XLVII

As portas fecharam com um sopro, a composição pareceu bufar para se encher de coragem e, com um solavanco, começou a rolar pelos carris e ganhou velocidade. De olhos ansiosos presos à multidão que enchia a plataforma da estação de Atocha, Tomás e Raquel só descansaram quando o comboio deixou a gare e acelerou na sua viagem para leste.

"Se tivéssemos apanhado o AVE", resmungou a espanhola, "estávamos lá em duas horas."

O historiador abanou a cabeça.

"Demasiado arriscado", sentenciou. "O comboio de alta velocidade pode estar sob vigilância. O Combinado é mais lento, mas também mais discreto."

A agente da Interpol não discutiu; sabia que o seu companheiro de viagem estava certo. Na verdade tinha consciência de que fizera o protesto porque se sentia mal-humorada e apenas por isso. Não havia Tomás interrompido aquele momento de intimidade para tratar da porcaria do criptograma?

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Que homem fazia uma coisa daquelas num momento desses? Seria obcecado pelo trabalho? Ou não a desejaria o suficiente? Uma coisa assim não lhe parecia possível; nunca homem algum, pelo menos homem amante de mulheres, lhe dera uma tampa. E depois o português obrigara-a a pegar nas coisas e a sair apressadamente de casa, a ir levantar dinheiro antes que a sua conta fosse bloqueada e a apanhar o comboio sem jamais verdadeiramente lhe explicar o seu raciocínio.

"Barcelona é o nosso destino final?"

"Não", disse Tomás. "Depois apanhamos outro comboio." "Para onde?"

O historiador passou os dedos pelos lábios, como se os tivesse selados.

"Digo-te mais tarde."

Raquel fez uma interjeição desagradada.

"Oh, para quê esse teatro?"

"Medidas de segurança", retorquiu ele. "Se há coisa que aprendi nesta história é que só devo dizer o que é estritamente necessário.

Imagina que te punham as mãos em cima..." Voltou a sacudir negativamente a cabeça. "Não, há coisas que é melhor que não saibas.

Quando, e se, chegar O momento, dir-te-ei."

O seu companheiro de viagem estava a aprender depressa, percebeu a agente da Interpol. Numa operação sigilosa era essencial que cada elemento da equipa só soubesse o que precisava estritamente de saber.

Foi por ter noção disso que Raquel, apesar da irritação subliminar, aceitou permanecer no escuro quanto ao destino da viagem. Na sala dos cofres do banco aprendera a confiar em Tomás e percebeu que teria de levar essa confiança até ao limite do razoável.

A espanhola permaneceu alguns minutos de olhos presos ao exterior, contemplando as casas cor de tijolo e depois as vastas planícies amareladas dos arredores de Madrid. Conhecia bem o seu país e nada do que via era novo. Suspirou de tédio e percebeu que precisava de se distrair.

Encarou Tomás.

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"Porque não me contas o resto?"

O seu companheiro de viagem, que fechara os olhos para tentar descansar, contraiu o rosto numa expressão interrogativa.

"Qual resto?"

"Lembras-te de me explicares a crise financeira no meu apartamento? Ias contar-me mais alguma coisa quando aqueles.., aqueles idiotas entraram."

"Ah, sim. Ia falar na crise do euro e das dívidas soberanas." "Isso é relevante para a nossa investigação?"

"Claro."

"Então conta-me."

O português sacudiu a cabeça, como se tentasse que o abanão pusesse os miolos a funcionar; para quem ainda alguns segundos antes tentava dormitar não era fácil concentrar-se num tema daqueles.

Felizmente era professor universitário; isso dava-lhe o treino necessário para organizar rapidamente a mente e expor informação.

"Para perceber a crise do euro temos de recuar no tempo", disse, os instintos de historiador como sempre a tomarem conta dele.

"Lembras-te de te ter falado na Primeira Guerra Mundial e na dívida contraída pelos aliados europeus com os bancos americanos?"

"Sim, contaste que foi essa ligação que fez alastrar a Grande Depressão à Europa."

"O que fizeram os aliados europeus para pagar o dinheiro que deviam aos Americanos? Como a guerra tinha decorrido essencialmente em França e na Bélgica, o aparelho industrial alemão permanecera intacto e ameaçava dominar a Europa. Então impuseram à Alemanha reparações de guerra duríssimas, de modo a porem os Alemães a pagar a dívida dos aliados. Por causa dessas reparações, mas também para as boicotar, a Alemanha pôs-se a imprimir notas à doida. Imprimiu tantas que gerou inflação e a seguir hiper-inflação. Presumo que tenhas consciência do que isso significou para o modo de vida diário..."

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"Os preços subiram."

Tomás riu-se.

"Subiram? Não, dispararam! Vou contar-te uma pequena história que te vai ajudar a entender o que aconteceu. Um estudante sentou-se à mesa de um restaurante em Freiburg e, consultando a ementa, viu que o café custava cinco mil marcos. Pediu o café e, passado um bocado, pediu um segundo café. Dá dez mil marcos, correcto?"

"Sim."

"Quando a conta chegou, no entanto, era de catorze mil marcos.

Ou seja, no período entre o primeiro e o segundo pedido o preço do café tinha subido. É isso a hiper-inflação. Outro exemplo. Um americano foi a Berlim e deu um dólar de gorjeta a um cozinheiro. O

cozinheiro chegou a casa e reuniu a família. Depois de muito debater o assunto, a família decidiu abrir um trust com esse dinheiro e confiar a um banco a melhor forma de investir o dólar." Exibiu o indicador. "Um dólar."

"Madre de Dios! A coisa estava assim tão mal?"

"Péssimo. A vida na Alemanha foi um inferno na primeira metade da década de vinte. As pessoas recebiam o salário diariamente em sacos cheios de notas e iam logo a correr às lojas para comprar os bens porque sabiam que no dia seguinte eles estariam muito mais caros. A hiper-inflação alemã atingiu em 1923 os dezasseis milhões por cento ao ano, e só acabou com a introdução de Uma nova moeda no final desse ano. No rescaldo de toda esta história, os Alemães responsabilizaram as reparações de guerra e os banqueiros judeus pela hiper-inflação. O liberalismo ocidental ficou desacreditado e, alguns anos depois, Hitler subiu ao poder com a promessa de ajustar contas com o passado."

"Muy bien", disse Raquel, querendo adiantar a conversa. "Mas isso tem alguma relevância para a crise do euro?"

"A hiper-inflação dos anos vinte deixou marcas profundas nos 303


Alemães." Mostrou dois dedos. "Depois disso estabeleceram dois axiomas inegociáveis na sua política económica." Cruzou o primeiro dedo. "Primeiro axioma: a estabilidade de preços é fundamental. Os Alemães perceberam que a inflação destrói a riqueza e o tecido social e deve ser evitada custe o que custar. Acontece que a inflação é um fenómeno monetário, isto é, resulta essencialmente da decisão de um governo de imprimir dinheiro. Quanto mais dinheiro for impresso e chegar à economia, mais alta é a inflação. Se o dinheiro deixar de chegar à economia, a inflação pára."

"Ah, curioso", surpreendeu-se a espanhola. "Sempre pensei que a inflação era um fenómeno espontâneo da economia. Nunca tinha percebido que ela é intencionalmente provocada e pode ser deliberadamente travada."

"Para parar a inflação basta deixar de inundar a economia de notas", repetiu Tomás. Cruzou o segundo dedo. "Segundo axioma: a independência do banco central é inegociável. Cabe ao banco central a decisão de imprimir dinheiro. Se o banco estiver às ordens dos políticos, fará o que os políticos quiserem e não necessariamente o que é correcto do ponto de vista económico. Pode dar jeito a um político adoptar uma determinada política monetária que é boa a curto prazo, isto é, que o ajuda a ganhar uns votos antes das eleições, mas é desastrosa a longo prazo.

Por isso os Alemães entendem que o banco central tem de ser independente do poder político. Isso permite-lhe adoptar políticas monetárias adequadas, em vez de estar sujeito aos eleitoralismos do governo do momento."

"Estou a entender", disse Raquel com uma expressão pensativa.

"Está bem visto, sim senhor. Se calhar devíamos fazer o mesmo aqui em Espanha..."

"E fazem. Vocês, os Portugueses, os Italianos.., todos nós fazemos isso agora."

A sua companheira de viagem esboçou uma expressão incrédula.

"A sério?"

"Claro. Chama-se euro."

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A espanhola soltou uma gargalhada.

"Ah, bom! Só assim!..."

Tomás recostou-se no assento. O comboio fez uma curva em arco pela planície e apontou para leste, posicionando o Sol à direita. uma cortina de luz desceu sobre os dois passageiros e o historiador saboreou o calor suave que jorrava do exterior.

"Os dois axiomas da política monetária alemã revelaram-se um sucesso nas décadas que se seguiram", disse, prosseguindo a sua viagem pela história económica. "Quando dos choques petrolíferos dos anos setenta, por exemplo, a resposta dos Estados Unidos e da maior parte dos países europeus foi aumentar os gastos públicos e a dívida, e imprimir dinheiro.

Em consequência disso, a inflação disparou para a casa dos vinte a trinta por cento e o desemprego subiu. Mas a Alemanha, com a sua obsessão pela estabilidade de preços, recusou-se a imprimir dinheiro e manteve os gastos públicos controlados. Com isso a inflação ficou abaixo dos sete por cento e o desemprego permaneceu reduzido. Ou seja, a economia alemã emergiu vitoriosa do choque entre teorias económicas nos anos setenta."

Impressionada, Raquel esboçou um assobio.

"Muy bien, muy bien..."

"Aliada a uma política monetária restritiva e independente, a Alemanha sempre registou uma forte produção industrial. Para se poderem manter competitivos, os países concorrentes, como a França, a Grã-Bretanha e a Itália, recorreram ao expediente da impressão de dinheiro para desvalorizar as suas moedas. Com o franco mais barato, por exemplo, os Franceses conseguiam vender os seus produtos a um preço mais baixo que os Alemães."

"Então os Alemães tiveram de desvalorizar, não foi?"

"Pois, essa é que é a questão", sublinhou o historiador. "Os Alemães, que não queriam inflação, não desvalorizaram o marco."

"Então como mantiveram a competitividade?"

Tomás abriu as mãos e sorriu, como se se preparasse para revelar o 305


segredo do ovo de Colombo.

"Baixando os salários", revelou. "Com os salários dos trabalhadores mais baixos, os produtos alemães tornaram-se mais baratos. Com a vantagem de o país não sofrer inflação."

A agente da Interpol franziu o sobrolho.

"E a população? E os sindicatos?", estranhou, a incredulidade a impregnar-lhe a voz. "Aceitaram?"

"Tens de perceber que os Alemães aceitam tudo o que não dê inflação", insistiu o português. "Tudo. A hiper-inflação dos anos vinte é um trauma nacional. Além disso, os custos da fusão com a antiga Alemanha de Leste relembraram-lhes a importância da estabilidade monetária. Os sindicatos alemães, que não são liderados por radicais de vistas curtas, perceberam o problema da competitividade e actuaram em articulação com o governo para baixarem o preço dos bens produzidos no país sem ser através do expediente da desvalorização, que provocaria inflação e que o banco central, que era independente, não aceitava."

"Mas como se baixa o preço dos produtos? A cortar salários?"

"Reduzindo o custo da produção", respondeu Tomás. Mostrou três dedos. "Ou seja, baixando os custos de três coisas: matérias-primas, impostos sobre as empresas e salários. O problema é que as matérias-primas têm um preço que não é controlável, portanto esse factor de custo não pode ser reduzido. Os impostos sobre as empresas podem ser reduzidos, mas isso reflectir-se-ia negativamente nas receitas que financiam o estado social. Assim sendo, só restava reduzir os salários. Foi o que eles fizeram."

"Caramba!", exclamou Raquel. "É preciso tê-los no sítio para fazer uma coisa dessas..."

"Estás a ver a coisa, não estás? Enquanto os vários países da Europa ganhavam competitividade através da desvalorização das suas moedas, baixando assim salários disfarçadamente, a Alemanha ganhava competitividade através da redução directa dos salários. Os europeus em 306


geral, e em particular os Franceses, andavam doidos com isso, até porque os Alemães estavam a pôr a nu a incompetência da governação alheia. Os Franceses perceberam também que o banco central alemão, o Bundesbank, dispunha de imensas reservas e queriam usar a Comunidade Económica Europeia para lhes deitar a mão. Mas não conseguiam."

Levantou a mão, como se assim travasse o curso da história. "Até que, numa bela noite de 1989, o Muro de Berlim caiu."

A espanhola fez uma careta de incompreensão.

"O Muro de Berlim?", interrogou-se. "Que raio tem o Muro de Berlim a ver com esta história?"

"Foi a oportunidade que se abriu à concretização de uma aspiração alemã", disse Tomás. "Desde a Segunda Guerra Mundial que a Alemanha estava dividida em dois países, simbolicamente separados pelo Muro de Berlim. A queda do Muro abriu a possibilidade de os dois países se reunificarem. Qual o alemão que desdenharia a possibilidade de..."

"Tudo isso já eu sei", cortou ela com impaciência. "Mas qual a relevância desse acontecimento para a crise do euro? Isso é que eu não entendo."

"O problema é que a Grã-Bretanha e a França se opunham à unificação alemã, por recearem, e com fundamento, que o regresso da Grande Alemanha provocasse um desequilíbrio na Europa. Com a sua sólida produção industrial, os Alemães tornar-se-iam de novo arrogantes e ameaçadores. Uma coisa dessas era inaceitável."

"Bem... o facto é que a Alemanha se reunificou mesmo."

"Porque a França acabou por ceder", explicou Tomás.

"Mas só o fez em troca de uma cedência alemã."

"Cedência? Qual cedência?"

"A moeda única", revelou o historiador. "Os Franceses disseram aos Alemães: damos-vos a vossa reunificação se vocês nos derem o marco.

Queremos acesso às vastas reservas detidas pelo vosso Bundesbank, exigiram os Franceses. Temos de nos assegurar, acrescentaram eles, de 307


que, uma vez a Alemanha reunificada, ela não volta a ameaçar-nos. A moeda única será a maneira de o conseguir. É ela que vai atar a Alemanha ao resto da Europa."

Pela primeira vez em longos minutos, a espanhola acenou afirmativamente.

"Ah…estou a entender."

"Os Alemães aceitaram o negócio e, três anos depois da queda do Muro de Berlim, a União Europeia assinou o Tratado de Maastricht para criar a moeda única."

"O euro."

Ciente de que o demónio se esconde nos detalhes, Tomás mordeu o lábio inferior.

"Acontece que o trauma da hiper-inflação continuava presente na mente dos Alemães. Além do mais, as suas políticas monetárias mantiveram o desemprego baixo. Porque haveriam eles de pôr isso em perigo? Conhecedores dos excessos dos governantes dos seus parceiros europeus, e receando que os outros países da moeda única conduzissem as habituais políticas económicas eleitoralistas e catastróficas que acabassem por arrastar a Alemanha para o abismo, impuseram algumas condições para viabilizar todo o projecto. Como queriam estabilidade de preços a todo o custo, exigiram no tratado o estabelecimento de um Pacto de Estabilidade com alíneas a prever limites de três por cento do PIB no défice público e de sessenta por cento na dívida pública. Quem violasse estes limites seria automaticamente penalizado. Além do mais, perceberam que, uma vez debaixo do guarda-chuva do euro, muitos países poderiam pôr-se a esbanjar dinheiro dos contribuintes alemães e por isso obrigaram à inclusão de uma cláusula de no-bailout, ou seja, nenhum estado pagará a dívida de um outro que andou a gastar à tripa-forra. A outra coisa que impuseram foi a total independência do banco central, mais tarde designado Banco Central Europeu, com autoridade para imprimir dinheiro e um mandato que privilegiasse a estabilidade dos preços."

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"Todos concordaram, claro."

Tomás esboçou um esgar.

"Por acaso, não. Os Franceses em particular achavam que o banco central não pode ser independente, ou seja, tem de estar às ordens dos políticos. Além do mais, opunham-se à ênfase no combate à inflação. O

mais importante para eles não era a estabilidade de preços, mas o crescimento económico. O confronto entre Franceses e Alemães foi brutal e parece que, numa reunião em Dublin, os ministros das Finanças dos dois países quase andaram à estalada."

A revelação provocou uma gargalhada da espanhola.

"Franceses e Alemães à estalada? Ay ay! E nós a julgarmos que eles são muito civilizados..."

"As aparências iludem, minha cara", sorriu Tomás. Deixou o momento passar e assumiu o semblante sério necessário para concluir a sua explicação. "Feitas as contas, os Alemães obtiveram quase tudo o que queriam."

"Quase?"

"Os Franceses conseguiram acrescentar ao mandato do Banco Central Europeu a obrigação de políticas de crescimento, e o Pacto de Estabilidade, por insistência francesa, tornou-se Pacto de Estabilidade e Crescimento."

"O famoso PEC."

"Isso. Outra coisa que os Franceses conseguiram, e que veio a revelar-se crucial, foi impedir o estabelecimento de sanções automáticas aos países que violassem os limites do défice e da dívida. Essas sanções foram substituídas por uma vaga ameaça de inquérito por parte da Comissão Europeia."

"Porque dizes que isso foi crucial?"

"Porque retirou eficácia aos limites do endividamento. Se uma criança gulosa for proibida de comer um bolo mas for informada de que, caso desobedeça, nada lhe acontecerá, O que achas que ela fará?"

"Come o bolo, claro."

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"É por isso que a retirada da cláusula das sanções automáticas se revelou crucial. Sem ela, a imposição dos limites do défice e da dívida tornou-se um verbo de encher."

"Pois, tens razão."

"Ou seja, os compromissos políticos acabaram por derrotar os objectivos alemães de recriar totalmente no euro o perfil do marco", disse.

"Pior ainda, as medidas deixaram de ser coerentes entre elas e criaram buracos na arquitectura monetária europeia. Isso veio a ser uma debilidade crítica da moeda única num contexto de grandes dificuldades operacionais que se previam para o euro."

"Que dificuldades? Estás a falar da crise financeira?" Tomás abanou a cabeça.

"Isso foi depois", disse. "Repara, a existência de uma moeda tem sempre subjacente um estado centralizado. Portugal era um estado centralizado e tinha o escudo, a Espanha era outro estado centralizado e tinha a peseta. O desafio diante da União Europeia era, no entanto, criar uma moeda que não estava associada a um estado. Isso nunca tinha sido feito com sucesso."

"Também nunca tinha sido tentado..."

"Pelo contrário, foi tentado várias vezes na Europa e de diversas formas. No século XIX, por exemplo, a Itália, a Suíça, a França e a Bélgica criaram a União Monetária Latina, a que se juntaram depois outros países, incluindo a Espanha e a Grécia, e que fracassou. Também no século XIX falhou a União Monetária Escandinava. A própria União Europeia tinha feito duas tentativas, o Cobra e o ECU, que falharam igualmente. A verdade é que todas as uniões monetárias bem-sucedidas, como o dólar e outras, tinham como ponto em comum a existência de um governo central unificado com poderes para elaborar um orçamento comum, cobrar impostos, redistribuir riqueza pelas regiões e contrair dívida.

Além do mais, tem de haver mobilidade laborai. Se uma pessoa não consegue trabalho em Évora, vai para Lisboa e isso não é considerado 310


nenhuma tragédia. Se outra não consegue trabalho em Chicago, vai para Detroit. Acontece que nenhuma dessas condições existia ou existe na União Europeia. Não há estado central forte e a mobilidade laborai é risível."

"Então como queriam que o euro funcionasse?", espantou-se Raquel. "Por artes mágicas?"

"Quase", concordou o historiador. "Os políticos europeus, inebriados pela grandeza do projecto, confundiram a realidade com os seus desejos. Os mais lúcidos, por seu turno, sabiam que o euro não funcionaria sem unificação política europeia, mas acharam que a moeda única poderia, com o tempo, levar a essa unificação."

Ouviram um tilintar de porcelanas e viram uma mulher com farda de empregada aparecer no corredor do vagão com um carrinho cheio de pratos e garrafas. Ao sentir o aroma suculento da comida quente, Tomás pôs-se a seguir o carrinho com os olhos.

"Então?", quis saber Raquel. "Estás com fome?" "Claro. Vamos comer?"

"Só se prometeres contar o resto a seguir."

O português tinha tanta fome que já estava a salivar como o cão de Pavlov. Mesmo assim manteve o semblante impassível; desviou o olhar do carrinho para a sua companheira de viagem e sorriu.

"Daqui a pouco já vais perceber o futuro do euro."








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