LXIX

Ainda Magus e os seus seguidores não se tinham refeito da surpresa quando as portas da sala se abriram com grande fragor e violência e um grupo de homens armados e uniformizados invadiu o espaço no meio de enorme aparato.

"Polícia!", gritou uma voz, identificando-se. "Todos de mãos no ar! Que ninguém se mexa!"

O mestre-de-cerimónias e os seus acólitos ficaram por momentos paralisados, sem capacidade de reacção. Os carabinieri tomaram posição em redor da congregação e apontaram-lhe as armas, impondo na sala uma nova relação de forças.

"Que vem a ser isto?", protestou Magus, recuperando a presença de espírito. "Porque estão a interromper esta cerimónia privada? Façam o favor de sair!"

Do meio dos carabinieri destacou-se uma mulher à paisana.

"Silêncio!"

Mefistófeles e o seu comparsa largaram os dois prisioneiros, que se puseram imediatamente de pé e se viraram para os polícias.

"Porque levaram tanto tempo?", perguntou a mulher. Abriu a túnica e exibiu o microfone escondido na lapela. "Não me ouviram gritar por socorro?" Apontou para Tomás. "Se não fosse o professor Noronha, estes energúmenos tinham-nos decapitado!"

"Peço desculpa, senhora professora", respondeu a mulher à paisana. "Os corredores são muito longos e levámos mais tempo do que prevíamos a chegar aqui."

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Magus atirou a Mefistófeles um olhar ressentido, como se o responsabilizasse por ter permitido que a intrusa ali penetrasse de microfone escondido. Era verdade que as ordens do guarda eram apenas apreender quaisquer armas que encontrasse, mas isso não desculpava a falha. O mestre-de-cerimónias tinha porém consciência de que o momento não era de recriminações, mas de limitar os danos.

Manteve por isso a pose e dirigiu-se à polícia à paisana que parecia controlar as operações.

"Exijo uma explicação", vociferou, a voz carregada de autoridade. "Quem diabo é a senhora?"

A agente encarou-o sem pestanejar.

"Maria Luísa Carvajal y Navarro", identificou-se ela, falando com forte sotaque espanhol. "Os meus subordinados da Interpol conhecem-me por Marilú." Esboçou uma careta de despeito. "E o senhor, quem é?"

"Não tenho de lhe dar satisfações enquanto não souber o que aqui se passa e sob que autoridade se encontram os senhores neste espaço", retorquiu Magus, muito seguro de si. "Onde está o mandado que vos autoriza a interromper esta pacífica cerimónia privada?"

"Pacífica?", riu-se sem gosto a prisioneira que acabava de ser libertada. "É preciso ter lata..."

"Sim, pacífica", insistiu Magus, sempre com grande convicção.

"Tudo o que aqui aconteceu não passou de uma encenação."

A agente à paisana tirou do bolso interior do casaco um papel dobrado e acenou com ele.

"O mandado está aqui", disse Marilú. "Agora faça o favor de se identificar."

Magus estendeu a mão.

"Deixe-me ver o mandado, se faz favor. Quero saber quem foi o juiz que o assinou e em que termos."

"Mostrar-lhe-ei o mandado depois de o senhor se identificar."

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"Isso é que era bom!", devolveu o mestre-de-cerimónias com uma risada teatral. "A lei é muito clara quanto a isso. Estamos numa sala alugada por nós para uma cerimónia privada, o que faz disto um espaço cuja privacidade só pode ser violada pelas autoridades se forem devidamente autorizadas por um juiz e na condição de exibirem o mandado quando solicitado. Uma vez que a senhora se está a recusar a identificar a autoridade que permitiu esta acção, exijo que se retirem de imediato. E com um pedido de desculpas."

A mulher libertada interveio.

"O senhor está invulgarmente informado sobre os seus direitos", notou ela num tom sibilino.

"Saiam daqui!"

A ex-prisioneira, no entanto, não desarmou.

"A Interpol e os carabinieri", revelou, "agiram sob minha autoridade."

"Sua autoridade?", estranhou Magus. "E que autoridade é a sua, señorita Raquel de la Concha? Que eu saiba, uma mera agente da Interpol não tem qualquer autoridade para mandar invadir espaços privados."

"O problema é que eu não sou a señorita Raquel de la não sei quantos", devolveu a ex-prisioneira, tirando o capuz para descobrir o rosto. "Sou Agnès Chalnot, procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional."

O homem que a acompanhava, e que Magus e os acólitos haviam confundido com Tomás, também tirou o capuz.

"Já agora, eu sou o procurador Carlo dei Ponte, também do Tribunal Penal Internacional."

As duas revelações abalaram Magus. O mestre-de-cerimónias recuou um passo, como se o impacto do que via e ouvia o tivesse desequilibrado.

"O que... quem... como é isto possível?", perguntou, interrogando-se a si mesmo e às pessoas que o rodeavam. "Que se 462


passa aqui? Como é que vocês apareceram? Quem vos trouxe cá?"

Um curto silêncio abateu-se sobre a sala.

"Receio que seja eu o responsável por esta situação", confessou Tomás, quebrando enfim o mutismo a que se remetera desde que os carabinieri haviam entrado para salvar os procuradores do Tribunal Penal Internacional. "Sabe, fiquei desconfiado quando recebi um e-mail do meu amigo Filipe Madureira a anunciar-me que tinha sobrevivido ao tiroteio em Lisboa e a aconselhar-me a vir aos Uffizi falar com o tal Mefistófeles. Como decerto não ignora, Mefistófeles é um dos nomes do Diabo e reparei que havia uni comportamento de seita por parte daqueles que nos perseguiam. Além do mais, o Filipe já me tinha dito que viesse vir ter com a Raquel. Por que raio iria agora dizer-me que fosse ter com outra pessoa? Fiz, por isso, um teste. No e-mail de resposta ao Filipe, observei que o criptograma que ele me deixou me fez lembrar os nossos tempos no Liceu Afonso de Albuquerque, em Castelo Branco. No e-mail seguinte, o Filipe confirmou que esses tempos no Afonso de Albuquerque foram realmente magníficos. Foi assim que percebi que nos estava a ser estendida uma armadilha."

Magus esboçou um gesto de incompreensão.

"Porquê? O que tem isso de extraordinário?"

"É que o Afonso de Albuquerque é o liceu da Guarda", sublinhou o historiador. "O liceu de Castelo Branco, onde eu e o Filipe andámos, chama-se Nuno Álvares. Se o interlocutor destes e-mails fosse mesmo o Filipe, ele ter-me-ia decerto questionado sobre a troca de nomes dos liceus. Dada a rivalidade entre Castelo Branco e a Guarda, nenhum aluno do liceu de Castelo Branco deixaria passar em claro um equívoco desses. Mas o meu interlocutor deixou. Logo, a pessoa que me escrevia não podia ser o meu amigo Filipe."

"Muito esperto, sim senhor", registou Magus com desdém. Fez um gesto a indicar os carabinieri. "Mas isso não explica a presença ilegal 463


destes senhores nesta cerimónia privada."

Emergindo da massa de acólitos, Raquel destapou a cabeça e juntou-se ao português.

"A presença dos carabinieri, apraz-me dizê-lo, é bem legal", ripostou Tomás. "Sabe, a minha amiga da Interpol, Raquel de la Concha, levou-me a casa da sua superiora hierárquica em Madrid, dizendo que o apartamento estava vazio porque a proprietária se encontrava a fazer uni trabalho em Haia. Como a sede do Tribunal Penal Internacional é justamente em Haia, não foi difícil deduzir que o trabalho estava a decorrer nessa instituição. Quando chegámos aqui a Florença, e já com tudo claro na minha mente, expus a Raquel o meu plano." Indicou a polícia à paisana. "Ela contactou a sua chefe e amiga Marilú..."

"Sou eu", sorriu Maria Luísa Navarro, a agente à paisana.

"... e explicou-lhe a situação que estávamos a viver e o plano que apresentei. A señora Marilú concordou e contactou de imediato a procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional, a professora Agnès Chalnot, que se interessou pelo caso quando lhe foi explicado que eu estava na posse de informações que poderiam conduzir ao DVD do Filipe.

É que, até começar a ser perseguido, o Filipe trabalhava para a equipa que a professora Chalnot criara no TPI para investigar este processo. Foi assim que apareci esta tarde no Palazzo Vecchio como membro dessa equipa. Só faltava, claro, descobrir o paradeiro do DVD que o Filipe tinha escondido e que continha as provas incriminatórias. Como o e-mail suspeito dizia que eu e Raquel nos tínhamos de apresentar nos Uffizi à meia-noite e pedir para falar com Mefistófeles, sugeri aos procuradores que viessem no nosso lugar para testemunhar os eventos, devidamente protegidos pelos carabinieri, claro. Arranjámos maneira de nos infiltrarmos mais cedo na congregação e... aqui estamos."

Fez-se um silêncio pesado na sala, os olhos de Magus e da congregação presos no DVD, a atenção de Tomás, das duas agentes da Interpol, dos procuradores e dos carabinieri fixada na reacção dos 464


elementos da seita. Foi a procuradora-geral do TPI quem quebrou o súbito mutismo.

"Este senhor ameaçou a minha vida", disse ela, apontando para Balam. "Além disso, confessou há pouco os homicídios de Éric Garnier e Hervé Chopin em Nice. Parece-me que deve ser o primeiro a ouvir a ordem de prisão."

Marilú pegou no capuz do acólito e arrancou-o, destapando-lhe a face.

"Por suspeita de dois homicídios premeditados e um na forma tentada, considere-se detido", disse com voz de comando. "Faça o favor de se identificar."

A cabeça descoberta de Balam revelou um homem de barba rala e cara larga, os olhos castanhos muito juntos. O acólito lançou um olhar desorientado e interrogativo na direcção de Magus, como se lhe pedisse instruções.

"Já sabes", respondeu o mestre-de-cerimónias em tom críptico.

"Faz o que tens a fazer."

As palavras foram pronunciadas com suavidade, mas para Balam tiveram a força de uma ordem. O acólito ficou lívido e, inseguro, encarou a agente da Interpol.

"Quer... quer os meus documentos?"

"Se fizer o favor."

Balam meteu a mão trémula no bolso da túnica e, depois de respirar fundo, tirou-a apressadamente e levou qualquer coisa à boca.

Acto contínuo, pareceu sofrer um choque e tombou no chão, o corpo a contorcer-se em convulsões violentas. Os polícias caíram sobre ele, tentando reanimá-lo com massagens cardíacas e respiração boca a boca, mas ao fim de alguns instantes Balam estremeceu num derradeiro estertor e imobilizou-se enfim.

"Morreu", constatou Marilú. Apontou para os elementos da congregação. "Revistem-nos!"

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Os carabinieri passaram os acólitos em revista e, minutos mais tarde, entregaram uma mão-cheia de pílulas à responsável da Interpol. Marilú entregou um comprimido a Raquel, que o cheirou.

"Cianeto", identificou ela. "Provoca um ataque cardíaco e mata em alguns segundos."

O olhar de Marilú desviou-se para Magus.

"O senhor está preso."

O chefe da seita pôs as mãos na cintura.

"Isso é que era bom!", devolveu em tom de desafio. "Sob que acusação?"

A confiança de Magus, que parecia em pleno controlo da situação, desconcertou a responsável da Interpol. "Bem...

homicídio."

"Ai sim? De quem?" Indicou com um gesto o cadáver de Balam.

"Com certeza não sou responsável pelos actos tresloucados desse senhor. Ou têm provas de que sou?"

Raquel e Marilú entreolharam-se; ambas sabiam que, apesar das aparências, não havia de facto provas de tal coisa.

"Enfim..."

Vendo as duas agentes paralisadas, a procuradora-geral Agnès Chalnot não se conteve.

"O senhor tentou matar-me!"

"Eu?", admirou-se Magus. Voltou a fazer um gesto para o corpo de Balam. "Quem andou com o punhal na mão, que eu saiba, foi esse senhor, não fui eu."

"Mas incitou-o."

"Isso diz a senhora. Que palavras proferi eu a incitar uma qualquer fantasiosa tentativa de homicídio?"

"Quando eu estava sua prisioneira, disselhe... disselhe que fizesse o que tinha a fazer."

"Em primeiro lugar, ninguém esteve prisioneiro de ninguém", 466


esclareceu Magus. "A senhora e o seu amigo apresentaram-se a Mefistófeles de livre vontade, não foi? E, que eu saiba, vieram para esta sala também pelos vossos próprios pés. Depois eu disse de facto ao meu... uh... companheiro que fizesse o que tinha a fazer. Com isso queria dizer que vos deveria libertar, como é evidente. Que ele se tenha posto com todo aquele teatro não é da minha responsabilidade."

"Teatro? O homem ia-me degolando!"

"Diz a senhora. Pois eu asseguro-lhe que era tudo teatro, percebeu? Teatro!" Encolheu os ombros com uma expressão ambígua. "Como os carabinieri intervieram, nunca saberemos a verdade, pois não? In dubio pro reo."

Tomás, que se tinha remetido de novo ao silêncio, percebeu que chegara o momento de intervir.

"Vejo-o muito seguro de si..."

Magus cruzou os braços, reforçando a imagem de que nada tinha a recear.

"Quem não deve não teme", sentenciou. Baixou os olhos para o corpo de Balam. "Só um homem me poderia incriminar e ele já aqui não está, pois não?"

Com um movimento fulminante, o historiador português pôs-se ao lado de Magus e puxou-lhe de repente o capuz. "Mas estou eu, caro Axel Seth!"

A cabeça do mestre-de-cerimónias ficou finalmente destapada, exibindo o rosto ossudo do presidente da Comissão Europeia e juiz do Tribunal Penal Internacional.










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