IV

O calor era insuportável e por várias vezes Francisco teve de passar a manga pela testa para enxugar o suor que lhe escorria do topo do couro cabeludo. Ajeitou a Hotchkiss, realinhou a mira da velha metralhadora e largou mais uma rajada sobre a porta da igreja. Da entrada veio a resposta, três tiros de pistola, mas o português não se intimidou e descarregou nova chuva de projécteis sobre o local.

"Mete-me um novo cinto", grunhiu para o lado quando sentiu o gatilho a disparar em seco.

"Outra vez?"

"Mete-me um novo cinto, caraças!"

Juanito pegou em mais um cinto metálico, carregado com duzentas e quarenta e nove balas, e encaixou-o na metralhadora francesa. Tinha nas mãos uma arma de oito milímetros caída em desuso, uma espécie de relíquia da Primeira Guerra Mundial que sobreviveu na Legião unicamente graças à sua fiabilidade. Pelos padrões modernos, a Hotchkiss podia ser uma metralhadora ultrapassada, mas o facto é que chegava perfeitamente para dar cabo das bordas rojas que se opunham ao pronunciamiento.

"JoderV', praguejou Juanito entre dentes. "Temos de acabar com esta mierda."

"O que queres? Os gajos entrincheiraram-se bem. Vais ver que vamos precisar de deitar a torre sineira abaixo!"

O espanhol benzeu-se.

"Deitar a torre sineira abaixo? Ay, carayl Não pode ser! Não se bombardeia uma igreja, hombre!"

"Qual é o problema?"


"É pecado."

Francisco rolou os olhos e fez um ar de enfado.

"Quero lá saber! A malta tem é de despachar serviço. Se não usarmos a artilharia, bem que podemos ficar aqui a semana toda..."

Combatiam em Almendralejo. A IV Bandera concentrara-se ali para vencer a resistência da Frente Popular. Logo que o regimento de Francisco chegara a Espanha, proveniente de Marrocos, as suas unidades foram imediatamente envolvidas em operações de limpeza. Primeiro Sevilha e, quando o comandante Franco deu ordens para começar a marcha sobre Madrid, a 1 de Agosto, chegara a vez das povoações da Estremadura, numa rota paralela à fronteira portuguesa. Os revoltosos queriam controlar toda a área fronteiriça, de modo a estabelecer uma base de apoio para o avanço sobre a capital, pelo que a Legião e as tropas regulares foram enviadas de Sevilha para norte, numa coluna comandada por Asensio na direcção de Mérida, procurando juntar-se às forças chefiadas por Mola, que vinham de norte também ao longo da fronteira portuguesa, igualmente apontadas para aquela cidade.

As operações seguiam um padrão simples. Os legionários entravam numa localidade, venciam a resistência das milícias populares e executavam alguns dos inimigos que se rendiam, mas apenas quando tinham sofrido baixas; esses fuzilamentos eram vinganças a quente, tiros disparados no rescaldo da refrega. Depois entregavam o controlo das povoações recém-conquistadas a forças leais aos revoltosos, nuns casos a polícia, noutros as milícias da Falange, o partido fascista espanhol, e avançavam para a localidade seguinte.

Como peças de dominó que vão caindo sucessivamente, as povoações de Monesterio, Santa Olalla, Herencia, Fuente de Canos e outras foram sendo tomadas pelos legionários e pelas tropas regulares. Por vezes Francisco ouvia falar em execuções efectuadas pelas novas autoridades militares que assumiam o controlo das vilas que a Legião ia deixando para trás, mas isso deixava-o indiferente; não se tratava de problema seu, que se lixasse.

O português ocupava o posto de legionário de segunda classe da 12.a companhia da IV Bandera, um dos três regimentos da Segunda Legión, e a sua função resumia-se a andar com a Hotchkiss ao ombro e a usá-la para apoiar as operações de assalto, tendo Juanito como ajudante de munições.

Como se tratava de um homem corpulento e o transporte da metralhadora se revelava penoso para a maior parte dos legionários, sempre eram uns fatigantes cinquenta quilos, Francisco foi integrado na companhia das metralhadoras, justamente a 12.% com a missão de dar cobertura às cargas efectuadas pelas restantes companhias da IV Bandera, em particular a 10.a e a 11.% mas também a 16.a. Era isso o que fazia; e procurava fazê-lo bem. O resto não lhe interessava.

As coisas haviam corrido com relativa facilidade ao longo da primeira semana da marcha sobre Madrid, mas era agora,

ali em Almendralejo, que os legionários da coluna Asensio enfrentavam a primeira resistência séria.

Almendralejo constituía um dos mais importantes municípios da província. Os revoltosos tinham chegado à povoação dois dias antes, a 6 de Agosto, e começaram por cercá-la, de modo a não deixar escapar o inimigo. Depois de resistirem em bairros, edifícios e ruas, os milicianos, recuando perante os legionários, entrincheiraram-se na igreja. Com a localidade nas mãos das milícias populares, o santuário tinha sido transformado numa garagem e encontrava-se pejado de automóveis e camiões.

Naquele momento, perante o assalto dos revoltosos, situava-se ali o derradeiro bastião republicano de Almendralejo.

Com a mira da Hotchkiss apontada contra a porta da igreja, Francisco voltou a mudar a posição do corpo para combater o tédio.

"Estes rojos vão pagá-las bem caras", vociferou Juanito.

"Então e porquê?", perguntou o português sem tirar os olhos do alvo.

"Cono, não viste o que eles fizeram aos presos políticos da direita?"

"Não."

"Ay, carayi Estás-te mesmo a cagar para isto tudo, não estás?"

Francisco riu-se.

"Por acaso, estou."

"Então não sabes o que eles fizeram aos presos de direita?"

"Já te disse que não."

"Hombre, foi anteontem. Quando nos aproximámos aqui de Almendralejo, os rojos tiraram todos os presos que se encontravam na cadeia, no matadouro e no hospital, regaram--nos com um líquido inflamável e dispararam sobre eles."


"Ah, pois. Já ouvi falar nisso." Tirou pela primeira vez os olhos da porta da igreja para olhar de relance para Juanito. "Não deve ter sido agradável. Morreram muitos?"

"Joder! Então não haveriam de morrer? Foram logo vinte e oito, pobrecitos. E cento e cinquenta ficaram feridos."

"Ena! Isso foi onde?"

"Na cadeia municipal, caray. Levo-te lá quando terminar o nosso turno. Tens de ver aquilo."

Um fumo escuro erguia-se de um dos lados da cidade e espalhava-se por toda a zona, envolvendo as ruas em torno da igreja numa neblina gordurosa. Francisco esticou o nariz para cima e inspirou, rápido, tentando identificar o cheiro.

"Não me digas que este pivete é dos mortos da cadeia."

O amigo também cheirou o ar. Pairava por ali o odor acre a pólvora, misturado com um fedor enjoativo de churrasco.

"Não", disse Juanito, olhando na direcção da origem do fumo. "Isto vem do cemitério. É o cheiro dos cadáveres que os nossos compatieros estão a queimar."

O português voltou a cheirar o ar.

"Já me está a dar fome."

"És um cotio!", protestou Juanito. "Como é possível que o cheiro dos cadáveres a serem queimados te possa dar fome? Mas que raio de animal és tu?"


Francisco encolheu os ombros.

"Cheiram a cabrito, o que queres?" Passou a língua pelos lábios. "Até me fazem crescer água na boca!"

"Ah, cala-te!"

Ficaram em silêncio durante dois minutos, os olhos pregados na igreja onde os republicanos permaneciam entrincheirados.

"Tenho fome", voltou a dizer Francisco.

"Cala-te!"

O português apoiou-se na arma e ficou a contemplar a porta da igreja. Estava tudo calmo.

"Mas por que razão não atacamos de uma vez?"

"É a táctica do desgaste", explicou o espanhol.

"Desgaste de quem? Nosso?"

"Deles. A ideia é desgastar os rojos e obrigá-los a renderem-se pela fome."

"Mas isso vai levar tempo, caraças."

"Y entonces? Não se pode ter tudo, nof"

Francisco suspirou. Agarrou a metralhadora e rodou-a, apontando a mira à torre sineira. Ainda acariciou o gatilho, com vontade de o premir, mas resistiu à tentação; se disparasse sem ordens teria de ouvir o sargento Gomez, sempre preocupado em poupar munições. Ajeitou-se no seu lugar e voltou a cheirar o fumo que vinha do cemitério.

"Tenho fome, porra!"

O turno mudou duas horas depois, pelo final da manhã, altura em que Francisco e Juanito foram à escola onde o refeitório havia sido instalado e se apresentaram para o rancho. Os panelões exibiam uma paella com muito arroz e pouco mais, mas comeram-na com a ajuda de um Rioja duvidoso. Após a refeição, o espanhol guiou o companheiro até à cadeia municipal, mostrando-lhe o local onde os presos nacionalistas tinham sido massacrados pelos milicianos pouco antes da chegada dos legionários a Almendralejo.

Nas paredes do pátio apresentavam-se pintadas formas humanas, figuras fantasmagóricas em contornos a negro; além disso, via-se sangue seco no chão e gotas escuras a salpicar os muros. O

odor adocicado de carne queimada revelava-se aqui mais forte do que em qualquer outra parte da povoação, à excepção do cemitério.

"Já viste isto?", perguntou Juanito, apontando para as manchas.

Francisco grunhiu algo de imperceptível.

"Impressionante, eh?"

O português fungou e escarrou no chão, a indiferença estampada no rosto.

"Cagativo."

Deambularam mais um pouco pelo pátio, até que ouviram o ar ser rasgado por uma rajada e uma detonação, a que se seguiram novas rajadas de metralhadora.


"O que é isto?"

Saíram da cadeia apressadamente e imobilizaram-se diante do portão, tentando localizar a origem do tiroteio.

"É na igreja!"

Os dois legionários desataram a correr em direcção à zona da igreja, de onde vinham os tiros.

Viam-se alguns homens a andar apressadamente de um lado para o outro e deram com um legionário que vinha a correr com a Mauser a tiracolo; reconheceram Murillo, o italiano da bandera.

"Qué pasa?", perguntou Juanito.

"Foi o comandante Asensio", explicou Murillo, ofegante. "Mandou incendiar a cbiesa."

"Qual chiesa}"

"A igreja, imbecille!"

Quando chegaram diante da igreja deparou-se-lhes o caos. As metralhadoras da 12.a companhia davam cobertura à operação, disparando sem cessar sobre portas e janelas, de modo a impedir que os milicianos pudessem ripostar. Legionários da 16.a corriam diante da igreja, numa azáfama coordenada; dirigiam as chamas que lambiam a palha húmida e o enxofre, tentando assim direccionar o fogo e o fumo para o interior e

vencer os sitiados pelos efeitos tóxicos e pela possível explosão dos depósitos de combustível das viaturas estacionadas dentro do santuário.

Os legionários recém-chegados assumiram as suas posições e depressa Francisco se viu agarrado à sua metralhadora a descarregar balas sobre todos os orifícios na igreja. Não se via o inimigo, que se recolhera ao interior, mas isso não impediu os homens do Tercio de metralhar as portas e janelas, na vaga esperança de que o fogo sobre esses pontos viesse a atingir alguém.

A operação prolongou-se por toda a tarde, mas nenhum miliciano se rendeu. Pelo contrário, à primeira oportunidade os sitiados responderam com tiros e lançamento de explosivos, obrigando os legionários a recuar e a procurar posições mais bem defendidas.

"Corôo/", praguejou Juanito, a cara já enegrecida pela pólvora. "Devem ter-se abrigado numa qualquer câmara da igreja."

Ao lado, Francisco encaixava já mais balas na Hotcbkiss.

"Isto não vai durar para sempre."

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