XV

A longa recta apresentava-se quase vazia. Nesse instante apenas se via a traseira de uma camioneta ao longe e dois carros a virem na faixa contrária. A decisão de não voltar a conduzir enquanto não arranjasse emprego era apenas válida para o transporte dentro da cidade de Lisboa. Tomás seguia por isso agarrado ao volante do seu já enferrujado Volkswagen azul, a velha chapa conspurcada por densas camadas de pó e até de lama; lavara-o quando da última revisão e só voltaria a fazê-lo na próxima.

"Sempre que venho a Portugal", observou Filipe com o olhar perdido no asfalto, "fico surpreendido com a qualidade destas estradas que agora temos por toda a parte."

"É incrível, não é?", concordou Tomás. "Em 1990 não havia sequer uma auto-estrada a ligar as duas principais cidades do país.

Agora existem duas auto-estradas entre Lisboa e Porto e já depois de a crise ter rebentado foi decidido arrancar com uma terceira."

"Uma terceira?"

O historiador riu-se.

"Imagina!"

O amigo abanou a cabeça, desagradado.

"Uma auto-estrada era essencial", disse. "Mas... três? Isso é um esbanjamento criminoso de recursos."

Tomás encolheu os ombros, os olhos sempre fixos no percurso diante dele.

"São os fundos comunitários", indicou. "Se a União Europeia pagava, porque não aproveitar?"

111


O silêncio regressou ao interior do Volkswagen. Apenas se ouvia o rugido suave do motor instalado na traseira do automóvel, coisa a que Filipe não estava habituado; tratava-se de uma idiossincrasia daquele modelo em particular.

"Foi assim que Portugal foi parar ao buraco..."

Disse-o num sussurro imperceptível, com excepção da última palavra, que elevou a voz para pronunciar. O condutor, que se distraíra com a estrada, quase deu um salto no assento.

"Buraco?", quis saber com o alarme a encher-lhe o rosto e os olhos a esquadrinharem apressadamente o alcatrão em busca de uma ameaça. "Onde?"

"No país", explicou Filipe com uma gargalhada. "Estava a falar com os meus botões, a dizer que foi a construir estas auto-estradas todas que o país se meteu no atoleiro em que agora se encontra."

Tomás quase bufou de alívio.

"Ah, bom! Estava a ver que ainda pisava um buraco..."

Descontraiu e tirou por momentos os olhos do caminho. "Sabes, a governação tem sido um caos."

Filipe indicou o exterior.

"Pois tem. Olha, se estás no desemprego também o deves a estas auto-estradas todas."

No banco traseiro sentava-se o rapaz do centro de emprego a quem haviam dado boleia. A ouvir a conversa até aí em silêncio, Alexandre remexeu-se no assento e não aguentou mais.

"Peço desculpa, mas isso não faz sentido", declarou. "Qual a relação entre as auto-estradas e o desemprego? Que eu saiba, a construção das auto-estradas deu até emprego a muita gente."

Filipe virou a cabeça para trás.

"Ilusões", disse. "Tudo ilusões."

"Como pode dizer isso? A auto-estrada que estamos a percorrer não é nenhuma ilusão."

112


"Olhe, o desemprego que existe resulta de várias crises que se manifestaram ao mesmo tempo", indicou, levantando três dedos.

"Digamos que, à crise de fundo provocada pela transferência da produção do Ocidente para as economias emergentes, se acrescentaram três crises: a dos mercados financeiros, a do euro e a das economias periféricas, incluindo a portuguesa. São coisas separadas, embora a dos mercados financeiros tenha posto a nu as outras, claro. As crises do Ocidente, do euro e da economia portuguesa já existiam, mas estavam silenciosas."

O rapaz do banco traseiro esboçou uma expressão céptica.

"Sim, e depois?", questionou com uma certa insolência. "O que têm as auto-estradas a ver com isso? A sua construção não deu emprego a tanta gente? Como se pode questionar tal evidência?"

"Tenha calma", riu-se Filipe, divertido com a impaciência do companheiro de viagem. "Tem de compreender que as crises financeira e do euro se manifestaram com grande aparato e atingiram toda a gente no planeta, mas houve países que foram mais afectados que outros porque já estavam em crise por razões próprias, embora não o tivessem percebido."

"Está a falar de nós?"

"De nós e da Grécia, por exemplo, mas não só. A Irlanda, a Espanha e a Itália também sofrem de problemas até aqui silenciosos. É

isso que explica que estes países tenham sido mais atingidos que outros quando surgiu a crise financeira e a crise do euro."

Persistente, Alexandre indicou a auto-estrada.

"Está a insinuar que a nossa crise foi provocada pela construção da rede de auto-estradas? Isso é um disparate!"

"A crise da economia portuguesa tem várias causas, umas internas e outras externas. As internas são da nossa responsabilidade e relacionam-se com a perda de competitividade dos nossos produtos no mercado internacional e o recurso à dívida para disfarçar essa realidade, 113


com a crescente insustentabilidade do estado social e com a aposta descontrolada no sector produtivo não-transaccionável."

"Sector não-transaccionável? O que é isso?"

Foi a vez de Filipe apontar para a estrada.

"Olhe, as auto-estradas, por exemplo", indicou. "Será que podemos vender auto-estradas aos estrangeiros? Não podemos. É

um bem que não pode ser transaccionado. Já os sapatos podem ser vendidos ao estrangeiro. Ou a roupa, o vinho e o azeite. São bens transaccionáveis.

Acontece

que

os

sucessivos

governos

portugueses, chefiados por gente iluminada, decidiram que o melhor era mesmo investir no sector não-transaccionável, em coisas que não pudessem ser exportadas. Pusemo-nos assim a construir estradas, pontes, aeroportos, estádios, rotundas, túneis... eu sei lá!

Está a ver como estas auto-estradas constituem parte do problema?"

"Que eu saiba as obras públicas deram trabalho a muita gente!"

"Mas não são exportáveis, entende? Pior ainda, o estado garantiu esses investimentos por muitos e longos anos. Mesmo que queiramos, já não podemos deixar de gastar dinheiro neles."

Alexandre sacudiu a cabeça, baralhado.

"Não percebo", admitiu. "Se acharmos que esses investimentos são ruinosos e quisermos parar com eles, paramos. O que nos impede?"

"Uma coisa chamada PPP. Já ouviu falar?"

"As parcerias público-privadas", esclareceu Tomás. Apesar de estar agarrado ao volante, ia seguindo a conversa com interesse. "Toda a gente sabe o que são."

"As pessoas sabem mesmo o que são as PPP?", questionou Filipe com uma careta céptica. "Duvido. Se soubessem, saíam à rua em massa para derrubar qualquer governo que anunciasse mais alguma."

"Porquê?", admirou-se o rapaz do banco traseiro. "O que têm as PPP de especial? Não são elas uma maneira de fazer obra sem 114


gastar um tostão dos dinheiros públicos?"

Filipe e Tomás soltaram uma gargalhada em uníssono.

"Isso é o que eles dizem!", exclamou o historiador. "Você acreditou mesmo nessa patranha desavergonhada?"

A reacção dos dois homens da frente atrapalhou Alexandre.

"Quer dizer... enfim, era o que eles diziam. Não havia custos para o contribuinte... ou havia?"

"Santa ingenuidade!", proclamou Filipe, revirando os olhos.

Voltou a virar-se para trás. "Vou explicar-lhe o que são as PPP." Fez uma curta pausa, como se planeasse a melhor forma de fazer a demonstração. "Apesar de terem estourado com todo o dinheiro público no betão, os nossos geniais governantes, gente de elevada craveira e douta sapiência, decidiram que não chegava. Era preciso fazer mais betão!

Então o que inventaram esses crânios? Uma maneira de fazer betão e pôr os outros a pagar."

"Esses 'outros' somos nós, claro", esclareceu Tomás. "Nós, mas no futuro, que aliás já é o presente."

"Isso mesmo", concordou Filipe. "Repare, uma PPP faz sentido se o estado decidir fazer uma obra cuja exploração pague o investimento e a manutenção. Como não tem dinheiro, o estado chega ao pé de uns privados e diz-lhes assim: se vocês fizerem esta ponte, por exemplo, prevemos um tráfego de um milhão de automóveis por ano e, com as portagens, vocês recuperam o investimento em quinze anos, pelo que vos concedemos a exploração durante trinta anos, de modo a terem lucro. Os privados ouvem isto e perguntam: que acontece se o tráfego for menor do que o previsto? Azar o vosso, responde o estado, o risco faz parte do investimento numa sociedade capitalista, ou não faz? Os privados vão pensar, fazem as suas contas e, se chegarem à conclusão de que o risco compensa, avançam. É isto uma boa PPP. O privado arrisca, investe e fica com os lucros da exploração ou, se as coisas correrem mal, com os prejuízos.

Os contribuintes não gastam nem ganham um tostão, mas têm a obra 115


feita."

"Pois, é isso uma PPP."

"É isso uma PPP, mas não em Portugal, meu caro! O que se passou cá foi que o estado chegou ao pé dos privados e disse: construam uma auto-

-estrada e fiquem com a exploração durante trinta anos, mas se der prejuízo os contribuintes pagam. Está a entender? Nas PPP portuguesas, o risco dos privados é zero e o risco para os contribuintes é total. Os privados ficam com o lucro e sem risco, o estado fica sem o lucro e com o risco. Assim os governantes apresentavam obra para serem eleitos, claro, e nós depois pagávamos. Ou seja, pagamos agora, porque o futuro já chegou.

Fizeram-se desse modo contratos em que os privados se comprometiam a financiar a obra a troco dos direitos de exploração durante trinta anos."

"Conheço o conceito das PPP", assentiu Alexandre. "Isso tem uns anos, não tem?"

"O primeiro projecto do género foi a Ponte Vasco da Gama, que acabou por ser objecto de sete acordos de reequilíbrio financeiro sempre penalizadores para os contribuintes. Depressa o vírus pegou e a partir daí foi um fartar vilanagem. Um sistema que até poderia ser vantajoso se se limitasse a algumas obras estratégicas que se revelassem muito rentáveis e com o risco todo do lado dos privados generalizou-se com o risco transferido para os contribuintes e tornou-se regra ruinosa.

Começaram a fazer-se PPP a torto e a direito, muitas vezes sem avaliação prévia nem cuidadosa análise da relação custo-benefício, em alguns casos até para obras menores que davam voto rápido, como o Metro Sul do Tejo. O

que importava era fazer coisas para o eleitor ver. Se o país se tramava no entretanto, não era problema que tirasse o sono aos governantes."

"As PPP foram mesmo assim tão más?"

"Piores do que más! Quase todos os contratos de PPP derraparam, em alguns casos trezentos por cento. As renegociações foram sucessivas, sempre em desfavor dos dinheiros públicos. Projectos apresentados como financeiramente auto-sustentáveis, como a Lusoponte e a Fertagus, acaba-116


ram subsidiados pelo estado. Diziam que era a custo zero e mentiam com todos os dentes. Só as Scut custam quinze mil milhões de euros aos contribuintes! Para que perceba melhor a enormidade deste valor, basta dizer que todo o dinheiro que o estado recolheu por nos aumentar os impostos e cortar os salários só deu para pagar pouco mais de metade das Scut." Apontou para os seus dois companheiros de viagem. "Você e aqui o Tomás estão no desemprego porque é preciso remunerar este desvario eleitoralista! E isto é apenas a ponta do icebergue. Por exemplo, em 2001 mandaram-se construir dez hospitais em regime de PPP. Dez anos depois, só um tinha sido inaugurado, o de Cascais, entretanto renegociado... a expensas, claro, dos contribuintes. Os projectos dos hospitais derraparam sucessivamente e nos próximos trinta anos irão custar oito mil milhões de euros ao erário público, valor quase equivalente a todo o dinheiro que o estado português recolheu com as medidas de austeridade até 2012. O terminal de Alcântara foi negociado sem concorrência e por ajuste directo, condições propícias à corrupção, e renegociado com prejuízo para os contribuintes. A Casa da Música, mandada construir para celebrar em 2001 o Porto Capital Europeia da Cultura, só foi inaugurada cinco anos depois do evento, após atrasos e renegociações penalizadoras para os dinheiros públicos. O projectista atrasou-se na entrega do trabalho e, em vez de ser penalizado, foi premiado com mais de um milhão de euros!" Fez um gesto expressivo com a mão. "Paga, Zé!"

"Há ainda os estádios do Euro 2004", lembrou Tomás. "Isso é que foi um bem produtivo, hem?"

"Então não foi?"

"Quantos estádios foram? Sete?"

Filipe abriu as palmas das duas mãos.

"Dez", exclamou com ênfase. "Sete era o que a UEFA exigia, mas os nossos

voluntariosos

governantes,

pessoas

que

respeitam

escrupulosamente o dinheiro dos contribuintes, mandaram construir em 117


regime de PPP um total de dez estádios, bem mais do que os necessários, a um custo de quase setecentos milhões de euros. Só o estádio de Braga teve um desvio médio relativo ao custo previsto muito superior a trezentos por cento. O governante com a pasta do Desporto, José Lello, tendo sido informado de que o estádio de Leiria iria custar o equivalente a vinte milhões de euros, é citado como tendo dito: 'Vinte milhões? Tem de ser muito mais!' Primeira pergunta: porquê? Resposta: porque havia uns governantes e uns autarcas parolos que queriam brilhar junto do seu eleitorado. Segunda pergunta: que riqueza geram os estádios? A relação custo-benefício foi devidamente acautelada? Não. O

que foi acautelado foi a reeleição desses autarcas e o brilharete dos governantes junto do eleitorado e, má-língua decerto, dos construtores amiguinhos. Terceira pergunta: o que aconteceu a esses estádios? A resposta é triste. O volume das receitas geradas nos estádios de Leiria, Loulé e Aveiro é insuficiente para cobrir as despesas. Os prejuízos são tantos que a Câmara de Aveiro até já anda a pensar em demolir o dela."

Olhou para o condutor. "Pergunto-te eu: alguém foi preso por estes crimes contra a economia portuguesa?"

A pergunta desencadeou um ataque de riso do historiador.

"Que eu saiba não."

"Mas as parcerias público-privadas serviram ainda para outra coisa", indicou Filipe. "As PPP rodoviárias passaram em 2007 para uma coisa chamada Estradas de Portugal, que mais não parece do que um esquema concebido para fazer desaparecer dinheiro. O valor actual líquido dos encargos previstos para essas PPP era em 2009 de doze mil milhões de euros, valor que no ano seguinte desceu por artes mágicas para cinco mil milhões."

Tomás fez um rápido cálculo de cabeça.

"São menos sete mil milhões", observou. "Para onde foi esse dinheiro?"

"Sei lá! Nunca isso foi explicado nem justificado de uma forma 118


adequada! Mas o facto é que, de um ano para o outro, desapareceram sete mil milhões de euros em termos de valor actual líquido! Alguém foi preso?"

O condutor, sempre de olhos na estrada, sorriu.

"Pois..."

"A verdade é que uma fatia crescente das receitas e das despesas públicas foi colocada fora do Orçamento do Estado. Os esquemas para o fazer são inúmeros. O estado e as câmaras têm limitações orçamentais? Abrem-se umas empresas estatais e municipais para fazerem despesa não controlada pelo Orçamento do Estado nem pelo parlamento. Foram criadas perto de mil sociedades de capitais públicos para gastar à farta e sem controlo e os dinheiros públicos têm de alimentar mais de treze mil entidades, entre institutos, fundações, observatórios e afins. Os hospitais gastam muito dinheiro e isso está a aumentar a despesa do Orçamento do Estado? Em vez de controlar a despesa transformam-se os hospitais em empresas públicas, como aconteceu em Lisboa com o Curry Cabral, e assim deixam de fazer parte do Orçamento, que fica mais magro e permite aos governantes dizerem com ar sério e pose de estado que estão a diminuir os gastos. A despesa continua a ser feita, claro, mas ficou invisível. Através de todas essas empresas públicas, os governos contraíram grandes empréstimos e fizeram despesas brutais sem que nada ficasse registado no Orçamento do Estado."

"Se bem me lembro", atalhou Tomás, "os geniais homens e mulheres que nos governaram ao longo do tempo chamavam a isso 'engenharia orçamental'."

"Pois

eu

chamo-lhe

aldrabice,

gatunagem

e

vigarice

desavergonhada!", exclamou Filipe. "É como se um hotel começasse a arder e os donos decidissem esconder esse facto dos hóspedes para manter a reputação do estabelecimento." Balançou a cabeça. "O

curioso, meus caros, é que ficaram todos muito admirados quando 119


viram que o país se incendiou! Para alijar responsabilidades, desataram a dizer que a culpa é toda da crise internacional..."

Fez-se silêncio dentro do automóvel. Os três ocupantes iam de olhar fixo na estrada e o passageiro de trás amadurecia o que acabara de ouvir. Já todos tinham lido coisas sobre o assunto, claro, mas eram notícias soltas, aparentemente sem relação umas com as outras, como folhas num galho. Dessa vez era diferente, tudo aparecia relacionado, via-se toda a árvore e vislumbravam-se até os primeiros contornos da floresta.

"Isso é uma tristeza", acabou Alexandre por reconhecer, tentando redireccionar a conversa para o ponto por onde ela tinha começado.

"Não podemos esquecer, no entanto, que as infra-estruturas são necessárias num país. É evidente que houve inúmeros abusos, má gestão e aldrabice, mas isso não invalida a necessidade dessas obras.

Como pode a economia crescer se não houver infra-estruturas?"

"Claro que os bens não-transaccionáveis são importantes", aceitou Filipe. "Mas não podem é constituir o centro da actividade económica nem desequilibrar as contas públicas, como acabou por acontecer em Portugal! Em vez de apostar em coisas que se exportassem, os governos optaram por derreter o dinheiro em betão.

Foi este o sector da economia que cresceu e que atraiu os melhores salários. Para responder à competição do sector não-transaccionável, o transaccionável teve de aumentar os salários, o que fez com que os seus produtos encarecessem e se tornassem menos atraentes do que os estrangeiros. Aconteceu assim uma coisa incrível: não só os produtos portugueses se tornaram pouco apelativos para os consumidores estrangeiros, por serem demasiado caros, como se tornaram pouco apelativos para os próprios consumidores portugueses! Considera isto aceitável?"

Alexandre ficou sem saber o que dizer.

"Realmente..."

120


"Vendo uma coisa destas acontecer, o que fizeram os governos?"

Ao volante Tomás encolheu os ombros.

"Assobiaram para o ar", disse com um sorriso amargo. "E, se bem me lembro, anunciaram grandes investimentos na economia, não foi?"

"Investimentos em quê? Mais obras públicas, mais betão, mais bens não-transaccionáveis!" Filipe soltou uma gargalhada. "Uns génios!

Umas luminárias! Os nossos governantes eram tão bons, tão bons, que nos conduziram alegremente à bancarrota, os idiotas! Tornaram o sector não-transaccionável a estrela da economia, afundaram aí milhões e milhões de euros, atraíram para aí os melhores talentos, esmagaram o país sob um manto de betão! Auto-estradas, Scut, estádios... foi uma pândega!"

"Mas as construtoras civis estão agora a trabalhar em Angola e noutros países", observou Alexandre. "Desse modo estão a exportar, não estão?"

"Não exportam nada!", devolveu Filipe com a voz carregada de sarcasmo. "Quando a construtora chega a Angola contrata operários angolanos. O betão usado em Angola é feito lá. A única coisa que a construtora exporta é o trabalho de um punhado de engenheiros e arquitectos. Ou seja, nada de significativo. Ao internacionalizarem-se, as empresas do sector não-transaccionável não exportam bens nem serviços em quantidade relevante. Acredite em mim, rapaz. Só o sector transaccionável é exportador. Desde o início do euro, Portugal está na lista da frente dos países que fizeram maior esforço de investimento em percentagem do PIB, mas esse dinheiro foi derretido em betão e... puf!, desapareceu. Investimos muito e mal."

"Mas o que poderia o estado fazer?", questionou-se o passageiro do banco traseiro. "Deveria investir em bens transaccionáveis? O estado punha-se a fazer sapatos e vinho e azeite?

Isso não faz sentido!..."

121


"Claro que não", concordou Filipe. "Numa sociedade de mercado como a nossa, o sector transaccionável está entregue aos privados. São eles que fazem esses bens para exportação."

"Então o que deveria ter feito o estado?"

"Em vez de estourar o dinheiro em betão, usava-o para ajudar o sector transaccionável a tornar-se mais competitivo."

"Mas como? Dava o dinheiro directamente aos privados? Isso queriam eles!"

"Financiava a aquisição de tecnologia, por exemplo. Pagava a requalificação dos trabalhadores. Baixava os impostos cobrados às empresas."

Alexandre franziu o sobrolho.

"Ajudava os privados a terem mais lucro, quer o senhor dizer..."

"Também", admitiu Filipe. "E então? O lucro não é um crime, como você insinua e muita gente quer fazer crer neste país, mas um objectivo legítimo da actividade económica. Você por acaso trabalha de graça?"

"Eu?"

"Sim. Imagine que, em vez de o terem despedido, os tipos da garagem do seu primo lhe sugeriam que trabalhasse sem receber dinheiro. Aceitava?"

"Claro que não, que disparate! Isso era aceitar ser explorado."

"Ah, malandro!", exclamou com voz de falsete. "Isso quer dizer que você só pensa no dinheiro, no lucro..."

"Não é isso! Preciso do salário porque tenho de viver."

"Quem trabalha por salário trabalha por dinheiro, meu caro. Ou seja, de certo modo trabalha por lucro. Isso não é vergonha nenhuma, fique descansado. Trabalhar por dinheiro e por lucro é perfeitamente legítimo." Ergueu um dedo. "O que é válido para si, contudo, é também válido para um empresário. Procurar o lucro é natural e salutar numa economia, não há nada de errado nisso. Se todos 122


lucrarem, a economia torna-se muito saudável."

Enredado na rede deste argumento, Alexandre sacudiu a cabeça como se assim se conseguisse livrar da armadilha.

"Bem.., estamos a desviar-nos", observou. "A minha dúvida é perceber em que medida baixar o IRC das empresas é socialmente justo. Parece-me correcto que elas paguem impostos, como qualquer trabalhador. Por que razão haveriam os empresários de pagar menos? Era o que mais faltava!"

"As empresas já pagam menos, meu caro", lembrou Filipe. "E existe uma boa razão para isso. Reduzir os impostos às empresas é legítimo e desejável se beneficiar o conjunto da sociedade. O que é o caso."

"Ai é? Como?"

O amigo calou-se por um instante, ponderando a melhor maneira de responder.

"O que é um empresário?"

Alexandre riu-se.

"É um tipo que anda a explorar os trabalhadores para se encher de dinheiro."

"Um empresário é uma pessoa qualquer que decide abrir uma empresa. Posso ser eu ou o Tomás ou você. Imagine que é você. Foi despedido da garagem, não arranja nenhum trabalho que lhe interesse e, desesperado, pega no dinheiro que poupou ao longo destes anos e abre um negócio. Uma fábrica de sapatos, por exemplo. Ao fazer isso vai ter de avaliar os ganhos e as perdas. De que maquinaria vai precisar e quanto custa ela? Qual a matéria-prima? Couro? Quanto custa o couro? E trabalhadores? De quantos vai precisar? De dez? Quanto terá de lhes pagar? Quanto terá de pagar à Segurança Social por cada um deles? E quanto dinheiro terá de pagar de IRC ao estado? Você faz as suas continhas e começa a perceber que assim não dá, vai ter prejuízo. A maquinaria é cara, o salário do pessoal é elevado, os impostos comem-lhe o resto."

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"Sim, com certeza que o trabalho de um empresário tem as suas dificuldades, não digo que não..."

"Repare, meu caro, se você não abrir a fábrica, o que irá acontecer? Há dez trabalhadores que vão continuar no desemprego, além de você, claro. Todos a receberem o subsídio de desemprego de um estado que já está falido. Além disso você não produz riqueza nenhuma, pelo que o fisco fica de mãos a abanar. O que ganhou o estado com isso? Nada. Só ficou a perder."

"Pois, admito."

"Ou, se mesmo assim quiser abrir a fábrica, pode fazê-lo... na República Checa. Os trabalhadores aí são mais baratos e mais qualificados. Ou na Irlanda, onde só se paga doze e meio por cento de IRC e é mais fácil despedir trabalhadores se as coisas correrem mal. Ou seja, Portugal perdeu o seu investimento e a República Checa ou a Irlanda ganharam-no. Dez trabalhadores irlandeses ficaram com o emprego, o estado português ficou com os encargos sobre os dez desempregados que você empregaria e não empregou e sem cobrar uma percentagem, mesmo que pequena, sobre os lucros que afinal você vai ter noutro país."

O passageiro do banco traseiro abanou a cabeça.

"A seguir essa lógica, a escravatura é que era boa..."

"É o que pensa, e pratica, a China comunista", observou Filipe, sublinhando a palavra comunista. "Vivemos numa economia global e estamos a competir com países que têm os seus habitantes na miséria absoluta, a trabalhar como escravos a troco de quase nada.

Não digo que desçamos a esse nível, não precisamos, mas nalguma coisa teremos de ceder."

"Os Alemães não cederam", observou Alexandre. "Vivem na mesma economia global em competição com a China e não baixaram o seu nível de vida."

"Está muitíssimo enganado", corrigiu-o Tomás, quebrando o 124


silêncio com a conversa que escutara na cela de Atenas bem presente na memória. "Em 2003 os Alemães iniciaram uma política de degradação dos salários reais e de cortes nas despesas e no estado social. É por isso que hoje a economia deles está saudável.

Adaptaram-se à competição. Além do mais, têm uma economia de bens transaccionáveis de alta tecnologia e utilizam o capital para a apoiar. Já nós, em vez de investirmos na qualificação da nossa economia transaccionável, utilizámos o capital, insisto, para fazer betão. O estado investiu em auto-estradas, as famílias em casa própria, automóveis e férias, enquanto muitas empresas têm vivido à custa do crédito que lhes tapa os buracos e financia os investimentos. Se a dívida pública portuguesa é uma catástrofe, a dívida privada é ainda pior."

Meio contorcido para encarar o companheiro de viagem que se encontrava no banco traseiro, Filipe retornou o fio da conversa.

"Deixe-me no entanto retomar o exemplo do seu projecto de uma fábrica de sapatos." Fez uma pausa teatral. "E se o estado português o ajudasse? E se o estado português lhe desse metade do dinheiro para pagar a maquinaria? E se o estado português pagasse a formação dos seus trabalhadores? E se o estado português lhe baixasse o IRC? Nesse caso você faz as suas contas outra vez e...

pimba, descobre que tem lucro!"

"Aí já posso abrir o negócio em Portugal."

"Claro! Era isso que devia ter sido feito, em vez de se estourar a massa toda no betão! Olhe o que fez a Irlanda. Em 1960 a Irlanda era o quarto país mais pobre da Europa ocidental. O quarto mais pobre!

Mas em 1994 teve um ministro das Finanças chamado Ruairi Quinn que mudou esse destino. O senhor Quinn decidiu cortar brutalmente os impostos para as empresas."

Alexandre quase saltou no banco traseiro.

"Isso é neoliberalismo, exclamou em tom de acusação, a revolta a 125


incendiar-lhe o espírito. "Foram essas ideias neoliberais que nos conduziram ao estado em que nos encontramos!"

Filipe esboçou um gesto de desagrado.

"Isso do neoliberalismo são catalogações criadas para intimidar os críticos e inibir quaisquer reformas", disse. "Na verdade o senhor Quinn era socialista." Levantou o dedo para sublinhar o ponto.

"Socialista, entendeu? Tão socialista como o chanceler alemão Gerhard Schrõder, que em 2003 reduziu os salários reais e cortou no estado social para restituir competitividade à economia alemã." Baixou o dedo. "Acontece que o pai do senhor Quinn tinha sido um bem-

-sucedido comerciante de automóveis e isso permitiu-lhe perceber como funcionava o mundo dos negócios. Então o que fez ele?

Manteve as despesas do estado sob controlo férreo e isso deu-lhe margem para a sua experiência revolucionária: baixou o IRC das empresas para doze e meio por cento."

"Neoliberalismo!"

"Não diga disparates", repreendeu-o Filipe. "O que se passou foi que o senhor Quinn tinha percebido uma coisa elementar: impostos baixos atraem investimentos altos. A aposta resultou em cheio. Os Irlandeses desataram a abrir negócios, os empresários de todo o planeta puseram-se a investir na Irlanda, o dinheiro começou a jorrar para o país em catadupa, o emprego disparou e o crescimento também. Quando Quinn subiu ao poder, o crescimento do PIB na Irlanda era de dois e meio por cento. Com a redução drástica do IRC

saltou para mais de dez por cento. Apesar de taxar menos, o estado irlandês passou a cobrar mais dinheiro e a Irlanda tornou-se um país per capita mais rico do que a Alemanha ou os Estados Unidos."

"Pois, pois", resmungou Alexandre. Franziu o sobrolho. "Não é a Irlanda que está agora em crise?"

"Por outros motivos que não têm directamente a ver com os gastos públicos, mas com o impacto da importação de produtos das 126


economias emergentes, com o crédito barato que gerou a bolha do imobiliário e sobretudo com as aventuras irresponsáveis dos seus bancos", sublinhou Filipe. "O importante no exemplo irlandês é verificar o efeito positivo que uma baixa dos impostos às empresas pode trazer à economia em geral e a importância que as empresas têm na saúde económica de um país. O problema é que existe em Portugal uma cultura antiempresarial. Os empresários são tratados como inimigos e antagonizados, penalizados por serem empresários e por procurarem o lucro. A pensar assim, o país não vai a parte nenhuma."

Alexandre mantinha-se firme.

"Os empresários são exploradores sem escrúpulos", vociferou.

"Uma classe a abater que vive à custa do suor dos trabalhadores. O

grande capital é o sugador do povo. Os grandes empresários só querem abocanhar o mais que..."

"E quem é que falou em grandes empresários?", cortou Filipe.

"Em primeiro lugar devia-se acabar com o anátema que a nossa cultura colou aos empresários. Temos maus empresários? Temos sim.

Só assim se explica, aliás, parte da gigantesca dívida privada portuguesa. Mas mesmo sendo geralmente maus, são eles que criam riqueza, não é o estado. Por outro lado, é bom lembrar que o que faz a riqueza de um país não são apenas os grandes empresários, meu caro!"

O passageiro de trás carregou as sobrancelhas, desconcertado.

"Peço desculpa? O senhor estava a defender a importância dos empresários e agora... está a contradizer-se."

"Não estou não. O que faz a riqueza de um país são sobretudo os pequenos e médios empresários, os trabalhadores que pegam no seu pé-de-meia e investem num negócio. Os pequenos e médios empresários representam noventa e nove vírgula sete por cento do tecido empresarial em Portugal. São eles que têm de ser defendidos!"

Que disparate!"

127


"É o que dizem os estudos. Embora também criem emprego, as grandes empresas são destruidoras de emprego. O verdadeiro motor da economia não é o estado, são as empresas, e em particular as pequenas e médias empresas. Cerca de setenta por cento da criação de emprego depende delas.

Além do mais, elas são responsáveis por quase metade das nossas exportações: as pequenas fábricas de sapatos de luxo em São Pedro do Sul, as pequenas fábricas de têxteis do Vale do Ave, os produtores de vinho, os produtores de azeite, os restaurantes e as lojas e as gelatarias que servem os turistas no Algarve. Ajudem-nas e ajudar-se-

-á a economia. Mas o que se fez em Portugal? Os governos, além de engordarem o estado e estourarem o dinheiro no betão, só ajudaram as grandes empresas, com quem estabeleceram aliás relações de cumplicidade, compadrio, proteccionismo e trocas de favores e influência." Desenhou um "0" com os dedos. "Para as pequenas e médias empresas não foi nada. Zero. Qual o resultado dessa brilhante política? Acabámos na bancarrota!"

"Tudo bem", admitiu Alexandre. "Mas os grandes investimentos do estado ajudam a economia..."

"Se assim é, porque não ajudaram? O estado português passou os últimos dez anos, até ao colapso da economia, a despejar dezenas de milhares de milhões de euros na política do betão, fazendo obra pelo país inteiro. A crer nessa tese, o PIB do país deveria ter disparado aí uns sete por cento, não lhe parece?"

"Bem... sim."

"Pois a taxa média de crescimento de Portugal nos dez anos que culminaram com a chegada do FMI, ou seja, de 2001 a 2011, foi inferior a um por cento! Mais exactamente zero vírgula três por cento."

O jovem passageiro arregalou os olhos, atónito.

"Zero vírgula três?"

Filipe abriu os braços, como se tivesse acabado de fazer uma 128


demonstração.

"É para que veja, meu caro. Ao contrário do que foi pro-pagandeado, o investimento do estado criou pouquíssimo ou nenhum crescimento económico. Grande parte do dinheiro foi gasta em obras que nem sequer geram metade da riqueza necessária para pagar as amortizações e os juros."

Alexandre sacudiu a cabeça, ainda estupefacto. Apesar de todo o investimento de uma década nas obras públicas, espantou-se, a economia estava com um crescimento médio anual do PIB quase a zero. Como era possível uma coisa dessas?

"Quer dizer que se deve apostar nas pequenas e médias empresas?"

"Com certeza." Ergueu um dedo, para fazer uma ressalva. "Mas há um problema. O crowding out."

O passageiro do banco traseiro contraiu a face num esgar de incompreensão.

"Crowding... quê?"

"Os bancos têm normalmente dinheiro para emprestar, não é?", disse Filipe, tentando tornar a expressão compreensível. "É um valor limitado, claro. Imagine que o dinheiro disponível é um bolo. Uma metade seria emprestada ao estado e aos grandes empresários e a outra aos pequenos e médios empresários. Consegue imaginar isso?"

"Sim, o dinheiro seria um bolo cortado ao meio."

"Acontece que o estado, devido às suas políticas ruinosas, está teso e precisa do bolo todo. O que faz então? O governo chega ao pé do banqueiro e diz-lhe: passa para cá tudo. Como o banqueiro tem relações de cumplicidade e trocas de favores com o governo, cede.

Conclusão, o bolo vai todo para o estado, com uma pequena fatia a sobrar para os grandes empresários amiguinhos. E as pequenas e médias empresas? Ficam sem nada, claro. É isso o crowding out. O

estado empurra as pequenas e médias empresas para fora do bolo."

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"Mas isso é mau para a economia!"

"O que pensa que tem estado a acontecer em Portugal, meu caro? É isto! Não há dinheiro nem ajuda para as pequenas e médias empresas, que são o verdadeiro motor da economia! Depois admiram-se que o país seja pouco competitivo e chegue a uma situação de pré-falência!"

A conversa era deprimente e, talvez por isso, morreu nesse instante. De olhos sempre colados à estrada mas a mente a digerir toda aquela informação, Tomás manteve-se mudo durante a generalidade do diálogo, enquanto o amigo e o passageiro do banco traseiro discutiam como se tivessem eles próprios a responsabilidade de salvar o país.

O mutismo instalou-se no interior do automóvel, com os passageiros a contemplarem a paisagem em movimento, as mãos de Filipe sempre a acariciarem o envelope com as misteriosas linhas cifradas. Uma dúvida, porém, começou a corroer o espírito do historiador; havia ali qualquer coisa que não batia certo.

"Olha lá, Filipe", acabou por dizer, rompendo o silêncio. "Tu estás anormalmente bem informado sobre tudo isto..."

Não o disse num tom interrogativo, mas tratava-se claramente de uma pergunta: como diabo sabia ele tudo aquilo? Tomás era historiador e, devido ao seu interesse pela história económica, acompanhava naturalmente o assunto. Porém, e que ele soubesse, não era esse o caso de Filipe.

O seu companheiro de viagem continuou a afagar o envelope; dava a impressão até que se tratava de um animal de estimação, e tardou um longo instante a responder. Desviou a atenção da paisagem e fitou enfim o seu velho amigo, uma expressão estranha a bailar-lhe nos olhos.

"Porque pensas tu que ando a fugir?" Suspirou. "Sei de mais."


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