XI

O número do placard electrónico mudou e assinalou por fim o quarenta e dois. Tomás ergueu-se de um salto, aliviado pelo fim da espera, e dirigiu-se ao balcão dois, que ficara livre para o atender.

Do outro lado estava uma mulher de olhar cansado que o encarou sem um sorriso.

"Venho aqui porque perdi o trabalho e, enquanto não soluciono a minha situação, preciso de receber o subsídio de desemprego."

"Tem aí a declaração de situação de desemprego?"

"O que é isso?"

"O seu anterior patrão não lhe passou um documento a declarar que o senhor ficou sem emprego?"

O historiador tirou um papel dobrado no bolso e entregou-o à funcionária.

"Está a referir-se a isto?", quis saber. "É o que a minha faculdade me entregou."

"Faculdade? O senhor era estudante?"

"Não, professor. Fui despedido."

A funcionária estudou o papel; era de facto a declaração necessária. Com um suspiro, como se assim ganhasse energia para lidar com mais aquele caso, voltou-se para o computador e inseriu no seu sistema informático os dados que constavam do documento. Pediu ainda o bilhete de identidade do seu interlocutor e, quando acabou de teclar no computador, tirou de uma gaveta uma resma de papéis impressos e passou-a a Tomás.

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"Leia este dossiê com atenção", recomendou com secura, como se estivesse a declamar uma deixa muito gasta. "Chama-se deveres dos beneficiários e é o documento onde se estabelecem todas as regras para se poder continuar a receber o subsídio de desemprego." Ergueu dois dedos num gesto maquinal, decerto mil vezes repetido todos os dias. "Há dois deveres que são muito importantes. O primeiro é o de se apresentar quinzenalmente na junta de freguesia onde estiver recenseado. Se não o fizer, perde o subsídio. O segundo é o dever de procurar emprego. Tem de contactar pelo menos uma empresa por semana e tem de comprovar que o fez."

Tomás mirou-a com uma expressão de pasmo estampada na face.

"Comprovar que andei à procura de trabalho?", espantou-se.

"Como raio se faz isso?"

"Fique com comprovativos de que contactou a empresa à procura de emprego", disse a funcionária sem pestanejar, quase como se recitasse um refrão. "Se mandar o currículo por carta registada, por exemplo, guarde o registo dos correios. Se for à empresa procurar trabalho, solicite uma declaração de que o fez."

Levantou o indicador para sublinhar o ponto essencial. "Se não tiver

comprovativ o s ,

p e r de

o

d i r e it o

a o

s u b sí dio

d e

d e s e m p r e g o , e n tendeu?"

O historiador tudo entendeu, mas foi com sentimentos mistos que abandonou o balcão; estar sem trabalho dava, pelos vistos, algum trabalho. Além disso, aquela ideia de se apresentar quinzenalmente na junta parecia-lhe própria de um presidiário em liberdade condicional. Mas enfim, o que poderia fazer?

Ao cruzar a porta e sair para a rua quase chocou com outra pessoa que também abandonava o edifício. Olhou para ela e reconheceu o rapaz barbudo com quem conversara na fila matinal para a senha.

"Isso dos comprovativos é simples", explicou o jovem quando o 92


ainda perplexo Tomás o questionou sobre as burocracias relacionadas com a actividade de desempregado. "Vá ao portal Sapo Emprego na internet e envie o seu currículo por e-mail às empresas lá registadas. O

próprio computador lhe dá o comprovativo de que enviou o e-mail. Guarde-o."

"E depois?"

" D e p o i s a s e m p r e s a s c o n t a c t a m - n o , c l a r o . "

Considerando as montanhas de dificuldades que antevira, Tomás estranhou a facilidade do processo.

"Isso funciona?"

O rapaz riu-se.

"Claro que funcionar", exclamou. "Volta e meia recebo uma resposta das empresas. Querem que vá a uma entrevista ou que vá prestar provas ou até que entre já no dia seguinte ao serviço. Há umas até que estão muito ansiosas por arranjar pessoal."

O historiador hesitou, desconcertado com a informação; havia ali com certeza alguma coisa que lhe estava a escapar.

"Mas se as empresas o querem contratar, isso é... é óptimo!", constatou. Indicou o centro de emprego com o polegar. "O que está aqui a fazer?"

O seu interlocutor fez uma careta.

"Respondo-lhes sempre que já arranjei trabalho e mando-os dar uma volta."

"Perdão?"

"Oiça, esses trabalhos não me interessam", explicou com uma ponta de impaciência. "Querem pessoal para atender ao balcão ou um operário de têxteis que trabalhe todo o dia fechado na fábrica ou um angariador imobiliário que ande de porta em porta ou um camionista que transporte mercadorias para a Polónia... eu sei lá!" Fez uma careta de escárnio. "Não tirei o curso de Direito para andar a guiar camiões ou passar os dias numa fábrica, pois não? Era o que mais 93


faltava! Para isso já me bastou a aventura na garagem do meu primo."

A resposta deixou Tomás embasbacado. Durante dois segundos abriu e fechou a boca sem produzir qualquer som, até conseguir por fim formatar em palavras a interrogação que lhe enchia a mente.

"É trabalho!", disse, quase escandalizado. "Nos tempos que correm qualquer coisa serve, não lhe parece? Com tanta falta de emprego que por aí há, isso parece-me excelente!..."

O rapaz abanou a cabeça.

"Mas em que mundo anda o senhor?", questionou de novo em tom irónico. "Não temos por aí tantos imigrantes estrangeiros a trabalhar?" Arregalou os olhos para enfatizar a ideia principal. "O que não existe é o trabalho que eu quero com o salário que aceito!"

Tomás permaneceu um instante especado no passeio, um olhar abismado estampado na cara.

"Oiça, não se pode pensar assim..."

O seu interlocutor esboçou um gesto impaciente com a mão.

"Não me venha com conversas dessas, parece a minha mãe!", disse. "Olhe, sabe o que me preocupa? É o meu primo, que ainda não me pagou os últimos dois meses em que trabalhei lá na garagem!

Isso é que me preocupa!" Fez um estalido com a língua. "Tenho de ir lá falar com ele."

"A garagem não é em Coimbra?"

"Pois é. Mas estou teso que nem um carapau e ando a adiar a viagem. Talvez quando receber a próxima mensalidade possa..."

"Por acaso vou amanhã a Coimbra", atalhou Tomás. "Se quiser, dou-lhe boleia. Dá jeito levar companhia, sempre vou mais entretido."

O rapaz, que virava já as costas para se ir embora, deteve-se e fitou o historiador.

"A sério? Fixe!"

Trocaram contactos. O rapaz chamava-se Alexandre e marcaram 94


o ponto de encontro no Campo Pequeno para o dia seguinte.

Depois de se despedirem Tomás encaminhou-se para a paragem da Carris, meditando sobre tudo o que acontecera e vira desde que nessa manhã chegara ao centro de emprego; parecia-lhe incrível como, vista de perto, a situação do desemprego revelava contradições e complexidades tão insuspeitadas.

Foi com a cabeça mergulhada nos seus pensamentos, o corpo a guiar-se como se tivesse um piloto automático, que fez a viagem de autocarro e, quase mecanicamente, saiu na sua paragem e encaminhou-se para casa.

Sentiu algo travá-lo.

Despertou dos seus pensamentos e olhou para o lado, espantado. Viu um homem de capuz de chuva na cabeça a segurá-lo pelo braço, a face tapada pela sombra projectada pelo carapuço.

"Então? Já não se fala aos amigos?"

Ultrapassada a surpresa inicial, Tomás fixou o rosto ensombrado e, habituando-se à penumbra, reconheceu-o.

"Filipe!", exclamou. "O que estás aqui a fazer?"

Era Filipe Madureira, o seu velho compincha dos tempos do liceu de Castelo Branco. O amigo esboçou um leve sorriso, olhou em volta para se certificar de que ninguém olhava para eles e, tranquilizado, aproximou a boca do ouvido de Tomás.

"Preciso de ajuda", sussurrou. "Estou em perigo."











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