II

A multidão desfilava em passo lento na rua diante do Museu Arqueológico, empunhando cartazes em caracteres gregos e múltiplas bandeiras, umas vermelhas com a foice e o martelo, outras com símbolos anarquistas. Vozes amplificadas por megafones gritavam palavras de ordem, a que a massa humana respondia num coro ritmado, as frases pontuadas por punhos fechados erguidos no ar.

"A manifestação!", disse o professor Markopoulou, batendo com a palma da mão na testa. "Já me esquecia que hoje havia uma manifestação contra as medidas de austeridade!"

"Oh, não!", soltou Tomás com desânimo. "E agora? A rua parece bloqueada. Como vamos passar?"

Os olhos dos dois académicos percorriam a multidão; deviam estar ali dezenas de milhares de pessoas.

"Porque não vamos com eles?", perguntou o arqueólogo grego.

"Devíamos juntar a nossa voz a este protesto. Sempre era uma maneira de lhe dar força!..."

O historiador português fitou o seu colega com incredulidade.

"O professor está louco? Nós somos académicos!..."

"E então?"

" Desde quando é que os académicos se metem nas confusões da política e das questões laborais?"

O rosto do professor Markopoulou endureceu e os seus olhos 30


escuros tornaram-se frios.

"Desde que me cortaram o salário e me retiraram o décimo terceiro, o décimo quarto e o décimo quinto mês e me aumentaram a idade da reforma!", ripostou com acidez. "O governo foi-me ao bolso e eu deixo-me ficar?" Abanou enfaticamente a cabeça. "Nem pensar!"

Antes que o seu convidado pudesse dizer alguma coisa, o grego começou a descer as escadarias e dirigiu-se à manifestação em passo decidido. Tomás ainda hesitou, mas acabou por correr no seu encalço, percebendo que não tinha grande alternativa, embora estivesse convencido de que aquilo, além de ser um disparate, constituía um comportamento pouco profissional para quem procla mav a i nd ep end ê ncia em r ela ção a os p od e re s polí ticos.

"Professor, não nos podemos meter nesta confusão", ainda atirou, num es forço para aca lmar o seu col ega temperamental.

"Temos trabalho a fazer!"

"Oiça, meu caro", devolveu o professor Markopoulou, virando-se para trás enquanto caminhava. "Vamos ficar aqui só um bocadinho e depois seguimos para as escavações, está bem? Eles estão a ir para a Praça Syntagma, onde se encontra o parlamento, e quero acompanhá-los para descarregar a fúria que ando a alimentar dentro de mim. Vai fazer-me bem."

Assim postas as coisas, que objecções poderia Tomás levantar? O

homem precisava de expressar a sua frustração, que diabo! Em Portugal as pessoas fazia o mesmo nos estádios de futebol quando insultavam o árbitro e a senhora sua mãe; pelos vistos ali na Grécia preferiam fazê-lo nas ruas. Que mal haveria numa coisa dessas? Havia que respeitar os costumes da terra.

Foi assim, sem mais protestos, que o historiador português se juntou à corrente de gente que deslizava pelas ruas de Atenas como um rio imenso e tumultuoso.

Havia já uma meia hora que a multidão não se calava, as 31


palavras de ordem a erguerem-se num coro mais ou menos disciplinado. O professor Markopoulou fundira-se na multidão e berrava a plenos pulmões, o que não deixava de suscitar admiração no seu colega português. Como era possível um académico deixar-se arrastar daquela maneira pelas emoções contestatárias? Tomás observava tudo com distanciamento, estava dentro da manifestação mas era como se estivesse fora dela; analisava o protesto como se não passasse de um sociólogo a fazer um estudo sobre a psicologia comportamental das multidões.

A certa altura o professor Markopoulou calou-se, talvez já fatigado de tanto gritar, e o português aproveitou a oportunidade para o interpelar.

"Então?", perguntou. "0 que estão vocês a dizer?"

O arqueólogo levantou o dedo, assinalando assim uma palavra de ordem que estava nesse momento a ser entoada.

"Os ricos que paguem a crise!", traduziu. Esperou pela palavra de ordem seguinte. "Abaixo os especuladores!" Mais uma pausa.

"FMI, rua! Governo, rua! O poder está na rua!"

A atenção de Tomás fixou-se numa bandeira vermelha com a foice e o martelo.

"Isto é uma manifestação comunista?"

O grego abanou a cabeça.

"O KKE apoia, claro. Mas a manifestação foi convocada pela GSEE, a Confederação Geral dos Trabalhadores Gregos."

O professor Markopoulou regressou às palavras de ordem com vigor renovado e Tomás calou-se, na esperança de que se cansasse em breve e saíssem enfim dali para retomar a investigação. Achava que era muito importante verificar se havia mais manuscritos na câmara onde fora detectado o documento que lera no Museu Arqueológico e sentia-se levemente irritado com o activismo político do colega, que lhe parecia deslocado para quem tinha responsabilidades académicas.

32


Quando a sua mente divagava já sobre a possibilidade de vir a encontrar alguns dos livros perdidos dos Avestá, e em particular o Spend Nask, que lhe daria acesso a uma mina de informação biográfica desconhecida sobre Zoroastro, a sua atenção desviou-se quase inadvertidamente para um grupo de homens que avançava como uma corrente forte no meio da manifestação.

As máscaras que lhes cobriam o rosto pareceram-lhe estranhas e levou algum tempo a reconhecê-las; eram dispositivos antigás, com tubos a saírem da zona da boca como focinhos de porcos. As máscaras encontravam-se já devidamente encaixadas nos rostos e os homens transportavam nas mãos tacos de madeira e garrafas de cerveja e Coca-Cola com panos molhados a espreitarem dos gargalos; delas saía um forte odor a gasolina. A certa altura foram desfraldadas bandeiras alemãs e os recém-chegados acocoraram-se junto à berma.

Enquanto uns se puseram a arrancar pedras da calçada, outros acendiam os isqueiros e colavam as chamas violáceas aos panos inseridos nos gargalos das garrafas. Depois ergueram-se como se obedecessem a uma só voz. Alguns apontaram os isqueiros às bandeiras alemãs e incendiaram-nas perante a euforia aprovadora da multidão, mas o clamor mudou de tom quando outros manifestantes começaram a atirar as pedras contra as vitrinas das lojas e a lançar as garrafas em fogo na direcção da sucursal de um banco.

"Cuidado!", gritou Tomás, puxando o professor Markopoulou pelo braço. "Já viu o que aqueles tipos estão a fazer?"

Uma vozearia assustada ergueu-se da multidão e os manifestantes começaram a correr em várias direcções. As labaredas alastraram rapidamente pela fachada do banco e pelo interior; algumas pessoas apanhadas nas instalações atravessaram em corrida a barreira de fogo para a rua, mas atrás delas ouviam-se gritos de aflição.

"Está gente lá dentro!", constatou o arqueólogo grego. "Meu Deus, eles não conseguem sair!"

33


Tomás observava a cena embasbacado, vendo e sem acreditar.

A cena adquiria tons de irrealidade, parecia que a rua era uma plateia e a fachada incandescente a tela; só assim se explicava a incrível impunidade com que o grupo de manifestantes mascarados lançara cocktails Molotov contra o edifício e provocara um incêndio daquela magnitude. Eram decerto actores a interpretar uma cena, não podia ser outra coisa.

As palavras do professor Markopoulou e os gritos que vinham do interior do banco, no entanto, funcionaram como uma estalada que o trouxe de volta à realidade; aquilo não era cinema, estava mesmo a acontecer. Ao aceitar como verdadeiro o que testemunhava e ao aperceber-se de que havia gente encurralada no edifício em chamas, sentiu-se por fim impulsionado para a acção.

"Vamos''

O corpo pôs-se em movimento quase sem precisar de autorização da cabeça, como se o coração tivesse contornado a razão. Aproximou-se de um dos manifestantes que atirara cocktails Molotov e desferiu-lhe um violento murro nos rins que o deixou momentaneamente knockout.

O homem caiu de joelhos e rebolou pelo chão com dores. Com um gesto rápido, Tomás arrancou-lhe a máscara antigás e assentou-a na sua própria face.

"O que diabo está a fazer?", admirou-se o professor Markopoulou, estarrecido com a acção do colega português. "Está maluco ou quê?"

Ignorando o arqueólogo, o historiador arrancou o casaco do manifestante que se contorcia por terra e pegou nele como se fosse um escudo. Inspirou fundo, os olhos fixados na entrada do edifício em chamas, e recuou num passo para ganhar balanço.

"Não faça isso!", insistiu o grego, interpondo-se no caminho para evitar o pior. "É uma loucura! Ainda vai morrer!"

Enchendo-se de coragem, ou talvez dominado pela mais completa 34


inconsciência, Tomás Noronha tomou a decisão final. Contornou o colega como se ele não passasse de um objecto e desatou a correr, o casaco à frente para sofrer o primeiro impacto das chamas assassinas, os olhos fixos nas labaredas que projectavam braços como um polvo ameaçador, até que se atirou para a fornalha incandescente e mergulhou no archote gigantesco em que se tinha transformado a sucursal do banco.

O professor Markopoulou não queria acreditar no que via. O

seu convidado, o homem que viera à Grécia a seu pedido e que tinha a responsabilidade de proteger, atirara-se para o inferno.



















35

Загрузка...