LXXIII

O ambiente na sala dos Uffizi tornara-se denso, quase como se um nevoeiro pairasse sobre todo o espaço. O dedo de Tomás aproximou-se do botão de play do computador portátil. Antes de carregar, porém, o historiador encarou a procuradora-geral do TPI.

"O próximo segmento gravado pelos dois franceses lida justamente com a questão de determinar a forma como os bancos dos países centrais financiavam o despesismo nos países periféricos", disse. "O que vamos ver a seguir é uma conversa telefónica entre um banqueiro alemão e um banqueiro americano. O alemão tinha tido uma reunião com o ministro espanhol das Obras Públicas e ficou sozinho no gabinete, sem saber que estava a ser gravado. O telefone fixo que ele utilizou também se encontrava sob escuta, o que nos permite ouvir o que o seu interlocutor dizia em Nova Iorque."

Carregou no play e a imagem recomeçou a rolar. Mostrava um homem gordo e engravatado sentado a uma mesa, a fazer uma chamada a partir de uni telefone fixo.

"Hallo, John? Aqui Mathias Glock, do Münchner Eurobank. Tudo bem?"

"Hi, Mattie! Como vai isso, old pai?"

"Wunderbar. Ouve, John, tive agora uma reunião com o ministro espanhol das Obras Públicas e ele pediu-me dez mil milhões de euros para financiar mais uma linha de alta velocidade. Será que me podes disponibilizar esse dinheiro?"

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"A que juro, Mattie?"

"O do costume, claro."

"O juro do costume é muito baixo, Mattie! Já te enviei cinco mil milhões para umas auto-estradas em Portugal, mais sete mil milhões para o governo grego distribuir subsídios às suas clientelas e agora queres outros dez mil milhões para os Espanhóis? Olha que já mandámos trinta mil milhões para financiar a construção civil em Espanha e outros quinze mil milhões para o imobiliário na Irlanda! Essa gente está a estourar dinheiro que se farta! Será que eles depois nos pagam?"

"Ach, John, que pergunta! Não vês que estamos todos no euro? Agora é tudo a mesma coisa, mein Freund! Emprestar a um espanhol ou a um português é o mesmo que a um alemão!"

"Tens a certeza? Olha que a dívida desse pessoal já começa a pesar..."

"Confiança total, John."

"Esses países não têm medo de ficar sobre endividados?"

"Qual quê! Olha, o governador do Banco de Portugal, por exemplo, já disse em público que, uma vez que o seu país está no euro, a questão do sobre endividamento não se coloca. E em privado encorajou os banqueiros portugueses a endividarem-se à vontade. De modo que só temos de aproveitar os juros baixos e usar o dinheiro. Emprestar aos países da zona euro, quaisquer que eles sejam, é absolutamente seguro! Se houver algum problema, as economias mais fortes servem de garantia implícita das dívidas das economias mais débeis."

O americano hesitou.

"Yeah, tens razão", acabou por dizer. "Okay buddy, manda-me então os papéis e eu trato disso. Vamos ganhar boa massa em comissões, hem?"

"Jawohl, John. Vou falar com os Espanhóis para que eles formalizem o pedido. É ainda possível que haja outra encomenda dos Portugueses. Parece que agora também querem construir um aeroporto."

"Wow, Mattie! A Europa parece um estaleiro! É só obras, é só obras! E

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nós a facturar!"

A imagem foi a negro e Tomás carregou no stop.

"Esta conversa é muito interessante porque mostra como o esquema estava montado", sublinhou o historiador. "O dinheiro barato gerado pelas taxas de juro muito baixas era enviado para os bancos dos países centrais na Europa. Apesar de o Tratado de Maastricht ter uma cláusula de no-bailout, na qual é explicitado que a zona euro não se responsabiliza pela dívida individual de cada um dos seus países-membros nem a pagará, os bancos europeus e até os bancos centrais, COO o português, convenceram-se de que tal cláusula nunca seria accionada e alimentaram a ficção de que um empréstimo à Grécia era tão seguro como um empréstimo à Alemanha. Os Americanos compraram essa ficção e enviaram dinheiro a juro baixo aos bancos alemães, franceses, austríacos, belgas e holandeses, que o redistribuíram pelos países periféricos, onde foi aplicado em maus investimentos no sector não transaccionável e no alargamento desmesurado do estado social. O euro tornou-se assim um esquema gigantesco de reciclagem de dinheiro do centro da Europa para a periferia, tornando metade do continente credora e a outra metade especuladora, com os bancos a actuarem como intermediários que arrecadaram enormes comissões e aceitaram como garantia propriedades sobrevalorizadas pela bolha do imobiliário. Quando a bolha americana rebentou e o preço dos imóveis caiu, todo este edifício de cartas foi abaixo. Os países do centro, que canalizaram o dinheiro para a periferia e lhe impingiram negócios para financiar indirectamente as suas próprias empresas, viram a maré mudar e o que fizeram eles?

Desataram a acusar a periferia de gastos irresponsáveis. Tinham razão, claro. O que não disseram, no entanto, é que eles próprios partilhavam grandes responsabilidades por esses gastos e que os seus bancos emprestaram dinheiro à doida, sem cuidar de verificar se os periféricos tinham meios de pagar o que deviam. Conclusão, ficou tudo 494


encravado. Os bancos do centro europeu, em especial os franceses e os alemães, tornaram-se grandes credores da periferia. Os periféricos contraíram tanta dívida aos bancos do centro que, se entrarem em default e não pagarem, grande parte desses bancos irá à falência."

Agnès Chalnot trocou um novo olhar com Carlo del Ponte e, preocupada, suspirou.

"Pois é, isto vai ser um processo judicial muito complicado. Não sei como vamos nós..."

O historiador levantou a mão, sinalizando que ainda não tinha acabado, e voltou-se mais uma vez para o computador portátil.

"Calma que ainda há mais", avisou. "Agora vamos ouvir uma outra conversa telefónica, esta entre o primeiro-ministro português em Bruxelas e o seu ministro dos Assuntos Parlamentares em Lisboa. O

chefe do governo está na delegação portuguesa da Comissão Europeia e as imagens foram captadas horas antes de outro conselho europeu."

Carregou no play e as imagens no ecrã, mostrando um homem sentado a uma secretária e agarrado a um telefone fixo, recomeçaram a movimentar-se.

"Ó António, que ideia é essa de estares a preparar uma lei sobre crimes da responsabilidade de titulares de cargos públicos?", questionou o primeiro-ministro em tom alterado. "Estás doido ou quê?"

"Mas, Gonçalo, já falámos sobre isso!..."

"Falámos sim, mas não foi disto exactamente. O Paulo leu-me há pouco algumas cláusulas e... com franqueza, fiquei estarrecido!" A imagem mostrou o chefe do governo a consultar um papel. "Oito anos de cadeia se um governante actuar de forma a beneficiar ou prejudicar alguém de forma indevida? Cinco anos de prisão para o governante que aceitar ou solicitar vantagem patrimonial ou não patrimonial para si ou terceiros? Três anos de prisão por violação de regras urbanísticas? Um ano de prisão para quem viole as normas de execução orçamental?" O primeiro-ministro português levantou os olhos da cábula que consultava. "Tu estás doido, 495


António? Se tudo isto for penalizado, vamos todos para a prisão, caraças!

O que temos feito nós todos os dias senão beneficiar ou prejudicar alguém de forma indevida? E quando pedimos aos financiadores vantagem patrimonial para as contas dos nossos partidos? E as vezes que temos violado as normas de execução orçamental? Uma lei destas não pode ser apresentada, António!

Nem pensar!"

"Ó Gonçalo, já falámos sobre isso!", insistiu o ministro dos Assuntos Parlamentares. "Temos de dar o ar de que estamos a moralizar a coisa, estás a perceber? Isso dá boa imprensa."

"Pois, mas estes artigos todos parecem-me de mais, António. Imagina que amanhã rebenta uma crise e o país fica em situação de bancarrota ou coisa do género. O que acontece a seguir? Com base nesta lei que andas a congeminar, o Ministério Público abre-nos um processo por violação das normas de execução orçamental, por exemplo, e arriscamo-nos a ir todos para a choça!"

O ministro dos Assuntos Parlamentares riu-se.

"Sabes bem que isso não vai acontecer, Gonçalo. O procurador está controladíssimo..."

"Sim, mas quando sairmos do poleiro os nossos sucessores podem nomear outro gajo para a procuradoria e aí..."

"Os nossos sucessores também vão ter muito cuidadinho. Tal como nós, têm favores a pagar e benesses a distribuir. Somos todos feitos do mesmo barro."

O primeiro-ministro impacientou-se.

"Pois sim", concedeu. "O problema, porém, mantém-se. Esta lei que andas a congeminar parece-me muito perigosa. É melhor parares com esse disparate, ouviste? Não quero cá confusões."

"Não te preocupes, Gonçalo", respondeu o ministro dos Assuntos Parlamentares com uma risadinha. "Está tudo previsto."

"O que queres dizer com isso?"

"Olha só o que diz o artigo sexto da lei", disse, afinando a voz e 496


preparando-se para ler. "A pena aplicável aos crimes de responsabilidade cometidos por titular de cargo político no exercício das suas funções poderá ser especialmente atenuada, para além dos casos previstos na lei geral, quando se mostre que o bem ou valor sacrificados o foram para salvaguarda de outros constitucionalmente relevantes ou quando for diminuto o grau de responsabilidade funcional do agente e não haja lugar à exclusão da ilicitude ou da culpa, nos termos gerais."

Fez-se um silêncio momentâneo na ligação telefónica. "Não percebi patavina", confessou o primeiro-ministro. "O que raio quer isso dizer?"

O seu interlocutor riu-se do outro lado da linha.

"Isto está escrito num legalês propositadamente confuso para que ninguém entenda", explicou. "É um palavreado jurídico que o escritório de advogados do Manel, o nosso ilustre deputado, arranjou como escapatória. Na prática, este artigo significa que ninguém será condenado por coisa nenhuma."

"De certeza?"

"Ó Gonçalo, francamente! Achas mesmo que eu ia parir uma lei que nos encravava a todos? Não, fica descansado! Mesmo que venha a pior das crises, vais ver que ninguém será processado, e muito menos condenado, pelo que quer que seja! Está tudo tratado. Continuamos inimputáveis."

Fez-se um curto silêncio na ligação, enquanto o primeiro-ministro digeria o que acabava de ouvir.

"Vendo bem, acho que essa lei é muito importante para moralizar a vida política em Portugal", sentenciou, a voz de repente serena. "Vou apresentá-la como uma reforma fundamental, destinada a credibilizar a actividade política no país, a prova de que encaramos com seriedade e responsabilidade os nossos deveres para com os Portugueses e não receamos as consequências dos nossos actos de gestão. Quem não deve não teme! É justamente por não devermos que não tememos apresentar uma lei como esta!"

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Uma gargalhada soou do outro lado da linha.

"Primeiro-ministro que fala assim não é gago!"

A imagem voltou a dissolver-se em negro. Tomás parou a gravação e virou-se mais uma vez para os procuradores.

"Penso que o que ouvimos aqui é elucidativo sobre o estado de impunidade dos políticos", observou. "É significativo que num país como Portugal, por exemplo, haja corrupção mas não haja corruptos. Nenhum político foi alguma vez condenado por corrupção, são todos impolutos.

Todas as acusações terminam sempre em nada, uma vez que a lei está concebida de tal forma que se torna muito difícil conseguir a condenação de quem quer que seja. Um autarca de Lisboa que, com a ajuda da polícia, gravou uma conversa com o dono de uma empresa que tentava aliciá-lo acabou condenado por difamação e gravação ilícita, e o corruptor não passou nem um minuto na cadeia. A corrupção é um crime de quem gere dinheiros públicos, e os políticos não têm o menor interesse em aprovar uma lei que seja eficiente no combate a um tipo de criminalidade que os envolve directamente. As pessoas que denunciam a corrupção são as únicas penalizadas. Uma secretária de uma junta de freguesia que afirmou em tribunal ter ouvido falar nuns pagamentos feitos a um ministro para aprovar um grande projecto de licenciamento viu-se, no dia seguinte, despedida da junta onde trabalhava."

"Não há protecção para quem denuncie corrupção?"

"Nenhuma. Os legisladores não estão obviamente interessados em punir a corrupção a sério e em proteger quem a denuncia porque isso significaria que se punham a si mesmos em causa. Legislam em causa própria. Vocês não notaram, na gravação desta última conversa, aquela alusão ao escritório de advogados de um determinado deputado, o tal Manei? Trata-se de uma referência a um dos esquemas com que se branqueia a corrupção fingindo-se combatê-la. O que se passa é que os governantes entregam a elaboração das leis a grandes escritórios de advogados, que as redigem de uma forma muito confusa."

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"Então não devem ser grandes juristas", observou Agnès Chalnot. "Um bom jurista redige leis simples e claras."

"Não está a perceber", disse Tomás. "As leis que eles redigem são deliberadamente confusas!"

A francesa fez uma careta de incompreensão. "Deliberadamente?"

"Claro. Quanto mais confusa e contraditória é a lei, mais alçapões contém. Os advogados contratados pelos partidos e pelos governos lavram leis cheias de regras sempre numa linguagem ininteligível, carregadas de excepções formatadas para as conveniências. Além do mais, e como esses textos são propositadamente confusos, os escritórios de advogados ganham ainda dinheiro a elaborar pareceres sobre as leis que eles próprios fizeram. É uma gatunagem incrível. Andam a cortar salários e pensões às pessoas para pagar os prejuízos provocados por toda esta corrupção."

A procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional suspirou.

"Pois é", anuiu ela. "Juntamente com a questão do financiamento partidário, esse problema é de facto central."

"As duas questões estão relacionadas uma com a outra", reconheceu Tomás. "Mas a questão mais central de todas é a suscitada pela próxima gravação, por sinal a última. Trata-se de Uma interessante conversa entre o primeiro-ministro português, que se encontrava em Bruxelas para outro conselho europeu, e o ministro das Finanças, que ligou de Lisboa. Ora vejam."

O historiador carregou no play e a imagem do gabinete da delegação portuguesa voltou a materializar-se no ecrã do computador portátil, mostrando de novo o chefe do governo sentado à secretária e agarrado ao telefone fixo.

"Então, Gonçalo?", perguntou a voz de Lisboa. "Preparado para mais uma cimeira?"

"Ufa, isto é uma seca das antigas! Vou ter de pedinchar mais umas ajudinhas..." Mudou o tom de voz. "Olha lá, conseguiste aquele 499


investimento dos Americanos em Setúbal?"

"Nem me fales nisso!", devolveu o ministro das Finanças. "Fui lá a Seattle com a conversa de que investir em Portugal é que é bom e coisa e tal, mas os tipos responderam logo que não. Parece que andaram a informar-se e descobriram que, para um trabalhador relativamente bem pago, dois terços do custo para a empresa vão para impostos. Perceberam que temos das maiores cargas fiscais do inundo e disseram-me que não estão para vir aqui esbanjar dinheiro. Além do mais, foram avisados de que não se consegue despedir ninguém, que a burocracia é infernal e que os processos em tribunal levam quinze a vinte anos a ser resolvidos. Decidiram investir na Polónia..."

"Eh pá! Que chato! Não lhes explicaste que temos bom sol, que a comida é óptima, que as pessoas são muito simpátic..."

"Os investidores não querem saber disso para nada, Gonçalo! Sabes o que te digo? Temos de mudar estas leis, porque senão não vamos a..."

"Nem penses numa coisa dessas!", cortou prontamente o primeiro-ministro, nada interessado em alimentar aquela conversa. "Só se quiséssemos perder as eleições! Além do mais, os sindicatos caíam-nos todos em cima!"

"Isso é conversa! Achas mesmo que os sindicatos iam opor-se a medidas que permitiriam criar emprego?" O chefe do governo soltou uma gargalhada.

"Deves estar a gozar! Os nossos sindicatos exigem a criação de emprego e ao mesmo tempo querem manter as actuais leis, que dificultam a criação de emprego. Não percebem, ou fingem não perceber, que com a globalização as grandes empresas têm alternativas de investimento e que com as nossas leis ninguém abre negócio em Portugal." Suspirou. "Enfim, não te rales. Quando isto der para o torto alguém que resolva o problema! Temos é de ir tratar da nossa vidinha, não é verdade?"

O ministro das Finanças não insistiu, tão peremptório fora o seu 500


chefe. Em vez disso, afinou a garganta e baixou a voz.

"Bem, liguei-te por causa de outra coisa", disse de mansinho. "Tenho aqui um problema sério e preciso de falar contigo com urgência."

"Que se passa, Augusto? Não me digas que os cabrões dos jornais voltaram a..."

"Não é nada disso", cortou o ministro. "Recebi aqui uma informação da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos que... enfim, isto é muito complicado, muito complicado mesmo."

"Então? Que aconteceu?"

"Parece que há uma quebra brutal das receitas." "Brutal como?"

"O IRS, o IRC, o IVA.., as receitas do fisco tombaram em flecha."

"Estás a brincar!..."

"Quem me dera! Esta crise na América parece estar a atingir a economia de uma maneira que não prevíamos. As vendas caíram, as empresas estão a facturar menos e muitas até começaram a fechar, há por isso mais malta a ficar sem trabalho e... e anda tudo a pagar menos impostos. As receitas levaram um trambolhão do catano!"

Fez-se um silêncio súbito na linha, com o primeiro-ministro a ponderar o que acabara de escutar.

"Olha lá, isso já transpirou?"

"Não, não. Nada. Esta informação é interna."

O primeiro-ministro suspirou, aparentemente aliviado.

"Ufa, ainda bem!", bufou. "Mantém a coisa em segredo, ouviste?

Vêm aí eleições e não quero cá mais chatices. A oposição é bem capaz de pegar nisso e os jornais..."

"Mas, ó Gonçalo, não estás a ver bem o problema", insistiu o ministro das Finanças. "Se temos menos receita, precisamos de baixar a despesa ou aumentar os impostos."

"Estás doido?", exaltou-se o chefe do governo, irritado com a sugestão. "Com as eleições à porta?"

"Se não fizermos nada, o défice dispara."

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"A malta controla a coisa."

"Qual controla a coisa?! Se entra menos dinheiro, não podemos gastar tanto. Isto é simples aritmética. Temos de cortar na despesa ou aumentar a receita. O problema é que a receita está a levar um tombo dos antigos."

"Não, não", exclamou o primeiro-ministro. "Nem pensar!" "Então como fazemos?"

"Contraímos mais empréstimos para tapar esse buraco." "Mas assim a dívida pública vai disparar."

"Estou-me a borrifar para a porra da dívida pública!", desabafou o chefe do governo, elevando de novo a voz. "Vêm aí eleições e é preciso distribuir umas benesses pela populaça. Por isso vamos até aumentar os salários e baixar os impostos."

O ministro das Finanças quase gritou do outro lado da linha.

"O quê?"

"É como te digo: vamos aumentar a função pública. Estava a pensar em.., sei lá, três por cento."

"Um aumento de três por cento nos salários?!"

"Achas de mais?" Hesitou. "Está bem, ficamos pelos dois vírgula nove por cento." Nova hesitação. "Mas se os aumentos não chegam aos três por cento temos de dar umas alvíssaras com os impostos. Que tal baixar o IVA um ponto?" "Mas... mas..."

"As eleições estão à porta, meu caro amigo!", insistiu o primeiro-ministro.

"Queres perdê-las ou quê?"

"Ó Gonçalo, isso é uma loucura! Não há dinheiro para aguentar uma coisa dessas."

"Tem calma. Ouve, vou explicar-te como vamos fazer a golpada.

Aumentamos a função pública e baixamos o IVA, não é? Dizemos que isto tem a ver com a melhoria da economia e com a nossa gestão rigorosa dos dinheiros públicos e coisa e tal. Fazemos um vistaço do camano. Vêm as eleições, a malta ganha com uma perna às costas e, logo a 502


seguir, pimba!, dizemos que afinal a situação internacional piorou, o que aliás não é mentira nenhuma, e cortamos regalias e deduções fiscais, de modo a reduzir os salários de uma forma invisível, e aumentamos outra vez o IVA e, se necessário, o IRS. Limpinho."

O tom de voz em Lisboa era de desaprovação. "Não me parece nada bem."

"A escolha é simples: queres perder ou ganhar as eleições?"

"Não é isso. A questão é que benesses desse calibre são ruinosas.

Além do mais, ninguém vai acreditar nessa conversa..."

"Claro que vai", retorquiu o chefe do governo. "O De Gaulle disse uma vez que, como nenhum político acredita no que diz, fica sempre surpreendido quando vê que os outros acreditam nele. É mesmo assim, meu caro! As vezes digo com ar sério as maiores tretas que possas imaginar.., e o pessoal papa tudo. Eu próprio às vezes fico espantado! De modo que podes ficar tranquilo. Já ando nisto há muitos anos e sei bem como é..."

"Mas achas que o pessoal não vai notar que estas medidas surgem em contra ciclo só por causa das eleições?"

"Mesmo que notem, qual é o problema? Dizes que os aumentos salariais em ano de eleições são 'mera coincidência' e o pessoal o que faz?

Alguém vai opor-se ao aumento dos seus salários?" Riu-se. "Vai por mim, irá correr tudo bem..."

Sentiu-se uma hesitação no outro lado da linha.

"Pois, és capaz de ter razão."

"Claro que tenho razão!", exclamou o primeiro-ministro. "Mas é essencial que essa informação da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos permaneça confidencial, ouviste? Nem um pio sobre isso!"

"Está bem, vou ficar caladinho", prometeu o ministro das Finanças.

"Mas a carta existe, Gonçalo. O que vamos nós dizer se alguém a descobrir depois das eleições?"

"Dizemos que ela não nos chegou, que não a lemos, que não soubemos de nada... uma tanga dessas."

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"Mas há alguém que acredite nisso?", questionou a voz de Lisboa, ainda carregada de cepticismo. "Isto são as receitas do estado, Gonçalo! Como é possível que uma informação desta importância não chegasse até nós? Dizer que não fomos informados de que as receitas sofreram um colapso é o mesmo que o imperador do Japão dizer que não foi informado de que caíram bombas atómicas no seu país. Não é possível! Ninguém vai comprar uma desculpa tão esfarrapada!"

"Compram, compram!", retorquiu o chefe do governo, seguro de si. "Se a malta negar com convicção, as pessoas acreditam. Sem espinhas!

E mesmo que algumas não acreditem, nunca ninguém poderá provar coisa nenhuma."

A imagem foi a negro e Tomás carregou no stop e voltou-se para os procuradores.

"Esta derradeira conversa ilustra o problema central que conduziu o planeta à crise", observou. "O facto de os políticos porem as suas eleições e reeleições à frente dos interesses dos seus países. Neste caso, tivemos governantes portugueses que, informados em vésperas de eleições da quebra das receitas fiscais, mesmo assim aumentaram salários e cortaram impostos com o único fito de serem reeleitos. Este problema não é, porém, do partido A ou do partido B, do país K ou do país W. Não foi o presidente americano que foi apanhado a segredar ao seu homólogo russo que teria de ser mais duro na retórica anti-russa por causa das eleições que se avizinhavam na América, mas que depois seria mais flexível? Trata-se de um problema geral e fundamental das nossas democracias. Na raiz de todas as dificuldades não estão as falhas ideológicas da direita e da esquerda, embora contribuam seriamente para elas, mas essa questão fundamental de os políticos porem a sua eleição à frente de tudo. É isso que viabiliza a corrupção no financiamento partidário e as interferências dos poderes económicos e financeiros nas decisões políticas, permitindo todos os joguinhos que 504


põem interesses particulares à frente dos interesses colectivos. É isso que leva os políticos a fazerem promessas irrealistas e a adoptarem políticas despesistas que a prazo conduzem à bancarrota. Quando a crise vem, conseguem até convencer os eleitores de que a culpa é dos outros, e em particular dos especuladores, um bode expiatório conveniente porque não tem rosto e não se pode defender. Os políticos querem ser eleitos e fazem tudo, mas tudo mesmo, incluindo vender a mãe e sacrificar os interesses dos seus países, para conseguir esse objectivo pessoal. Põem as eleições e os seus interesses particulares à frente de tudo o resto. Podem dizer que na origem da crise está o facto de todos vivermos acima das nossas possibilidades. Isso é parcialmente verdadeiro e deve-se à nossa incapacidade de competir com os produtos provenientes das economias emergentes. Mas metade, ou mais de metade da crise, deve-se a negociatas de governantes em actos resultantes de tráfico de influências e de corrupção despudorada, situações de que o cidadão comum não tem a menor culpa mas cujos prejuízos é chamado a pagar." Apontou para Marilú. "É este o problema central com o qual o processo do Tribunal Penal Internacional terá de lidar frontalmente e sem tergiversações se quiser ser bem-sucedido."

Quando Tomás se calou, um silêncio pesado impôs-se na Sala Botticelli. Foi a procuradora-geral do TPI, como de resto lhe competia, quem por fim o quebrou.

"Vai ser um processo diabólico", desabafou ela, uma nuvem de cansaço a toldar-lhe o olhar. "Vamos ter de sentar os governantes de uma série de países no banco dos réus."

"Não se esqueça dos antigos..."

"Quais antigos?"

"A responsabilidade pela crise não se limita aos governantes dos últimos anos", lembrou o historiador. "As culpas são partilhadas por muita gente no passado. É preciso processar também muitos antigos 505


governantes por crimes contra a humanidade. Primeiros-ministros, ministros das Finanças, ministros das Obras Públicas, presidentes de governos regionais, governadores de bancos centrais, a maioria dos autarcas..."

"Também os autarcas? Mas assim a lista nunca mais acaba!"

Tomás abriu os braços, num gesto de impotência.

"Pois é, minha cara!", exclamou. "Se queremos processar os suspeitos de responsabilidade pela crise temos de ter consciência de que há muita gente envolvida, embora com diferentes graus de culpa.

E, se é assim em Portugal, também é assim em Espanha, na Grécia, na Irlanda, em Itália... em toda a parte."

A procuradora-geral esbracejou.

"Isso dá centenas de suspeitos, provavelmente milhares! Estamos a falar de um mega processo como nunca foi visto!"

Tomás não respondeu de imediato. Virou as costas, carregou no eject e o computador portátil vomitou o DVD. O historiador pegou no pequeno disco prateado e acenou com ele na direcção da procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional.

"Quatro pessoas morreram para que este material chegasse à sua posse", lembrou. "O que gostaria agora de saber é o que vai fazer com o que aqui tem."

A professora Agnès Chalnot fitou-o de olhos arregalados, na incerteza sobre o que responder. Ela, como de resto todos os presentes naquela sala dos Uffizi, tinha plena consciência de que essa era naquele momento a mais importante pergunta de todas.

O problema é que, considerando a imensidão do processo, não tinha resposta para lhe dar.




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