apoio aos refugiados ficou a cargo do capitão Branco, coadjuvado por Luís, a quem cabia tratar de toda a parte sanitária. Os dois oficiais ergueram um campo nos arredores de Valença para alojar os galegos e organizaram a estrutura logística de suporte. Tratava-se, como seria de esperar, de hóspedes indesejados, pelo que depressa vieram ordens do Porto para evitar os contactos entre os milicianos galegos e a população portuguesa; era evidente que o regime receava contágios ideológicos. O próprio capitão Branco se sentiu inicialmente desagradado por estar a lidar com comunistas e anarquistas, mas trabalho era trabalho.
Luís, no entanto, ganhou uma certa amizade a um dos galegos, um indivíduo de bigode fino chamado José Alexandre, evidentemente mais instruído do que os restantes. Ambos conversavam amiúde à hora do almoço, por vezes na companhia do capitão Branco, que se ia habituando e se mostrava particularmente interessado em perceber o que tinham os comunistas contra a Igreja.
"A relixión é o ópio do pobo" , explicou-lhe José Alexandre naquele galego quase igual ao português.
"Que disparate é esse?"
"Foi Marx quen o dixo. Para el, a crítica da relixión é o fundamento de toda a crítica.'''
"Mas o que diabo vos fez a Igreja de mal?"
"A Igrexa non nos causou ningún mal a nós, ou a min en particular, mais ás masas si que lies causou moito mal argumentou o miliciano. "A Igrexa educou as persoas a resignárense ás relacións de poder existentes na sociedade, convencéndeoas para que non se revoltasen contra a inxustiza, contra a degradación, contra a miseéria, mais antes a aceptarem todo, a aguantaren todos eses males, a conformárense coa súa situación, a daren a outra fazula a quen as agredia.
Como é evidente, esa postura é a que convén aos capitalistas explotadores, que dese xeito ven perpetuar a súa dominación sobre as masas explotadas. Por iso é importante encarar a relixión e acabar con ela, erradicala da nosa cultura. Sen a relixión, o proletariado e os campesinos libértanse do medo e revóltanse contra este sistema que os oprime sen piedade."
Estas conversas acabavam sempre em acaloradas discussões, com o português e o galego em pólos opostos e Luís no meio a tentar conciliá-las. Mas o capitão apreciava as disputas ideológicas com o miliciano, elas davam-lhe acesso a ideias que nunca tinha considerado; reconhecia até fundamento em muitas delas, pareciam-lhe fazer sentido, mas a verdade é que um pensamento tão radical não se coadunava com a sua natureza conciliadora e a educação católica que recebera.
Gostava de conhecer aquela perspectiva diferente, mas sabia que nunca a partilharia.
Por entre o trabalho com os refugiados, os dois oficiais enviados de Penafiel foram também envolvidos no abastecimento
humanitário à Galiza, uma região já totalmente nas mãos dos revoltosos. Gerara-se por Portugal inteiro um sentimento de solidariedade para com os espanhóis. Os simpatizantes dos republicanos comentavam em surdina os acontecimentos, mas os apoiantes dos nacionalistas não ocultavam o seu fervor; para eles a guerra era uma cruzada do cristianismo contra a ameaça vermelha.
A Igreja apoiava a cruzada, uma reacção natural perante as insistentes notícias de que os comunistas e anarquistas espanhóis andavam a queimar igrejas e a assassinar padres e freiras com requintes de crueldade, actos que incendiavam os ânimos dos católicos portugueses e os impeliam à acção. Daí até se organizarem campanhas para enviar auxílio às populações espanholas na zona nacionalista, em especial na irmã Galiza, foi um pequeno e inevitável passo.
Quando lhe apareceu a primeira coluna de camiões na ponte internacional, seis dias depois da tomada de Tui, Luís estava determinado a ser rigoroso. Bem vistas as coisas, tratava-se da primeira inspecção sob a sua responsabilidade, pelo que optou por não se contentar em despachar a burocracia.
O alferes veterinário pediu a identificação dos motoristas e consultou os salvo-condutos e toda a documentação da coluna; os papéis revelavam que os camiões transportavam leite e alimentos destinados às populações espanholas.
"Não é melhor verificar isso?", perguntou Luís, olhando com desconfiança para os documentos.
"Para quê?", perguntou o capitão Branco, pegando nos papéis. Inspeccionou as assinaturas e os carimbos. "Está tudo regular."
Luís apontou para a referência à carga.
"Eles levam leite e alimentos. Será que está tudo em condições? O leite é coisa para se estragar depressa, sobretudo com este calor."
"Você acha?"
"Qual o problema de verificar? Afinal sou médico, não sou? Não custa nada dar uma vista de olhos."
Convencido, Mário Branco saltou para a carga do segundo camião com Luís e o sargento Guedes no encalço e foi verificar os contentores que o veículo transportava. Eram caixas de madeira, com a palavra Beirolas impressa sobre as tábuas. O capitão estranhou a palavra e mandou o sargento Guedes abrir um dos contentores.
"Meu capitão", protestou o responsável pela coluna. "Os contentores só podem ser abertos no destino."
"Eu é que sei onde podem ser abertos", retorquiu o oficial de uma forma que não admitia discussões.
"Mas essas são as'minhas ordens", insistiu o responsável.
"E as minhas ordens são garantir que o abastecimento às populações chega em condições à Galiza." Apontou de novo para o condutor. "Abra a caixa, se faz favor."
Com a ajuda de uma alavanca metálica, o sargento levantou umas tábuas e expôs o interior escuro da caixa. O capitão pegou numa lanterna e apontou-a lá para dentro. Reconheceu cartuchos para espingardas Lebel e granadas de morteiro de 50 milímetros, obviamente retirados do depósito que o exército português tinha em Beirolas. Mandou fechar a caixa e saltou para fora do camião.
"Podem prosseguir", disse ao responsável da coluna, num tom azedo. "Já vi que têm ali muito leite para as crianças galegas."
Não voltaram a inspeccionar colunas.
Nessa noite, depois do jantar e com um cálice de conhaque na mão, os dois oficiais de Penafiel comentaram o assunto com o major Tereso, que chefiava a unidade de Viana do Castelo também estacionada em Valença. O oficial minhoto ouviu-os e riu-se com o incidente.
"O meus amigos, vocês realmente...", desabafou Tereso, abanando a cabeça. "Então não sabem que andamos a armar os nacionalistas à socapa?"
"Agora sabemos", disse o capitão com um encolher de ombros. "Mas antes não sabíamos, o que quer que lhe faça? Pensávamos que era mesmo ajuda alimentar e quisemos ver se a comida estava em condições de consumo."
Nova gargalhada do major.
"Vocês são cómicos!" O major Tereso engoliu um trago do seu conhaque. "Oiçam, nunca vos contaram o que se passa no porto de Lisboa?"
O capitão e o alferes entreolharam-se.
"Não."
"O meu cunhado é despachante em Lisboa e esteve-me a contar que aquilo vai para lá agora um corrupio que só visto", disse com uma expressão enigmática, como quem se prepara para partilhar um grande segredo. "Chegam navios e navios da Alemanha e de Itália, descarregam material sanitário e pianos em contentores, essa carga é colocada nos comboios e ala para Espanha!" Fez um ar sarcástico. "Claro que chamar material sanitário e pianos àquilo é uma forma de falar. Noutro dia, o navio alemão Kamerun descarregou no cais de Santa Apolónia um fornecimento de combustível. O meu cunhado estava por lá a tratar de uns assuntos quando um dos contentores caiu do guindaste e se partiu. Pois sabem o que viu ele?"
Os dois interlocutores inclinaram-se para a frente, curiosos, os olhos muito abertos.
"Partes de aviões desmontadas e empacotadas em caixas", exclamou o major, olhando de relance para os lados como se se quisesse assegurar de que mais ninguém escutava a conversa.
"Ele pôs-se lá a meter o nariz e percebeu que eram aparelhos de reconhecimento Heinkel 46."
Voltou a rir-se. "Ora aí está o abastecimento às populações que nós estamos a enviar para Espanha!
Mandamos aviões de guerra, tanques ligeiros, bombas, granadas, munições, espingardas, metralhadoras e gases asfixiantes."
Luís fez uma careta, agastado.
"Se isso se sabe, é uma grande bronca."
"Ora! Já toda a gente percebeu o que se passa."
"Eu digo lá fora. Se os Ingleses sabem disto, por exemplo, vai ser uma chatice. Eles fazem tanta questão no Acordo de Não Intervenção..."
O major agarrou no cálice e mirou o líquido cor de caramelo que bailava no interior.
"Na semana passada estiveram aqui os bifes."
"A sério?"
"O regime autorizou os Ingleses a inspeccionarem a nossa fronteira, não sabiam?"
"O meu major deve estar a brincar", disse o capitão Branco. "Isso não pode ser."
"O nosso capitão acha-me com cara de brincalhão? Estou-lhe a dizer que o regime autorizou os bifes a fiscalizarem o que aqui se passa. Pois eles na semana passada vieram cá e viram as colunas a passar para o outro lado da fronteira."
"Mas os Ingleses inspeccionaram a carga?"
"Eu estava com eles quando foram espreitar, assim à socapa. Eram Mauser novinhas em folha."
"E então? O que fizeram eles?"
O major Tereso acabou de engolir o conhaque que lhe restava no cálice e ergueu-o no ar, como se fosse fazer um brinde.
"Confirmaram que era tudo bens de primeira necessidade destinados a aliviar o sofrimento da população civil, coitadinha!"
VIII
Os legionários colocaram as baionetas na ponta das Mau-ser e ajeitaram as cintas de lona, onde guardavam as munições e o cantil de alumínio. Contemplaram as muralhas do outro lado do rio e sentiram a ansiedade crescer-lhes no peito, como se o ar os sufocasse. A tez rosada de Francisco transpirava com abundância. Eram duas da tarde e o sol brilhava alto e inclemente, fustigando com dureza o bairro de San Roque e os homens que ali se encontravam.
Depois de ultimarem os preparativos, alguns legionários ajoelharam-se para rezar, outros sentaram-se no chão e voltaram o rosto para o céu, os olhos fechados e as narinas dilatadas, tentando acalmar o coração descontrolado e aspirar a brisa quente desse dia 14 de Agosto.
"São malucos", comentou Francisco.
"Sim, é uma loucura", concordou Juanito. "Não se monta assim um assalto."
O português cuspiu para o chão.
"Vamos ser massacrados.
Sem pronunciar mais uma única palavra, Francisco verificou pela sexta vez a colocação da cinta de munições na Hotchkiss e passeou a mira pelo topo das muralhas diante dele.
Instantes depois, o sargento Gomez aproximou-se do local onde os homens da companhia das metralhadoras se sentavam.
"Hombres de la 12." compartia" , disse, o tom um pouco solene. Era notório o seu nervosismo.
"A bandera vai avançar dentro de alguns minutos. É vossa responsabilidade dar a cobertura adequada às outras companhias."
Francisco ergueu a mão.
"Meu sargento, então e os outros?"
"Quais outros?"
"Onde está a cobertura da artilharia, meu sargento? Onde está a protecção dos aviões?"
Gomez fez um ar resignado.
"A bandera irá avançar apenas com a cobertura das metralhadoras da 12.a companhia."
"Mas isso é uma loucura!"
"Silêncio!" Ergueu a voz. "Ordens são ordens! Cada homem fará o seu dever. Arriba Espana!"
O sargento deu meia volta e afastou-se. Os homens agitaram-se com nervosismo e Juanito levantou-se e foi a correr na direcção do sargento, que conhecia bem por serem ambos da mesma região de Espanha.
Sem compreender a táctica, Francisco voltou para o seu lugar e pôs-se a estudar de novo as posições inimigas. Estariam os oficiais a ver alguma coisa que ele não descortinava? Quanto mais perscrutava as muralhas de Badajoz, todavia, mais se convencia de que o assalto era de facto uma acção suicida. Os republicanos estavam bem entrincheirados por detrás dos muros protegidos por sacos de terra e dispunham
de várias metralhadoras em posições cruzadas. Um ataque frontal sem qualquer cobertura parecia-lhe uma loucura.
"Madre mia, estamos tramados."
Ouviu uma voz atrás dele. Olhou para trás e viu Juanito juntar-se a ele, os olhos injectados de medo.
"Então?", perguntou. "Qual é o plano desses idiotas?"
"Não são idiotas, são orgulhosos." O espanhol apontou na direcção de Badajoz. "Estás a ouvir este tiroteio?"
Ouvia-se de facto tiroteio intenso por trás das muralhas. O pop-pop-pop contínuo lembrava a Francisco o estalar dos foguetes em dia de feira de São Martinho, em Penafiel.
"Sim", confirmou. "E daí?"
"São os homens de Castejón. O sargento disse-me que eles penetraram no Sul da cidade pela Puerta dei Pilar. Estão a combater nas ruas há quase quatro horas." Fez um gesto em redor. "E aqui encontramo-nos nós, retidos no bairro de San Roque. Asensio diz que não pode ser."
"Não pode ser, porquê? Estamos retidos porque temos estas muralhas à nossa frente, não por sermos maricas."
Juanito abanou a cabeça.
"Não pode ser", repetiu. "O sargento disse-me que o comandante Asensio não aceita isto."
"Não aceita, como?"
"É uma questão de orgulho, hombrel O comandante Asensio decidiu que nós não podemos ser ultrapassados pelos homens de Castejón. É uma vergonha."
Francisco olhou para o amigo com uma expressão de incredulidade. Podia ser um abrutalhado, mas de golpes de mão e de assaltos a posições inimigas percebia ele.
"É por isso que vamos atacar sem protecção da aviação ou da artilharia? Para que o comandante Asensio não passe uma vergonha?"
"É estúpido, não é? O sargento disse-me que o comandante está possesso, grita que é preciso atacar, custe o que custar. Temos de nos juntar àquele cofio do Castejón porque se não...
"Senão, o quê?"
"Joder! Senão vamos ser a chacota da Legião!"
"Se me disserem para avançar, eu avanço", retorquiu Francisco. "Mas isto não é normal.
Ninguém manda os seus homens suicidarem-se por uma questão de orgulho. Nós precisamos de cobertura aérea ou de artilharia para termos alguma hipótese de êxito. Senão vamos morrer todos."
O espanhol baixou a voz.
"Não é só a reputação da IV Bandera que está em jogo", adiantou, num tom secretivo. "O
sargento acha que o comandante Asensio tem medo de ser substituído na chefia das banderas. Foi sobretudo por isso que mandou atacar."
Carregando as sobrancelhas numa expressão de perplexidade, Francisco fixou os olhos na muralha.
"Mas atacar por onde?"
Juanito indicou um ponto na muralha.
"Por ali", disse. "É a Puerta de la Trinidad. O sargento ouviu o capitão Fuentes dizer que é a nossa única hipótese."
Francisco observou com atenção a entrada, aberta na base do paredão, e estudou as posições defensivas que a protegiam. Concluída a inspecção, suspirou e abanou a cabeça, pessimista.
"Não vai ser fácil."
As duas e meia da tarde soou o cornetim da IV Bandera dando a ordem de ataque, e, acto contínuo, um carro blindado, comandado pelo capitão Fuentes, pôs-se em marcha.
"Hombres de la 16.* compania", gritou uma voz, a do capitão Caballero, reverberando no ar com emoção. "Adelan-teeeeeeee!!!"
Um bruá rouco ergueu-se de San Roque. Eram os legionários do primeiro pelotão da 16. 3
companhia a largar em direcção a Badajoz, homens unidos num grito, unidos no medo, unidos como irmãos numa arrancada louca, bravos touros lançados na arena da morte.
"A mi la Legión!", berrou o capitão Caballero, que comandava a carga de pistola em punho.
"Viva la muerteeee!", retorquiram os legionários em coro, na sua corrida atrás do blindado em direcção às metralhadoras inimigas.
Francisco reconheceu naquele clamor o grito de guerra dos legionários, o bramido enraivecido lançado das entranhas, bem do fundo, como se todos tentassem assim libertar o pavor que os paralisava, como se aquele grito lhes permitisse exorcizar o terrível medo da morte, abraçando-a como se ela fosse bem-vinda, dando-lhe vivas como se não a receassem. Ele próprio já o gritara mil vezes, "viva a morte", gritara-o em português, mas gritara-o. Porém, ali, naquele arremedo insano, naquela arrancada cega, o grito a saudar a morte percorreu-lhe a espinha e eriçou-lhe a pele, impressionou-o tanto que logo o dedo se contraiu no gatilho, como se a sua Hotchkiss pudesse impedir o que lhe parecia inevitável, o encontro daqueles legionários com aquela a quem tantos vivas davam.
As metralhadoras de Badajoz abriram fogo em resposta. O primeiro pelotão de legionários conseguiu enganar as primeiras balas, mas os republicanos corrigiram o tiro e as rajadas começaram a ceifar os homens que avançavam em terreno descoberto.
"Segundo pelotón" , gritou nova voz. "Adelanteeeeee!"
Uma nova leva de homens da 16.a companhia largou em corrida, dando vivas à morte, para a encontrar alguns passos adiante, quando o primeiro legionário tombou, e depois outro e outro ainda.
"Tercero pelotón. Adelanteeeeeel"
Os pelotões arrancaram uns atrás dos outros, numa cadência ritmada, quase cronometrada, os homens aos berros em direcção ao fogo inimigo, primeiro mortos de medo, depois mortos pelas balas que rasgavam o ar e a carne e os ossos.
Francisco premia o gatilho da sua metralhadora como um louco, virava para a direita, depois para a esquerda, tentava atingir as metralhadoras republicanas instaladas no alto das muralhas, procurava travar o seu fogo assassino. Mas parecia-lhe inútil, estava excessivamente longe e o inimigo era demasiado eficiente.
As metralhadoras republicanas encontravam-se posicionadas em frente e de flanco, e o tiro que vomitavam era certeiro e mortífero. Os legionários iam tombando uns atrás dos outros, como coelhos numa carreira de tiro, mas os que sobravam continuavam em corrida, no desespero de fintar a morte e chegar às Puertas de la Trinidad. Esgotaram-se os pelotões da 16.3 companhia e logo avançaram os da ll.a companhia e depois os da 10.a companhia, todos empenhados no assalto, a IV
Bandera a ser dizimada pelo fogo inimigo às portas de Badajoz, os homens cobertos apenas pelas metralhadoras da 12.a companhia.
Foi nessa altura que o blindado do capitão Fuentes virou para a direita, atraindo para si o fogo inimigo. Por momentos livres da chuva de balas que até aí interditava a progressão, os sobreviventes do segundo e terceiro pelotões atravessaram o leito seco do rio Rivillas e lançaram granadas em direcção às
Puertas de la Trinidad, criando assim uma nuvem de fumo que momentaneamente ocultou a sua progressão.
Mas depressa as metralhadoras inimigas se voltaram para eles e de novo travaram o avanço da infantaria, agora acompanhadas por morteiradas.
"Juanito", gritou Francisco, frustrado por não conseguir calar as balas republicanas. "Vamos também."
"Quer
"Anda!" O português pegou na Hotcbkiss e largou em corrida, juntando-se à carga da IV
Bandera. "Despacha-te, pandeiro!"
Vendo o companheiro a correr por ali fora, o espanhol pegou em três cintas de munições e, grazinando joder, cofio e outros palavrões, foi atrás dele. A meio do percurso, já perto do leito do Rivillas, quando as balas começaram a assobiar à sua volta, Francisco mergulhou sobre um molhe de legionários mortos. Eram três homens estendidos no chão em posições estranhas, desarticuladas; entre eles reconheceu Murillo, o jovial italiano com quem uma vez partilhara uma prostituta berbere na cantina de Dar Riffien.
Com os seus braços poderosos, o português pegou nos cadáveres dos companheiros caídos e estendeu-os uns por cima dos outros, como se fossem uma parede, amontoando-os como sacos de terra para lhe darem protecção. Meteu a Hotcbkiss pelo meio, por baixo da cabeça inerte de Murillo, e, satisfeito com a aproximação às muralhas, abriu fogo cerrado sobre a metralhadora mais próxima, uma que se encontrava posicionada de flanco. A rajada foi tão intensa e certeira que a metralhadora inimiga se calou imediatamente por entre uma nuvem de poeira.
"Já levaste", rosnou entre dentes.
Girou a Hotcbkiss para a frente, apontou para outra metralhadora inimiga e abriu de novo fogo, largando uma nova
nuvem de poeira no sector da muralha de onde partiam as balas que dizimavam a IV Bandera.
"Entonces?", perguntou Juanito, ofegante, atirando-se para o seu lado com as cintas de munições. "É melhor daqui?"
"Muito melhor."
O sargento Gomez apercebeu-se do sucesso da manobra e deu ordens para que se imitasse a iniciativa de Francisco e Juanito. Uma outra metralhadora da 12.a companhia avançou de imediato, posicionando-se a meio do terreno, igualmente protegida pelos corpos dos legionários abatidos no assalto. As duas metralhadoras encontravam-se agora bem mais expostas ao fogo inimigo, mas, em compensação, o seu tiro revelava maior precisão e eficácia.
Foi o momento decisivo.
O avanço das duas metralhadoras da 12.a companhia desorientou os defensores de Badajoz, divididos entre o fogo sobre os legionários que se aproximavam perigosamente da Puerta de la Trinidad e a necessidade de neutralizarem a 12.a companhia, cujo fogo certeiro aniquilava agora as metralhadoras defensivas. Esta indecisão revelou-se fatal.
Em alguns minutos, os sobreviventes da 16.a companhia alcançaram a brecha aberta na muralha.
Uma vez ocupada a Puerta de la Trinidad, procederam de imediato à limpeza do sector, logo acompanhados pelos homens da ll.a e da 10.a companhias, que entretanto penetraram também nas muralhas pela mesma entrada. Os legionários transformaram-se numa corrente que jorrava para dentro da cidade com as baionetas em riste, reluzentes, varrendo tudo o que mexia naquela arrancada final, uma enxurrada de homens e fogo e lâminas que arrastou tudo o que encontrou naquela carga cega, um rio de fúria a transbordar pelas margens vencidas das muralhas de Badajoz.
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Passou a combater-se bairro a bairro, rua a rua, casa a casa. Os sobreviventes da 16.a companhia, o capitão Caballero, um cabo e catorze legionários, invadiram o parapeito das muralhas e, movidos por uma ferocidade de bestas, abateram o que restava dos seus defensores. Lá em baixo, os restantes pelotões da IV Bandera espalharam-se pelas artérias da cidade. Logo que encontravam posições inimigas, chamavam os homens da 12.a companhia para regar os focos de resistência com fogo de metralhadora. Francisco e Juanito passaram a tarde e a noite a dar apoio aos múltiplos assaltos às posições defensivas republicanas, respondendo às sucessivas chamadas que lhes chegavam a todo o momento de toda a parte.
Ao amanhecer, os republicanos já só se encontravam entrincheirados na catedral. A 12.a companhia recebeu ordens para dar fogo de cobertura ao assalto final. A porta da catedral foi arrasada a tiro de canhão e os legionários irromperam pelo santuário, aniquilando o derradeiro foco de resistência dos republicanos.
Badajoz caíra.