OVSANSMB
"Que raio de charada!..."
Era incrível ver ali uma coisa daquelas feita pela mão do seu velho amigo Filipe Madureira; afinal tinha sido com ele que ganhara o gosto das charadas e dos criptogramas, muitos anos antes, andavam os dois no liceu de Castelo Branco. Adolescentes e criativos, preenchiam o ócio forçado das longas férias de Verão com um jogo que eles próprios inventaram; um escondia um livro ou um qualquer "tesouro" e ocultava o itinerário numa charada que o outro tinha de desvendar. A tarefa era sempre entregue com as palavras "tens uma missão, soldado", ao que o jogador respondia "sim, meu capitão", fazendo continência antes de partir para resolver o mistério. Tomás sorriu perante a lembrança desses tempos; se a memória não o traía, era ele quem ganhava quase sempre.
As imagens do passado desfizeram-se-lhe na mente como uma nuvem de pó que a aragem dispersara com brusquidão; não era o momento adequado para se perder em reminiscências da juventude.
101
Não querendo vasculhar nos segredos do amigo, pousou o envelope no chão e voltou a deitar a mão ao saco, pondo-se a remexer o interior.
Os dedos tocaram num objecto duro e frio, que às apalpadelas não reconheceu. Pegou nele e retirou-o, mas arregalou os olhos de estupefacção e horror quando viu o que segurava nas mãos.
Uma pistola.
No momento em que a porta do quarto de banho se abriu e Filipe emergiu do meio de uma densa nuvem de vapor envolto numa toalha e o rosto aparentemente rejuvenescido, afinal tinha a barba feita e estava enfim penteado, Tomás entregou-lhe as roupas novas e indicou-lhe o quarto de hóspedes.
O amigo reapareceu dez minutos depois e vinha diferente; só as olheiras se mantinham, mas ambos sabiam que só um sono retemperador poderia resolver esse problema.
"Ah, sinto-me como novo!", exclamou Filipe com evidente satisfação. "Desde Itália que não tomava uma banhoca."
Levou a mão ao nariz e inspirou fundo. "Caramba, até já cheiro bem."
O anfitrião levou o seu hóspede para a sala e instalaram-se no sofá. O saco do amigo encontrava-se abandonado no chão, devidamente espalmado como um balão vazio, mas mesmo assim Tomás inclinou-se para ele e puxou-o para junto dos seus pés.
Retirou o envelope com o criptograma que se encontrava no seu interior e estendeu-o a Filipe.
"Isto é teu", disse. "É para guardar ou para deitar fora?"
O amigo segurou o envelope com o criptograma como se fosse uma peça de cristal em risco de se quebrar.
"Isto é muito importante!", exclamou. "Não posso perder estes documentos."
Tomás estranhou a intensidade das palavras do convidado e a sua 102
inusitada preocupação em relação ao envelope com a charada rabiscada, mas nada perguntou; se Filipe não lhe dera explicações adicionais lá teria os seus motivos. Quem era ele para se meter no assunto?
A mão do anfitrião voltou ao interior do saco e reapareceu de imediato com a pistola, que exibiu com movimentos cuidadosos, como se, aquilo sim, fosse um objecto muito delicado.
"O que é isto?"
O rosto de Filipe contorceu-se num sorriso forçado, talvez até embaraçado.
"É um brinquedo."
"Desculpa lá, mas essa não pega." Voltou a exibir o objecto, reforçando a pergunta. "O que é isto?"
O visitante suspirou, vencido.
"É uma arma de defesa."
"Agora andas com uma pistola?"
Filipe estendeu o braço e pegou na arma.
"Não é bem uma pistola", observou, levantando o objecto para que o amigo o visse melhor. "Já reparaste no formato?"
Tomás já havia de facto reparado, mas estudou melhor a arma.
Embora tivesse a configuração de uma pistola, na verdade não parecia uma pistola tradicional. Tinha a coronha, mas o cano era uma abertura, como uma boca vertical, e havia uma faixa amarela a indicar X-26; parecia uma arma futurista retirada de um filme de ficção científica, tipo Blade Runner ou Total Recal!.
"Sim, de facto", concordou, "o formato é estranho."
O dedo de Filipe colou-se à ranhura vertical que se encontrava no lugar do cano.
"Estás a ver isto?", perguntou. "É um arco eléctrico entre dois eléctrodos."
O olhar do anfitrião carregou-se numa expressão inquisitiva.
"Uma arma eléctrica?"
O visitante assentiu.
103
"Um taser", identificou. "Actua por electrochoques. O taser faz uma descarga eléctrica que perturba o controlo voluntário dos músculos. Ou seja, quem levar com um tiro de taser fica logo knockout, mas não morre.É uma arma não letal."
O olhar de Tomás manteve-se preso ao taser e a cabeça balançou afirmativamente; experimentara os efeitos daquelas armas uma semana antes em Atenas. Vira-as nas mãos dos polícias gregos, mas apenas de fugida. Só por isso não identificara o objecto no saco do seu convidado.
"Então isso é que é um taser, hem?", perguntou em tom retórico, como se não esperasse resposta. "Pois é, conheço-lhe os efeitos bem de mais. É...
é de facto eficaz."
"Então não é?" Acariciou a arma de electrochoques. "Aqui a X-26 é a minha melhor amiguinha."
Tomás desviou os olhos do taser para o amigo e esboçou um esgar interrogativo.
"Diz-me uma coisa, para que precisas tu de uma arma de defesa?"
Filipe endireitou-se e guardou a pistola eléctrica no cinto, à maneira de um gangster.
"Não te expliquei já que estou em perigo?", lembrou, remetendo para a primeira coisa que dissera ao amigo quando o interpelara na rua. "Ou pensas que cheguei a este estado de indigência absoluta por opção própria?" Abanou a cabeça. "Não, não foi opção. A verdade, meu caro, é que ando em fuga." Voltou a pegar na arma de electrochoques. "E aqui a X-26 é que me protege.
A X-26... e tu, claro."
A conversa entrara numa área fulcral. Para Tomás era evidente que o que se passara na última hora, do inesperado aparecimento do amigo ao seu aspecto indigente e à arma de defesa, tudo isso se relacionava com a fuga que ele acabava de mencionar.
104
"Fuga de quê?", quis saber. "Andas a fugir de quem?"
O visitante emudeceu, os olhos semicerrados e fixos no infinito, como se ponderasse o que queria ou podia dizer.
"Receio que não te possa contar nada", acabou por dizer.
"Desculpa, mas é melhor para ti."
O olhar de Tomás saltitou entre o taser e o amigo, na dúvida sobre se aceitaria manter-se na ignorância. A verdade é que ele já o arrastara para o seu problema, fosse ele o que fosse. Tinha o dever de o ajudar mas não tinha o direito de saber porque o ajudava? A posição não lhe parecia razoável. Por outro lado, nutria a convicção de que devia confiar no amigo; se ele achava melhor nada revelar sobre as suas circunstâncias, porque não aceitar isso?
"Está bem", acabou por concordar. "Mas tenho aqui um problema para resolver."
"Então?"
"Preciso de ir amanhã a Coimbra ver a minha mãe", revelou. "Ela sofre de Alzheimer desde os tempos em que... olha, desde a última vez que nos vimos, na Austrália, lembras-te? Desde essa altura que ela está internada num lar e ainda não a fui ver depois de ter regressado da Grécia. Além do mais telefonaram-me do lar e precisam de falar comigo. A viagem até não me dá muito jeito. Desde que perdi o emprego tenho andado atarefado a..."
O visitante abriu a boca, chocado com a novidade.
"Perdeste o emprego?"
Tomás esboçou com os braços um gesto de resignação.
"É a crise, o que queres tu? A faculdade teve de fazer cortes no quadro docente e... olha, ando à procura de trabalho."
"Ah! E agora?"
"E agora tenho de ir lá vê-la." Hesitou, uma ideia a formar-se na mente. "Olha lá, porque não vens comigo? Partimos pela manhãzinha e voltamos ao fim da tarde. Era bom para desanuviares.
105
São duas horas para ir e outras duas para voltar. Vou dar boleia a um tipo que conheci no centro de emprego e juntavas-te a nós."
Filipe anuiu de imediato.
"Conta comigo", disse. "Dar um passeio a Coimbra parece-me muito melhor do que ficar aqui fechado em tua casa."
O anfitrião ergueu-se com um movimento enérgico.
"Então está combinado!", exclamou, encerrando o assunto. "Saímos amanhã pelas oito, está bem?"
Cruzou a porta da sala para o corredor e encaminhou-se para o escritório, onde tinha assuntos a ultimar, em particular a burocracia relacionada com o lar onde a mãe se encontrava hospedada.
"Tomás!"
A voz do amigo travou-o a meio do percurso. Deu meia volta e espreitou pela porta de acesso à sala de estar.
"Que foi?"
Filipe esboçou um sorriso caloroso.
"Obrigado."
"Não tens nada que agradecer."
A mão do convidado desceu para o taser que se encontrava anichado no cinto das suas calças.
"Acho que te devo uma explicação por isto, mesmo que simples", disse. "Tu merece-la."
"Ah, não. Não te preocupes."
"Não, a sério", insistiu Filipe. "Não te posso dar pormenores, isso só serviria para agravar as coisas, mas é importante que saibas que a minha presença na tua casa pode constituir um perigo para ti."
Apesar de previsível, a informação esmurrou Tomás com a força de uma ameaça por fim verbalizada. O anfitrião permaneceu um longo instante a fitar o seu interlocutor, tentando ler-lhe os olhos e perceber o verdadeiro alcance do que acabara de lhe dizer.
"De que perigo estás a falar?"
106
O convidado respirou fundo; parecia evidente que vivia um conflito interior. Ou nada dizia e tudo ficaria na mesma ou dizia alguma coisa e corria o risco de perder o porto de abrigo em que se transformara a casa do seu anfitrião. A decisão de levantar uma ponta do véu da verdade, contudo, acabou por prevalecer.
"Andam à minha procura."
107